CAPÍTULO 9

A biblioteca perdida

Roma

O ar está frio no Centro Bibliografico. Sigo a bibliotecária, Gisèle Lèvy, uma mulher alegre de cabelos cacheados, descendo as escadas e entrando numa sala com paredes de concreto pintadas de branco. Mesmo antes de entrar na sala, sinto o cheiro típico de bibliotecas antigas: couro seco, pergaminho, tinta. Nas prateleiras há volumes grossos em couro marrom escuro, que me fazem pensar em troncos retorcidos de árvores antigas. Então, em meio a eles, anéis amarelados de pergaminhos, como bétulas prateadas. Alguns dos livros parecem estar em um processo secular de desintegração – a encadernação aos poucos se soltando da lombada, fios aparecendo como ligamentos secos; o couro rachando e se dividindo em camadas. Cada livro é um registro de uma ruína singular. Volumes impressos ao mesmo tempo se separaram. Alguns estão definhando; outros envelhecem mais graciosamente.

O Centro Bibliografico fica numa casa do século XVIII na margem ocidental do Tibre, em Roma, não muito longe da Ponte Sisto. É um centro cultural que pertence à Unione delle Comunità Ebraiche Italiane [União das Comunidades Judaicas Italianas]. Para entrar preciso passar por portas trancadas que funcionam mais ou menos como portões de segurança. Não é uma experiência nova. Toda instituição judaica que visitei nesta viagem – centros culturais, sinagogas, bibliotecas e museus – tinha sistemas de segurança semelhantes: câmeras de monitoramento, portões de comporta, olhares suspeitos e perguntas. As rotinas de segurança às vezes lembram a dos aeroportos, com detectores de metal, máquinas de raio X, checagem de malas e, às vezes, revistas. As instituições judaicas na Europa viraram fortalezas. Essa ideia dá uma noção desagradável de continuidade histórica. Do outro lado do Tibre, não muito longe daqui, fica o gueto judaico de Roma, criado no século XVI. Uma pequena área de no máximo sete acres, cercada por muros altos, dentro dos quais vivia a população judaica de Roma. Os habitantes podiam sair durante o dia, mas precisavam voltar antes do anoitecer, quando os portões do gueto eram trancados. Isso continuou acontecendo todas as noites por mais de trezentos anos, até a liberação no fim do século XIX. No subsolo do Centro Bibliografico, Gisèle Lèvy procura por um livro nas prateleiras.

“Aqui está”, ela diz.

O livro que ela pega não é um dos impressionantes volumes grossos, e sim um pequeno livro de papel-bíblia, mais ou menos do tamanho da palma da sua mão. Com cuidado ela o abre, fazendo um ligeiro ruído de ruptura. Há uma parte faltando no miolo, como se alguém tivesse dado uma mordida no livro. “Provavelmente foi um camundongo que andou se banqueteando por aqui. Camundongos sempre gostaram de livros. Aonde quer que eu vá numa biblioteca antiga é comum ver camundongos correndo. E aí eu corro também”, Lèvy diz, rindo.

“É uma Tanakh, uma Bíblia judaica, impressa em Amsterdã em 1680. Não sabemos muita coisa sobre este livro, exceto pelo fato de que ele pertenceu a uma família chamada Finzi, que morava em Florença”, diz Lèvy, me mostrando na parte interna da capa o local onde alguém escreveu “Finzi” e “Florença” a tinta.

O pequeno livro comido por camundongos é uma espécie de mistério. Ele voltou a Roma cerca de dez anos após aparecer na pequena cidade de Hungen, perto de Frankfurt. Depois da guerra, o livro acabou nas mãos do único sobrevivente judeu em Hungen, Jeremias Oppenheim. O livro foi entregue a um representante italiano em uma conferência sobre propriedade roubada em Hannover, em 2005. Não se sabe exatamente como parou nas mãos de Oppenheim.

“Dá para ver o carimbo aqui”, diz Lèvy, e me mostra um pequeno carimbo com ornamentos, desbotado e amarelo, na lombada do livro, com a inscrição em italiano “Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano”.

A congregação judaica mantém seus escritos e legado literário no Centro Bibliografico. A parte mais valiosa do acervo vem da Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano, uma biblioteca pertencente a uma escola rabínica fundada em 1829.[1] A escola, um dos mais antigos colégios rabínicos da Itália, ainda está ativa, embora não haja tantos alunos quanto antes.

“Dá para contar nos dedos. São alunos que frequentam escolas normais durante o dia e depois vêm para cá, ou vêm nos finais de semana.”

A biblioteca do Collegio Rabbinico é composta por um grande acervo de obras judaicas do século XVI em diante. Inclui vários livros de famosos impressores judeus italianos como Soncino, De Gara, Bragadin, Bomberg e Vendramin. Mas também há livros judeus aqui de outras impressoras de centros culturais judaicos como Amsterdã, Frankfurt, Tessalônica e Vilnius. Os rabinos do Collegio Rabbinico Italiano viajaram por toda a Europa comprando livros para a biblioteca. Lèvy me mostra uma prateleira com o Talmude em uma robusta edição em dez volumes, O tempo acrescentou uma pátina marmorizada ao couro marrom claro. “É uma edição extremamente rara da Basileia, impressa em 1580”, ela me diz.

O acervo histórico do Centro Bibliografico é composto de 8,5 mil volumes. Alguns vêm de congregações judaicas menores da Itália; são congregações que desapareceram quando a Itália foi unificada no século XIX e os judeus passaram a ter liberdade para se mudar para cidades como Veneza, Florença e Roma. Lèvy me mostra várias prateleiras de livros do gênero, de lugares como Pisa, Siena e Pitigliano, uma pequena comuna na Toscana que chegou a ser chamada de Pequena Jerusalém por conta de sua florescente comunidade judaica.

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Uma pequena Tanakh, uma Bíblia judaica roída por camundongos, que voltou a Roma no início dos anos 2000. A inestimável Biblioteca della Comunità Israelitica continua desaparecida, apesar das várias tentativas de rastrear o acervo.

O acervo do Centro Bibliografico conta a história dos judeus italianos. É uma história que não se manifesta apenas nas páginas encadernadas – também deixou traços externos.

Gisèle Lèvy pega de uma estante um grosso volume encadernado em couro e abre na folha de rosto, totalmente coberta de palavras, frases, símbolos e garranchos a tinta. Meras anotações, mas mesmo assim bonitas – camadas sobre camadas de palavras e símbolos.

“Eles não tinham muito papel antigamente, então usavam livros para fazer anotações. Alguns desses nomes são de pessoas que foram donas do livro. Mas ele também serviu como diário. Aqui diz: ‘Meu filho casou semana passada’. E aqui diz – Lèvy aponta para outro rabisco – ‘Hoje meu neto fez seu brit milá’.”[2]

O livro, de 1745, traz anotações de várias gerações de uma família de judeus sefarditas de Pisa.

“O livro foi impresso em Amsterdã, era comum que os livros dos judeus sefarditas na Itália viessem de lá.”

No início do século XX, a Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano ficava no andar superior de uma grande sinagoga em Lungotevere de’ Cenci, do outro lado do Tibre, um prédio que se destaca na paisagem da cidade em função da arquitetura babilônia-síria. Ele foi erigido no final do século XIX em memória do gueto, como um símbolo da liberdade recém-conquistada pelos judeus romanos. Mas a sinagoga também contava com outra biblioteca, que era tanto mais velha quanto mais valiosa do que a do Collegio Rabbinico – uma biblioteca que durante a guerra sumiu sem deixar rastros, pertencente à congregação judaica de Roma: a Biblioteca della Comunità Israelitica. O acervo continha o legado literário, religioso e cultural da mais antiga congregação judaica da Europa. Entre outras coisas, havia manuscritos sobre a vida intelectual e religiosa dos judeus na Roma medieval – além de uma grande coleção de incunábulos, que incluía obras raras trazidas por judeus sefarditas da Espanha.[3]

Era uma biblioteca que trazia as marcas culturais dos judeus de Roma. Ao contrário da maior parte dos judeus do mundo, a comunidade judaica que vivia em Roma não tinha origem nem nos sefarditas nem nos asquenazes da Europa Central e Oriental. Acredita-se que os primeiros judeus chegaram em Roma já em 161 a.C., enviados por Judas Macabeu, o líder da Revolta Macabeia, que tentava obter apoio de Roma contra o Império Selêucida. Uma comunidade judaica com várias sinagogas se estabeleceu em Roma bem antes do nascimento de Cristo.

Mais tarde, quando as ambições imperiais de Roma chegaram ao Mediterrâneo oriental, a Judeia foi conquistada e incorporada ao Império. Nos séculos seguintes, a população judaica se rebelou em várias ocasiões – com consequências catastróficas. Roma respondeu de maneira implacável e com brutalidade patológica às rebeliões.

Dos que não foram mortos nas guerras, muitos foram escravizados. Outros preferiram abandonar a Judeia devastada pela guerra e ir para outras partes do Império, ou migrar rumo ao oriente, para a Pérsia. Em pouco tempo os judeus que escolheram permanecer na Judeia eram uma minoria. Jerusalém, cidade proibida para todos os judeus, foi substituída pela cidade pagã romana de Élia Capitolina. Na história judaica, a expulsão dos judeus é vista como o início de dois mil anos da Diáspora judaica. No entanto, na história acadêmica a Diáspora é vista como um processo consideravelmente mais longo e mais complicado. A posição estratégica da Judeia entre Europa, Ásia e África significava que a região, por milhares de anos, foi invadida por exércitos egípcios, assírios, babilônios, persas, gregos, romanos, árabes e turcos. A migração e a dispersão dos habitantes dessa área assolada pela guerra vêm acontecendo há muito tempo.[4]

A primeira comunidade judaica de Roma cresceu. Outras congregações apareceram em toda a Itália, muitas vezes compostas por escravos libertos. No período da Alta Idade Média os judeus italianos desenvolveram uma rica cultura literária, não apenas por meio de seus contatos com os judeus sefarditas da Espanha. As traduções de pensadores judeus árabes também tiveram grande influência na cultura cristã. Um dos mais importantes desses foi Maimônides, normalmente considerado o mais importante filósofo judeu da Idade Média. Maimônides tentou demonstrar que era possível reconciliar a filosofia de Aristóteles com a fé judaica. Isso teve grande influência sobre Tomás de Aquino, que, de maneira similar, tentou integrar o sistema filosófico de Aristóteles com a fé cristã.[5]

Ao mesmo tempo, na Alta Idade Média, uma política cada vez mais repressiva e antissemita tomava forma na Igreja Católica. Um papel central foi desempenhado por Inocêncio III, um dos mais poderosos e influentes papas da história, que anunciou a Quarta Cruzada e patrocinou uma implacável perseguição a “hereges” na Europa. Em 1215 ele convocou um dos mais importantes sínodos da era medieval, o Quarto Concílio de Latrão, onde foram feitos ajustes na lei canônica. Decidiu-se que os judeus não podiam ocupar cargos públicos, já que seu crime contra o Cristo os tornava inadequados para tomar decisões em nome dos cristãos. Os judeus também deveriam usar roupas que os distinguissem claramente dos cristãos. Em um encontro posterior decidiu-se que os judeus deveriam usar um emblema no peito de meio palmo de comprimento. O decreto de Inocêncio III de 1215 foi a origem da estrela amarela que os judeus foram forçados a usar no regime nazista, setecentos anos mais tarde.[6]

Os sucessores de Inocêncio III seguiram a mesma linha, inclusive seu primo, o papa Gregório IX, que em 1234 afirmou na doutrina perpetua servitus iudaeorum que os judeus deviam ser banidos da vida política e viver em escravidão política até o Juízo Final, o que em princípio retirou dos judeus qualquer oportunidade de exercer influência social até o século XIX. Gregório IX estabeleceu formalmente a Inquisição, que tinha como objetivo primeiro reprimir seitas religiosas como os cátaros – e também os judeus.[7]

No século XVI, milhares de judeus sefarditas da Espanha e de Portugal se refugiaram na Itália e no Estado do Vaticano. De início eles foram bem-vindos, graças a papas mais tolerantes. Muitos dos que chegaram eram tradutores, poetas e professores – incluindo o historiador Samuel Usque, autor do livro avariado pela bala em Amsterdã. O papa Leão x deu aos judeus italianos permissão para imprimir o Talmude. Mas a comunidade judaica de Roma teve pouco tempo para respirar. Em meados do século XVI, a Igreja Católica iniciava a Contrarreforma para defender a verdadeira fé contra o herético protestantismo. A defesa espiritual criou um ambiente religioso mais intolerante, que também se voltou contra o judaísmo.

