Theresienstadt
Da ponte, vejo o dorso marrom claro dos peixes contra o fundo arenoso. De tempos em tempos um deles mergulha, virando as escamas em direção ao sol e projetando um reflexo prateado. No outro lado da ponte vejo famílias com filhos, deitadas em um trecho de areia que avança ao longo do rio Ohře. É o período mais quente do verão, e o nível da água está baixo. As crianças se atiram na corrente e se deixam levar até um remanso. Mais abaixo, onde acabam as árvores que margeiam o rio, as cinzas de 22 mil prisioneiros de um campo de concentração foram lançadas na água.
Mais ou menos vinte quilômetros ao sul da cadeia de montanhas Zittau, a fronteira entre a Alemanha e a República Tcheca, ficam a antiga fortaleza dos Habsburgo e a cidade guarnição Theresienstadt, ou Terezín, como hoje é conhecida. Na área de estacionamento onde param os ônibus é possível comprar em barracas refrigerantes, chaveiros e cartões-postais mostrando prisioneiros de campos de concentração. Mas hoje há poucos fregueses, o termômetro chega perto dos 40 ºC e as ruas da cidade estão estranhamente vazias – exceto por algumas meninas de bicicleta com toalhas enroladas na garupa a caminho do rio. Hoje em dia, a população que vive dentro dos muros da fortaleza em forma de estrela é de poucos milhares, em uma cidade que não mudou significativamente desde a guerra, a não ser por alguns blocos de apartamentos que chamam a atenção por sua frieza soviética.
Dentro desses muros, durante a guerra, a SS criou aquele que pode ter sido o mais curioso dos campos de concentração. A maior parte dos campos de concentração alemães era semelhante, construídos de acordo com um modelo desenvolvido pelo SS-Oberführer Theodor Eicke, o comandante de Dachau, primeiro campo de concentração aberto pelos nazistas em 1933. Ali, Eicke refinou a estrutura e a cultura que seriam modelo para quase todos os futuros campos.
Theresienstadt era um campo de concentração e também um gueto, com várias funções diferentes. Era um campo de isolamento e de passagem. A maior parte dos prisioneiros de Theresienstadt era mandada em pouco tempo para campos de extermínio na Polônia ocupada. Mas Theresienstadt também era um campo modelo, usado na propaganda alemã.
A cidade guarnição foi construída pelo imperador austríaco José II no fim do século XVIII. Nas fortalezas menores anexas à cidade foi mantido o mais famoso prisioneiro da Primeira Guerra Mundial – Gavrilo Princip –, que em 1914 disparou contra o herdeiro do trono austro-húngaro em Sarajevo, dando início à guerra.
Em 1942, a SS deu início ao despejo compulsório de sete mil tchecos que moravam em Theresienstadt para que a cidade fosse usada como campo de concentração. Os muros e fossos que um dia protegeram a cidade serviriam agora como limites de uma enorme prisão. No campo modelo os judeus morariam em casas normais e usariam roupas comuns de civis, o que significava que Theresienstadt era muito semelhante a um gueto. Como em outros guetos, também existia um Judenrat, conselho judeu que fazia as vezes de governo sob controle da SS.
Muitas pessoas enviadas a Theresienstadt eram “judeus selecionados” da Alemanha e do oeste e norte da Europa, incluindo alguns que tinham ocupado altos postos na administração pública ou que eram veteranos na Primeira Guerra Mundial. Mas o grupo mais visível e mais importante – do ponto de vista da propaganda – eram os muitos artistas, atores, diretores, músicos, escritores, acadêmicos e outros intelectuais. Um deles era Isaac Leo Seeligmann, o estudioso da Bíblia e bibliófilo de Amsterdã, deportado para cá com sua família.
Na propaganda alemã, Theresienstadt era apresentada como “a cidade que o Führer deu aos judeus”. Também em nome da propaganda, os nazistas abriram um banco e lojas na cidade, além de construírem parquinhos para as crianças. Havia até uma “moeda do campo” conhecida como coroa de Theresienstadt, que servia para dar uma imagem de uma economia autônoma interna.
Parte significativa da vida no campo eram as muitas atividades culturais, incentivadas pelo comandante do campo e seus funcionários. Em uma casa amarela de pedras de dois andares no endereço L304, uma biblioteca conhecida como Ghettobücherei Theresienstadt foi criada em novembro de 1942 – no piso superior ficava o Freizeitgestaltung, o departamento de lazer, que cuidava de várias atividades do campo. O Freizeigestaltung tinha apresentações de teatro, concertos e palestras. Também não faltavam atores, músicos e escritores. Alguns dos mais extraordinários talentos da época foram deportados para o campo, como o ator austríaco Jaro Fürth, a dramaturga Elsa Bernstein e a pianista Alice Herz-Sommer. Nada menos do que cinco integrantes da Orquestra Filarmônica de Viena foram enviados para Theresienstadt, incluindo o concertista Julius Stwertka.[1] Até mesmo uma jazz band judia, os Ghetto Swingers, foi formada no campo.
Quando foi aberta em 1942, a Ghettobücherei tinha quatro mil livros, que os nazistas haviam roubado de outros lugares, incluindo o seminário rabínico em Berlim. Theresienstadt continuou recebendo cargas de livros saqueados de sinagogas, famílias judias, igrejas e lojas maçônicas. Mas a maior parte dos livros foi levada pelos próprios prisioneiros, pois a cada vez que chegava mais gente, chegavam mais livros. Entre os poucos pertences que os judeus tinham permissão para levar quando eram deportados, muitos optavam por colocar um ou dois de seus livros favoritos. Os exemplares eram confiscados na chegada e entregues à Ghettobücherei. Em um ano, o acervo da biblioteca passava de 50 mil livros, e em 1944 tinha 120 mil volumes.[2]
A vida cultural do campo era destacada na propaganda nazista. O ápice dessa aldeia Potemkin foi uma visita cuidadosamente planejada da Cruz Vermelha em 1944. No ano anterior, a SS já havia começado os preparativos, dando início a um “processo de embelezamento” que incluía a renovação dos alojamentos, uma nova pintura para as casas e o plantio de árvores e flores. Os prisioneiros receberam rações mais substanciais para parecerem bem alimentados. Em maio, 7.503 pessoas também foram deportadas de Theresienstadt para Auschwitz, para fazer o campo parecer menos abarrotado.
A visita da Cruz Vermelha ocorreu como resultado da pressão da Dinamarca e da Suécia, e quando os inspetores chegaram, em junho de 1944, Theresienstadt era um idílio de atividades encenadas – jogos de futebol, shows e um coro de crianças judias que cantou para os visitantes. Da praça veio o som do jazz tocado pelos Ghetto Swingers, apesar do fato de que o jazz havia sido banido do Terceiro Reich por ser visto como “música degenerada”. A transformação também foi linguística, já que o campo mudou seu nome de Ghetto Theresienstadt para Jüdisches Siedlungsgebiet [Área de Assentamento Judaico].
Associado à visita, começou a ser produzido um filme de propaganda em que o campo era descrito como um “resort para judeus”. Cinicamente, prisioneiros do campo foram recrutados para produzir o filme sob a liderança da SS. Prisioneiros judeus eram responsáveis pelo roteiro, pela direção e pela música, que foi proporcionada pelos Ghetto Swingers.[3] O filme, intitulado Der Führer schenkt den Juden eine Stadt [O Führer dá uma cidade aos judeus], foi dirigido pelo ator e diretor judeu alemão Kurt Gerron, que teve seu grande momento em 1930 contracenando com Marlene Dietrich em O Anjo Azul.
A biblioteca aparece em um trecho do filme que sobreviveu – os bibliotecários trabalhando duro na catalogação de livros e o bibliotecário-chefe, Emil Utitz, falando. No filme a biblioteca ganhou um novo nome: em vez de Ghettobücherei Theresienstadt, usou-se o mais neutro Zentralbücherei.
No entanto, o pano de fundo teatral deixou de existir assim que os inspetores da Cruz Vermelha partiram do campo, e imediatamente as deportações foram retomadas. Por trás da imagem de gueto modelo existia um campo de concentração que não diferia muito de nenhum outro, marcado por fome, doença, trabalho escravo, tortura e superlotação. A equipe judia do filme foi deportada assim que encerrou os trabalhos em setembro. Kurt Gerron e os membros do Ghetto Swingers foram colocados no último trem que partiu de Theresienstadt para Auschwitz no final de 1944.[4]
Dos 144 mil judeus mandados para Theresienstadt, aproximadamente 17 mil sobreviveram à guerra. Cerca de 33 mil morreram no próprio campo, enquanto perto de 90 mil foram deportados para Auschwitz. Muitos morreram na epidemia de febre tifoide que tomou conta do campo no fim da guerra. Os livros da biblioteca ajudaram no contágio, transmitindo a doença de um leitor para outro, e dezenas de milhares de exemplares infectados da Ghettobücherei acabaram sendo queimadas. A biblioteca também foi dizimada pelas frequentes deportações perto do fim: “Cada trem que parte nos tira mil livros, porque cada pessoa leva dois ou três volumes... Não fiz nada quanto a isso”, escreveu Emil Utitz.[5] Embora muitos soubessem ou pelo menos adivinhassem o que viria pela frente, eles queriam levar um livro para a viagem.
Mas também havia uma biblioteca secreta em Theresienstadt, que não aparece no filme de propaganda. Disponível somente para um grupo seleto, era uma biblioteca de um tipo totalmente diferente, e também totalmente diferente em seu valor.
Com a ajuda de um mapa da época da guerra tento me orientar pelas ruas de Terezín. Ainda se veem resquícios do campo em toda parte; em algumas esquinas é possível ler os velhos “nomes de rua” pintados com tinta preta usando abreviações do campo “Block C.V/Q2-09-15”. Passo por uma das casas mais bonitas da cidade, na qual ficaram abrigados os judeus dinamarqueses do campo.
Pouco depois dos muros ao sul da cidade, perto do crematório, há uma pequena casa de pedras com argamassa faltando no frontão. No pequeno jardim protegido por uma cerca enferrujada vejo tomateiros, arbustos de groselha e parreiras que sobem pelos muros da fortaleza. Aqui trabalhou um grupo de pessoas que a SS chamava de Bücherfassungsgruppe.
Em abril de 1943 a SS deu ordens para que um grupo especial de judeus eruditos, composto de rabinos, teólogos, linguistas e historiadores, fosse reunido. Enquanto outros prisioneiros do campo trabalhavam em uma mina ali perto, quebravam carvão ou fabricavam uniformes militares, o Bücherfassungsgruppe se ocupava de catalogar livros roubados para a SS.[6] Assim como a ERR, a SS não tinha pesquisadores suficientes capazes de ler, interpretar e catalogar as montanhas de literatura judaica confiscada. Theresienstadt, com seus muitos acadêmicos judeus, foi um recurso que a SS se sentiu obrigada a usar. Também havia um outro motivo, que era o fato de que na primavera de 1943 a SS havia começado a evacuar seus depósitos de livros em Berlim, em função dos muitos ataques aéreos contra a capital. Theresienstadt foi um dos locais considerados mais seguros para abrigar os acervos.
O Bücherfassungsgruppe era o equivalente da SS para a Brigada do Papel da ERR em Vilnius, e, assim como em Vilnius, o grupo de trabalho, na gíria do gueto, receberia um nome bem diferente: Talmudkommando [Unidade Talmude]. Ao todo, cerca de quarenta estudiosos judeus participaram do grupo.
Alguns dos mais destacados acadêmicos hebraicos da Europa foram recrutados para o Talmudkommando. O judaísta e bibliófilo tcheco Otto Muneles foi escolhido para chefiar a Unidade. Anteriormente, ele havia trabalhado para o Museu Judaico em Praga e frequentado a mesma escola de Franz Kafka. Entre os demais membros do grupo estavam Moses Woskin-Nahartabi, professor de Línguas Semíticas na Universidade de Leipzig, e o historiador e bibliófilo de Amsterdã Isaac Leo Seeligmann. As grandes bibliotecas dele e de seu pai, Sigmund Seeligmann, confiscadas em 1941, foram incorporadas à biblioteca da RSHA em Berlim. Em 1943, a RSHA transferiu uma parte da seção sobre literatura judaica para Theresienstadt e a entregou ao Talmudkommando.[7]
Seeligmann encontrou livros de seu próprio acervo nesse carregamento de mais ou menos sessenta mil volumes. Os membros do grupo parecem ter se deparado com os mesmos dilemas morais da Brigada do Papel em Vilnius. Eles buscavam consolo no fato de que o trabalho preservava sua herança judaica, embora fizessem isso em nome de uma organização que mais do que qualquer outra era responsável pelo extermínio do povo judeu. O trabalho era uma arte de equilíbrio entre satisfazer seus “senhores” e fazer algo que tivesse significado real. Também tinham uma dolorosa consciência de que o fim do trabalho provavelmente seria sinônimo de suas mortes. Assim, eles intencionalmente reduziram sua produtividade.
Embora o Talmudkommando gozasse de certos privilégios no campo, havia uma ameaça constante de deportação. Em geral a Unidade estava livre de deportações, mas a SS propositalmente usava as ameaças para criar um sentimento de insegurança.
Em 1944 um dos mais destacados experts do grupo, Moses Woskin-Nahartabi, foi deportado para Auschwitz junto com toda a sua família.
Para outros, a exceção podia ser ao mesmo tempo uma fuga e uma maldição. Otto Muneles, chefe do Talmudkommando, teve de testemunhar a deportação de toda a sua família. Assim que soube do destino deles, Muneles se voluntariou para ir junto, mas sua oferta foi rejeitada. Ele continuou colocando seu nome na lista a cada vez que se anunciava uma nova deportação, mas seu pedido foi negado todas as vezes.[8]
O trabalho do Talmudkommando prosseguiria até os guardas da SS abandonarem o campo no início de abril de 1945, poucos dias antes da capitulação da Alemanha nazista. A essa altura o grupo havia catalogado perto de trinta mil livros, em cujas lombadas foram cuidadosamente coladas etiquetas amarelas com números de série escritos à mão. O campo foi abandonado tão apressadamente que a SS sequer levou os livros já catalogados e colocados em mais de 250 caixas.
Perto da meia-noite de 31 de maio de 1942, a maior esquadrilha de bombardeiros hostis que a Alemanha já havia visto entrou no espaço aéreo do país. O ataque era parte de uma nova estratégia em que os bombardeios não seriam direcionados apenas à indústria bélica alemã, mas também àqueles que trabalhavam nela – em outras palavras, à mão de obra civil. A intenção era bombardear os alemães em suas próprias casas e acabar com sua vontade de continuar com a guerra. Em noventa minutos cerca de mil e quinhentas toneladas de bombas foram lançadas sobre a Colônia medieval. Dois mil e quinhentos incêndios devastaram a cidade, deixando cinquenta mil desabrigados. A operação estabeleceu um modelo para ataques que ocorreriam nos anos seguintes, com bombardeios cada vez mais devastadores a cidades alemãs. Encorajados por seu sucesso, os Aliados ocidentais começaram a concentrar sua atenção em Berlim, coração político e administrativo do Terceiro Reich.
Os milhões de livros saqueados que haviam sido recolhidos em depósitos por toda a cidade estavam fadados a se transformar em um inferno. Estima-se que a seção judaica da biblioteca da RSHA destinada a inimigos de Estado tivesse, em 1943, entre 200 mil e 300 mil volumes, incluindo livros judaicos tirados de escolas, sinagogas e seminários de toda a Europa, assim como extraordinários acervos privados como os de Isaac Leo Seeligmann, do pianista Arthur Rubinstein e do escritor judeu francês André Maurois.[9]
A quantidade de livros que chegavam era tão grande que a SS só tinha tempo de catalogar uma fração da literatura judaica confiscada. Não havia estantes suficientes para acomodar o acervo, que na maior parte ficava empilhado em salas da loja maçônica da Eisenacher Straße em Berlim, ocupada pelos nazistas.
