1. No limite

Levamos o pacifismo muito a sério! Mas temos de fazer com que o orçamento para nossa artilharia seja aprovado.

General Stumm em O homem sem qualidades, de Robert Musil

 

Mesmo na época, havia previsões de que o mergulho na guerra daria fim a uma era. É bem conhecida a sensação de mau presságio expressa por Sir Edward Grey, secretário de Relações Exteriores britânico, em 3 de agosto de 1914: “As luzes estão se apagando em toda a Europa. Não as veremos acesas de novo enquanto vivermos”. O chanceler do Reich alemão, Theobald von Bethmann-Hollweg, teve um pressentimento semelhante: “Vejo uma ruína que a força humana não é capaz de deter pendendo sobre a Europa e sobre o nosso próprio povo”, exclamou, quando a perspectiva de guerra crescia e se aproximava, em julho de 1914. Três anos antes, num discurso no Parlamento alemão, o Reichstag, o socialista August Bebel afirmara que crescia o perigo de uma guerra iminente na Europa e que ela traria a catástrofe ao continente. “O Götterdammerung* do mundo burguês está se aproximando”, ele declarou. Essas palavras foram recebidas com objeções e contraditas. A guerra não levou ao colapso do capitalismo e ao triunfo do socialismo; no entanto, Bebel foi visionário em sua previsão de que ela traria consigo uma nova era. O diplomata americano George Kennan mais tarde classificou a guerra como “a grande catástrofe seminal”. E com razão. Ela foi realmente uma catástrofe. E inaugurou uma época — a “Guerra dos Trinta Anos” do século XX — em que o continente europeu chegou muito perto de se autodestruir.

UMA IDADE DE OURO?

O que permaneceu, principalmente na memória das classes privilegiadas, depois da Primeira Guerra Mundial, foi a imagem de uma era esplendorosa de estabilidade, prosperidade e paz, varrida tragicamente pelos horrores que viriam. “The Gilded Age” — foi assim que os americanos vieram a classificar os anos que antecederam a guerra: uma era dourada. No entanto, a expressão captava a maneira como também os europeus passaram a vê-la. A burguesia parisiense recordava “la belle époque” como o tempo em que a cultura francesa fazia inveja ao mundo, quando Paris parecia o centro da civilização. As classes dominantes de Berlim lembravam “a era guilhermina” como um período de riqueza, segurança, grandeza e da estatura nacional que convinha à Alemanha recém-unificada. Também Viena se via no pináculo da glória cultural, do brilho intelectual e da histórica grandeza imperialista. Munique, Praga, Budapeste, São Petersburgo, Moscou e outras cidades, de um lado a outro do continente, partilhavam um florescimento da cultura. Novas correntes de expressão artística, desafiadoras e provocantes, surgiam em praticamente todas as formas das artes visuais, da literatura, da música e do teatro numa explosão de ousada criatividade.

Em Londres, a economia tinha mais importância que a cultura. Na capital de um império global, a geração que se seguiu à Primeira Guerra Mundial ansiava pela volta de uma extinta “idade de ouro” de contínuo crescimento econômico, comércio florescente e moeda estável. Ficou famoso um texto de John Maynard Keynes no qual o grande economista britânico dizia, depois da guerra, que “o morador de Londres” podia encomendar “pelo telefone, bebericando seu chá na cama, os mais variados produtos de toda a Terra, na quantidade desejada, e esperar recebê-los prontamente em sua porta”. Tratava-se, naturalmente, de uma perspectiva bastante privilegiada, por parte de um homem abastado da classe média alta e residente na cidade que era o centro do comércio mundial. Nos shtetls da Europa Oriental, nas áreas rurais empobrecidas do sul da Itália, da Espanha, da Grécia e da Sérvia, ou entre as massas urbanas amontoadas nos cortiços de Berlim, Viena, Paris, São Petersburgo e da própria Londres, pouca gente tinha ouvido falar dessa existência idílica. Mesmo assim, a imagem de uma “idade de ouro” não foi apenas uma ideia artificial do pós-guerra.

Malgrado as divisões internas e as rivalidades nacionalistas da Europa, todos os países desfrutavam de livre movimentação de bens e de capital, como parte de uma economia capitalista entrelaçada, internacional e global. A estabilidade que permitia o próprio crescimento econômico fundamentava-se no reconhecimento do padrão-ouro como uma espécie de moeda mundial, com raízes na preponderância de Londres como centro econômico e financeiro. Na City, o Banco da Inglaterra detinha a chave da estabilidade da economia mundial. Ganhos invisíveis advindos do transporte marítimo, dos seguros, dos juros e das exportações mais que compensavam o déficit na balança comercial inglesa. Em 1897-8 tinha havido um aumento substancial na oferta de ouro, proveniente, sobretudo, da África do Sul. Entretanto, o Banco da Inglaterra nem acumulou reservas de ouro excessivas, o que teria prejudicado outros países, nem as reduziu. As economias dos Estados Unidos e da Alemanha eram mais dinâmicas e cresciam mais depressa do que a britânica. Era provável que em algum momento os Estados Unidos viessem a dominar a economia mundial. No entanto, a Inglaterra ainda detinha a maior parcela do comércio global (embora ela estivesse diminuindo) e era de longe a maior exportadora de capitais de investimento. A rivalidade entre as grandes potências no tocante à exploração econômica do globo estava, com certeza, aumentando a tensão que ameaçava a estabilidade da economia capitalista internacional. Até 1914, contudo, continuava intacto o sistema que tanto beneficiara a Europa, principalmente suas regiões industrializadas, durante as décadas anteriores. Era generalizada a confiança de que ele permaneceria estável, próspero e em crescimento.

Ao ser inaugurada em Paris, em 1900, a grandiosa Exposição Universal pretendia exibir uma civilização florescente, que tinha em seu núcleo a Europa, e entoar um vibrante hino de louvor ao progresso. Alardeava-se uma era de novas tecnologias. Máquinas imensas impressionavam o público por sua capacidade e velocidade. O fulgor do “Palácio da Eletricidade”, iluminado por 5 mil lâmpadas elétricas, literalmente ofuscava seus visitantes. Vinte e quatro nações europeias e os Estados Unidos, além de países africanos, asiáticos e latino-americanos, fizeram-se representar com pavilhões requintados — visitados durante os seis meses seguintes, em geral com admiração extasiada, por nada menos que 50 milhões de pessoas. A Europa Oriental, com destaque para a Rússia, com seus nove pavilhões, teve uma forte presença. E a “missão civilizatória” europeia brilhou na exposição. Com o imperialismo em seu apogeu, as representações de possessões coloniais distantes, sempre de opulento exotismo, transmitiram uma impressão avassaladora de domínio europeu do mundo. O comércio, a prosperidade e a paz garantiriam um prosseguimento ilimitado dessa dominação. O futuro se anunciava fulgurante.

O otimismo parecia justificado. Em comparação com que o que ocorrera antes, e ainda mais com o que estava por vir, o século XIX fora pacífico. A era de Napoleão terminara em 1815. A guerra na distante Crimeia, entre 1853 e 1856, assim como os breves conflitos que culminaram na unificação alemã e italiana em 1871, não haviam ameaçado a paz do continente como um todo. Uma década depois da grande exposição de Paris, um escritor britânico, Norman Angell, publicou um best-seller internacional, The Great Illusion, no qual se arriscava a afirmar que a riqueza moderna advinda do comércio e de uma economia globalmente interligada tornava a guerra sem sentido. Muita gente, e não só na Inglaterra, concordou. Era difícil imaginar que a prosperidade, a paz e a estabilidade não prosseguiriam indefinidamente, podendo ser varridas tão cedo e com tanta rapidez.

Todavia, a Europa tinha outra face, muito menos atraente. O tecido social estava mudando depressa, embora de modo bastante desigual, de um lado a outro do continente. Regiões de industrialização intensa e rápida coexistiam com grandes faixas que ainda eram essencial e primitivamente agrícolas. Em 1913, cerca de 80% da população trabalhadora da Sérvia, da Bulgária e da Romênia ganhava a vida com a terra. Na Europa como um todo, essa proporção era de 40%. Só na Inglaterra caía para pouco mais de 10%. E, em 1913, apenas na Inglaterra, na Bélgica e, surpreendentemente, na Suíça — nem mesmo ainda na Alemanha — mais de 40% da população trabalhadora estava ocupada na indústria. A maioria dos europeus vivia em vilarejos e cidades pequenas. Os padrões de vida continuavam a melhorar, embora ainda fossem miseráveis para a maior parte das pessoas, quer tivessem se juntado às massas fervilhantes que procuravam trabalho nas condições insalubres de cidades em rápido inchaço, como Berlim, Viena ou São Petersburgo, quer levassem uma existência precária no campo. Muitos mostravam seu descontentamento emigrando. A pobreza e a falta de oportunidades expulsavam muita gente de suas terras. Como estavam longe de conhecer os benefícios da prosperidade e da civilização, milhões de europeus simplesmente não viam a hora de ir embora. A emigração para os Estados Unidos chegou ao auge em 1907, quando mais de 1 milhão de europeus atravessaram o Atlântico. A forte elevação no número de emigrantes logo após o começo do século — eles triplicaram em relação à década anterior — foi causada pelos que fugiam da Áustria-Hungria, da Rússia e, mais que de qualquer outra parte, do sul empobrecido da Itália.

A rapidez da mudança social acarretou novas pressões políticas que começaram a ameaçar a ordem estabelecida. Nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, o poder político na Europa continuava nas mãos de poucos. As elites fundiárias, antigas famílias aristocráticas cujos filhos às vezes contraíam casamento com novas dinastias que faziam vastas fortunas com a indústria e o capital financeiro, formavam ainda a classe governante e a liderança militar em muitos países. A Europa era, basicamente, um continente de monarquias hereditárias. