Ratibor-Frankfurt
Quando o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica abriu em Frankfurt em 1941, a sensação era de que isso ocorria não só numa cidade simbólica como também em um prédio singular. O instituto se transferiu para um dos palácios da família Rothschild, no número 68 da Bockenheimer LandStraße.[1] O mais importante instituto antissemita da Europa abrir em Frankfurt e não em qualquer outro lugar, segundo Alfred Roosenberg, era um fim simbólico do domínio dos Rothschild sobre a cidade.[2]
Foi em Frankfurt que Mayer Amschel Rothschild, ancestral da família, estabeleceu as fundações da dinastia de banqueiros no fim do século XVIII. Dali, ele enviou os filhos para vários lugares da Europa para estabelecer uma nova e poderosa dinastia com uma rede de laços familiares.[3] Do ponto de vista dos nazistas, Frankfurt era o berço de um mal de proporções globais – e na opinião deles nenhuma outra família jamais havia personificado tanto a avareza destrutiva das finanças judaicas quanto os Rothschild. Ao colocar o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica no coração desse “mal”, havia o desejo de separar, simbólica e literalmente, a conspiração mundial judaica de suas raízes mais importantes.
O prefeito nazista da cidade, Friedrich Krebs, usou a Rothschildsche Bibliothek como isca para levar Roosenberg a Frankfurt. Em uma carta, Krebs escreveu: “O acervo foi construído numa época em que a vida política e cultural de Frankfurt estava sob influência judaica, mas hoje essa biblioteca oferece uma oportunidade única para pesquisar o judaísmo e a questão judaica”.[4] Essa foi a única biblioteca judaica que os nazistas não precisaram roubar. Em vez disso, o instituto de Frankfurt abrigou lá seu próprio acervo até o início das evacuações em 1943. De modo muito semelhante ao das ações da Seção VII da RSHA e de outros departamentos da Amt Roosenberg, o instituto de Frankfurt dedicou consideravelmente mais tempo e esforço durante a guerra ao transporte, armazenamento, triagem e catalogação dos livros do que a qualquer atividade efetiva de pesquisa. Trabalhos continuados de pesquisa eram vistos como algo que aconteceria após a guerra, quando o rico material roubado dos inimigos ideológicos do regime poderia ser estudado e avaliado de maneira adequada.[5]
Como a escola perto de Chiemsee, os vários institutos de pesquisa que estavam sendo planejados para atuar sob o guarda-chuva da Hohe Schule seriam abertos no futuro, depois de a Alemanha assegurar sua vitória. No entanto, vários desses institutos estavam em fase preparatória durante a guerra, acumulando livros, arquivos e outros materiais saqueados, embora ainda não estivessem oficialmente abertos.
A tarefa mais importante durante a guerra era a pilhagem, que abastecia os institutos com vastos materiais para futuras pesquisas. Os materiais eram distribuídos, entre outros, para o Instituto de Biologia e Estudos Raciais em Stuttgart, o Instituto de História Intelectual Indo-europeia em Munique e o Instituto de Pesquisas Coloniais em Hamburgo. Um novo instituto estava sendo planejado em 1944 como consequência do enorme saque de livros e arquivos pertencentes ao Partido Comunista na União Soviética: o Institut zur Erforschung des Bolsjewismus [Instituto para Pesquisas sobre o Bolchevismo].[6]
Mas, no fim, o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica foi o único da Hohe Schule a estar totalmente pronto e em atividade durante a guerra. Pesquisas sobre povos germânicos, celtas e religião podiam esperar o fim da guerra, mas a “questão judaica” era importante demais para ser postergada. Em um sentido mais amplo não foi coincidência o instituto ter sido inaugurado na mesma época em que os planos de Hitler para o Holocausto eram colocados em ação.
Embora a coleta de materiais tenha tido prioridade, havia pesquisas em andamento. Depois da evacuação de 1943, a divisão de pesquisa do instituto se transferiu para um castelo medieval em Hungen, que parecia uma espécie de amálgama entre um chalé de caça e um castelo de conto de fadas, com seus detalhes em tijolos e suas torres sinuosas. A organização permitiu que os donos do castelo, a família Solms-Braunfel, permanecessem, para ajudar a encobrir a operação. Durante a guerra, o instituto acompanhou de perto o desenrolar dos fatos políticos relativos aos judeus e à legislação antissemita nos territórios ocupados, e recebia regularmente relatórios sigilosos do Ministério das Relações Exteriores e dos consulados.[7] Enquanto isso, os “experts em judaísmo” do instituto contribuíam com seu conhecimento sobre as várias culturas judaicas com as quais os alemães estavam entrando em contato.
Desde o começo, o instituto de Frankfurt também se ocupou da produção de estudos, artigos e livros baseados no rico material saqueado em todo o continente. Ao montar o maior acervo judaico da Europa e provavelmente do mundo, os pesquisadores do instituto tinham o poder de moldar o futuro dos estudos judaicos. A perspectiva desses estudos ficou muito clara em um artigo sobre o instituto no jornal do partido, o Völkischer Beobachter, em 1942: “Pela primeira vez na história: estudos judaicos sem judeus”.
O canal mais importante para publicação dessas pesquisas era o periódico do próprio instituto, Der Weltkampf [A batalha pelo mundo], que se descrevia como um “periódico mensal sobre política mundial, cultura popular e a ‘questão judaica’ em todos os países”. A primeira edição teve seis mil cópias. A maior parte dos assinantes era de professores e pesquisadores.[8] O periódico também teria edições temáticas. O número 2/1943 se concentrou na “questão judaica” na França, com contribuições de correspondentes antissemitas franceses. A edição também foi publicada em francês. A edição especial foi consequência do rico butim recebido da França.
Entre outros textos, a edição trazia uma “análise” de uma carta enviada por Heinrich Heine, o poeta judeu alemão do século XIX, para o barão James de Rothschild em Paris, pedindo dinheiro. Outro artigo analisa cartas em que Albert Einstein fazia críticas à Universidade Hebraica em Jerusalém, fundada em 1925. Einstein estava no conselho da universidade. Os dois artigos faziam menção a materiais que a ERR havia descoberto em Paris.[9] Embora dificilmente se pudesse dizer que os documentos revelassem uma efetiva conspiração, eles foram usados de modo sugestivo para revelar as redes econômicas, políticas e sociais mantidas pelos judeus. Nunca foi apresentado qualquer indício de conspiração, nem era necessário. Tratava-se de pesquisa feita por crentes, para deleite de outros crentes. Cada pequena conexão era vista como uma peça de uma conspiração global. A pesquisa era caracterizada pelo mesmo tipo de abordagem filosófica que Goebbels deu a Os protocolos dos Sábios de Sião – ou seja, de que era a verdade inata, e não a factual, que contava.
Também no periódico do instituto havia artigos baseados em materiais recém-descobertos e em “visitas de estudo” que os pesquisadores haviam feito. Johannes Pohl, chefe do acervo hebraico, escreveu sobre seus achados em Vilnius em “Literatura iídiche na União Soviética”. Pohl também publicaria estudos menores sobre cultura judaica na Grécia e na Ucrânia. Outros pesquisadores do instituto se dedicaram a temas como a conspiração judaico-bolchevique ou aos rituais assassinos dos judeus.
Além do Der Wetlkampf, o instituto editava livros, textos e antologias. Ênfase particular era dada a manuais, como no caso do Lexikon der Juden in der Musik. Um Lexikon der Juden auf dem Theater também estava nos planos, e o autor seria a especialista em literatura Elisabeth Frenzel, que em 1943 havia publicado Der Jude em Theater. Frenzel era altamente influenciada pelo astro da pesquisa racial alemã, o “Papa racial” Hans F. K. Günther – o livro dela sobre teatro judaico foi descrito pelo expert em literatura alemã Jochen Hörisch como uma das “piores publicações antissemitas” do Terceiro Reich. O objetivo dos manuais era identificar influências “judaicas” no teatro e na música, para separar isso da cultura alemã. Os manuais se dirigiam a profissionais dessas áreas – como diretores de teatro e professores de música – para evitar que eles acidentalmente executassem uma composição ou encenassem uma peça de natureza “judaica”.
Também estavam sendo planejados trabalhos ambiciosos sobre a história dos guetos e do antissemitismo. Para o primeiro, o instituto pediu a administradores locais da Europa Oriental que contribuíssem com mapas de vários guetos. Também é provável que um ramo relativamente desconhecido do instituto de Frankfurt aberto em Lodz no fim de 1942, com o nome de Institut zur Erforschung der Ostjudenfrage, estivesse participando do projeto. Esse instituto, chefiado por um professor de teologia chamado Adolf Frank, era um departamento especial cuja função era “conduzir pesquisas” sobre o gueto de Lodz enquanto ele ainda existia. O instituto, que tinha três funcionários, também coletou materiais para exposições antissemitas. Por exemplo, colocou anúncios classificados nos jornais locais oferecendo pagamento por “judenkündlichem Material [materiais judaicos]”.[10]
Embora nunca tenha acontecido uma exposição em Frankfurt, em Ratibor a operação foi mais bem sucedida. Em 1943, os departamentos de pesquisa e propaganda da Amt Roosenberg em Berlim tinham sido evacuados junto com os acervos. Até mesmo as filiais da ERR na União Soviética foram forçadas a bater em retirada junto com o exército alemão. Não só livros e arquivos, como também estudiosos e especialistas foram evacuados – incluindo dez professores ucranianos que, com suas famílias, foram transferidos de Kiev para Ratibor.[11]
A atividade de pesquisa em Ratibor se concentrava nos países a leste e tinha relação direta com as grandes quantidades de materiais recolhidas para a Ostbücherei. Foram feitos estudos sobre temas como o sistema soviético, ou havia peças polêmicas de propaganda antibolchevique com títulos como “A batalha contra o bolchevismo” e “A verdadeira face do bolchevismo”. Acima de tudo, a pesquisa pretendia demonstrar os verdadeiros propósitos do bolchevismo e provar que havia uma conspiração judaica oculta por trás dessa ideologia. Os trabalhos de pesquisa eram chefiados pelo bibliotecário e historiador Gerd Wunder, que antes tinha estado em Paris e em Riga, onde fora responsável pelo confisco de bibliotecas. O departamento de pesquisa de Wunder, conhecido como Hauptabteilung IV, se estabeleceu na Schloss Pless, perto de Ratibor, para onde a maior parte dos acervos da Ostbücherei também foi levada.[12] Wunder também escrevia “arquivos pessoais” com base em material de arquivo confiscado que dizia respeito a judeus importantes, como membros da família Rothschild, Walter Rathenau e Albert Einstein. A produção dele incluiu uma árvore genealógica dos Rothschild com suas “conexões”.
