CAPÍTULO 10

Fragmentos de um povo

Tessalônica

Um dilúvio morno dá aos tijolos a cor de um vermelho intenso. As ruínas do palácio do imperador romano Galério ocupam todo um quarteirão da cidade portuária grega de Tessalônica. Hoje as ruínas romanas foram transformadas em um elegante museu a céu aberto. O palácio dos anos 300 fica escancarado e consigo ver os banhos do imperador e seus jardins. Na enorme sala do trono, que tem um diâmetro de trinta metros, ainda há resquícios de um belo piso de mármore. A parte mais bem conservada do complexo é uma rotunda quase totalmente intacta, uma edificação circular de tijolos que, com suas paredes de quase seis metros de espessura, suportou dois milênios de guerras, interpéries e terremotos.

Desde o início o prédio foi usado como templo pagão, mas mais tarde foi convertido por Constantino, o Grande, em uma das primeiras igrejas do mundo. Mil anos depois, os otomanos transformaram a rotunda em mesquita, e o minarete erigido no século XVI continua em pé. A rotunda é um registro da longa história de diversidade cultural e religiosa de Tessalônica: um porto na fronteira entre Europa e Ásia, que carrega as marcas de seus vários governantes – gregos, romanos, bizantinos e turcos. Todos deixaram sinais de sua passagem na cidade, com seus monumentos e suas ruínas. Mas há uma cultura que deixou poucos traços, embora tenha dominado a cidade por quatrocentos anos a partir do século XVI.

Não é fácil encontrar os sinais dessa cultura, que foi apagada. Eles não estão marcados com placas nem são detalhados nos guias turísticos. Mas estão lá, desde que você saiba onde procurar. Bem perto das ruínas do magnífico palácio há um prédio que não chama muito a atenção. Na esquina de uma quadra há uma garagem suja para motos, com visual decadente, as paredes e o telhado cobertos por pichações. Imediatamente atrás da garagem há uma mureta de ardósia preta que chega à altura dos joelhos. Mas em um trecho, a ardósia é subitamente interrompida por um bloco de mármore em que, apesar da erosão e das manchas de poluição, é possível ver uma folhagem padronizada em relevo. Um pouco adiante há outro bloco de mármore, um pequeno pedaço que parece ter sido a parte inferior de uma coluna coríntia. Encontro um trecho mais revelador no ponto em que a mureta chega à rua – uma placa de mármore de vinte centímetros de altura. É possível discernir vagamente as letras esculpidas na superfície. Não é latim, é hebraico. A placa é um pedaço de uma lápide judaica, um fragmento de uma comunidade que até bem pouco tempo existiu aqui. Essa pedra possivelmente foi estilhaçada em um dia frio do início de dezembro de 1942, não muito longe daqui, quando quinhentos trabalhadores gregos armados de marretas, barras de ferro e dinamite chegaram ao velho cemitério judeu, do lado de fora do muro oriental da cidade.[1]

Acredita-se que o cemitério judeu de Tessalônica fosse o maior da Europa, cobrindo uma área de oitenta e seis acres, com quase 500 mil túmulos, dos quais o mais antigo remontava ao século XV. Os políticos da cidade grega queriam há muito tempo tirar dali o cemitério, achando que ele impedia a expansão de Tessalônica. A comunidade judaica resistiu. Quando o exército alemão ocupou a cidade, em 1941, as autoridades gregas e os nazistas agiram em conjunto. Depois de poucas semanas de destruição sistemática, a “vasta necrópole, estilhaçada em fragmentos de pedra e caliça, parecia uma cidade bombardeada, ou destruída por uma erupção vulcânica”, escreveu alguém que testemunhou os fatos na época.[2]

O cônsul americano em Istambul, Burton Berry, relatou que “o trabalho de destruição do cemitério foi feito de maneira tão apressada que pouquíssimos judeus conseguiram encontrar os restos mortais de suas famílias. Mortos recém-enterrados foram atirados aos cães”.[3] De acordo com outra testemunha, a “visão era devastadora. Gente correndo entre os túmulos implorando aos destruidores que poupassem as sepulturas de seus parentes; com lágrimas eles recolhiam os restos mortais”.[4]

As centenas de milhares de lápides e monumentos fúnebres quebrados foram transformadas numa espécie de pedreira, de onde por anos as pessoas retiraram mármore para construções. Os nazistas foram os primeiros a fazer uso desse mercado mórbido. Construíram uma piscina com as lápides. Mas o mármore foi usado principalmente pelos gregos, para consertar casas, construir banheiros, fazer pisos de pátios escolares e até na construção de um iate clube no porto. A praça em frente ao teatro da cidade foi calçada com lápides judaicas. Até mesmo a Igreja Ortodoxa grega fez uso da devastação: dezessete igrejas na região de Tessalônica pediram às autoridades mármore do cemitério judeu.[5]

Hoje, pedras quebradas do cemitério destruído são encontradas por toda a cidade. Na maior parte dos casos a ação do clima, o polimento ou a extração de pedaços apagaram sua história, mas às vezes – como no caso da mureta de ardósia – não houve qualquer esforço para eliminar sua origem. O muro de ardósia não foi erguido durante a guerra, e sim nos anos 1960, quando ainda havia um estoque de pedras do cemitério judeu.

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Pedaço de lápide de cemitério judaico destruído em Tessalônica. O cemitério foi destruído durante a guerra e as pedras foram usadas como material de construção, se transformando em um dos poucos resquícios da extinta comunidade judaica da cidade.

Esses fragmentos esparsos são o que resta da Salonica sefardita, a maior e mais rica comunidade judaica no Mediterrâneo oriental por séculos. Salonica, como a cidade foi conhecida por muito tempo, era um centro judaico de conhecimento, famosa por seus rabinos, escolas, jornais e impressores. Mas a cidade era muito mais do que isso, era, de fato, o único assentamento urbano relevante no mundo em que os judeus não eram minoria.

Pela primeira vez nessa viagem não visito uma biblioteca, porque não há biblioteca a visitar. Tessalônica é um lugar em que o saque, a destruição e o Holocausto deixaram quase nada para a posteridade. Dos cerca de cinquenta mil judeus que viviam aqui em 1942, apenas poucos milhares sobreviveriam.[6]

Hoje, Tessalônica é uma cidade totalmente grega, mas ainda existe uma pequena congregação judaica, com raízes na Salonica sefardita. Só recentemente os judeus tentaram recuperar a história judaica, praticamente esquecida da cidade. No início dos anos 2000, o Museu Judaico foi fundado em Tessalônica em homenagem a essa cultura perdida. É um museu pequeno, localizado em uma bela casa da virada do século, numa das poucas ruas restauradas do velho distrito judeu. No primeiro andar, em uma sala cujas janelas dão para as laranjeiras da rua, fica a curadora do museu, Erika Perahia Zemour. Quando a encontro, ela está agitada. Acaba de descobrir que o monumento recém-erigido em memória do cemitério judeu traz uma inscrição imprecisa.

“Estou tão furiosa! Levamos setenta anos para colocar esse monumento em pé, para que as pessoas soubessem o que havia aqui antes. E aí o texto não está certo. É inacreditável! Na placa diz que foram os alemães que destruíram o cemitério e que usaram as pedras como material de construção. Tudo errado. Foram os gregos que destruíram o cemitério e usaram a maior parte das pedras. Isso é típico do jeito como as pessoas pensam aqui”, diz Zemour, me perfurando com o olhar e dando uma tragada em seu cigarro eletrônico, que brilha vermelho.

No museu, a intenção foi recolher parte do que foi perdido; há algumas lápides intactas, fotografias, artefatos rituais e vários livros que sobreviveram ao Holocausto. Mas não é um acervo grande. A maior parte do que foi saqueado em Salonica jamais voltou.

“Salonica era um centro de conhecimento e de disseminação no Mediterrâneo oriental. Algumas das primeiras prensas do Império Otomano foram instaladas aqui, em Salonica, por judeus sefarditas. Até mesmo o primeiro jornal impresso no Império Otomano era um jornal de Salonica”, Zemour me conta. O que diferenciava Salonica de outros grandes assentamentos judaicos era o grau singular de liberdade que os judeus tinham para cuidar de seus próprios assuntos. “Este era o único lugar na Europa em que os judeus sefarditas realmente foram bem-vindos depois de fugir da Espanha. Judeus de outras partes da Europa também vieram para cá, fugindo da perseguição. Eles eram maioria aqui e por isso podiam se sentir seguros. Não havia gueto e não havia restrições. Os judeus de Salonica podiam se dedicar a qualquer profissão que escolhessem. Isso tornava a cidade única”, Zemour me diz.

Salonica ficou conhecida como la madre de Israel. A expressão foi cunhada pelo judeu marrano Samuel Usque, que no século XVI descreveu a cidade como um paraíso para os judeus, enquanto o resto da Europa era “meu inferno na terra”.[7]

Já havia um assentamento judaico aqui na antiguidade; há até mesmo uma referência a ele na Primeira Epístola de Paulo aos Tessalonicenses, no Novo Testamento, em que Paulo tenta convencer a população judaica da cidade a se converter, levando assim a um motim.

Quando Constantinopla foi tomada pelos turcos otomanos em 1453, a população de Salonica foi significativamente reduzida, já que o sultão Maomé II forçou milhares de pessoas a migrarem para Istambul, a nova capital construída sobre as ruínas de Constantinopla. Segundo registros otomanos, em 1478, não restava um único judeu em Salonica.[8] Mas ao serem expulsos da Espanha em 1492, os sefarditas foram bem recebidos pelo sultão, que via nesses judeus bem-educados uma ferramenta para desenvolver rapidamente o Império Otomano. Muitos tradutores, médicos e banqueiros judeus receberam ofertas de emprego na corte. Os benefícios da tolerância dos otomanos foram bastante reconhecidos na época. O geógrafo francês Nicolas de Nicolay visitou Istambul nos anos 1550 e escreveu:

Para grande dano e prejuízo da Cristandade, [os judeus] ensinaram aos turcos diversas invenções, ofícios e máquinas de guerra, como a manufatura de artilharia, arcabuzes, pólvora, projéteis e outras munições; também instalaram prensas, nunca vistas nesses países, por meio das quais dão à luz em belos tipos muitos livros em várias línguas como grego, latim, italiano, espanhol e na língua hebraica, que para eles é natural.[9]

Os primeiros judeus sefarditas chegaram a Salonica vindo de Maiorca em 1492. Logo vieram outros, do continente e depois também da Provença, da Itália e de Portugal. Em 1519 dezenas de milhares tinham chegado, e a população judaica já era maioria. No início do século XVI havia vinte e cinco sinagogas em Salonica.[10] A influência sefardita era tão grande que a cidade realmente podia ser vista como uma colônia judaica espanhola no litoral da Grécia, em que tanto sua língua quanto a cultura permaneciam intactas.

Mas mesmo gozando de liberdade maior no Império Otomano do que na Europa cristã, os judeus jamais estiveram em pé de igualdade com os muçulmanos. O Estado otomano raramente se envolvia nas questões religiosas das muitas minorias do império; como outros grupos religiosos, os judeus tinham permissão para administrar seus próprios tribunais. Em Salonica, uma classe destacada e influente de rabinos administrava a sociedade civil. Os rabinos, que davam veredito sobre tudo, desde propriedade de objetos até adultério, buscavam respostas para disputas legais e morais nos complexos e vastos textos jurídicos judaicos. Bibliotecas inteiras foram importadas da Espanha, e os rabinos de Salonica reuniram textos, manuscritos e livros de centros educacionais judaicos na Europa como Amsterdã, Veneza, Cracóvia e Vilnius. A primeira prensa de Salonica, estabelecida em 1513, produziu textos em ladino e um hebraico.[11] No início do século XVI criou-se uma escola oficial de estudos talmúdicos, a Talmud Torah Hagadol, que logo seria bem conhecida em todo o mundo judaico. A escola cresceu rapidamente e se transformou numa enorme instituição educacional, com duzentos professores, milhares de alunos, uma vasta biblioteca e sua própria prensa.

Na estufa intelectual em que Salonica havia se transformado, havia um encontro entre a filosofia judaica, a literatura clássica, a ciência árabe e o humanismo do Renascimento italiano. O alto nível educacional fez com que os rabinos de Salonica fossem procurados por toda a Europa.

O pré-requisito para esse florescimento cultural foi a prosperidade econômica da cidade, um dos mais importantes portos do Mediterrâneo oriental. A idade de ouro da cidade ocorreu no século XVI, e então, nos séculos seguintes, passou por um declínio em consequência das novas rotas comerciais, das divisões religiosas na comunidade e da desintegração gradual do Império Otomano. Mas a cidade continuou sendo um caldeirão cultural, tendo a cultura sefardita como centro. Por vários séculos, Salonica foi a maior cidade judia do mundo. No século XVIII a cidade passou por um renascimento e esteve à frente do desenvolvimento industrial no Império Otomano. No entanto, a essa altura era a identidade política da cidade, mais do que a identidade religiosa ou cultural, que ocupava o lugar central. A forte sensação de liberdade, identidade e autogoverno que diferenciava a comunidade judaica de Salonica levou a um desenvolvimento político dinâmico na virada do século passado, com sindicatos fortes e uma proliferação de jornais diários, organizações e associações políticas. Muitos trabalhadores judeus se envolveram nos movimentos socialista e sindical. O sionismo também ganhou adeptos em Salonica, e antes do início da Segunda Guerra Mundial havia cerca de vinte organizações sionistas na cidade.

O jovem David Ben-Gurion, que viria a ser um dos fundadores de Israel, esteve entre os muitos que foram estudar em Salonica. Sendo um judeu da Europa Oriental, Ben-Gurion ficou perplexo com o que viu na cidade: um tipo de cultura totalmente diferente daquela em que ele havia sido criado. Em Salonica os judeus não precisavam decidir entre assimilação e isolamento; tinham liberdade para fazer o que bem entendessem. Em Salonica, “os judeus podem execer todo tipo de profissão”, ele escreveu em uma carta, e continuou, “[é] uma cidade mais judia do que qualquer outra no mundo, até mesmo do que a Terra de Israel”.[12] Essa foi uma intuição decisiva para Ben-Gurion. Em Salonica ele viu o que um povo judeu livre era capaz de fazer. Para ele, os judeus da cidade eram a própria imagem símbolo do “novo judeu” a que o movimento sionista desejava dar forma.

Erika Perahia Zemour espalha três jornais amarelados sobre a mesa. Um é em hebraico, um em francês e o terceiro em ladino. Todos são jornais de Salonica, testemunhos da vida política fervilhante da cidade na virada do século passado. Tessalônica tinha mais jornais do que qualquer outra cidade do Império Otomano. A casa que hoje abriga o museu era a sede de um dos jornais sobre a mesa, o L’Independent, em língua francesa.

“Este jornal”, diz Zemour, apontando para outro exemplar sobre a mesa, “está escrito em espanhol, mas com o alfabeto hebraico. O ladino era a língua que a maior parte dos judeus falava aqui até a Segunda Guerra Mundial.” A própria Zemour é parte da pequena minoria de cerca de duzentas pessoas com raízes sefarditas que ainda vivem em Tessalônica.

Em 1900, Salonica era um caldeirão cultural e étnico com uma população em crescimento explosivo, graças à rápida industrialização da cidade. Os oitenta mil judeus que moravam em Salonica representavam aproximadamente metade da população da cidade à época, sendo o restante composto por turcos, búlgaros, armênios e sérvios. A cidade era a área mais moderna e industrializada dos Bálcãs, mas ao mesmo tempo era parte de um Império Otomano politicamente instável. A marcha dos nazistas sobre Tessalônica em 1941 marcou o ponto mais baixo de uma longa série de catástrofes que devastaram a comunidade sefardita da cidade e, pela primeira vez em séculos, transformou-os em minoria. Os grupos de assalto de Alfred Roosenberg também descobriram que muitas das famosas bibliotecas da cidade tinham sido destruídas.

Na tarde de 18 de agosto de 1917, uma espiral de fumaça negra subiu do quarteirão turco de Salonica. O incêndio havia começado com uma fagulha de um fogão que caíra sobre um fardo de palha.[13] Nos quarteirões densamente povoados do centro de Salonica, as chamas passaram de uma casa para outra. Um jornalista britânico, Harry Collinson Owen, descreveu como o mar foi tingido de vermelho por barris de vinho que explodiam com o calor, ao mesmo tempo que os minaretes da cidade se erguiam em meio às chamas como “agulhas brancas”. O que ele viu foi “uma cena fantástica e lamentável, as famílias chorando, a ruína das casas se desintegrando por onde quer que as chamas passassem, sendo levadas pelo vento; e, nas alamedas estreitas, uma lenta massa de carroças e mulas levando cargas gigantescas”.[14]

As velhas ruas apinhadas de casas perto do porto foram as mais atingidas, e nelas ficavam os jornais e as escolas judaicos, além de dezesseis sinagogas, muitas das quais remontavam ao século XVI. Cinquenta mil judeus de Salonica viram suas casas, propriedades e escritórios desaparecerem nas chamas. Até mesmo a famosa biblioteca Kadima sobre história judaica foi destruída.[15]

As consequências políticas do incêndio foram outra catástrofe para a comunidade sefardita. Em 1913, depois das Guerras dos Bálcãs, Salonica havia sido cedida à Grécia. De acordo com o primeiro-ministro grego, Elefthérios Venizélos, o incêndio de 1917 foi “uma dádiva de intervenção divina”. Os políticos gregos aproveitaram a oportunidade para construir uma cidade grega moderna sobre as fundações do que havia sido basicamente otomano e judeu.[16] Quarteirões de casas incendiadas foram expropriados e as famílias judias que moravam ali havia séculos foram proibidas de voltar. Dezenas de milhares de pessoas foram removidas para os subúrbios e áreas degradadas na periferia. Muitos judeus da cidade achavam que sua Tessalônica estava perdida. Entre 1912 e 1940 dezenas de milhares de judeus abandonaram a cidade e migraram para França, Estados Unidos e Palestina.[17]

Embora grande parte da velha Salonica tivesse sido perdida, os nazistas ficaram particularmente fascinados com essa “cidade judia”. Alfred Roosenberg ainda via Tessalônica como “um dos mais importantes centros judeus” e uma cidade de mais “caos racial, formada pelo cosmopolitismo e pelas finanças judaicas”.[18] Algo que particularmente surpreendeu os pesquisadores nazistas foi o fato de eles não conseguirem encontrar documentos sugerindo que em algum momento tenha havido um gueto judeu na cidade.

Assim que a Grécia se rendeu ao exército alemão em 1941, Roosenberg enviou um grupo da ERR para Tessalônica, liderado pelo “expert em judaísmo” Johannes Pohl. Em meados de junho de 1941 a organização havia estabelecido um escritório na cidade, no prédio que antes abrigava o consulado americano. Mas a operação da ERR não se restringiria apenas a Tessalônica – cobriria toda a área dos Bálcãs, uma vez que há séculos existiam assentamentos judeus menores nessa parte do Mediterrâneo.[19]

Entre maio e novembro de 1941, mais ou menos trinta acadêmicos e pesquisadores da ERR, com apoio da SD e de soldados da Wehrmacht, varreram as comunidades judaicas gregas. Ao todo, foram invadidos cerca de cinquenta sinagogas, escolas judaicas, jornais, livrarias, bancos e outras organizações em que houve confisco de materiais. A ERR também identificou cerca de sessenta “judeus destacados” cujas casas foram invadidas em busca de livros, manuscritos e material de arquivo.[20]

O saque em Tessalônica foi mais completo para que fossem recolhidos materiais de pesquisa sobre os judeus sefarditas. Acima de tudo, havia um interesse em suas redes econômicas e façanhas comerciais. O pesquisador Hermann Kellenbenz escreveu um estudo sobre a economia dos judeus sefarditas, encomendado pelo Instituto sobre a Questão Judaica de Walter Frank, parte de seu Instituto Nacional para a História da Nova Alemanha, e um concorrente do instituto em Frankfurt, de Roosenberg.

Desde o século XVI, ter uma biblioteca era considerado um símbolo de status entre as famílias judias mais destacadas. Muitas bibliotecas e acervos privados foram criados ao longo dos séculos. A primeira biblioteca confiscada pela ERR pertencia a Joseph Nehama – historiador e diretor da escola da Alliance Israélite Universelle na cidade –, dono de uma grande coleção de livros sobre história do judaísmo. Nehama era um dos líderes da congregação que havia defendido, antes da guerra, que os judeus deviam permanecer em Tessalônica. Entre as outras bibliotecas saqueadas estavam a do principal rabino, Zvi Koretz, que continha mil livros valiosos sobre filosofia árabe e judaica, e o acervo do historiador Michael Molho, que continha muitos livros judeus raros. Uma das contribuições mais importantes de Molho foi começar a documentar nos anos 1930 os epitáfios do cemitério judeu – um projeto tremendamente valioso, levando em conta a destruição posterior do cemitério. Por sorte, os frutos de seu trabalho não foram saqueados.

Duzentos e cinquenta rolos da Torá de valor inestimável foram roubados das sinagogas da cidade junto com grandes acervos de literatura religiosa, incunábulos e livros impressos em Salonica no século XVI. Alguns desses rolos da Torá eram medievais e vieram a Salonica junto com os sefarditas que migraram da Península Ibérica. Eles eram ricamente decorados ao estilo árabe-sefardita, com coroas de prata e ouro manufaturadas por comerciantes e artistas judeus durante a Renascença. Esses foram os primeiros textos a serem salvos do incêndio em 1917. Até mesmo o tribunal judaico, o Beth Din Tzedek, teve sua biblioteca de 2,5 mil livros roubada.

O arquivo do maior banco de Tessalônica, o Union, foi um alvo particularmente importante para a ERR – ele continha documentos que os nazistas podiam usar para mapear as redes econômicas dos judeus sefarditas.

Não existe um número que indique o tamanho do saque em Tessalônica, mas, de acordo com o historiador Mark Mazower, devem ter sido roubadas dezenas de milhares de livros, manuscritos e incunábulos.[21] Uma biblioteca importante que se perdeu pertencia ao rabino Haham Haim Habib, um acervo que vinha sendo construído por sua família há gerações. Haim Habib era um dos mais importantes rabinos ortodoxos da cidade, e se tornou conhecido por em certa ocasião ter se recusado a apertar a mão da rainha da Grécia por motivos religiosos. A biblioteca de Haim Habib continha oito mil volumes sobre religião, filosofia, história e lei dos judeus.[22] Mas a pilhagem foi tão sistemática que nem mesmo bibliotecas pequenas escaparam. Por exemplo, uma biblioteca que pertencia a professores judeus foi levada, embora contivesse apenas seiscentos livros, principalmente sobre ensino de línguas e literatura moderna.

A maior parte do que foi roubado, embora não tudo, seguiu para a Alemanha de trem. Dos 250 rolos da Torá confiscados, 150 foram para a Alemanha. No entanto, 100 rolos, provavelmente considerados menos interessantes do ponto de vista da pesquisa, foram queimados em Tessalônica. Por motivos desconhecidos o mesmo destino aguardava a biblioteca de Haim Habib, queimada em um campo de concentração construído pelos nazistas.[23]

As deportações para os campos de extermínio na Polônia ocupada começaram, para valer, na Europa em 1942. Mas na Grécia as deportações foram adiadas pela recusa dos italianos em cooperar. A SS estava decidida a “resolver a ‘questão judaica’” na Grécia. Heinrich Himmler em 1941 já alertara Hitler de que uma população judaica grande como a de Tessalônica era uma ameaça ao Reich. O SS-Obersturmbannführer Adolf Eichmann, encarregado da logística das deportações, perdeu a paciência e, em fevereiro de 1943, despachou Dieter Wisliceny e Alois Brunner para Tessalônica. Wisliceny e Brunner estavam entre os mais frios e brutais assassinos da SS. Brunner, que Eichmann chamava de “meu melhor homem”, já havia organizado as deportações de dezenas de milhares de judeus em Viena. Ele executou pessoalmente o conhecido banqueiro austríaco Siegmund Bosel, tirado à força de um hospital em Viena e baleado ainda com as roupas do hospital. Depois da guerra, Brunner fugiu para a Síria, onde acredita-se que tenha trabalhado como consultor do regime. De acordo com o Centro Simon Wiesenthal, Brunner provavelmente morreu lá em 2010, aos 98 anos de idade.

Em Tessalônica, Wisliceny e Brunner instalaram seu quartel-general em uma casa próxima ao centro da cidade, que eles decoraram com uma bandeira negra da SS. Dois dias depois da chegada deles na cidade todos os judeus com mais de cinco anos de idade receberam ordens de usar uma estrela amarela.[24] Dentro de uma semana os judeus foram proibidos de usar o telefone, viajar de bonde e trafegar por lugares públicos. Ao mesmo tempo, Wisliceny começou a planejar algo que jamais havia existido em Tessalônica: guetos. Um gueto foi criado na parte ocidental da cidade, outro nos subúrbios da zona leste.

Simultaneamente, a SS, com ajuda de trabalho escravo judeu, começou a construir um campo de passagem perto da estação ferroviária, cercado por arame farpado. O campo de passagem foi construído de forma a cercar o já existente distrito judeu. Sua população seria a primeira a ser deportada.

Em março, quando Wisliceny e Brunner haviam colocado, à força, a maior parte dos judeus em guetos, eles foram isolados do mundo exterior. Poucos milhares dos judeus da cidade, principalmente rapazes e moças, conseguiram escapar atravessando a área ocupada pelos italianos ou fugindo para as montanhas da Macedônia e entrando para o ELAS, o movimento comunista de resistência na Grécia.

Pouco mais de um mês após a chegada de Wisliceny e Brunner, os primeiros trens começaram a partir – oitenta vagões de carga abarrotados de gente, com 2,8 mil pessoas a bordo. Antes da partida, a SS obrigou os judeus a trocarem suas dracmas por zlotys poloneses. Isso era um blefe, já que o dinheiro dado aos judeus era falso. No lugar para onde eles estavam indo não havia necessidade de dinheiro. Eles foram informados de que seriam mandados para Cracóvia, mas o destino final era Auschwitz-Birkenau. Dois dias depois saiu o próximo trem. Gente da classe trabalhadora judaica partiu primeiro, o que fez surgir o boato entre os habitantes mais ricos do gueto de que apenas “comunistas” seriam mandados para a Polônia. Em meados de julho de 1943 só haviam restado dois mil judeus em Tessalônica. Wisliceny e Brunner haviam deixado judeus “privilegiados” por último: os rabinos, líderes locais, empresários ricos e colaboradores, como os seguranças das unidades judaicas que a SS havia organizado para ter mais mão de obra. Foi uma estratégia cínica e eficiente para dividir e assassinar um povo. Os que ficaram por último eram os líderes, gente que de vários modos mantinha a sociedade unida. Por autopreservação, ingenuidade ou incapacidade de avaliar o risco de sua situação, esses líderes convenceram os demais a aceitar exigências cada vez mais absurdas, que passo a passo deixaram a todos mais perto das câmaras de gás.

Claro, nem mesmo os que foram deixados por último escaparam. Quando os líderes já não tinham ninguém para liderar, chegou a vez deles. Muitos dos mais ricos foram torturados pela SS para dar informações sobre ouro e outros objetos valiosos que pudessem ter escondido. Depois disso, os judeus privilegiados foram despachados para Bergen-Belsen.[25]

Quarenta e quatro mil judeus de Tessalônica foram deportados para Auschwitz-Birkenau.[26] A maioria morreu poucas horas depois de chegar, isso para os que chegaram – muitos morreram nos vagões de carga abarrotados na longa viagem até a Polônia. A taxa excepcionalmente alta de mortalidade entre os judeus de Tessalônica tem sido explicada pelo fato de que muitos estavam em tão más condições ao chegarem que eram enviados direto para a câmara de gás.

Em questão de poucos meses em 1943, a Tessalônica sefardita de quatrocentos anos deixou de existir. Wisliceny e Brunner puderam relatar a Eichmann, depois do verão, que Tessalônica estava Judenrein – livre de judeus. Isso não era totalmente verdade. Ainda havia quinze mil judeus em Tessalônica que se casaram com gregos, e que por isso tiveram permissão para ficar. Mas mesmo essas pessoas estavam em situação precária. Quando um deles perdeu a mulher no parto, foi imediatamente deportado. O recém-nascido teve permissão para ficar temporariamente.[27]

Cerca de treze mil judeus de Tessalônica evitaram as câmaras de gás de Auschwitz-Birkenau por terem sido escolhidos para trabalhar como escravos. O destino deles não causa inveja. Muitas mulheres e crianças de Tessalônica foram submetidas a experimentos feitos, entre outros, por Josef Mengele, que havia começado a trabalhar no campo poucos meses antes. Mulheres de Tessalônica, algumas delas grávidas, tiveram câncer implantado no útero e homens tiveram seus testículos removidos. Outros foram usados em experimentos com doenças contagiosas. Trezentas mulheres jovens de Tessalônica entre os dezesseis e os vinte anos foram selecionadas para esse experimento. Todas estavam mortas em setembro de 1943. De todos os experimentos médicos realizados em Auschwitz-Birkenau, acredita-se que um quarto teve como cobaias os judeus de Tessalônica.[28]

Muitos dos homens de Tessalônica foram escolhidos para trabalhar em unidades conhecidas como Sonderkommandos, encarregadas de tirar os mortos das câmaras de gás e queimar os corpos. Quem entrou em contato com os judeus de Tessalônica nos campos deu testemunho da impressão causada por eles, incluindo Primo Levi:

Perto de nós há um grupo de gregos, aqueles admiráveis e terríveis judeus de Salônica, tenazes, gatunos, sábios, ferozes e unidos, tão determinados a viver, adversários implacáveis na luta pela vida; aqueles gregos que haviam conquistado nas cozinhas e nos jardins e que até mesmo os alemães respeitavam e os poloneses temiam. Eles estão em seu terceiro ano de campo, e ninguém melhor do que eles entendem o significado do campo. Agora eles estão perto um do outro em um círculo, ombro contra ombro, cantando um de seus intermináveis cânticos.[29]

Pouco menos de dois mil sobreviveram e voltaram a Tessalônica após a guerra. Não havia muito para o que voltar. A maior parte dos sobreviventes voltou sozinha, tendo perdido família e parentes nos campos. Suas casas, apartamentos e empresas em Tessalônica haviam sido tomados por gregos, que os compraram dos alemães. Qualquer tentativa de recuperar a propriedade perdida era impedida pelo novo governo de direita grego. Um sobrevivente contou sobre como, em Tessalônica, não havia sequer “um rabino que pudesse nos abençoar”.[30]

A maioria decidiu sair de lá, por não conseguir morar em uma cidade “que teve sua alma roubada”, como diz Erika Perahia Zemour. O rico legado cultural e literário da comunidade sefardita também não retornaria. A maior parte se dispersou e sumiu, exceto por páginas esparsas de textos judaicos e pedaços de rolos de Torá que apareceram nos mercados de Tessalônica depois da guerra. O papel era usado como enchimento de sapatos e o pergaminho, para fazer solas de calçados.[31]