O primeiro ataque se dirigiu à literatura judaica, que havia florescido na Itália em princípios do século XVI, com muitos impressores de livros judeus. No dia do ano-novo judaico, 9 de setembro de 1553, o papa determinou o confisco e a queima de todas as edições do Talmude e de textos relacionados a ele. Em uma bula papal, o Talmude foi classificado como blasfemo contra a fé cristã. No Campo de Fiori, em Roma, a Inquisição erigiu uma enorme pira de livros e textos confiscados de lares judeus da cidade. A queima de livros ocorreu em Ferrara, Florença e Veneza, todos centros de impressão judaicos. Milhares de exemplares do Talmude foram consumidos pelas chamas. Em Roma, nenhum livro era impresso em hebraico havia centenas de anos.[8]

A literatura judaica era censurada pela Inquisição, e podem-se encontrar traços disso no subsolo do Centro Bibliografico. Gisèle Lèvy me mostra um livro em que a Inquisição eliminou partes do texto. “Se, por exemplo, o livro dizia, ‘Nosso Deus é o único Deus’, isso seria apagado. Não podia haver nada escrito que pudesse ser visto como crítica à Igreja Católica. Os avaliadores da Inquisição nem sempre eram capazes de ler em hebraico, mas faziam uso de rabinos forçados a se converter ao catolicismo. Assim era comum que ‘judeus’ censurassem outros judeus. É uma história trágica”, Lèvy explica.

Outros livros na biblioteca também trazem sinais da perseguição. Lèvy pega um exemplar encadernado em velino. As bordas das páginas têm um leve tom avermelhado, mas o que me chama a atenção imediatamente são as duas colunas de texto escritas à mão na capa branca.

“Houve muitos pogroms na Itália, especialmente na Idade Média, em que sinagogas eram saqueadas e queimadas. O pergaminho era muito valioso, por isso os textos judaicos em pergaminho eram roubados e vendidos para a Igreja, que reutilizava o material para escrita ou encadernação”, Lèvy explica. A prática era particularmente degradante, já que muitas vezes eram usados rolos da Torá. “A Torá é sagrada. Nunca é jogada fora; quando está em mau estado, é respeitosamente enterrada. Por isso, sempre que os judeus foram perseguidos, salvar a Torá sempre foi importante. A importância era quase igual à de salvar vidas humanas.”

Segundo Lèvy, em bibliotecas antigas situadas ao redor de Bolonha, Parma, Ferrara e Ravenna, é possível encontrar livros encadernados em pergaminho que ainda trazem sinais evidentes de textos hebraicos. “Esses livros têm grande valor para nós, porque os pedaços reutilizados de pergaminho são fragmentos preservados de uma cultura perdida. Às vezes você encontra livros produzidos a partir do mesmo pergaminho original e pode começar a juntar partes para tentar descobrir de onde eles vieram, quem escreveu aquilo.” O texto no pergaminho à nossa frente está escrito tanto em hebraico quanto em ladino, o dialeto espanhol-judeu falado pelos sefarditas. “É muito fácil ver que foi um judeu sefardita que escreveu isso, o texto em hebraico é muito semelhante ao arábico em estilo”, diz Lèvy, passando os dedos pelas linhas.

Mas outra catástrofe recaiu sobre os judeus de Roma apenas dois anos depois das piras de livros em 1553. O papa Paulo IV, na bula papal conhecida como Cum nimis absurdum, retirou os direitos da comunidade judaica. De acordo com Paulo IV, era “absurdo” deixar os judeus – que, como consequência da culpa que haviam atraído para si, estavam condenados à “escravidão perpétua” – viverem entre cristãos e terem os mesmos direitos. Era necessário fazer os judeus perceberem que eram “escravos por consequência de seus atos”.[9]

Os judeus perderam o direito à propriedade e foram forçados a exercer trabalhos não qualificados como trapeiros, penhoristas ou vendedores de peixes. Os homens eram obrigados a usar chapéus amarelos pontiagudos e as mulheres deviam usar xales da mesma cor. Foram proibidos de comer com cristãos, participar de qualquer atividade de lazer com eles ou confraternizar com católicos. E no Sabá tinham de ir à igreja para ouvir as homilias católicas, com o objetivo de incentivar a conversão.

A Cum nimis absurdum estabeleceu o gueto de Roma, que ficava entre o Pórtico de Otávia e as margens do Tibre, uma área que alagava frequentemente. Com problemas sanitários e falta de espaço, as epidemias eram comuns no gueto. Quase um quarto dos habitantes morreu em um surto de praga em 1656.[10] O gueto de Roma, fechado por fora todas as noites, era na verdade uma grande prisão.

A libertação dos judeus italianos só começou com a chegada de Napoleão. Durante a Revolução Francesa, pela primeira vez os judeus receberam direitos plenos de cidadania. Napoleão estendeu essa “política radical” a todo o continente, extinguindo os guetos, acabando com quaisquer restrições e colocando o judaísmo em pé de igualdade com as religiões cristãs. Ele também fez com que o papa abrisse mão de todo o seu poder mundano.

Mas essas liberdades que surgiram com Napoleão acabaram quando ele se foi. Assim que foi restituído ao papado, Pio VII trancou os judeus da cidade no gueto e retomou a Inquisição. No entanto, os tempos não eram favoráveis ao Estado eclesiástico, já que movimentos liberais, sociais e democráticos tiveram avanços no século XIX. O sistema medieval de guetos, restrições e escravidão estava em dissolução em toda a Europa. Nas revoluções de 1848, muitos judeus europeus reconquistaram seus direitos. Mesmo nos estados italianos as restrições antissemitas estavam sendo eliminadas e o gueto foi extinto. O Estado eclesiástico resistiu ao progresso até seu amargo fim. A libertação ocorreu quando exércitos italianos marcharam sobre Roma e dissolveram o Estado eclesiástico. O gueto romano foi na verdade o último do gênero na Europa, antes de os nazistas retomarem o sistema de guetos e as restrições medievais contra os judeus.

No fim do século XIX os muros em torno do gueto foram demolidos junto com a área degradada do entorno. Mesmo assim um tesouro literário foi resgatado do gueto demolido, após sobreviver aos séculos de confiscos da Inquisição e às fogueiras de livros.

Uma inestimável coleção de escritos, manuscritos e livros judaicos foi coletada em sinagogas, escolas e casas do gueto, o que serviu como base para a Biblioteca della Comunità Israelitica.[11] Essa biblioteca singular é um registro da trágica história dos judeus em Roma. Os judeus italianos não só eram os herdeiros culturais da mais antiga comunidade judaica europeia como em seu isolamento tinham desenvolvido um dialeto próprio, que chegou perto de se tornar propriamente uma língua: o judeu-espanhol, ou ladino, com origens na era medieval.[12]

Nunca existiu um catálogo completo da Biblioteca della Comunità Israelitica, exceto por compilações menores de seus textos mais valiosos, feitas pelo pesquisador judeu Isaiah Sonne, em 1934. Mas antes do início da Segunda Guerra Mundial, a biblioteca continha cerca de sete mil volumes, incluindo tanto manuscritos quanto livros que não podiam ser achados em nenhum outro lugar. Havia incunábulos e livros de impressores italianos do século XVI, entre eles uma edição rara do Talmude em vinte e um volumes impressos por Soncino, o impressor banido pelo papado.[13] Havia livros de outros impressores judeus famosos como Bomberg e Bragadin, assim como manuscritos medievais do poeta, rabino e médico Moses Rieti, médico pessoal do papa Pio II no século XV. E além dos manuscritos sobre medicina e astronomia do século XIV, havia livros trazidos pelos judeus da Espanha, incluindo um incunábulo português de 1494.

A biblioteca era o que havia restado dos dois mil anos de presença judaica em Roma, uma herança que contava não apenas a história dos judeus na cidade, mas também os princípios da cristandade. Como Robert Katz descreve em seu livro Black Sabbath: “Entre o material conhecido estavam exemplares únicos de livros e manuscritos que datavam de antes do nascimento de Cristo, da época dos césares, dos imperadores e dos primeiros papas. Havia gravuras medievais, livros dos primeiros impressores e papéis e documentos repassados de uma geração para outra ao longo de eras”.[14]

Dario Tedeschi põe a mão no ouvido e me diz com os olhos que não entendeu. Tento de novo, articulando lentamente cada sílaba. Ele balança a cabeça, resignado. Tedeschi está com uma camisa branca engomada, mangas arregaçadas até o cotovelo. Pelas janelas, veem-se os prédios da Universidade de Roma. Estamos em seu gabinete – uma sala grande, iluminada e com pouca mobília. Não tenho certeza se Tedeschi, perto dos 80 anos, não ouve o que digo ou se simplesmente não entende meu inglês. Talvez um pouco de cada. No fim, ele simplesmente me passa uma caneta. Acaba sendo uma entrevista curiosa, em que escrevo as perguntas num papel que ele examina por vários minutos antes de tentar responder.

“Na Biblioteca della Comunità Israelitica havia livros incrivelmente importantes, raros. Achamos que era a mais importante biblioteca judaica na Itália, talvez até no mundo inteiro”, diz Tedeschi, colocando sobre a mesa um livro com o título Rapporto Sull’Attività della Commissione per il Recupero del Patrimonio Bibliografico della Comunità Ebraica di Roma, Razziato Nelo 1943– os resultados de investigações realizadas pelo governo italiano sobre o roubo das propriedades de judeus. A Itália, como muitos outros países europeus no fim da década de 1990, criou uma comissão pública para investigar o saque de propriedades judaicas durante a Segunda Guerra Mundial. Tedeschi, membro dessa comissão, foi um dos que pediram especial atenção ao desaparecimento da Biblioteca della Comunità Israelitica. “Tenho interesse pessoal nisso; eu mesmo sou um judeu romano. Os pais do meu pai morreram no Holocausto. Mas essa biblioteca não tem interesse apenas para a congregação judaica em Roma, é importante para a Itália como um todo”, diz Tedeschi.

Até então não se sabia quase nada sobre o sumiço da biblioteca. Algumas tentativas, sempre infrutíferas, para encontrar a biblioteca foram feitas após a guerra. Em 2002, depois de pressões da congregação judaica, uma comissão especial foi organizada para encontrar a Biblioteca della Comunità Israelitica, avaliada como tendo “valor inestimável para a herança cultural da Itália como um todo”.[15]

Dario Tedeschi, que na época presidia a Unione delle Comunità Ebraiche Italiane, foi escolhido para chefiar a investigação. Os membros da comissão, que incluía historiadores, arquivistas e funcionários públicos, conseguiram após vários anos de trabalho de detetive descobrir alguns novos detalhes do misterioso sumiço da biblioteca.

“Descobrimos documentos confirmando que a Einsatzstab Reichsleiter Roosenberg roubou a biblioteca. Mas o mistério obviamente é que eles não roubaram uma, e sim duas bibliotecas, já que junto eles levaram a Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano. Mas por que uma das bibliotecas voltou? Essa era a pergunta que nós queríamos responder”, Tedeschi me diz.

A pilhagem, e as circunstâncias que levaram a ela, é mais um capítulo trágico da longa história dos judeus romanos. Quando Mussolini e seu Partido Nacional Fascista chegaram ao poder em 1922, não havia sinais externos que indicassem que o movimento fosse antissemita. Pelo contrário, o regime teve apoio de muitos judeus italianos, e alguns dos líderes mais importantes do partido eram judeus – por exemplo, o ministro das Finanças, Guido Jung.[16] Mas existia uma ala dentro do movimento fascista que tinha ideologia racista. Só no fim da década de 1930, quando as potências formaram o Eixo por meio da união entre Hitler e Mussolini, é que o regime começou a dar mostras abertas de antissemitismo. Em 1938 os fascistas criaram uma legislação racial inspirada nas Leis de Nuremberg, que entre outras coisas proibiam os judeus de exercer cargos públicos e de casar com “não judeus”.[17]

Quando a Itália entrou na guerra em 1940, a perseguição aumentou. A Alemanha nazista começou a pressionar o país para resolver a “questão judaica”. Os alemães se ofereceram para fazer o papel de carrasco – os fascistas italianos só precisavam colocar os judeus do país em trens e mandá-los para o norte.

Apesar do antissemitismo disseminado, muitos grupos do público italiano em geral, do Exército e até mesmo dentro do partido fascista demonstraram aversão às políticas raciais alemãs. Apesar da pressão feita pelos alemães, os militares italianos se recusaram a tomar parte no genocídio. Milhares de judeus entre 1941 e 1943 se refugiaram em partes da Iugoslávia, da Grécia e do sudeste da França ocupadas pela Itália, onde estavam temporariamente mais seguros do que em território alemão. O regime italiano também evacuou quatro mil judeus para o sul da Itália, onde eles permaneceram em segurança durante toda a guerra.

Foi a queda de Benito Mussolini em julho de 1943 que selou o destino dos judeus da Itália. Quando os Aliados ocidentais chegaram à Sicília no mesmo mês, a confiança dos italianos em seu líder e seu apetite para prosseguir na guerra tinham acabado. Depois de o país se render aos Aliados em setembro, a Alemanha nazista, que há muito tempo tinha dúvidas sobre a Itália, atacou imediatamente. Mussolini foi libertado e voltou ao poder, mas agora como mero fantoche das forças de ocupação.[18] A invasão mudaria dramaticamente a situação dos 43 mil judeus que acabaram sob a jurisdição dos alemães.

No fim de setembro de 1943, Herbert Kappler, recém-nomeado chefe da polícia secreta de Roma, chamou os líderes da comunidade judaica da cidade. Ele garantiu que os doze mil judeus que moravam em Roma evitariam a deportação caso conseguissem pagar um resgate de cinquenta quilos de ouro em seis horas. Milhares de pessoas correram para a sinagoga para deixar brincos, alianças de casamento, colares e outros objetos feitos com o precioso metal. O ouro exigido foi entregue no quartel-general da SS na Via Tasso antes do prazo. Mas na verdade a extorsão era uma fraude, e a ordem de deportação já havia sido dada em segredo.[19]

No dia seguinte ao pagamento do resgate, cerca de vinte homens da SS invadiram a sinagoga em Lungotevere de’ Cenci e vistoriaram as propriedades, confiscando entre outras coisas seu arquivo, que incluía o registro dos nomes e endereços dos judeus da cidade. Poucos dias depois a sinagoga foi visitada por dois homens da ERR, que tinham vindo inspecionar a Biblioteca del Collegio Rabbinico e a Biblioteca della Comunità Israelitica.[20] A ERR havia criado um grupo especial para sua operação na Itália, conhecido como Sonderkommando Italien. Um dos que visitaram a sinagoga foi Johannes Pohl, do Departamento Hebraico do Instituto para Pesquisa da Questão Judaica, em Frankfurt, o mesmo Pohl que, no ano anterior, avaliara as bibliotecas Ets Haim e Rosenthaliana em Amsterdã.[21] Poucos dias depois, mais funcionários da ERR chegaram para começar a avaliar o acervo.

Uma testemunha ocular, o jornalista e crítico literário judeu Giacomo Debenedetti, descreveu mais tarde o que ocorreu naqueles dias:

Um oficial alemão examinou o acervo como se estivesse vendo um bordado fino; ele acariciava os papiros e os incunábulos, virava as páginas dos manuscritos e das edições raras. O cuidado e a atenção que ele dedicava variavam em proporção direta ao valor dos volumes. Essas obras eram em grande medida escritas em alfabetos obscuros. Mas quando ele abria as páginas, seus olhos se fixavam neles e se arregalavam e brilhavam como os de um leitor familiarizado com um tema e que sabe como encontrar uma passagem que deseja ou algumas linhas reveladoras. Em suas mãos elegantes aqueles livros antigos falavam como se estivessem sendo submetidos a uma tortura sem derramamento de sangue.[22]

A secretária da sinagoga, Rosina Sorani, também foi testemunha. Depois de averiguar os dois acervos, o mesmo oficial que antes havia acariciado os incunábulos disse a Sorani que as bibliotecas seriam confiscadas e levadas embora nos próximos dias. Ele também a ameaçou, como ela escreveu em seu diário, dizendo que “tudo precisava ficar exatamente como eles deixaram, e caso contrário – eu pagaria com a minha vida”.[23]

A congregação da sinagoga, em uma tentativa desesperada de salvar a biblioteca, implorou aos fascistas italianos. Mas foi inútil. No novo regime fascista, que usava sobretudo alemão, a ala antissemita do partido tinha chegado aos postos mais importantes.

Na manhã de 13 de outubro de 1943, dois grandes vagões alemães, colocados nas linhas de bonde da cidade, foram levados à sinagoga pelo Tibre. Arriscando suas vidas, Rosina Sorani e seus colegas de trabalho rapidamente esconderam alguns dos itens mais valiosos. Artefatos religiosos de ouro e prata foram escondidos dentro de uma parede, enquanto manuscritos particularmente valiosos foram levados para a Biblioteca Vallicelliana, que ficava ali perto. No início da manhã seguinte, funcionários da ERR chegaram com um grupo de trabalhadores. Eles levaram o dia todo para encher os dois vagões de carga – que desapareceram depois disso. Poucos meses depois, em dezembro de 1943, eles voltaram para pegar o que havia restado, especialmente a maior parte da Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano.

Por sorte, os alemães não encontraram os objetos escondidos, mas os judeus de Roma não tiveram tempo de comemorar ou de chorar a perda de sua biblioteca. Por ordens do SS-Obersturmbannführer Herbert Kappler, outros vagões já haviam chegado. Dois dias depois do primeiro carregamento de livros sair da sinagoga, no início da manhã do Sabá em 16 de outubro, os homens de Kappler invadiram centenas de casas de judeus em Roma. Mais de mil pessoas foram feitas prisioneiras, principalmente mulheres e crianças. Elas foram levadas ao Collegio Militare, a poucas quadras do Vaticano e da Basílica de São Pedro, e lá foram mantidas pelo fim de semana. Uma grávida foi forçada a dar à luz no colégio, no pátio, quando os guardas se recusaram a levá-la ao hospital. Na segunda-feira, os prisioneiros foram colocados em um trem de carga e levados para Auschwitz-Birkenau. Poucos sobreviveriam.[24]

O papa Pio XII decidiu não intervir nem fazer qualquer protesto oficial contra a perseguição. O papel do papa na ocupação segue controverso, mas o mais provável é que ele tenha preferido não colocar em risco suas relações com as potências do Eixo, já que isso poderia prejudicar a neutralidade do Vaticano.[25]

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Livro de 1745 no Centro Bibliografico em Roma, com anotações de várias gerações de uma família de judeus sefarditas em Pisa.

No entanto, os nazistas encontraram mais resistência em outras partes da sociedade italiana. A polícia de Roma se recusou a tomar parte da busca por judeus, e muitos cidadãos romanos comuns abriram suas casas para os fugitivos. Muitos judeus também encontraram abrigo em monastérios, igrejas e outras instituições católicas, graças a contribuições individuais de padres e freiras. Apesar das recompensas oferecidas àqueles que revelassem onde os judeus estavam escondidos, as forças de Kappler só conseguiram capturar mais oitocentos judeus. Milhares conseguiram permanecer escondidos em Roma até a cidade ser libertada em junho de 1944.

Em março de 1947, a Biblioteca del Collegio Rabbinico voltou do mesmo modo como havia sido removida, num trem vindo da Alemanha. E até a volta da Bíblia judaica roída por camundongos em 2005, presumia-se que a biblioteca inteira havia voltado em 1947. Essa premissa precisou ser reavaliada por Dario Tedeschi e sua comissão. “Foi uma completa surpresa para nós”, Tedeschi me conta, “mas era uma prova de que nem tudo havia voltado depois da guerra. O que sabemos é que a Biblioteca del Collegio Rabbinico foi levada para Frankfurt, e que foi lá que a encontraram depois da guerra. Mas em algum lugar do trajeto entre Roma e a Alemanha a Biblioteca della Comunità Israelitica tomou outro caminho.”

A Biblioteca del Collegio Rabbinico foi levada ao departamento de Johannes Pohl para literatura judaica no Institut zur Erforschung der Judenfrage, em Frankfurt. A pergunta é: por que a biblioteca da congregação judaica não foi entregue no mesmo lugar? A comissão de Tedeschi passaria sete anos tentando encontrar uma resposta, e depois de longas investigações em arquivos, bibliotecas e acervos em vários continentes o destino da biblioteca permaneceu envolto em uma impenetrável neblina histórica.

No processo, partes do que havia sido perdido foram encontradas. O catálogo do acervo, de Isaiah Sonne, datado de 1934, foi encontrado na Biblioteca Nacional, em Jerusalém. “Eu estava em contato com um amigo que estava trabalhando na Biblioteca Nacional, em Jerusalém. Um dia ele me mandou uma foto de um livro que encontrou. Parecia um diário, uma conferência de livros em italiano. Reconheci a caligrafia dele. Ele me mandou mais fotos, e foi aí que entendi que aquele era o registro dos livros”, diz Gisèle Lèvy, que participou das buscas pela biblioteca. Dois manuscritos com carimbos da biblioteca foram encontrados no Seminário Teológico Judeu, em Nova York. A escola, que havia comprado os manuscritos nos anos 1960, não sabia dizer como eles haviam sido adquiridos. Também havia boatos de que o carimbo da biblioteca fora visto em outros acervos, mas isso jamais foi confirmado.

Em 2009 a comissão apresentou seu relatório final, em que chegava à conclusão de que os livros tirados da sinagoga em outubro e dezembro de 1943 provavelmente seguiram caminhos diferentes. Enquanto o trem de dezembro chegou ao instituto de Frankfurt, o de outubro com a Biblioteca della Comunità Israelitica provavelmente seguiu até Berlim. Mas essas conclusões não passam de especulação. A correspondência relativa às operações da ERR italiana foi destruída quando Berlim foi bombardeada em novembro de 1943. No entanto, caso a comissão de Tedeschi esteja correta, isso explicaria o desaparecimento da biblioteca. Os livros enviados para Frankfurt e os enviados para Berlim tiveram dois destinos totalmente diferentes.