O projeto mais impressionante nascido da unidade de pesquisa de Wunder foi uma grande exposição secreta montada por oficiais nazistas em maio de 1944, cobrindo todo o escopo de materiais confiscados pela ERR durante a guerra. Era também uma combinação do trabalho da ERR com o do Hauptabteilung IV. A exposição tinha várias seções que exibiam materiais da França, da Holanda e da União Soviética, sendo que os soviéticos dominavam a maior parte. Também havia painéis especiais dedicados aos judeus de Tessalônica, à família Rothschild e aos maçons. Parte dos materiais da exposição, como cartazes, fotografias e ilustrações, sobreviveu. Eles representam as ideias e as concepções cultivadas na organização e foram um verdadeiro reflexo da visão de mundo de seu líder. As fotos mostram uma exposição relativamente tradicional, com cartazes e mesas trazendo materiais selecionados dos arquivos e bibliotecas.[13]
Alguns dos itens da seção sobre maçonaria são relacionados a Franklin D. Roosevelt e a Winston Churchill – ambos maçons desde princípios do século XX. Entre os itens exibidos estavam uma versão impressa de um discurso que Roosevelt fez em uma convenção maçônica e uma carta sobre a maçonaria enviada por Churchill ao político judeu francês Léon Blum – que a essa altura estava preso em Buchenwald.
O item mais revelador da parte que sobreviveu da exposição é uma ilustração de uma teia de aranha, uma tentativa de tornar visível a conspiração mundial, na qual a estrela de davi – o símbolo da maçonaria – e a foice e o martelo são equiparados a pessoas como Walther Rathenau, Cecil Rhodes, Kurt Eisner, Leon Trótski, Vladimir Lênin e a família Rothschild. Esses eram os demônios de Roosenberg, ligados em uma rede que englobava todo o mundo em sua conspiração maligna.[14] Como vimos, eles eram uma representação pictórica da teoria da conspiração que Alfred Roosenberg vinha construindo havia quase trinta anos. Era uma conspiração holística; tudo estava conectado. Inimigos como socialistas, bolcheviques, maçons, católicos e capitalistas – junto com políticos britânicos, americanos e franceses – foram todos capturados por uma única e abrangente rede que havia sido tecida pelos judeus.
Para os antissemitas, a teia de aranha era uma das metáforas mais poderosas. Os judeus sempre foram comparados a uma aranha, um parasita que suga o sangue de povos, culturas e nações. A metáfora da aranha funcionava em vários níveis diferentes; era um símbolo da extorsão financeira dos judeus, da miscigenação racial e da mácula que recaía sobre o sangue ariano, e do antigo libelo de sangue – o sacrifício ritual de crianças.
Outro cartaz mapeava a genealogia da família Rothschild voltando até James Mayer de Rothschild.[15] O “domínio econômico mundial” dos Rothschild, que remontava ao século XVIII, era o centro dessa conspiração judaica no Ocidente, permitindo que eles tivessem controle da economia global, ao passo que no Oriente era o bolchevismo que se situava no centro da trama. O Terceiro Reich, espremido entre esses dois inimigos poderosos, lutava incansavelmente pela liberdade dos alemães e da raça germânica.
De acordo com a visão de mundo dos nacional-socialistas, não foi o regime nazista que deu início à ofensiva na guerra; o governo de Hitler simplesmente havia se defendido, por um lado, das “finanças judaicas” no Ocidente e, por outro lado, do “bolchevismo judaico” no Oriente. Antes da guerra, em janeiro de 1939, Adolf Hitler já havia dito em um discurso ao Reichstag: “O judaísmo das finanças internacionais na Europa e além deve mais uma vez ser bem-sucedido em fazer com que os povos mergulhem na guerra, e o resultado não será a bolchevização da Terra, que seria uma vitória dos judeus, mas sim a aniquilação da raça judaica na Europa”.[16]
Nessa época, quando Hitler falava em “extirpar” não se tratava do que ocorreria mais tarde em Auschwitz – essa “solução” para a “questão judaica” só surgiria mais tarde. No começo, a “questão judaica” não tinha a ver com genocídio, mas sim com a exclusão dos judeus de todas as áreas da sociedade e da cultura alemãs – e mais tarde de toda a Europa. Na década de 1930 a solução era a segregação legal, social, cultural e econômica, com o objetivo de forçar os judeus a migrarem. Foram feitos planos para transferir a população judaica europeia para uma “reserva”. A Ásia Central, a Palestina e Madagascar estiveram entre as opções pensadas. O Holocausto – assassinato em massa – foi uma solução que surgiu em meados de 1941.
A pesquisa feita sob a liderança de Alfred Roosenberg seguia estritamente esse tipo de linha – na luta contra o judaísmo os pesquisadores eram vistos como guerreiros “intelectuais” recolhendo munição nas bibliotecas e arquivos roubados –, destruindo, desse modo, a conspiração judaica por dentro. Ao roubar e confiscar o legado histórico, literário e cultural do povo judeu em toda a Europa, Roosenberg e, em última instância, o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica criavam as bases sobre as quais, no futuro, seria possível defender e justificar a extinção do povo judeu. Os estudos que chegaram a ser concluídos eram mera pseudociência projetada para costurar uma teia de mitos, equívocos e invenções históricas em que a ideologia nacional-socialista se apoiava para ganhar ares de respeitável disciplina científica.
Eram “pesquisas” com uma meta claramente articulada. Em seu discurso inaugural, quando o instituto foi aberto em 1941, seu diretor Wilhelm Grau descreveu sua visão de uma Europa livre de judeus.[17] No ano seguinte foi publicada uma nova edição de uma obra de 1937 de Grau, Die Judenfrage in der deutschen Geschichte [A questão judaica na história alemã]. Assim como Adolf Hitler, ele culpava os judeus pela guerra. De acordo com Grau, era uma guerra que só podia acabar quando a “questão judaica” estivesse a ponto de ser solucionada.
O momento em que a justificativa “intelectual” para o Holocausto ficou mais clara foi quando o Ministério da Propaganda encomendou em 1944 ao sucessor de Grau, dr. Klaus Schikert, uma continuação de seu livro e tese de doutoramento de 1937 sobre a questão judia na Hungria, Die Judenfrage in Ungarn. Jüdische Assimilation und antisemitische Bewegung im 19. und 20. Jahrhundert [A questão judaica na Hungria. Assimilação judaica e movimentos antissemitas nos séculos XIX e XX]. Schikert trabalhou no segundo livro enquanto os judeus húngaros eram deportados para Auschwitz.[18] Schikert já havia ajudado a criar um instituto antissemita em Budapeste que, depois da ocupação da Hungria pela Alemanha em março de 1944, se transformou em uma instituição estatal. Os membros do instituto ganharam cargos importantes no novo regime, com autoridade para implementar rapidamente políticas antijudaicas.
A ambição de Roosenberg era apresentar a “verdadeira história” dos judeus na Alemanha e na Europa. Mas para entender por que “o judeu” era o maior dos inimigos, é preciso levar em consideração que para os ideólogos da Alemanha nazista a história dos judeus era também a história dos alemães. “É impossível exagerar na ênfase de que a história moderna contemporânea da Alemanha e da Europa deve ser escrita levando em conta a ‘questão judaica’”, escreveu Wilhelm Grau, que dizia que o problema dos judeus remontava à Idade Média.[19] Só era possível compreender a história alemã com base nessa batalha de dois mil anos entre judeus e alemães. Ao “estudar a luta difícil e que enfim terminará com a vitória de nossa nação alemã contra o elemento judeu racialmente estranho, podemos chegar a compreender melhor o caráter alemão. E por meio disso não apenas ampliaremos nosso conhecimento como também reforçaremos nosso compromisso com a vida nacional”, escreveu Volkmar Eichstät, bibliotecário no Instituto Nacional para a História da Nova Alemanha do historiador nazista Walter Frank.
O Ministério da Propaganda de Goebbels disse isso de modo mais claro em 1944: “A ‘questão judaica’ é a chave da história mundial”.[20] A força motriz fundamental da história era, como afirmaram Gobineau, Chamberlain e Roosenberg, a luta entre as raças – uma espécie de equivalente ideológico à luta de classes do marxismo. No centro dessa luta estavam arianos e judeus, antagonistas supremos. No mundo nacional-socialista, os judeus eram uma encarnação histórica do mal, a raiz de toda a corrupção, do cruzamento entre as raças, da degeneração, da fragmentação e do sofrimento do povo alemão.
Para que fosse possível o surgimento de uma nova Alemanha, era preciso derrotar esse adversário milenar, não apenas em um sentido físico mas também simbolicamente. “Os nazistas perseguiram os judeus porque eles eram um elemento fundamental que vinha de dentro de sua própria civilização alemã e cristã-europeia”, escreve o historiador Alon Confino. “Os judeus davam o sentido geral da luta dos nazistas entre o bem e o mal: a luta messiânica para criar uma civilização nazista que dependia do extermínio dos judeus. Criação e extermínio estavam ligados de maneira indissociável, cada um dando sentido ao outro.”[21]
Mas não se tratava apenas de uma guerra de extermínio físico, era também uma batalha pela memória e pela história. E aqui o projeto de Alfred Roosenberg tinha um papel fundamental. O saque de bibliotecas e arquivos estava no coração dessa batalha pelo controle da memória. Era isso também que distinguia o roubo de livros de outros tipos de pilhagem, como no caso dos objetos de arte. A arte também era ideológica, mas apenas em um sentido simbólico. Obras de arte eram troféus que traziam glória para a nação e seus líderes. A arte também refletia e legitimava os ideais nacional-socialistas e o novo ser humano. Mas a verdadeira ideologia se sustentaria em livros e arquivos. O futuro seria construído a partir do controle da memória e da história, com base na palavra escrita.
Os nazistas se esforçaram para exterminar o povo judeu, mas não sua memória. “O judeu” seria preservado como um inimigo histórico e simbólico. Alfred Roosenberg ressaltou já em seu discurso inaugural de que esse era um dos objetivos do instituto de Frankfurt.[22] No discurso, ele previa que um dia outra geração, mesmo em um futuro nacional-socialista, julgaria a geração dele. Por isso, era preciso preservar a história dos judeus, sua importância e a de seus crimes, e era preciso poder justificar a guerra implacável que o povo alemão havia sido “forçado” a combater. Por isso, as expressões importantes da cultura judaica, as bibliotecas e os arquivos foram roubados, mas não destruídos. Eles eram necessários para que fosse possível escrever a história da batalha milenar e da vitória final. Tendo em vista que essa batalha era o que dava sentido ao próprio movimento, a memória dos judeus precisava ser mantida viva como um mal simbólico muito depois de eles terem desaparecido. Em seu livro A world without jews, Alon Confino escreve:
Lembrar os judeus após a guerra vitoriosa teria sido importante exatamente porque o extermínio total do judeu não poderia ter sido obtido apenas por meio da aniquilação física; era necessário também subjugar a memória e a história dos judeus. Uma vitória na guerra teria eliminado o suposto poder do judaísmo mundial sobre a Casa Branca e o Kremlin e acabado com a ameaça racial judaica na sociedade alemã, mas a luta dos nazistas contra os judeus nunca foi eminentemente uma guerra relacionada a influência política e econômica. Tratava-se de uma guerra que tinha a ver com identidade e que os nazistas combatiam se apropriando da história, da memória e dos livros dos judeus.[23]
Portanto, era não só significativo como também relevante que a capacidade de lembrar se tornasse em si mesma um ato de resistência. Quando Herman Kruk, bibliotecário do gueto de Vilnius, enterrou seus diários no campo de trabalho forçado na Estônia pouco antes de sua morte em 1944, em certo sentido estava tentando derrotar, por meio da preservação de sua memória, aqueles que praticavam violência contra ele. Apesar da ambivalência que marcou o trabalho feito pela Brigada do Papel em Vilnius e do Talmudkommando em Theresienstadt, os dois grupos viam uma fonte de esperança na ideia de que, em última instância, estavam salvando sua própria história.
Também havia outro aspecto intimamente relacionado nessa luta por memórias, palavras e livros. Afinal, ela estava sendo travada possivelmente entre os dois povos mais literários e intelectualizados do mundo – entre dois dos “povos do livro”. Essa semelhança foi anotada no diário de 1939 de Chaim Kaplan, um professor judeu de Varsóvia:
Estamos lidando com uma nação muito culta, com “um povo do livro”. A Alemanha se transformou num manicômio – cheia de loucos por livros. Diga o que você quiser, eu tenho medo dessa gente! Quando a pilhagem se baseia em uma ideologia, em uma visão de mundo essencialmente espiritual, é impossível igualar sua força e sua durabilidade [...] Os nazistas roubaram não apenas nosso patrimônio material, mas também nossa reputação como “o povo do livro”. Os nazistas têm tanto o livro quanto a espada, e daí vêm a sua força e o seu poder.[24]
Talvez seja simbólico que o diário de Chaim Kaplan, que havia sido deixado para trás, tenha se tornado um dos mais importantes registros da vida dos judeus em Varsóvia antes e depois da invasão. Em 1942, quando ele percebeu que estava prestes a ser preso, o diário foi contrabandeado para fora da cidade. Na sua última anotação, lemos: “13 mil pessoas foram capturadas e mandadas embora, dentre elas 5 mil que foram por conta própria. Elas não suportavam mais a vida no gueto, uma vida de fome e medo da morte. Elas escaparam da armadilha. Será que eu seria capaz de fazer o mesmo? Se minha vida acabar – o que será do meu diário?”[25]
Na Seção VII do Gabinete de Segurança do Reich alguns outros projetos de pesquisa continuariam até o fim da guerra. No entanto, a pesquisa feita na RSHA era diferente e, de muitas maneiras, mais fantasiosa. Assim como a versão de Alfred Roosenberg da realidade permeou suas atividades, a pesquisa da RSHA tinha aspectos que claramente eram reflexos dos interesses de Himmler por maçonaria e ocultismo.
Os acervos e os projetos de pesquisa que ficavam na RSHA foram evacuados para vários castelos na Europa Central. Em Schloss Niemes, a Seção VII havia começado a compilar um registro de ciências ocultas – Geheimwissenschaftlichen. O resultado foi um catálogo de mais de quatrocentas páginas, com sete mil livros e dezoito mil periódicos sobre temas como astrologia, espiritualismo, misticismo, profecia, hipnose, alquimia, hedonismo e interpretação dos sonhos. Um dos projetos de pesquisa da RSHA mais curiosos foi batizado como Leo e era chefiado pelo SS-Obersturmbannführer Werner Göttsch, um dos homens de confiança do chefe da RSHA, Ernst Kaltenbrunner. Kaltenbrunner havia substituído Reinhard Heydrich, assassinado na Tchecoslováquia em 1942.
Göttsch havia trabalhado anteriormente no departamento estrangeiro da SD, mas sua carreira desacelerou após uma tuberculose. Ele foi designado para uma missão especial, estudando o acervo de literatura maçônica da Seção VII, com ênfase em ocultismo. Ele tinha a ajuda do SS-Sturmbannführer Hans Richter, o expert da RSHA em maçonaria e responsável pela compilação do acervo sobre feitiçaria e magia. Richter esboçou listas de leitura para Göttsch sobre temas como magia, telepatia e espiritualismo e até de livros do acervo pornográfico. Depois da evacuação de Berlim, várias salas do castelo seiscentista de Neufalkenburg (hoje conhecido como Nový Falkenburk) na Tchecoslováquia foram cedidas ao projeto altamente sigiloso de Göttsch, e uma pequena biblioteca sobre ocultismo foi organizada. Richter, responsável por essa parte da operação, solicitou obras importantes, que foram localizadas em outros acervos confiscados e levadas para o castelo. Até relatórios secretos da SD, que nos anos 1930 perseguiu vários grupos antroposóficos na Alemanha, faziam parte da coleção.[26]
Paul Dittel, último chefe da Seção VII, afirmou em um interrogatório depois da guerra que o objetivo do Leo era criar “um tipo de ordem maçônica ou seita esotérica” ligada à SS.
Dittel afirmou que Kaltenbrunner estava se esforçando para organizar uma fraternidade nazista cujos membros seriam livres para se dedicar ao que bem quisessem, desde que permanecessem leais ao regime e trabalhassem como “observadores e informantes”.[27] De acordo com Dittel, a pesquisa de Göttsch tentava criar as bases necessárias para essa organização – provavelmente estudando como os maçons, por meio de ritos e de sigilo, organizaram fraternidades leais. Os líderes da SS deram ao projeto a mais alta prioridade, num momento em que ficava cada vez mais claro que a Alemanha estava prestes a perder a guerra. Isso parece sugerir que a “ordem” poderia ter funcionado como uma espécie de preparativo para atividades subterrâneas em uma Alemanha pós-nazista.
Um projeto consideravelmente mais antigo era o Hexenkartothek, de Heinrich Himmler, que operava desde meados dos anos 1930. A pesquisa sobre bruxaria, realizada sob o nome de Hexen-Sonderauftrag, investigava as bruxas e a caça a elas. Himmler dera ordens para que o tema fosse submetido a uma “investigação científica”. Um dos motivos do interesse do líder da SS pelo tema supostamente era o fato de uma ancestral dele, Margareth Himbler, ter sido queimada na fogueira em 1632, em Bad Mergentheim, após ser condenada por bruxaria.[28]
Uma dúzia de pesquisadores trabalhou por quase uma década em tempo integral no Hexen-Sonderauftrag, vasculhando 260 bibliotecas e arquivos em busca de materiais sobre bruxas, atas de julgamentos, descrições de testemunhas e confissões. O material foi compilado em um índice catalográfico, o Hexenkartothek, em que cada “bruxa” tinha sua própria seção, com sua história, seus laços familiares e seu destino. O projeto assumiu a forma de documentação de vítimas, precisamente o que era.
Himmler via os julgamentos das bruxas como expressão da batalha milenar entre as culturas do norte e do sul da Europa. Essa perseguição, segundo Himmler, foi um modo de a Igreja Católica combater as crenças espirituais originais dos povos do norte – um ataque que visava à destruição dos antigos costumes germânicos. As bruxas, portanto, representavam a “cultura popular” nórdica que, de acordo com esse ponto de vista, se opunha ao cristianismo do sul, mediterrâneo, com raízes no mundo judaico.
Havia certa dose de verdade nisso – muitas dessas mulheres foram de fato queimadas por serem acusadas de praticar magia e rituais pagãos, pré-cristãos. Como era mais ou menos previsível, porém, Himmler suspeitava que a perseguição era parte de uma conspiração judaica para destruir a cultura genuinamente alemã. No universo da SS, as bruxas eram mártires arianas, amazonas nórdicas que haviam enfrentado o “sacerdócio semita”.[29]
Até certo ponto, a pesquisa da Hexen-Sonderauftrag foi utilizada durante o Terceiro Reich. Joseph Goebbels havia reconhecido o valor da caça às bruxas como instrumento de propaganda, como justificativa para os ataques à Igreja Católica. Até em desfiles nazistas e peças teatrais as bruxas eram elevadas a heroínas alemãs.
Um escritor chamado Friedrich Soukup foi contratado para escrever livros de ficção leves, tanto infanto juvenis quanto romances históricos adultos, sobre a caça às bruxas, com um tom condenatório contra a Igreja. Soukup supostamente planejava uma ambiciosa trilogia com base nas pesquisas, mas que nunca chegou a ser escrita. A documentação da Hexen-Sonderauftrag sobre a perseguição às bruxas foi a pesquisa mais detalhada a respeito do tema já realizada na Europa. Nos nove anos do projeto, o índice catalográfico cresceu até cobrir a vida de 3,6 mil bruxas. Além disso, um arquivo e uma biblioteca de aproximadamente 150 mil documentos e livros foram organizados. Depois da guerra, a Hexenkartothek de Himmler desapareceu e foi esquecida – até ser redescoberta na Polônia, na década de 1980, pelo historiador alemão Gerhard Schormann.
De acordo com Schormann, o projeto tinha duplo objetivo. Era uma fonte de propaganda e ao mesmo tempo uma tentativa de recuperar e preservar aspectos de crenças alemãs que haviam se perdido.[30] Curiosamente, a pesquisa de Himmler sobre bruxaria, apesar de muitos defeitos acadêmicos, ganhou certa importância nos estudos modernos sobre a caça às bruxas, em função da imensa quantidade de fontes reunida. “Como primeiro e único governo ‘pró-bruxas’ da Europa, o regime nazista também teve influência duradoura sobre o modo como a população compreendia a bruxaria e sobre algumas formas de magia populares”, escreve o historiador americano Michael David Bailey.[31] O próprio Gerhard Schormann usou a Hexenkartothek de Himmler como base de sua pesquisa sobre os julgamentos de bruxas na Alemanha.
Literatura judaica também era enviada ao Schloss Niemes, mas parece que esses livros eram apenas armazenados, ao passo que a literatura sobre ocultismo tinha prioridade total. Grimsted acha que esse interesse no ocultismo numa época em que o regime estava preocupado com a ideia de “guerra total” não pode ser desprezado como “sensacionalismo insignificante” – mas, sim, que isso era visto pela elite da SS como algo altamente importante no fim da guerra. “Talvez os líderes da RSHGA, como Himmler e Kaltenbrunner, que como sabemos hoje estavam secretamente sondando a possibilidade de um armistício, não estivessem prontos para abrir mão da busca por fontes espirituais e até mesmo pagãs que permitissem a sobrevivência e a renovação de sua missão, enquanto o mundo destruía o regime nazista e sua ideologia, os quais eles estavam encarregados de assegurar.”[32]
No fim, a guerra também atingiu os castelos da SS. Em abril de 1945, os funcionários da Seção VII foram convocados ao front para participar da batalha final pelo Terceiro Reich.
Na Amt Roosenberg não havia planos para desistir da luta contra o mundo judeu, apesar de a Alemanha bater em retirada em todos os fronts. Na verdade, o trabalho foi intensificado. Nos estágios finais da guerra, Alfred Roosenberg começou a esboçar planos para um último e grandioso projeto tão simples quanto inútil: um congresso antijudaico internacional em 1944 com o tema “O judaísmo na política global de nosso tempo”. Para dar ares de legitimidade ao projeto, ele chegou a dar início a uma colaboração com rivais da RSHA, do Ministério da Propaganda e do Ministério do Exterior. O chefe do instituto de Frankfurt, Klaus Schickert, foi nomeado editor de uma obra intitulada Um anuário da política mundial judaica, que muito provavelmente seria lançada no congresso. O livro, uma antologia, mostraria como os judeus controlavam os fatos políticos e, portanto, deviam ser vistos como responsáveis pela guerra.[33]
Os planos para o congresso foram descritos em um documento secreto datado de 15 de junho de 1944, uma semana depois de os Aliados ocidentais invadirem a Normandia.[34] O documento foi escrito por Hans Hagemeyer, homem de confiança de Alfred Roosenberg encarregado de organizar o congresso. De acordo com o documento, Hitler aprovou pessoalmente os planos e decidiu que a conferência ocorreria em Cracóvia. A seguir, Hagemeyer descrevia o congresso em detalhes. Além de vários “experts em judaísmo” haveria discursos de três ministros alemães. A Filarmônica de Berlim se apresentaria sob a direção de seu principal regente, Wilhelm Furtwängler.
“Europeus renomados” seriam convidados para o congresso, assim como representantes de Estado europeus e de outros continentes. Alguns nomes eram citados, incluindo várias lideranças antissemitas, fascistas e nazistas da Europa. Da Itália viria o ministro Fernando Mezzasoma, espécie de Joseph Goebbels italiano. Da Holanda, Anton Mussert, líder e fundador do Partido Nazista no país, o Nationaal-Socialistische Beweging in Nederland. Da França viria o poeta e ministro da Educação do regime de Vichy, Abel Bonnard. Hagemeyer também mencionava que Alfred Roosenberg foi à Noruega, “convidar pessoalmente o ministro-presidente Quisling”. O mundo árabe seria representado pelo grão-múfti de Jerusalém, Haj Amin al-Husseini, que em 1941 fugiu para a Alemanha nazista e tentou convencer Hitler a expandir o Holocausto para o Oriente Médio. Segundo Hagemeyer, Suécia, Romênia, Suíça, Espanha e Portugal se comprometiam a enviar delegados, mas nenhum nome era citado. De acordo com ele, os preparativos para o congresso corriam no mais absoluto sigilo.[35]
Desde a inauguração, o Instituto para Pesquisa da Questão Judaica em Frankfurt trabalhava na construção de uma rede internacional de contatos, como deixa evidente a lista de convidados para a cerimônia de abertura, que incluía representantes da Dinamarca, Hungria, Romênia, Holanda, Bélgica e Noruega. O instituto criaria uma rede continental de organizações e autoridades antissemitas que ajudaria a disseminar informações antissemitas para o público em geral.[36] A Alemanha nazista regularmente fazia uso de pessoas e organizações antissemitas e racistas locais, que muitas vezes recebiam verbas do governo alemão. Às vezes isso também acontecia por trás de uma fachada local, como no Institut d’Études des Questions Juives [Instituto para Estudos sobre a Questão Judaica] na França, que era chefiado por um francês, Paul Sézille, mas supervisionado pela SS e financiado pela embaixada alemã.[37] O instituto, que vendia um modelo alemão de política antijudaica, organizava eventos como a exposição antissemita Le Juif et la France [O judeu e a França] em Paris, em 1941, que tentou mostrar como os judeus se infiltraram na sociedade e corromperam a cultura francesa, assim como os costumes e as tradições nacionais.
O Institut d’Études des Questions Juives colaborou de perto com o instituto de Frankfurt. Seu supervisor, o SS-Hauptsturmführer Theodor Dannecker, sugeriu que o órgão deveria se transformar em um ramo da Hohe Schule de Roosenberg – algo que nunca chegou a acontecer. No entanto, o instituto de Frankfurt ajudou seus colegas franceses na criação de um periódico, La Question Juive en France et dans le Monde, que tinha como modelo o Der Weltkampf.
