Praga
Em uma pequena praça central de Praga, na confluência das ruas Dušní e Vězeňská, Franz Kafka cavalga uma figura sem cabeça. A escultura negra em bronze é inspirada em um dos contos do escritor, “Descrição de uma luta”, no qual o narrador derrota um oponente aparentemente invencível ao saltar sobre seus ombros e cavalgá-lo.
A estátua virou uma atração. Um grupo de turistas russos se reveza fazendo fotos uns dos outros em frente ao emblemático escritor nacional. O lugar está carregado de simbolismo: a família Kafka morava na rua Dušní, e esse é o coração do velho distrito judaico de Praga – a apenas alguns metros da Sinagoga Espanhola. Em frente à sinagoga, construída no estilo arquitetônico do Oriente Médio, há um prédio consideravelmente mais moderno: o Museu Judaico de Praga, uma construção cinza-amarelada em estilo funcional. Em uma sala do segundo andar fica o bibliotecário e pesquisador Michal Bušek, um sujeito na casa dos trinta anos com a cabeça raspada, barba bem aparada e bermuda xadrez cinza. Ao lado de sua mesa está um carrinho da biblioteca, completamente abarrotado de livros velhos e em mau estado. Todos têm a mesma etiqueta branquíssima, colada na parte inferior da lombada – com um “Jc” ou “Jb” escrito à mão e seguido de um número. São os livros marcados pelo Talmudkommando em Theresienstadt, sendo o J uma abreviação de “Judaica”.
“Os nazistas sabiam quanto os livros eram importantes para os judeus. Ler fazia deles seres humanos. Quando tiram isso de você, também estão roubando seus pensamentos. Eles queriam destruir os judeus tirando deles aquilo que era mais importante para eles”, diz Bušek, e olha para o carrinho. Ele está no meio de um amplo processo de checagem do enorme acervo de livros que acabou chegando ao Museu Judaico depois da guerra, incluindo alguns de Theresienstadt. “Procuro sinais do proprietário de um livro, ex-líbris, carimbos, anotações, e registro isso num banco de dados que estamos montando.”
O trabalho é muito semelhante ao que está sendo feito nas bibliotecas alemãs. Um processo horrivelmente demorado, em que cada livro deve ser examinado em busca de sinais de seu proprietário anterior. Às vezes é fácil, por exemplo quando um livro tem um ex-líbris chamativo com nome e sobrenome. Às vezes há uma assinatura, uma dedicatória, ou algumas linhas escritas por alguém que leu o exemplar em algum momento. Mas essas são exceções. Muitos dos livros não têm qualquer indicação de quem tenha sido seu dono. Em alguns casos, os nomes foram riscados e carimbos foram raspados.
“O primeiro passo é registrar o nome e o número do livro. Depois, você inclui todos os detalhes do volume no banco de dados, título, ano de publicação e até fotos do exemplar. Quando terminarmos, cada livro da biblioteca vai ter uma descrição detalhada”, Bušek me diz. Ele estima que o primeiro passo vai levar mais ou menos um ano, enquanto o segundo precisará de um tempo consideravelmente maior. Um texto em hebraico também é incluído no banco de dados, o que exigiu um software especial, mas necessário, ele explica, já que muitos livros, inclusive os do Talmudkommando, são em hebraico. Nesse acervo há mais marcas de proprietários, já que muitos livros pertenciam a coleções importantes.
O fato de esse trabalho só estar sendo feito agora, setenta anos depois de os livros terem sido “libertados”, é extremamente revelador não só da situação da restituição dos livros como um todo mas também do destino trágico que recaiu sobre muitos acervos no fim da guerra, presos atrás das linhas soviéticas. O Museu Judaico em Praga é na verdade uma das pouquíssimas instituições a leste da antiga Cortina de Ferro que participa ativamente do projeto.
Depois da guerra, em 1945, a maior parte dos acervos de Theresienstadt foi transferida para o Museu Judaico em Praga. Fundado em 1906, o museu foi tomado em 1939 pelos nazistas, mas teve, até certo ponto, permissão para continuar com parte de suas atividades. Durante a guerra, se tornou um acervo e um centro de triagem para livros e artefatos religiosos roubados de comunidades de judeus deportados. “Caixas de objetos saqueados de sinagogas eram enviadas para cá; eles eram catalogados e classificados por um grupo de pesquisadores judeus. Os judeus e os nazistas não tinham os mesmos interesses. Os primeiros queriam salvar esses artefatos na esperança de que a guerra acabasse logo. Os nazistas, por outro lado, queriam criar um museu judaico onde pudessem mostrar como os judeus eram esquisitos e diferentes”, diz Bušek.
Por alguns anos, o museu se tornou um centro de uma ampla operação de resgate da cultura judaica. A recompensa pelo trabalho degradante feito durante a ocupação nazista foi a salvação de milhares de livros e objetos históricos e religiosos para a posteridade. Muitos vinham de comunidades judaicas que já nem existiam mais. A população judia, estimada em mais de 300 mil pessoas antes da guerra, havia sido reduzida a apenas um sexto. A maior parte morreu no Holocausto: muitos outros jamais voltariam.[1]
A Tchecoslováquia foi o único país atrás das linhas soviéticas que teve permissão para formar uma república independente depois da guerra, embora essa situação tenha durado pouco. Isso significava que os acervos que tinham ido parar no país estavam sujeitos à filosofia de restituição que era prática comum no Ocidente, diametralmente oposta ao que vinha sendo feito na Europa Oriental. Acabou sendo uma espécie de semirrestituição.
Em 1945 os acervos deixados em Theresienstadt foram levados para o museu em Praga, assim como um dos sobreviventes do Talmudkommando, Otto Muneles, que foi nomeado chefe do acervo do museu. Livros saqueados também chegaram de outros lugares. Nos castelos da SS do lado tcheco da fronteira, incluindo Schloss Neufalkenburg e Schloss Niemes, centenas de milhares de livros evacuados pela RSHA foram encontrados.[2]
Hoje, apenas uma fração dos acervos trazidos para cá depois da guerra permanece no museu. Bušek tentou desvendar o que aconteceu com os livros. “É muito difícil saber. Não sobrou muita documentação daquela época. Só temos um pequeno registro entre 1945 e 1949”, ele diz. De Theresienstadt e de outros depósitos nazistas, cerca de 190 mil livros foram para o museu. “Alguns livros foram devolvidos depois da guerra, mas não foi exatamente uma restituição, como a gente vê hoje. Ninguém tentou descobrir a quem esses livros pertenciam ou de onde eles tinham vindo. Não tinha gente aqui para fazer isso nem lugar onde deixar os livros. O museu inteiro só tinha dois ou três funcionários.”
De acordo com Bušek, os livros se dispersaram para vários lados; alguns foram distribuídos entre congregações judaicas na Tchecoslováquia e outros foram enviados para Israel. “Não há nada que indique que alguém checou os livros. A maior parte ainda estava nas caixas em que os nazistas deixaram. Acho que só pegavam uma caixa qualquer e mandavam embora sem fazer uma checagem cuidadosa do que tinha lá dentro. As pessoas vinham ao museu e perguntavam: ‘Podemos pegar cinquenta livros?’ e pegavam o que queriam.” Muitos foram levados por organizações religiosas como a Reconstrução Cultural Judaica, criada para dividir a propriedade roubada dos judeus entre comunidades judaicas. A maior parte do que sobrou da Ghettobücherei em Theresienstadt foi distribuída dessa maneira.[3]
Um dos projetos mais importantes, que mais tarde se tornaria parte da Biblioteca Nacional de Israel, foi concebido primeiramente pela Universidade Hebraica de Jerusalém. Era um “projeto de resgate” politicamente sionista que, no ânimo dominante no período logo após o Holocausto, tentava levar o que fosse possível do legado dos judeus na Europa para Israel, para onde centenas de milhares de sobreviventes migraram.[4] No fim de 1946, o bibliotecário chefe da Universidade Hebraica, Hugo Bermann, fez uma visita a Otto Muneles no depósito da RSHA em Niemes. Eles estimaram que havia 650 mil livros no castelo.
“Alguns deles eram judaicos; outros eram livros de todo tipo. Vi livros católicos de mosteiros, livros teosofistas, livros socialistas etc.... No ático do castelo encontrei um arquivo holandês que não consegui identificar, espalhado pelo chão. Também havia jornais em iídiche, amarrados ou em caixas de papelão. Eles vinham do YIVO, em Vilnius”, escreveu Bermann em seu relatório.[5] Ele levou entre quarenta mil e setenta mil livros judaicos da Tchecoslováquia para Israel. O número não é preciso, já que muitas caixas foram contrabandeadas para fora de lá por Bermann, que havia escondido vários manuscritos valiosos lá dentro.[6]
O fato de tantos livros terem saído da Tchecoslováquia nos primeiros anos depois da guerra pode ser atribuído ao apoio do museu e da congregação judaica. O governo tcheco, por outro lado, adotou uma abordagem muito mais restritiva quanto à ideia de devolver objetos roubados: “o governo tcheco em geral tem uma atitude negativa em relação à questão da restituição e [tem] em certos casos classificado o desejo de pessoas ou de organizações de reaver suas propriedades como ‘fascista’, ‘burguês’, ou outro termo apropriado para aquele momento específico”, escreveu um observador americano.[7] Os indivíduos têm dificuldade ainda maior do que as pessoas jurídicas para reaver livros. Só há um caso documentado na Tchecoslováquia do pós-guerra de livros devolvidos a uma família.[8]
Um acervo que em grande medida permaneceria em Praga eram os sessenta mil livros da coleção hebraica da Seção VII da RSHA, na qual o Talmudkommando trabalhou. Michal Bušek ainda não sabe quantos livros desse acervo continuam na biblioteca do Museu Judaico. “Pode ser que haja uns trinta mil livros, mas ninguém tem certeza. Estamos agora no processo de catalogação. Parece que Otto Muneles, depois da guerra, separou esses livros dos outros para que eles pudessem permanecer em Praga.” Mas Bušek e seus colegas também acharam exemplares que foram roubados em várias partes da Europa. “Na maioria das vezes eles vêm de congregações judaicas em Berlim, Budapeste, Varsóvia, Amsterdã e outras cidades. Encontramos mais de 3,8 mil livros que vieram de Viena, tanto de congregações quanto de indivíduos”, Bušek me diz, enquanto pega alguns livros do carrinho e me mostra o carimbo da Israelitische Kultusgemeinde, com um ex-líbris que indica que o volume foi doado por Salo Cohn, que liderou a congregação judaica de Viena até princípios do século XIX.
Bušek então me leva até a sala de leitura da biblioteca. O valioso acervo histórico é mantido em um anexo de vidro que fica trancado. Volumes grossos encadernados em couro e velino cinza são manuseados com luvas de algodão. Bušek pega um dos livros que pedi – um exemplar de Amsterdã. Ele coloca o fino volume sobre a mesa de leitura branca, com a capa tão marmorizada que me traz à mente um dos motivos expressionistas do mar de August Strindberg. O título do livro é Der Mediciner Maimonides im Kampfe mit dem Theologen– um estudo do filósofo medieval Maimônides e da defesa que ele fazia das pesquisas seculares.
Na parte interna da capa há um ex-líbris. Parece que alguém colou aquilo ontem, embora ele possa estar ali há uns cem anos. O ex-líbris mostra uma ilustração contra um fundo branco, um veado e um leão erguidos sobre as patas traseiras de cada lado de uma estrela de davi. Embaixo, há um nome escrito: Sigmund Seeligmann. O símbolo muito provavelmente faz referência a um verso da Mishná, a versão escrita das tradições orais judaicas: “Seja rápido como uma gazela e forte como um leão para fazer a vontade do Deus dos Céus”.[9]
Na lombada há uma etiqueta colada onde se lê “Jb 812”, colocada ali pelo Talmudkommando. Talvez ela tenha sido colada pelo próprio Isaac Leo Seeligmann, que estaria assim etiquetando um dos livros de seu pai. Bušek me mostra uma biografia do filósofo religioso sefardita Uriel da Costa, que fugiu das perseguições em Portugal em 1617 e se estabeleceu na Holanda. O livro tem uma dedicatória pessoal para Sigmund Seeligmann de seu autor, o historiador português Artur de Magalhães Basto. A assinatura do próprio Sigmund está em um terceiro livro, uma tradução alemã do Corão.
O acervo de Seeligmann, saqueado em Amsterdã pela ERR, foi dividido entre vários depósitos da ERR. Além dos livros em Theresienstadt, outras partes da coleção foram encontradas em vários castelos, incluindo Schloss Niemes. Hugo Bergmann levou mais ou menos dois mil livros do acervo de Seeligmann para Israel, enquanto uma parte menor continuou no Museu Judaico em Praga. Bušek conseguiu identificar cerca de sessenta livros de Seeligmann aqui. Mas o paradeiro da maior parte do acervo, estimado entre vinte mil e 25 mil livros antes da guerra, jamais foi estabelecido. Talvez a coleção tenha se dispersado por depósitos por todo o Reich nazista alemão, ou então os livros podem ter sido descartados durante a guerra, ou destruídos nos bombardeios a Berlim.
Isaac Leo Seeligmann sobreviveu a Theresienstadt e voltou a Amsterdã em 1945. Caso ele tenha chegado a fazer uma tentativa de reaver seus livros na Tchecoslováquia, a solicitação se tornaria rapidamente impossível com a criação da Cortina de Ferro. Especialmente porque a Tchecoslováquia teria um papel central nos eventos que se seguiram.
Edvard Beneš, o presidente, tentou fazer do país uma ponte entre Oriente e Ocidente – sendo a Tchecoslováquia uma república livre. Foi um projeto político que não durou muito. A jovem república passou por agitações e instabilidade política, ativamente incentivada pelo Partido Comunista soviético. Em 1947, a Tchecoslováquia aceitou a ajuda dos Estados Unidos no Plano Marshall – apoio financeiro para reconstrução. No entanto, a pressão do Kremlin forçou o país a rever a decisão. Seis meses depois, no início de 1948, os comunistas tomaram o poder, em um golpe apoiado por Moscou. Pouco depois, o Museu Judaico e seu acervo foram nacionalizados.
“Depois disso, basicamente as restituições pararam”, explica Bušek. Os comunistas não tinham simplesmente como fechar o Museu Judaico, porque ele era muito conhecido, mas tanto a pesquisa quanto as exposições foram limitadas a um mínimo absoluto. O museu se dedicava bastante a Theresienstadt. Mas na narrativa comunista, aquele era um campo de prisioneiros de guerra, não um campo para judeus. Os comunistas também decidiram descartar partes dos acervos judaicos, incluindo valiosos rolos da Torá que foram vendidos no Ocidente. “Esses acervos não tinham qualquer significado para eles. O governo precisava de dinheiro, de dólares, por isso decidiram vender.” A biblioteca judaica foi transformada em uma instituição totalmente isolada, cujas atividades eram monitoradas de perto pelo regime. Tanto os visitantes quanto os empréstimos eram registrados. “Pouquíssima gente vinha aqui. Os pesquisadores tinham medo de visitar a biblioteca”, explica Bušek.
Apesar das circunstâncias desanimadoras, Otto Muneles, que havia perdido toda a família no Holocausto, continuou seu trabalho como chefe da biblioteca até morrer, nos anos 1960. Ele passaria quase vinte anos tentando colocar o acervo judaico em ordem. Quem o conheceu conta quanto ele se engajou nesse trabalho, como se aqueles livros esparsos, roubados, tivessem a capacidade de consolá-lo, de algum modo: “Era como ver um fantasma vagando por estas salas cheias de livros, sem ninguém para ler ou estudar o que estava ali [...] e mesmo assim o dr. Muneles sonhava com uma biblioteca imensa que serviria como monumento aos judeus que estiveram aqui, embora agora já não estejam mais”.[10]
Depois da guerra, quando as autoridades tchecas inspecionaram os acervos roubados nos castelos da SS no país, boa parte do material havia desaparecido, incluindo o grande arquivo roubado do serviço secreto francês, escondido pela Gestapo em Schloss Oberliebich, perto de Česká Lípa. Na verdade, o depósito já tinha sido encontrado pelo serviço de inteligência do Exército Vermelho, o SMERSH, em maio de 1945. Lavrentiy Beria, chefe da NKVD, serviço de segurança soviético, havia enviado arquivistas de Moscou em sigilo para confiscar o arquivo, e no verão vinte e oito vagões cheios de material de arquivo foram despachados para Moscou, onde seriam a base de um arquivo novo e secreto: Tsentral’nyi Gosudarstvennyi Osobyi Arkhiv (TSGOA). Esse arquivo especial de Stálin para documentos que servissem como troféus ficou repleto com enormes quantidades de documentação confiscada de vários depósitos nazistas na Alemanha e na Europa Oriental.[11]
Em fevereiro de 1945, quando o Exército Vermelho marchou sobre a Alemanha, Josef Stálin havia assinado uma ordem altamente sigilosa que levou à criação do Comitê Especial para Reparações de Guerra. Sabia-se que em 1943 Stálin havia assinado um acordo com os Aliados ocidentais proibindo a pilhagem de objetos culturais – o acordo, no entanto, não foi honrado.
O novo comitê, apesar da aparente inocência do nome, deu início a uma operação de pilhagem que em escopo rivalizou com a dos nazistas. O raciocínio de Stálin era de que a Alemanha deveria pagar em espécie pela enorme destruição da União Soviética, com uma quantidade equivalente de roubos por parte dos soviéticos. Para evitar que isso perturbasse as relações com os Aliados ocidentais, a operação foi mantida em sigilo.
As unidades encarregadas do saque, conhecidas como brigadas de caça a troféus, na essência eram semelhantes às contrapartes alemãs. Eram compostas por arquivistas, bibliotecários, cientistas e outros experts soviéticos. Artefatos culturais, como obras de arte, arquivos e livros, foram apenas uma fração do butim. O departamento do governo dedicado a organizar a pilhagem calculou que apenas em 1945 cerca de 400 mil vagões de objetos saqueados foram remetidos à União Soviética. Parte disso eram objetos que os soviéticos diziam terem sido roubados deles. Uma lista de pertences enviados da Alemanha para a Ucrânia em 1945 demonstra a diversidade de carga: 11 vagões de instrumentos de laboratório, 123 veículos, 2,5 toneladas de livros científicos, 75 quadros do museu de arte de Dresden, 12 toneladas de pratos do fabricante de porcelanas August Wellner & Söhne; 46 vagões com equipamentos de impressão desmontados; e 27 vagões com partes de uma fábrica de papel fotográfico.[12]
Também havia uma pilhagem generalizada – até certo ponto permitida pelas autoridades – da parte de soldados, oficiais e generais do Exército Vermelho. Os soldados tiveram oportunidade de mandar seguidamente para casa pacotes de objetos roubados. Os que mais se dedicavam ao roubo tendiam a ser os oficiais de alta patente e os generais. O general mais alto na hierarquia de Stálin, Georgy Zhukov, encheu vários trens com seu butim de guerra. Isso tornou o herói de guerra de Stálin imensamente rico, o que mais tarde Stálin usou para se livrar dele.
Mas eram as brigadas de caça a troféus que faziam a parte mais organizada da pilhagem, e unidades desse gênero foram enviadas aos castelos da Europa Central em busca de troféus. Foram levados dos castelos a mobília, obras de arte, estátuas, pianos, porcelana e quaisquer objetos de decoração que pudessem ser transportados. Também havia os livros. Quando se tratava do confisco de livros havia unidades especiais de bibliotecários nas brigadas de caça a troféus, que visitaram centenas de bibliotecas na Alemanha e na Polônia e também levaram depósitos que a ERR e a RSHA criaram ao evacuar seus armazéns de livros para leste. A pilhagem, organizada por um grupo de representantes de bibliotecas maiores na União Soviética, foi liderada por Margarita Rudomino, superintendente da Biblioteca de Literatura Estrangeira em Moscou.
Na primavera de 1946, Rudomino menciona em um relatório que algo entre quatro e cinco mil caixas de livros foram levadas a um depósito em Mysłowice, na Polônia. Provavelmente era o que havia sido retirado dos maiores depósitos da ERR de Ratibor, apenas 60 quilômetros a leste. Não se sabe se esses livros foram evacuados pela ERR nos momentos finais da guerra ou pelo Exército Vermelho na primavera de 1945.[13]
Em Pless, onde os funcionários da ERR fugiram do fogo inimigo do front, uma unidade do Quarto Front Ucraniano capturou cerca de dez vagões cheios de livros, periódicos e arquivos. Carca de 150 mil livros e 100 mil documentos foram encontrados ali. A renomada biblioteca de Schloss Pless, com 100 mil volumes, também foi encaixotada e transferida.
Grande parte dos acervos da ERR encontrada pelas brigadas de caça a troféus veio de Minsk, Smolensk, Kiev e de outros lugares da União Soviética. Mas também havia acervos ocidentais, incluindo as bibliotecas de exilados em Paris incorporadas à Ostbücherei. Em julho de 1945 o Exército Vermelho já afirmava em um relatório que a Biblioteca Turguêniev de Paris havia sido encontrada em Mysłowice. Estimava-se que houvesse ali “1,2 milhão de volumes em russo e línguas estrangeiras”.[14] A Biblioteca Turguêniev não foi considerada troféu de guerra porque era “russa” e, portanto, vista como propriedade soviética.
Parece que não havia qualquer ordem específica no depósito de Mysłowice – milhares de caixas foram armazenadas ao acaso. De acordo com um integrante das brigadas de caça a troféus, uma parte do acervo foi roubada por soldados. Às vezes “as pessoas pegavam o que queriam”, escreveu Rudomino em um relatório. Foi assim que muitos livros e manuscritos antigos e valiosos sumiram.[15]
Em alguns lugares em que os depósitos foram abertos, os acervos foram destruídos pelos soldados antes de as brigadas de caça a troféus chegarem: “A sede tinha sido ocupada por soldados poloneses e as caixas foram abertas. Muitos livros estavam jogados no pátio, molhados pela chuva; não havia guardas; muitos livros foram arruinados, destruídos, queimados”.[16]
Uma forma mais organizada de dispersão dos acervos ocorreria depois de eles serem despachados para o leste. No outono de 1945, quarenta e cinco vagões transportaram cerca de um milhão de livros de Mysłowice para Minsk. Além de Mysłowice, as brigadas detectaram outros lugares de armazenamento de livros na Polônia, dos quais aproximadamente três milhões de exemplares foram enviados para a União Soviética. Além disso, milhares de estantes com material de arquivo foram enviados para o arquivo de Stálin em Moscou, incluindo parte do Instituto Internacional de História Social em Amsterdã e os vários arquivos da família Rothschild.[17]
As brigadas de caça a troféus também confiscariam muitos dos melhores acervos alemães que acabaram atrás das linhas soviéticas, incluindo bibliotecas como a Preussische Staatsbibliothek, a Berliner Stadtbibliothek, a biblioteca da Universidade de Breslau e a biblioteca da corte do Kaiser Guilherme II. De Berlim, Dresden e Breslau mais de cem vagões de livros foram despachados. Centenas de bibliotecas alemãs foram esvaziadas.[18]
A Biblioteca Lênin acabou sendo a instituição que mais recebeu os livros-troféus, quase dois milhões no total. Os livros mais valiosos que haviam sido confiscados na Alemanha – manuscritos medievais, incunábulos e uma Bíblia de Gutenberg – foram despachados por via aérea em várias remessas especiais para Moscou.
Depois da guerra, estima-se que as unidades de livros das brigadas de caça a troféus tenham enviado entre dez e onze milhões de livros para a União Soviética. Mas isso não inclui todos os volumes confiscados, já que o roubo de exemplares também incluiu outras unidades de caça a troféus dedicadas a capturar, por exemplo, equipamento científico – o que também incluía bibliotecas e arquivos de escolas, laboratórios, universidades, institutos e outros órgãos de pesquisa. As brigadas de caça a troféus que roubavam objetos de arte também levaram bibliotecas de museus. Além disso, muitos livros foram roubados pelos soldados do Exército Vermelho.
A historiadora Patricia Kennedy Grimsted escreve que em geral as brigadas soviéticas de caça a troféus não faziam distinção entre livros roubados de bibliotecas alemãs e livros que estavam sendo roubados pela segunda vez, tendo sido saqueados antes por organizações nazistas em territórios ocupados.
Infelizmente, os exemplares foram afetados por problemas semelhantes aos de outras áreas da operação de caça a troféus dos soviéticos. Muitas fábricas, máquinas, instrumentos, ferramentas e aparatos científicos levados para a União Soviética jamais seriam usados. A falta de pessoas capacitadas, uma incapacidade de compreender manuais de instrução ou a ausência desses manuais, padrões incompatíveis e outros problemas logísticos, técnicos e práticos muitas vezes fizeram com que o equipamento ficasse inutilizado. E a falta de um armazenamento adequado levou milhões de livros-troféus a serem deixados em depósitos na União Soviética. Cidades como Kiev, Minsk e Leningrado haviam passado por uma destruição em grande escala. Na parte central de Minsk poucos edifícios estavam de pé, mas quase meio milhão de livros foi levado para essa cidade em ruínas. Em Moscou, milhões de exemplares alemães foram armazenados e deixados intocados em uma Igreja abandonada em Uzkoye, na região sudoeste da cidade.[19] Em outros casos os livros estavam em estado tão ruim que nem chegavam a ser muito úteis. Por exemplo, a Academia de Ciências em Tbilisi recebeu cerca de 100 mil livros-troféus alemães danificados pela chuva.
Centenas de bibliotecas-troféus foram dispersas, com exemplares individuais sendo distribuídos para bibliotecas de toda a União Soviética. Mesmo essa distribuição enfrentou vários problemas, já que as bibliotecas tendiam a receber livros com temas aleatórios e em idiomas que muitas vezes seus leitores não compreendiam. Um relatório soviético do pós-guerra descreve como uma biblioteca de trabalhadores de uma fábrica de produtos químicos recebeu livros sobre literatura antiga grega, enquanto outra recebeu revistas de moda francesas que haviam sido confiscadas. Vez ou outra retratos de Adolf Hitler chegaram a ser enviados para ambientes de trabalho.[20] A distribuição era tão caótica que até mesmo bibliotecários soviéticos a essa altura começaram a questionar a validade do processo. Ninguém sabe quantos desses livros danificados foram transportados e descartados nos anos do pós-guerra. Os livros também precisavam passar por uma avaliação política, e os que eram “politicamente perigosos”, “decadentes” ou “burgueses” eram removidos.
O destino da Biblioteca Turguêniev de Paris não foi totalmente atípico. Como muitos outros acervos, a biblioteca foi desmantelada. Alguns livros acabaram em Moscou, mas a maior parte foi mandada para Minsk. Metade do acervo, cerca de sessenta mil livros, foi enviada para um dos clubes de oficiais do Exército Vermelho em Legnica, ao sul de Mysłowice – o quartel-general do Exército na Silésia.[21] Parece ter sido um erro, resultado do caos que marcou a operação como um todo.
Quando o erro foi descoberto, as melhores partes do acervo, como manuscritos, primeiras edições e livros com autógrafos e dedicatórias de autores famosos, foram pegas e levadas para a Biblioteca Lênin em Moscou. Especialmente livros com referências a Lênin e a Bunin foram separados. Mas a maior parte do acervo permaneceu em Legnica. Depois da queda da União Soviética em 1991, um oficial russo, Vladimir Sashonko, que estava ali em meados da década de 1950, revelou o que aconteceu com os livros.
De acordo com Sashonko, havia muitos livros na biblioteca com o carimbo “Bibliothèque Russe Tourguéniev – Rue du Val-de-Grâce 9”. Um dia um tenente que estava encarregado da biblioteca explicou que eles “tinham recebido ordens de Moscou para queimar os livros na lareira”. Sashonko salvou um livro do acervo, que levou para casa como suvenir, mas o restante foi destruído: “Lentamente, a Biblioteca Turguêniev foi reduzida a fumaça e cinzas, que foram caindo sobre Legnica [...] tendo o mesmo destino trágico de milhões de infelizes que morreram nos campos de concentração dos fascistas e foram queimados nos crematórios”.[22]
No início de maio de 1945, Alfred Roosenberg vagava pela beira do Flensburg Fjord, na fronteira com a Dinamarca. O fiorde, ponto mais a oeste do mar Báltico, é muito bonito em maio, e faz sucesso com os velejadores. A guerra parecia quase distante. Roosenberg tinha deixado Berlim, transformada em cacos pelos bombardeios, no último instante. Ele se hospedou em um hotel em Flensburg, uma das poucas cidades da Alemanha que passou mais ou menos incólume pela guerra. Flensburg foi o lugar onde o último governo da Alemanha nazista se estabeleceu, chefiado pelo sucessor de Hitler, o grande almirante Karl Dönitz. Em 7 de maio de 1945, Dönitz finalmente assinou a rendição do Terceiro Reich. Roosenberg, andando à beira da água, pensava em seu destino. O suicídio certamente passava por sua cabeça, como pela de muitos outros líderes nazistas. No bolso ele carregava ampolas de cianeto.
Ao longo do ano anterior, Roosenberg tinha visto seu império desmoronar. Depois que o Exército Vermelho reconquistou os territórios soviéticos, o Ministério Nacional para os Territórios Ocupados no Oriente não passava de um instrumento semântico. Seu reino no Oriente, antes gigantesco, e os sonhos associados a ele, pouco a pouco foi reduzido a nada, primeiro por Hitler e depois por Stálin. O inimigo que ele temia mais do que qualquer outro, o regime que considerava sua missão combater, que havia roubado sua Estônia, agora engolia a pátria alemã.
Em fevereiro de 1944, Roosenberg visitou sua Ostland pela última vez, em seu trem particular, o Gotenland. Mas ele nem tinha chegado a Reval quando Hitler mandou que voltasse. Na ausência de Roosenberg, seu quartel-general em Berlim fora destruído por um bombardeio. Depois disso, Roosenberg transferiu sua corte para seu trem, estacionado num subúrbio de Berlim. Ele continuou a trabalhar na primavera em seus planos para o congresso em Cracóvia, mas mesmo isso lhe foi tirado no verão quando Hitler cancelou todos os planos para o evento.[23] Várias vezes ele tentou marcar uma reunião com o Führer, a quem não encontrava a sós desde novembro de 1943. No entanto, o acesso a Hitler era totalmente controlado por outro de seus inimigos – Martin Bormann. As queixas constantes de Roosenberg sobre a política do regime relativa ao front oriental haviam criado uma rixa com o Führer e com os demais líderes. Hitler havia nomeado Erich Koch, que anteriormente havia sido comissário do Reich para a Ucrânia, para aplicar métodos igualmente brutais na exploração e no saque da região do Báltico. Roosenberg tinha ordens estritas para não interferir no trabalho de Koch.
As tentativas de Roosenberg de falar sobre isso com o Führer fracassaram, mesmo quando ele tentou contornar Bormann falando diretamente com a secretária de Hitler. Em outubro ele decidiu desistir de tudo e escreveu uma carta amargurada renunciando ao cargo de ministro do Reich para os Territórios Ocupados no Oriente. Nos meses finais da guerra, Roosenberg viveu em um porão da casa de sua família, que tinha tido o telhado destruído por um bombardeio. Roosenberg passava o tempo cavando em sua horta, plantando verduras que, como ele devia saber, dificilmente teria como colher.
Hitler viu Roosenberg pela última vez num encontro com os líderes em fevereiro de 1945, quando o Führer falou sobre uma “arma secreta” que iria tornar a Alemanha vitoriosa na guerra. Foi a gota d’água. Os nazistas fanáticos se agarrariam àquela promessa enquanto o final se aproximava. Os dois não se falaram, e Roosenberg não acreditava na arma miraculosa de Hitler.
Em março, Roosenberg foi visitado pelo líder da Juventude Hitlerista, Artur Axmann, que planejava cavar túneis e travar uma guerra de guerrilha nos Alpes. Ele tentou convencer Roosenberg, mas o ideólogo já havia desistido. Axmann perguntou a Roosenberg o que dera errado, se a própria ideia do nacional-socialismo ou se a sua interpretação. Roosenberg escolheu colocar a culpa em seus camaradas de partido: “Disse a ele que era uma grande ideia que havia sido maltratada por homens que não estavam à altura dela. Himmler era o símbolo maligno de tudo aquilo”, ele escreveu em seu acerto de contas com Hitler publicado postumamente, Grossdeutschland, Traum und Tragödie.[24]
Pessoalmente, Roosenberg havia se demitido em função das constantes rejeições que Hitler lhe impunha. Mas em seus pensamentos íntimos, parecia ter preservado totalmente sua fé na ideologia.
Em 20 de abril, Roosenberg recebeu ordens de abandonar Berlim, embora tenha declarado que estava disposto a permanecer até o fim – mas, como um cão abandonado, ao se deparar com uma última ordem do Führer, ele partiu. Durante sua longa caminhada pela bela orla perto de Flensburg, semanas mais tarde, finalmente tirou suas ampolas de cianeto do bolso e lançou-as ao mar. Ele tinha decidido confrontar os que o haviam vencido.[25]
Os planos de Heinrich Himmler eram diferentes. Ele raspou o bigode, colocou um tapa-olho, trocou de uniforme e mudou de nome para Heinrich Hitzinger – mas rapidamente foi preso por soldados britânicos que o acharam suspeito e confessou sua identidade. Com uma ampola escondida na boca, se suicidou em 23 de maio num campo perto de Lüneburg, ao sul de Hamburgo.
Alfred Roosenberg voltou para seu hotel e escreveu uma carta de rendição para o comandante das forças britânicas, marechal de campo Bernard Montgomery.
Roosenberg foi detido e levado para Kiel para ser interrogado. Tanto Stálin quanto Churchill defendiam a execução sumária dos líderes nazistas. Além disso, durante a conferência dos Aliados em Teerã, em 1943, Stálin sugeriu que entre cinquenta mil e cem mil oficiais alemães deviam ser fuzilados – uma sugestão que Roosevelt tentou desconsiderar. Na primavera de 1945, à medida que a vitória Aliada se tornava cada vez mais iminente, havia um apoio crescente à ideia de um julgamento internacional dos criminosos de guerra alemães. Após negociações entre os Aliados, esses julgamentos tiveram início em 19 de novembro de 1945, em Nuremberg, a cidade onde os nacional-socialistas faziam seus comícios anuais.
Alfred Roosenberg era um dos nazistas de alto escalão no banco dos réus. Quatro das acusações mais sérias foram dirigidas ao principal ideólogo do regime: planejamento de uma guerra ofensiva, perturbação da paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Roosenberg disse ser inocente de todas as quatro acusações.
Enquanto ocorriam os julgamentos de Nuremberg, os Aliados ocidentais já tinham começado a trabalhar para tentar colocar alguma ordem no caos criado pelas operações de pilhagem de Roosenberg. Quem ficou encarregado dessa tarefa foi o programa Monumentos, Belas Artes e Arquivos (MFAA, em inglês), mais conhecido por seus Monuments Men [Caçadores de obras-primas] – uma unidade especial do exército Aliado ocidental, cuja missão era proteger o legado cultural europeu. A guerra estava sendo travada em dois fronts. Depois da invasão Aliada na Itália em 1943 e na França em 1944, a unidade passaria a maior parte do tempo salvando monumentos e tesouros culturais de seus próprios soldados, que muitas vezes nem sabiam no que estavam atirando. Depois da invasão da Alemanha, a principal tarefa passou a ser processar a enorme quantidade de obras de arte, antiguidades e livros que haviam sido roubados e que acabaram sendo encontrados em depósitos, minas, celeiros, castelos e grutas.
Os Caçadores de obras-primas criaram vários depósitos para classificar e identificar os tesouros recuperados. Obras de arte e outros artefatos roubados foram levados a edifícios do Partido Nazista em Munique. A Biblioteca Rothschild em Frankfurt foi um dos primeiros lugares para onde o material foi enviado, mas quando percebeu a quantidade de livros que precisavam ser checados, a unidade teve de sair em busca de instalações maiores. Eles encontraram um espaço adequado em Offenbach am Main, um subúrbio de Frankfurt em que a gigante da indústria alemã IG Farben tinha sua sede. O quartel-general do conglomerado, maior complexo administrativo da Europa, passou a ser o novo depósito central para livros e arquivos roubados: o Depósito Arquivístico Offenbach. A tarefa de administrar a operação coube a um talentoso arquivista dos Arquivos Nacionais, em Washington, Seymour J. Pomrenze, que chegou a Frankfurt em fevereiro de 1946 enquanto a cidade enfrentava uma nevasca.[26] Pomrenze era de origem judaica, e sua família fugira da Ucrânia no início da década de 1920. Ele se deparou com uma tarefa gigantesca em Offenbach:
Minhas primeiras impressões no Ponto de Coleta de Offenbach foram ao mesmo tempo opressivas e fantásticas. Parado ali diante de um mar aparentemente infinito de caixas e livros, eu pensava: que confusão terrível! O que eu poderia fazer com tudo aquilo? Como poderia fazer bem o meu trabalho? Mas havia uma missão mais importante do que arrumar aquela bagunça. Na verdade, a única ação possível era devolver os itens a seus donos o quanto antes.[27]
Pomrenze foi recrutado por outro participante da MFAA, o bibliotecário Leslie I. Poste, que era o cérebro por trás do depósito de Offenbach. Desde a chegada da unidade na Europa em 1943, os Caçadores de obras-primas concentravam seus esforços em salvar obras de arte, monumentos e edifícios de importância histórica. As bibliotecas só passaram a receber uma atenção maior quando Poste foi contratado em 1945. Antes da chegada de Pomrenze, Poste tinha passado quase meio ano cruzando a Europa em meio às ruínas do Terceiro Reich, dirigindo milhares de quilômetros em busca de bibliotecas e arquivos roubados.
Pomrenze organizou uma força-tarefa de duzentos arquivistas, bibliotecários e trabalhadores no Depósito Arquivístico Offenbach, que começou a abrir caminho em meio àquele “mar infinito” de livros. A segurança era rigorosa, e todos eram revistados antes de deixar o prédio no fim do dia, embora Pomrenze admita que tenha havido furtos, especialmente de livros pequenos, que eram fáceis de esconder. Os Caçadores de obras-primas desenvolveram uma espécie de sistema de linha de montagem para identificação de livros, tirando fotos de ex-líbris e de outras marcas que identificassem seus proprietários. Um grupo de trabalhadores menos qualificado ficava com as fotografias dos ex-líbris mais comuns enquanto vistoriava os livros. Marcas menos comuns eram enviadas para exame de experts. Desse modo, era possível dividir duas pilhas enormes de livros, uma com volumes com identificação e outra, sem. No primeiro caso, eles eram imediatamente empacotados e enviados para os funcionários encarregados de fazer a restituição em cada país.[28]
Milhares de fotos de ex-líbris, resultado desse trabalho, ainda são mantidos nos Arquivos Nacionais, em Washington. Em março de 1946, o grupo de Pomrenze no arquivo de Offenbach já havia classificado perto de 1,8 milhão de objetos. E naquele mesmo mês alguns acervos começaram a ser devolvidos. Mas a restituição não estava completa. Os exércitos dos Aliados ocidentais, querendo se livrar do problema o quanto antes, defendiam um modelo simples de devolver cada acervo ao governo do país em que havia sido roubado. O modelo funcionava bem em casos de acervos grandes, mantidos mais ou menos inteiros e que pertenciam a instituições formais.
Duas bibliotecas que foram devolvidas já na primavera de 1946 foram a Bibliotheca Rosenthaliana e a Ets Haim de Amsterdã. Ambas foram encontradas em Hungen ainda nas caixas em que a ERR as havia guardado. Como as bibliotecas só foram transferidas para a Alemanha em 1943 e 1944, o instituto de Frankfurt não chegou a ter tempo de vistoriar os acervos, e provavelmente eles foram levados diretamente para o depósito em Hungen. Em março, o primeiro carregamento foi enviado a Amsterdã, mas na mesma época outra notícia trouxe sofrimento para a Rosenthaliana, quando se soube que o antigo curador da biblioteca, Louis Hirschel, havia morrido na Polônia junto com toda a sua família. Não sobraram muitos membros do círculo intelectual judaico de bibliotecários eruditos e pesquisadores bíblicos que eram marca registrada da biblioteca. A escolha do sucessor de Hirschel recaiu sobre um sobrevivente do Talmudkommando de Theresienstadt: Isaac Leo Seeligmann.
Para Seeligmann, que perdeu sua própria biblioteca, e para Amsterdã, que perdeu grande parte da população judaica, a nomeação foi uma espécie de consolo, ainda que pequeno. Porém, com a volta da biblioteca para Amsterdã, parte da identidade cultural judaica da cidade também renasceu.[29] Sem esses acervos, parte significativa de quatrocentos anos de história religiosa, intelectual e econômica dos judeus na “Jeruzalem van het Westen” teria se perdido.
Um retorno mais impressionante foi o de acervos que haviam pertencido ao Instituto Internacional de História Social em Amsterdã. Em função do cabo de guerra interno, a biblioteca e o arquivo do IISG deixaram a Holanda em um estágio relativamente tardio, em 1943 e 1944, o que significava que boa parte do material ainda estava nas caixas. Parte do material havia sido evacuada tão recentemente que foi encontrado ainda a bordo de balsas no norte da Alemanha. Centenas de caixas foram encontradas em Hungen e no Castelo Tanzenberg na Áustria, para onde a ZBHS havia transferido seus acervos. Essa última parte foi devolvida pelo Exército britânico, que havia criado uma operação de restituição semelhante à de Offenbach.
No entanto, parte do material do IISG acabou no arquivo especial de Stálin, em Moscou.[30] O arquivo do instituto, com foco no movimento de trabalhadores, em sindicatos e líderes socialistas, era particularmente interessante para a União Soviética. No instituto em Amsterdã por muito tempo se acreditou que os arquivos e livros desaparecidos tinham sido destruídos durante a guerra. Só depois de cinquenta anos soube-se que não era o caso. Quando o encontrei no IISG, Houb Sanders contou: “A parte milagrosa é que a maioria dos arquivos voltou depois da guerra. A perda, no fim, foi consideravelmente pequena, só uns 5%. O que se perdeu foi levado para a União Soviética, que também foi onde acabaram os documentos de Trótski levados pelo serviço secreto soviético na década de 1930”.
Outra biblioteca holandesa que voltaria quase intacta foi a Klossiana, o acervo da ordem maçônica de Grootoosten der Nederlanden, em Haia. A coleção foi devolvida para o Offenbach em 1946. Mas parte dos arquivos da ordem desapareceu, e muito depois se descobriu que o material havia sido incorporado ao arquivo Stálin.
Se as bibliotecas holandesas tiveram sorte, o mesmo não se pode dizer das francesas. Além da Biblioteca Turguêniev, a Biblioteca Symon Petliura se perdeu e parece ter tido final semelhante ao ser desmantelada. Os arquivos acabaram tanto em Kiev quanto no arquivo-troféu de Stálin, onde o material foi mantido na seção reservada para “nacionalistas ucranianos”.[31]
A exceção foi a biblioteca de exilados poloneses, a Bibliothèque Polonaise de Paris. Ainda não se sabe bem onde estava essa biblioteca quando cessaram as hostilidades – se no leste da Alemanha ou na Polônia. Seja como for, o acervo caiu em mãos polonesas e, em 1945, foi levado à Biblioteca Nacional, em Varsóvia. O mais provável é que a biblioteca tenha escapado das brigadas de caça a troféus por ter sido confundida com “propriedade polonesa”. Depois de longas negociações e pressão diplomática, os exilados poloneses em Paris conseguiram reaver parte do acervo em 1947. Mas o que voltou não era uma biblioteca completa. Dos 136 mil volumes do acervo original, só 42.592 livros, 878 manuscritos, 85 desenhos e 1.229 periódicos foram recuperados. O resto sumiu.[32]
Quando os colegas da Alliance Israélite Universelle voltaram à sede da organização no número 45 da rue La Bruyère em Paris, o prédio não estava nem de longe vazio. As prateleiras da biblioteca ainda estavam lotadas de livros; mas não eram os livros da Alliance, eram acervos saqueados que a ERR deixara ali. Por outro lado, partes da biblioteca da Alliance Istraélite Universelle foram encontradas no arquivo de Offenbach e em Tanzenberg.
“Não sabemos o tamanho da parte que jamais voltou, porque até mesmo as listas, os inventários, os registros e os catálogos dos anos anteriores à guerra sumiram. O bibliotecário, depois da guerra, estimou que cerca de 50% dos livros voltaram; o resto havia sido transferido e jamais voltou”, disse Jean-Claude Kuperminc na Alliance.
Até mesmo partes do arquivo desapareceram. Meio século depois, documentos com o carimbo da organização apareceram em Minsk, Moscou e na Lituânia. Ao todo, Seymour J. Pomrenze e seus colegas entregariam cerca de dois milhões e meio de livros do arquivo de Offenbach. Outro meio milhão de livros foi devolvido pelo Exército britânico em Tanzenberg.[33]
Apesar da imensa quantidade de trabalho realizado, apenas uma fração do que foi roubado acabou devolvida. De Offenbach, 323.836 livros foram enviados para a França, o que passava longe da estimativa de 1,7 milhão de livros saqueados, sem contar os que foram levados quando 29 mil apartamentos em Paris foram esvaziados pela M-Aktion da ERR. A Bélgica, de onde centenas de milhares de livros foram pilhadas, só recebeu de volta 198 caixas de materiais.[34] Proporcionalmente, a Holanda foi o país que mais recebeu livros de volta: 329 mil. Os Aliados ocidentais também devolveram exemplares para Itália, Alemanha, Tchecoslováquia, Hungria, Polônia, Iugoslávia e Grécia.