Em 1943, tanto a RSHA quanto a ERR começaram a tirar seus acervos de Berlim. Além de esvaziar os depósitos e despachar seu conteúdo, todo tipo de operação de pilhagem que envolvesse triagem, catalogação e pesquisa também foi transferida. Em agosto de 1943, a Seção VII, o departamento da RSHA dedicado a pesquisa ideológica, levou a maior parte de seus livros para diversos castelos que a SS tinha à disposição, principalmente na Silésia, perto das fronteiras entre Alemanha, Polônia e Tchecoslováquia. Parte não catalogada do acervo no departamento judaico da Seção VII foi enviada a Theresienstadt, enquanto o restante foi despachado para um castelo perto de Reichenberg, na Baviera. Partes da seção da RSHA dedicada à literatura maçônica, incluindo a biblioteca sobre ocultismo da organização, foram transferidas para o castelo preferido de Heinrich Himmler, Sclawa (hoje conhecido como Sława), enquanto o material de arquivo foi levado para Wölfelsdorf (hoje conhecido como Wilkanów), onde ocupou todo o castelo e uma cervejaria.[10] Um dos acervos levados para a Silésia era o chamado Schwedenkiste, o arquivo dos Illuminati. O novo quartel-general foi transferido para Schloss Niemes, quinze quilômetros a leste de Česká Lípa. Ao todo, os acervos roubados foram abrigados em cerca de dez castelos e fortalezas da Europa Central.
O Talmudkommando não foi a primeira experiência da RSHA com o uso de trabalho intelectual escravo. Quando as bibliotecas começaram a ser retiradas de Berlim em 1943, já havia um grupo de judeus trabalhando na Seção VII, que passou vários anos catalogando acervos. Já em 1941 a SS havia raptado oito intelectuais judeus que foram obrigados a trabalhar no depósito da Seção VII na Eisenacher Straße, entre os quais estava Ernst Grumach, professor de filologia na universidade em Königsberg.
Na primavera de 1943 outro grupo de trabalho foi criado, composto de dezenove acadêmicos judeus. Embora estivessem na região central de Berlim, suas condições de trabalho não eram muito melhores do que as de um campo de concentração. Os trabalhadores judeus eram monitorados de perto pela SD, que os mantinha trancados em salas especiais por até dezesseis horas por dia. Proibidos de falar com outros alemães, eles tinham inclusive que usar um “banheiro de judeus”. Ameaças de morte e abusos físicos eram rotina diária, e “nenhum dos judeus que cumpriam trabalhos forçados sabia ao entrar no prédio, circundado por uma cerca alta, se sairia de lá vivo”, segundo Grumach.[11]
De início, o grupo de Ernst Grumach se ocupava da catalogação e triagem de livros que chegavam à Eisenacher Straße de todos os territórios europeus ocupados. Mas quando começaram as evacuações, o trabalho passou a ser encaixotar e carregar livros, preparando-os para o transporte – um trabalho pesado para o qual muitos dos estudiosos mais velhos não estavam preparados.
Em novembro de 1943, a RAF começou a fazer ataques aéreos contra Berlim. O mais devastador ocorreu na noite de 23 de novembro, quando Tiergarten, Charlottenburg, Schönenberg e Spandau foram bombardeadas. As tempestades de fogo que se seguiram deixaram 175 mil desabrigados. Naquela noite, a igreja Memorial Kaiser Guilherme, em Kurfürstendamm, foi atingida, e hoje seu campanário quebrado é um dos mais famosos monumentos em Berlim.
O depósito da RSHA na Eisenacher Straße, a pouco menos de um quilômetro dali, também foi atingido pelas bombas, e muitos livros que não haviam sido removidos pegaram fogo. Segundo Grumach, a maior parte dos acervos judaicos do prédio foi destruída, incluindo as bibliotecas das congregações judaicas de Viena e Varsóvia. O outro depósito de livros da RSHA, uma loja maçônica na Emser Straße, foi atingido por bombas.
Coube aos trabalhadores escravos judeus salvar o que havia restado. De acordo com Grumach, isso aconteceu enquanto os prédios ainda estavam pegando fogo, e os judeus foram “mandados para salas em chamas e obrigados a carregar móveis pesados por espaços onde os tetos estavam cedendo e podendo despencar a qualquer momento”.[12]
Apesar dos incêndios, ainda havia grandes quantidades de livros em vários depósitos, bunkers e subsolos de Berlim. O encaixotamento e a remoção dos exemplares prosseguiriam “até os russos estarem se aproximando de Berlim”.[13] A essa altura os acervos mais importantes já tinham sido evacuados, mas ainda havia mais de meio milhão de livros nos depósitos da RSHA quando a guerra acabou, muitos dos quais foram recolhidos pela Bergungsstelle für wissenschaftliche Bibliotheken e distribuídos entre as bibliotecas berlinenses. Alguns acabaram na Zentral- und Landesbibliothek, onde setenta anos mais tarde Sebastian Finsterwalder e Detlef Bockenkamm os tirariam da obscuridade.
No verão de 1943, Alfred Roosenberg também começou a esvaziar seus depósitos tanto em Berlim quanto em Frankfurt. O quartel-general da Amt Roosenberg ficava a oeste da Potsdamer Platz, em Berlim. A organização de Roosenberg havia crescido e se bifurcado como um tronco de árvore; cada galho tinha criado novas ramificações, na forma de novos projetos, operações e organizações. Em 1943, milhões de livros roubados haviam sido recolhidos para os vários projetos de biblioteca de Roosenberg, sendo os mais ambiciosos a biblioteca judaica do instituto de Frankfurt, a Zentralbibliothek der Hohen Schule e a Ostbücherei, a biblioteca especializada em questões orientais.
O instituto de Frankfurt havia criado “a melhor biblioteca judaica do continente”, segundo a historiadora Patricia Kennedy Grimsted.[14] Em 1941, primeiro ano de atividades do instituto, chegaram 2.136 caixas de livros pilhados. Como nos demais projetos de biblioteca, havia uma constante discrepância entre a quantidade de livros que chegava e a capacidade dos funcionários de processá-los. O butim era tão grande que provavelmente os bibliotecários e arquivistas nazistas levariam décadas para catalogar tudo. Das 2.136 caixas, o instituto só teve tempo para abrir 700 e para catalogar aproximadamente 25 mil livros. Apenas cerca de um décimo do acervo chegou a ser catalogado.
Na primavera de 1943 o instituto contava com um acervo de mais de meio milhão de livros – e a participação de Johannes Pohl nisso não era desprezível.[15] Em sua vida prévia como padre católico, Pohl havia visitado várias das mais importantes bibliotecas judaicas da Europa e garantido sua posse. Em Amsterdã, as bibliotecas judaicas Ets Haim e Rosenthaliana foram capturadas. Em Paris, ele supervisionou a tomada da biblioteca da Alliance Israélite Universelle, e em Roma a ERR confiscou a Biblioteca del Collegio Rabbinico Italiano. Mais de dez mil livros foram saqueados da comunidade judia de Tessalônica. Em sua visita a Tessalônica no início de 1943, Pohl voltou a Frankfurt trazendo pessoalmente parte dos arquivos da congregação.
E da União Soviética e da Europa Oriental chegavam trens e mais trens com arquivos e bibliotecas judaicos roubados, em muitos casos de comunidades que em 1943 já haviam sido extintas. Chegaram livros de Kiev, Minsk, Riga e centenas de comunidades menores pelo caminho. Sobretudo, chegaram livros de Vilnius.