O documento de Hans Hagemeyer revelava que na verdade, o congresso da Cracóvia em 1944 tinha como propósito algo bem maior do que uma conferência de pesquisadores antissemitas. Hagemeyer escreveu que, embora o evento como um todo tivesse a aparência de um “congresso histórico e científico”, seu objetivo real seria “criar uma organização internacional que irá estudar o judaísmo e combatê-lo”. Em outras palavras, uma espécie de ONU antissemita.[38] Heinrich Himmler, Joachim von Ribbentrop, Joseph Goebbels e Hans Frank seriam membros honorários dessa organização internacional, junto com vários outros participantes de destaque, como Mezzasoma, Mussert, Bonnard e o grão-múfti de Jerusalém. A organização iria neutralizar “propaganda sionista” e revelar como os Aliados na verdade combatiam em nome do “domínio judaico mundial”.[39]
O problema era que a Europa que Roosenberg desejava unir nessa comunidade antissemita estava rapidamente se desintegrando em 1944. Antes do fim do ano, a Alemanha nazista era o único dos participantes que havia restado. Adolf Hitler, percebendo a impossibilidade política dos planos de Roosenberg, cancelou o congresso.
No início de 1944, o Exército Vermelho libertou Leningrado depois de um cerco de 872 dias. A União Soviética foi libertada no verão, e em agosto o Exército Vermelho estava às portas de Varsóvia, onde Stálin parou a ofensiva. Por quase meio ano o front ficou imóvel, enquanto o Exército Vermelho acumulava recursos gigantescos em preparação para um último ataque. Seis milhões de soldados foram transferidos para o front, quase duas vezes a quantidade de homens que Hitler tinha à disposição quando invadiu a União Soviética em 1941.
Em Ratibor parece ter havido consciência do ataque iminente, e no fim de 1944 foram feitos novos planos para evacuar os acervos para a Baviera. No entanto, a essa altura não era realista imaginar que milhões de livros empilhados em Ratibor poderiam ser rapidamente transferidos. Depois de um ano e meio de atividade, o tempo não tinha sido suficiente para completar a evacuação dos livros em Berlim. Não se sabe até hoje quantos livros a ERR evacuou naqueles meses finais. O trabalho prosseguiu até a primeira semana de fevereiro de 1945, quando o Exército Vermelho chegou à cidade. É realmente impressionante que tanto a SS quanto a ERR tenham continuado a trabalhar nas bibliotecas num momento em que já não podia haver a menor dúvida, nem para os mais fanáticos nazistas, de que o Terceiro Reich estava perdido. A resposta provavelmente tem uma explicação ideológica e outra muito humana.
Essas organizações eram as guardiãs intelectuais do movimento e há muito funcionavam como uma espécie de concentração de verdadeiros crentes. Construída com base no coração do nazismo, havia uma imensidão de mitos, falsificações históricas e teorias conspiratórias que esses “guardiães intelectuais” tentavam provar e estabelecer com bases sólidas por meio de “pesquisas”, Nesses círculos o fatalismo era um pecado mortal, inclusive em sentido literal. Ao mesmo tempo, eles provavelmente tinham motivos muito humanos para continuar com seu trabalho. Afinal, enquanto o trabalho pudesse ser justificado, iria mantê-los afastados do front. Ser mandado para o front oriental era visto, com muita razão, como uma sentença de morte.
Em janeiro de 1945 os acervos começaram a ser evacuados de Schloss Pless. Mas no meio do mês teve início a ofensiva soviética, e dois milhões de soldados do Exército Vermelho abriram caminho à força até a Polônia. Milhares de livros foram deixados na estação de trem em Pless, quando os funcionários da ERR foram forçados a fugir dos russos que se aproximavam.[40] No início de fevereiro, funcionários em Ratibor também precisaram fugir quando a cidade foi submetida a fogo de artilharia. Quando o Exército Vermelho tomou Ratibor, ainda havia barcaças carregadas de livros no Oder. Havia planos de queimar certas partes dos acervos e uma grande quantidade de gasolina fora estocada com esse objetivo, mas por algum motivo tomou-se a decisão de simplesmente abandonar os livros.[41]
As atividades de Roosenberg no outro front, em Hungen, também continuaram até o último momento e o instituto em Frankfurt continuou emprestando livros a pesquisadores, universidades e outras instituições de pesquisa – a documentação dos empréstimos indica que essa atividade prosseguiu até fevereiro de 1945, quando o Exército Vermelho estava já chegando a Berlim e o front ocidental estava a meros 200 quilômetros de Frankfurt.[42] O instituto continuou comprando livros por mais um mês.
No início de abril de 1945, as forças americanas da Quinta Divisão de Infantaria chegaram a Hungen e tomaram posse do castelo. Não demorou para que os imensos depósitos de livros fossem encontrados. A unidade que fez a descoberta era liderada por um advogado e tenente de 32 anos chamado Robert Schoenfeld, um judeu nascido na Polônia que fugira dos nazistas em 1939 e foi para os Estados Unidos.[43] Foi provavelmente nesse momento que um soldado da unidade de Schoenfeld, armado com um rifle automático de fabricação britânica, abriu caminho rumo a um dos escuros depósitos de livros, disparando um tiro de advertência que acertou uma caixa e entrou em um livro da Bibliotheca Rosenthaliana: o Consolaçam às Tribulaçoens de Israel, de Samuel Usque.