De todas as bibliotecas e arquivos roubados em Tessalônica, apenas dez mil livros foram devolvidos à Grécia, mas nem esses voltaram a seus lares. Quando encontrei Erika Perahia Zemour em Tessalônica, ela comentou: “Acho que nenhum livro jamais voltou para cá. Os livros repatriados foram armazenados em Atenas. Depois desapareceram. Ninguém sabe o que aconteceu com eles depois da guerra. Tentamos procurar, mas não encontramos nada. O mais provável é que tenham sido levados para a congregação judaica em Atenas”.
Por outro lado, os Aliados ocidentais encontraram uma quantidade ainda maior de materiais de arquivo judaicos da Grécia. “No total, 17 toneladas de materiais de arquivo foram despachadas para Atenas, sendo que sete toneladas vieram para Tessalônica. Infelizmente, alguém mandou a maior parte disso para Jerusalém depois da guerra. Os americanos por engano também mandaram material de Tessalônica para o YIVO em Nova York. Mas grande parte acabou em Moscou. Sobrou um pouco aqui, mas a maior parte se espalhou pelo mundo”, Zemour me disse.
No fim quem sofreu o maior golpe com a pilhagem foram os colecionadores particulares. Livros de acervos privados eram mais difíceis de identificar porque raramente tinham sido catalogados. Se os exemplares não tinham marcas de propriedade era praticamente impossível encontrar sua origem.
O modelo dos Aliados ocidentais, que deixavam a parte final da restituição a cargo dos governos nacionais, se mostrou ineficaz quando se tratava de devolver livros para indivíduos. Organizações e instituições tinham mais condições de pressionar as autoridades e receber indenizações, mas os indivíduos normalmente tinham se mudado e muitos também haviam trocado de nacionalidade, o que dificultava bastante o processo de restituição.
Mas as autoridades nacionais encarregadas da restituição tiveram parte considerável de culpa. Por exemplo, a instituição responsável pela devolução dos materiais na Bélgica, o Office de Récupération Economique, não fez muito para devolver acervos privados mesmo quando os donos haviam sido identificados em Offenbach e Tanzenberg.[35] Uma possível explicação para isso é que depois da guerra o Office de Récupération Economique, como tantas autoridades encarregadas da restituição em países europeus, se concentrou em indenizar e restituir bens mais valiosos do que livros – como obras de arte, pedras preciosas e ouro.
Indivíduos que exigiam a devolução de suas bibliotecas, depois da guerra, basicamente não tiveram sucesso. Quando recuperavam parte dos livros, normalmente eram uns poucos exemplares de acervos grandes. Por exemplo, uma cidadã belga, Valérie Marie, recuperou 61 livros de uma biblioteca de dois mil volumes. Em outro caso, Salvatore Van Wien recebeu oito de seus seiscentos livros.
O Office de Récupération Economique não procurava ativamente os proprietários, mesmo quando a origem de um acervo particular já estava clara. A restituição era feita de forma passiva, o que também marcou o processo em muitos outros países.[36] No fim dos anos 1940, o Office de Récupération Economique começou a vender os livros que ninguém reivindicou.
Os Aliados ocidentais acabaram devolvendo uma quantidade relativamente alta de acervos à União Soviética, principalmente de livros que foram roubados do Partido Comunista e de outras instituições estatais. Quase 250 mil exemplares foram despachados de Offenbach para a União Soviética em agosto de 1946. Vários vagões também foram enviados de Tanzenberg. Infelizmente, o tráfego na outra direção foi bem menor.[37]
Mas os Aliados ocidentais não foram totalmente inocentes. Quase um milhão de livros foi mandado para a Biblioteca do Congresso, em Washington. Várias bibliotecas grandes americanas enviaram delegações à Europa para ampliar seus acervos. Alguns livros foram comprados, mas muitas bibliotecas alemãs também foram confiscadas – às vezes com base em pretextos bastante duvidosos. Livros que foram confiscados de indivíduos, organizações ou instituições públicas ligados ao nazismo eram considerados “literatura inimiga” e “propaganda”. Por exemplo, a “biblioteca de trabalho” do Institut zur Erforschung der Judenfrage, com cerca de vinte mil livros, foi despachada para Washington. De acordo com as regras, nenhum livro “saqueado pelos nazistas” podia sair da Alemanha. Mas muitas vezes era impossível saber se esse era o caso, já que nem todos os livros tinham marcas indicando seus proprietários. Muito mais tarde viriam à tona notícias de que livros roubados também haviam sido levados para os Estados Unidos.[38]
Também não há dúvidas de que uma grande quantidade de exemplares, assim como aconteceu no front oriental, foi roubada por soldados americanos, franceses e britânicos. O sargento Burrage Child, especialista em arquivos que trabalhava para os Caçadores de obras-primas e que chegou à Europa em 1945, afirmou em uma carta que soldados americanos estavam “libertando livros” em todo o território alemão. “Agora entendo melhor as velhas histórias sobre soldados do norte fazendo pilhagem no sul. Os netos deles, e também os netos dos ianques, agora seguem o mesmo padrão.”[39]
Depois da primeira triagem em Offenbach e Tanzenberg, centenas de milhares de livros continuavam sem ter suas origens e seus proprietários estabelecidos. Seymour Pomrenze e seus colegas frequentemente se sentiam forçados a se perguntar se havia restado alguém a quem devolver esses livros, muitos dos quais, como afirmou o sucessor de Pomrenze, Isaac Bencowitz, eram resquícios de comunidades e povos que já não existiam mais:
Na sala de classificação, eu encontrava uma caixa de livros que haviam sido reunidos pelos funcionários, como ovelhas perdidas colocadas num mesmo curral – volumes de uma biblioteca que em algum momento existiu numa cidade distante da Polônia ou numa ieshiva agora extinta. Havia algo triste e fúnebre naqueles exemplares [...] como se sussurrassem uma história de desejos e esperanças que mais tarde foram destruídos [...] Eu me pegava desentortando esses livros e os colocando em caixas com uma certa ternura, como se eles tivessem pertencido a alguém de quem eu gostava, alguém que morreu recentemente.[40]
Os funcionários do arquivo de Offenbach se depararam com um difícil dilema. A Europa, desde a Segunda Guerra Mundial, não era mais a mesma. Comunidades haviam sido aniquiladas, populações inteiras foram expulsas e o mapa geográfico havia sido redesenhado. Ao mesmo tempo que o processo de restituição estava em curso, acontecia uma das maiores crises de refugiados da história, com cerca de 30 milhões de pessoas em fuga ou sendo transferidas no centro e na parte oriental do continente.[41] Milhares de comunidades judaicas de toda a Europa, mas principalmente na Europa Oriental, haviam desaparecido. Em muitos casos os sobreviventes não voltaram para suas casas, especialmente entre os que vinham da Europa Oriental, onde a guerra em muitos casos não causou impacto sobre um antissemitismo profundamente enraizado. Já em 1946 ocorreu um pogrom na cidade de Kielce, na Polônia, depois de rumores de que judeus haviam raptado e assassinado em um ritual um menino polonês – o mito medieval ressuscitado apenas um ano depois da libertação dos campos de concentração. Quarenta e dois judeus foram assassinados no pogrom, a tiros ou espancados até a morte. Entre os assassinos havia civis poloneses e autoridades de segurança comunistas. Centenas de milhares de sobreviventes do Holocausto estavam em fuga, a maior parte seguindo para Palestina, América do Sul ou Estados Unidos para começar vida nova ou se reencontrar com suas famílias.
As centenas de milhares de livros judaicos em Offenbach considerados “sem dono” exigiram uma solução especial encontrada com a ajuda de uma organização chamada Reconstrução Cultural Judaica (RCJ), criada em 1947 e financiada por vários grupos judeus. A organização era chefiada pelo renomado historiador Salo Baron, e a filósofa Hannah Arendt fazia parte do comitê executivo.
Em 1949, quando a maior parte dos acervos identificáveis tinha sido devolvida, cerca de meio milhão de livros foi entregue à RCJ para ajudar a reconstruir comunidades e congregações judaicas. Esses livros seguiriam o fluxo de judeus refugiados e migrantes nos anos do pós-guerra. A maior parte, cerca de 200 mil exemplares, foi mandada para Israel, e quase 160 mil foram levados para os Estados Unidos.[42] Também foram enviados livros para Grã-Bretanha, Canadá, África do Sul e vários países na América do Sul: Argentina, 5.053 livros; Bolívia, 1.218 livros; e Equador, 225 livros. Os livros iam principalmente para congregações, mas em certos casos também eram mandados para escolas. A Universidade Hebraica de Jerusalém recebeu uma grande quantidade de exemplares e manuscritos valiosos. Quem recebia os livros ficava proibido de vendê-los, e em muitos países os volumes foram marcados com um ex-líbris especial. Cada um dos 2.031 livros distribuídos para as congregações canadenses trazia o seguinte texto dentro: “Este livro era de propriedade de um judeu, vítima de um grande massacre na Europa”.[43]
Em fevereiro de 1947, uma jovem historiadora chamada Lucy S. Dawidowicz chegou ao arquivo em Offenbach. Sua tarefa era selecionar livros “sem dono” menos valiosos para serem enviados para campos de refugiados sobreviventes do Holocausto, onde havia uma grande demanda por livros. No entanto, quando começou a investigar o acervo, Dawidowicz reconheceu livros e material de arquivo.