Na segunda metade de 1943, teve início a evacuação de Frankfurt. Em função de sua localização mais a oeste e de suas importantes fábricas de armamentos, a cidade era especialmente visada pelos bombardeios dos Aliados. Cerca de vinte bombardeios durante a guerra reduziram o famoso centro medieval de Frankfurt, o maior da Alemanha, a pedras e restos de madeira. Não havia grandes distâncias envolvidas; o instituto foi estabelecido em Hungen, uma cidade pouco mais de quarenta quilômetros a norte de Frankfurt, onde os acervos foram mantidos em oito depósitos diferentes. Durante os dois últimos anos de existência do instituto, os acervos cresceram ainda mais à medida que bibliotecas tanto a leste quanto a oeste foram sendo transferidas em função da retirada alemã. Em 1945, calcula-se que houvesse mais ou menos um milhão de livros em Hungen, além do grande número de materiais de arquivo e de artefatos religiosos judaicos.[16]
As bibliotecas e os arquivos saqueados pela ERR haviam sido divididos entre o instituto em Frankfurt, que recebia muitos dos acervos judaicos mais importantes, e os vários departamentos em Berlim. A ERR havia criado um local chamado Buchleitstelle, em Berlim, uma espécie de centro de triagem que checava os inventários e decidia para onde cada acervo deveria ser despachado. Uma consequência trágica desse trabalho foi que muitas coleções acabaram se fragmentando. Do ponto de vista da ERR, não havia valor inerente em manter na íntegra em um mesmo lugar um acervo roubado. Afinal, a intenção era criar acervos totalmente novos. Os mais afetados foram os mais especializados, em que um tema “judaico” podia ser separado para o instituto de Frankfurt enquanto outra parte era despachada para a Ostbücherei ou para a Zentralbibliothek der Hohen Schule (ZBHS).[17] A ERR compartilhava voluntariamente ou era forçada a compartilhar com outras organizações, institutos, universidades e bibliotecas o que tinha em termos de livros e material de arquivo. No entanto, os materiais também eram divididos entre projetos diferentes dentro da Amt Roosenberg. O resultado dessa fragmentação foi que muitos acervos, por exemplo os de Vilnius e Tessalônica, acabaram em vários lugares. Essa fragmentação era por si só uma espécie de destruição, um destino que levou muitas bibliotecas a jamais voltarem a ser reagrupadas.
Depois do instituto em Frankfurt, a ZBHS era o destino mais importante dos livros. A biblioteca foi uma das primeiras coleções que Roosenberg evacuou de Berlim, já a partir de outubro de 1942. De início a biblioteca foi transferida para o Grand Hotel Annenheim, perto do lago Ossiach, no sul da Áustria; mas pouco depois houve uma segunda transferência para o grande castelo do Renascimento em Tanzenberg, perto da cidade de Sankt Veit an der Glan.
Por ser a joia da coroa dos projetos de biblioteca de Roosenberg, a ZBHS seria premiada com alguns dos melhores acervos. Mas a base da biblioteca foram alguns acervos obtidos de acadêmicos alemães, entre os quais o orientalista e racista Hugo Grothe, que no início do século XX defendeu o genocídio como modo de os alemães ganharem lebensraum nas colônias. Também havia uma biblioteca pertencente ao historiador da Igreja Ulrich Stutz e ao pesquisador de Napoleão Friedrich Max Kircheisen. Alfred Roosenberg havia acrescentado sua biblioteca pessoal ao acervo. No entanto, esses acervos seriam apenas uma fração do que a ZBHS acumularia durante a guerra. Ao todo, entre 500 mil e 700 mil livros foram levados à Zentralbibliothek der Hohen Schule em Tanzenberg.[18]
O acervo podia ser visto como um corte transversal da pilhagem da ERR durante a guerra. Havia livros de quase todos os países em que a ERR operou: França, Holanda, União Soviética, mas também Bélgica, Grécia, Itália, Polônia e Iugoslávia. Havia inclusive livros tirados das Ilhas do Canal, território britânico invadido pela Alemanha em 1940.[19]
O instituto em Frankfurt não ficou com toda a literatura judaica; boa parte também foi para a ZBHS, incluindo vários acervos privados valiosos, como bibliotecas de membros da família Rothschild na França. A ZBHS recebeu novecentas caixas de material do IISG em Amsterdã, incluindo a maior parte do acervo de jornais e periódicos do instituto.[20] Além disso, a biblioteca incorporou coleções e arquivos valiosos da União Soviética, por exemplo, 35 mil livros roubados de bibliotecas de palácios imperiais na região de Leningrado. Até impressões raras e muito antigas roubadas em Novgorod e Kiev foram mandadas para Tanzenberg, como livros do Kiev Pechersk Lavra, mais conhecido como Mosteiro de Kiev-Petchersk, fundado no século xi.
O maior depósito da ERR não ficaria nem na Áustria nem em Hungen. Seria na pequena cidade de Ratibor, hoje conhecida como Racibórz, no sudoeste da Polônia. Ratibor era o principal mercado da Alta Silésia e tinha tradições que remontavam à Idade Média. Como tantos lugares dessas fronteiras, a região tinha população mista de tchecos, poloneses e alemães. Um motivo importante para a escolha parece ter sido a posição estratégica da cidade entre Berlim, Cracóvia e Viena. A possibilidade de transporte fluvial foi igualmente importante – o Oder passava pela cidade a caminho do Báltico. Funcionários da ERR chegaram a Ratibor em maio de 1943 para fazer preparativos, e poucos meses depois uma entrega inicial de dez vagões de livros e arquivos chegou de Berlim.[21] Muitos mais chegariam por via fluvial, com mais de seis mil caixas de material transportadas por balsas pelo Oder.
O novo escritório central da organização foi estabelecido em um monastério franciscano perto do rio, enquanto a Ostbücherei foi instalada no que antes era uma casa de banhos. Um banco, a biblioteca local, uma sinagoga e vários depósitos também foram ocupados. Os departamentos da ERR destinados a imprensa, música, cultura popular e ciências também foram no mesmo caminho e se transferiram para Ratibor. A falta de espaço disponível logo obrigou a ERR a sair da cidade e a procurar novas instalações no campo; dentre outros lugares uma fábrica de cigarros foi requisitada, assim como vários castelos da região. Trens lotados de mobília roubada de apartamentos de judeus na M-Aktion abasteceram os departamentos com aquilo que eles pediam. A dispersão das atividades foi uma tentativa de manter a operação dentro do maior limite de discrição possível. Por exemplo, os donos dos castelos tiveram permissão para permanecer como residentes para manter uma aparência de normalidade.
A operação de triagem, Buchleitstelle, também foi transferida para Ratibor, e isso parece sugerir que todos os arquivos e bibliotecas roubados foram levados a Ratibor para triagem. O desembarque dos Aliados na Normandia e os avanços do Exército Vermelho no front oriental significavam que grandes quantidades de livros chegaram nos anos finais da guerra. Vários acervos passaram pelo crivo da Buchleitstelle no verão de 1944, incluindo muitos que haviam pertencido a judeus franceses renomados, como o diretor da Biblioteca Nacional da França, Julien Cain, e o secretário-geral do PEN francês, Benjamin Crémieux – ambos deportados para Buchenwald.[22] Além disso, os arquivos do político judeu francês Léon Blum e os do escritor André Gide acabaram em Ratibor.
Parte significativa das atividades em Ratibor tinha seu centro na Ostbücherei, que cresceu de maneira impressionante, em consequência da pilhagem na União Soviética. Os acervos da Ostbücherei eram armazenados na sinagoga e em mais meia dúzia de prédios. A grande Biblioteca Lênin, que chegou de Minsk em dezessete vagões, foi transferida para a fábrica de cigarros perto de Ratibor. Centenas de milhares de outros livros e periódicos foram armazenadas num castelo medieval, o Schloss Pless, perto de Ratibor. As bibliotecas Turguêniev e Petliura, junto com algumas outras bibliotecas de exilados saqueadas pela ERR no front ocidental, encheram várias salas da sinagoga. Os planos para uma biblioteca equivalente em terras orientais, que seria conhecida como Westbücherei, nunca chegaram a se materializar.[23] Livros continuaram chegando a Ratibor até os momentos finais da guerra. Nem mesmo os alemães pareciam saber quantos livros a Ostbücherei havia acumulado em Ratibor. De acordo com algumas estimativas, podem ter sido pelo menos dois milhões de volumes, e provavelmente o número foi ainda maior.