Filha de migrantes judeus poloneses, ela se especializara em história judaica europeia ao estudar na Universidade Columbia nos anos 1930. Determinada a aprender iídiche, foi a Vilnius em 1938 para trabalhar no Instituto YIVO. Mais tarde ela descreveu como viajou para Vilnius “com a romântica convicção de que a cidade se transformaria em um centro mundial independente para a cultura iídiche”.[44] Ela descreveu as cenas com que se deparou na famosa Biblioteca Strashun: “Num único dia você pode ver, em duas grandes mesas da sala de leitura, respeitáveis idosos com barba e chapéu, lendo absortos os textos talmúdicos, sentados lado a lado com homens de cabeça descoberta e mesmo mulheres com ombros descobertos em dias de calor. Às vezes você ouvia os mais velhos murmurando e reclamando do mundo moderno. E os jovens dando risada”.[45] Dawidowicz partiu de Vilnius em agosto de 1939, semanas antes do início da guerra e do começo da catástrofe que exterminaria a Vilnius judaica.
Um dos fundadores do YIVO, Max Weinreich, que estava em Copenhague quando a guerra começou em 1939, foi a Nova York e lá instalou a nova sede do instituo. Dawidowicz, que tinha se aproximado de Weinreich e de outros pesquisadores do YIVO, começou a trabalhar para o instituto. Na nova sede do YIVO temia-se que o inestimável acervo, construído ao longo de décadas, se perdesse para sempre. A missão original do YIVO, de fortalecer e dar relevância à cultura iídiche, agora havia mudado do modo mais trágico possível. Já não se tratava de dar relevância a uma cultura viva, e sim de salvar parte de uma civilização perdida. A grande cultura viva iídiche perecera no Holocausto. Em Israel, o hebraico seria dominante e o iídiche seria visto com resistência por uma nova nação que tentava criar uma forte identidade linguística e cultural.
Em 1947, quando começou a vistoriar as pilhas de livros em Offenbach, Lucy Dawidowicz encontrou documentos e livros que já havia visto em Vilnius.[46] “Fui tomada por uma sensação quase sagrada, como se estivesse tocando algo espiritual [...] Cada livro sobrevivente daquele mundo se tornou um documento histórico, um artefato cultural e um registro de uma civilização assassinada”, escreveu Dawidowicz em suas memórias. Ao mesmo tempo que sentia reverência ao examinar os acervos, ela também estava consciente do “ranço de morte que emanava das centenas de milhares de livros e objetos religiosos, que perderam seus pais e eram restos mudos de seus donos assassinados”.[47]
Dawidowicz encontrou periódicos, livros e material de arquivo de documentação histórica e etnográfica, coletados por pesquisadores do YIVO em comunidades da Rússia, da Ucrânia, da Polônia e da Lituânia que já não existiam. Havia poemas, cartas, fotografias, áudios e canções em iídiche. Em meio às imensas montanhas de material, ela também encontrou o que havia sobrado da Biblioteca Strashun, com seus valiosos livros e manuscritos religiosos.
Depois de negociações, ficou decidido que os acervos não voltariam para a Lituânia, onde o instituto havia sido nacionalizado pelos bolcheviques antes mesmo da invasão alemã de 1941. Em vez disso, tudo seria despachado para a nova sede do instituto em Nova York. O YIVO também conseguiu a posse da Biblioteca Strashun, já que o acervo era considerado “sem dono”. Dos cerca de sessenta mil judeus que moravam em Vilnius antes da guerra, poucos tinham sobrevivido. Em julho de 1949, os fragmentos dessa “civilização” foram colocados em 420 caixas e deixaram a Europa a bordo do navio americano SS Pioneer Cove.
A cultura judaica não tinha desaparecido completamente de Vilnius, mas havia outros motivos fortes para não enviar o acervo para lá. Nesse mesmo período, em Vilnius, estava em curso outra operação de resgate – feita em nome do YIVO – que tentava encontrar os livros escondidos pelos judeus responsáveis pela triagem na Brigada do Papel. E também material que os poetas e partisans Abraham Sutzkever e Shmerke Kaczerginski retiraram de baixo do piso do bunker no gueto. Duas semanas depois da libertação de Vilnius, em julho de 1944, eles fundaram o Museu de Arte e Cultura Judaicas. O museu foi instalado em um prédio do antigo gueto que não tinha sido nacionalizado pelos comunistas, a casa no número 6 da Straszuna, onde funcionara a biblioteca do gueto.
Nos meses seguintes, Sutzkever, que se tornou curador do museu, com o auxílio de um pequeno grupo de voluntários, conseguiu salvar mais tesouros ocultos. Uma das descobertas mais importantes aconteceu em uma fábrica de papel local, onde vinte toneladas de papel do YIVO e de outros acervos judaicos ainda não tinham sido recicladas. Outras trinta toneladas foram encontradas com a organização estatal responsável pela limpeza de edifícios em escombros. Os cidadãos de Vilnius que ajudaram em segredo a esconder materiais entregaram sacos de batata cheios de livros e manuscritos. De maneira impressionante, eles conseguiram recolher 25 mil livros em iídiche e hebraico, 10 mil em outras línguas europeias e 600 sacos de material de arquivo.[48]
Todo o trabalho para salvar esses livros e documentos valiosos foi feito só com a ajuda de voluntários. Os pedidos feitos por Sutzkever para que as autoridades soviéticas fornecessem apoio prático e financeiro ficaram sem resposta. Pelo contrário, esses esforços para reconstruir uma identidade cultural judaica em Vilnius foram vistos com desconfiança e mais tarde com hostilidade. No sistema soviético não havia espaço para identidades alternativas.
Sutzkever foi o primeiro a compreender que esses tesouros, que haviam sido salvos dos nazistas com tanto esforço, precisavam ser salvos mais uma vez. Em setembro de 1944 ele já tinha ido a Moscou, contrabandeando partes selecionadas do acervo. Entre outras coisas, levou diários de Herman Kruk, que tinha sido assassinado. Com a ajuda de um correspondente estrangeiro ele conseguiu enviar uma remessa para o YIVO em Nova York.
Shmerke Kaczerginski, que tinha maior simpatia pelo novo regime, substituiu Sutzkever como curador do museu. Mas não demorou para que Kaczerginski também fosse obrigado a admitir o que estava acontecendo, quando agentes da KGB passaram a visitar regularmente o museu. Eles começaram proibindo a biblioteca de emprestar livros que não fossem previamente aprovados pelos censores do regime. Infelizmente, os livros que Kaczerginski mandou para inspeção jamais voltaram.
Kaczerginski descobriu que trinta toneladas de livros e de material de arquivo que haviam sido encontrados estavam sendo postas em um trem com destino a uma fábrica de papel. Ele foi às pressas à plataforma e conseguiu salvar algumas obras do YIVO e da Biblioteca Strashun que estavam nos vagões abertos. Mas enquanto ele entrava em contato com as autoridades para tentar impedir que os livros fossem levados, o trem partiu e a carga foi destruída.[49]
“Foi aí que nós, o grupo de ativistas do museu, percebemos uma coisa bizarra – precisamos salvar nossos tesouros de novo, e tirá-los daqui. Se a gente não fizer isso, eles serão destruídos. Na melhor das hipóteses, vão sobreviver, mas nunca mais vão ver a luz do dia no mundo judeu”, escreveu Kaczerginski.[50]
Em segredo, Sutzkever e alguns ativistas judeus começaram a contrabandear algumas das partes mais valiosas do acervo, enquanto Kaczerginski mantinha a fachada de leal cidadão soviético, planejando o futuro do museu. Um a um os ativistas fugiram para o Ocidente, levando tudo que conseguiam carregar. Em meados de 1946, tanto Kaczerginski quanto Sutzkever haviam deixado Vilnius com as malas completamente lotadas. Para grande tristeza deles, foi preciso deixar a maior parte do acervo para trás, e mais uma vez ele caiu nas mãos de um regime totalitário. Pouco depois da fuga deles, a KGB invadiu o museu, que foi confiscado. O acervo foi colocado em caminhões e levado a uma velha Igreja da cidade, onde foi jogado nos porões.
Shmerke Kaczerginski e Abraham Sutzkever chegaram a Paris e de lá mandaram para Nova York tudo o que tinham conseguido salvar. E foi aí que os dois amigos, que juntos haviam sobrevivido à ocupação nazista, a uma guerra partisan na floresta e ao regime soviético, se separaram. Kaczerginski migrou para a Argentina e Sutzkever, para a Palestina. Mas antes de deixar a Europa Sutzkever deu um depoimento amplamente divulgado contra os que haviam destruído sua cultura para sempre. Em 27 de fevereiro de 1946, ele se sentou no banco das testemunhas dos julgamentos de Nuremberg. Ele queria dar seu testemunho na sua língua natal, o iídiche, algo que o tribunal vetou desde o começo. Ele foi forçado a falar em russo. Em protesto contra essa decisão, como as outras testemunhas, ele se recusou a sentar, apesar de ter recebido várias ordens para fazer isso. Queria permanecer em pé, como se recitasse as sagradas escrituras. “Nas duas noites antes desse depoimento não dormi absolutamente nada. Vi diante de mim minha mãe correr, nua, por um campo coberto de neve; o sangue quente escorrendo de seu corpo ferido começou a pingar das paredes do meu quarto, e me engoliu. Era difícil comparar sensações. O que é mais forte, o sofrimento ou o desejo de vingança?”[51]
Em seu testemunho, Sutzkever fala sobre o extermínio da Vilnius judaica, e sobre como ele permaneceu no gueto do primeiro ao último dia. Falou sobre a mãe. Sobre como um dia ela desapareceu. Como ele procurou por ela no apartamento, mas só descobriu um livro de orações sobre a mesa e uma xícara de chá intocada.
Mais tarde ele descobriu o que havia acontecido a ela, quando os nazistas, em dezembro de 1941, deram um “presente” aos judeus. Carros cheios de sapatos velhos foram levados ao gueto.[52] Pouco depois, Sutzkever escreveu um poema intitulado “A Vogn Shikh” [Um vagão de sapatos]:
As rodas giram, giram –
O que levam pra esses lados?
Me trazem um vagão
De trêmulos calçados.
Vagão que é um casório
Na noite incandescente,
Dançam pilhas de sapatos
Como num baile dança a gente.
É festa, um feriado
Ou erro em tal supor?
Conheço esses calçados
E vê-los causa dor.
Os saltos sapateiam
“Pra onde, aonde eu vim?”
“Das velhas ruas de Vilnius
Nos mandaram a Berlim.”
Nem preciso saber quem,
Mas parte o coração:
Ah sapatos me contem
Esses pés onde estão?
Os pés dessas botas
Com botões, cano alto.
A criança dos chinelos
A mulher deste salto
Vejo infantis de sobra –
Por que não vejo uma criança?
Se vejo o sapato da noiva,
Cadê a moça de aliança?
Em meio a botas gastas
Um par da minha mãe, tão lindo!
Só no Sabá calçava
E sempre reluzindo.
E os saltos sapateiam
“Pra onde, aonde eu vim?”
“Das velhas ruas de Vilnius
Nos mandaram a Berlim.”
No banco dos réus estava Alfred Roosenberg. Uma década antes, aqui em Nuremberg, ele havia recebido o Prêmio Nacional Alemão para Arte e Ciência, o equivalente nazista do Prêmio Nobel. A dedicatória era assim: “Por ter ajudado a estabelecer e a consolidar a perspectiva global do nacional-socialismo tanto por meio da ciência quanto da intuição”. O tempo que ele passou na cela em Nuremberg não o levou a se converter nem a ter crises de remorso, mas deu a Roosenberg a possibilidade de refletir sobre o que dera errado, do seu ponto de vista. Além da corrupção ideológica da liderança em torno de Adolf Hitler, Roosenberg achava que o chamado culto ao Führer causara a ruína do Terceiro Reich. O movimento nacional-socialista se apoiou demais sobre os ombros de um só homem. Ele já pensava assim antes, mas durante o Reich era perigoso dizer isso.[53] Para Roosenberg, o nacional-socialismo sempre foi maior do que Adolf Hitler, e sua ideia de criar a Hohe Schule tinha a ver com a criação de bases intelectuais e ideológicas que pudessem estabilizar o movimento no futuro. A análise de Roosenberg provavelmente fazia sentido até certo ponto, mas também era ingênua e idealista – sem o “culto ao Führer” o regime provavelmente teria desmoronado sozinho. Hitler tinha muito mais seguidores do que os dogmas.
Roosenberg “sempre viveu em um mundo filosófico ideal. Ele é completamente incapaz de organizar sua situação atual, bastante tangível, e procura o tempo todo escapar para um discurso sem rumo”, afirmou D. M. Kelly, um dos psicólogos que examinaram Roosenberg durante seu tempo na prisão.[54]
O advogado de Roosenberg, Ralph Thomas, que tentou fazer com que ele admitisse sua culpa e rejeitasse sua própria ideologia durante o julgamento, jamais teve a menor chance. Roosenberg não era Albert Speer, mas também não desmoronou como Ribbentrop ou Kaltenbrunner. Pelo contrário, se comportou friamente. Ao contrário de outros réus, ninguém achava provável que ele se suicidasse: “Não há indícios de depressão ou de preocupação suicida. Humor totalmente adequado”, escreveu William Harold Dunn, que fez uma avaliação médica e psicológica de Roosenberg.[55] “A impressão que ele me deu foi de se agarrar a suas próprias teorias de maneira fanática e inflexível e de ter sido pouco influenciado pela revelação das crueldades e crimes do partido durante o julgamento.”[56]
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Quando um filme dos campos de concentração foi exibido durante o julgamento, Roosenberg olhou para o outro lado e se recusou a assistir. Ele passava seu tempo na sala trabalhando em suas memórias, onde insistia fixamente na ideia de que a Alemanha fora vítima de uma conspiração judaica – que agora saía vitoriosa. Sua luta tinha sido uma defesa contra essa conspiração mundial. Roosenberg não admitiu qualquer culpa. Ele não achava que sua lealdade ao partido pudesse ser um crime: “O nacional-socialismo foi uma resposta europeia à questão do nosso século. Foi a mais nobre ideia a que um alemão poderia dedicar suas energias”, ele escreveu em sua cela.[57]
Embora Roosenberg não tivesse se envolvido tão diretamente quanto Himmler, Göring, Heydrich e outros líderes nazistas no planejamento da guerra ou do Holocausto, ele estava envolvido demais em seu próprio papel de principal ideólogo para escapar do veredito inevitável. As teorias conspiratórias antissemitas e a ideologia racial que Roosenberg pregava havia décadas contribuíram para os eventos. Mas o que mais contribuiu para sua condenação foi o cargo de ministro do Reich para os Territórios Ocupados no Oriente. Embora tenha se admitido que Roosenberg protestou contra ações mais duras, ao mesmo tempo ele não fez nada para impedir que elas ocorressem, e continuou no cargo até o fim, o que foi mencionado nas alegações finais ao fim do processo em 1º de outubro de 1946.
“O verdadeiro crime de Roosenberg não foi ter agido como um homem fraco, mas sim ter escrito e falado como um homem forte”, afirmou um historiador.[58] Roosenberg foi considerado culpado de todas as acusações. Ele foi condenado à morte.
Seus capangas foram tratados com muito mais leniência – os pesquisadores nazistas que pilharam o mundo à sua volta e ajudaram a construir a catedral ideológica de Roosenberg. A maior parte pôde voltar para a vida acadêmica ou para outras carreiras. Wilhelm Grau, que chefiou o instituto de Frankfurt nos primeiros anos, trabalharia no mercado editorial, e nos anos 1950 se tornou diretor de uma gráfica. Seu sucessor, Klaus Schickert, se tornou diretor de uma empresa em Colônia. Gerd Wunder, que chefiou as pesquisas em Ratibor, se reintitulou depois da guerra “historiador social”. Em vez de obras como Questões raciais e judaísmo, ele passou a publicar livros como Relações históricas entre América do Sul e Europa.
Alguns pesquisadores atraíram mais atenção do que outros, como o historiador Hermann Kellenbenz. Depois da guerra ele trabalhou por um período na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e depois se tornou um historiador econômico internacionalmente respeitado. Ele continuou a publicar estudos sobre a economia dos judeus sefarditas, só que agora sem a parte ideológica.
Johannes Pohl, o “expert em judaísmo” do instituto de Frankfurt e um dos principais saqueadores, trabalhou depois da guerra na Franz Steiner Verlag, uma respeitada editora científica alemã, e, a julgar por seus textos em periódicos católicos, parece ter voltado à sua fé anterior. Os relatos detalhados de Pohl sobre os roubos nos vários fronts, onde ele listava o que havia sido “assegurado”, foram usados como provas contra Alfred Roosenberg nos julgamentos de Nuremberg. Mas o próprio Pohl jamais foi processado.[59]
Duas semanas depois de sua condenação, nas primeiras horas de 16 de outubro de 1946, Roosenberg foi levado de sua cela para um pátio interno da prisão. Os dez criminosos de guerra foram levados um após o outro para o local de execução. O único a evitar a punição foi Hermann Göring, que, faltando apenas duas horas para sua execução, mordeu uma cápsula de cianeto que havia contrabandeado para dentro da prisão. Depois do ministro das Relações Exteriores Joachim von Ribbentrop, do líder da RSHA Ernst Kaltenbrunner e do marechal de campo Wilhelm Keitel, chegou a vez do principal ideólogo.
“Roosenberg estava desanimado e com o rosto magro quando olhou para o pátio. Sua pele tinha um tom marrom pálido, mas ele não parecia nervoso, e andou com passos firmes até o cadafalso. Exceto por dizer seu nome e por responder ‘não’ quando perguntaram se tinha algo a dizer, ele não pronunciou uma palavra sequer. Apesar de seu manifesto ateísmo, ele foi acompanhado por um capelão protestante que foi com ele até o patíbulo e ficou ao seu lado orando. Roosenberg olhou uma vez para o capelão, sem expressão. Noventa segundos depois, balançava pendurado na corda do carrasco. A dele foi a mais rápida das dez execuções”, escreveu o jornalista Howard K. Smith, que cobriu as execuções.[60]
Junto com os outros, o corpo de Alfred Roosenberg foi levado para Munique, onde foram todos cremados no cemitério Ostfriedhof. Naquela mesma noite, sob o manto da escuridão, as cinzas dos homens executados foram lançadas no rio Isar.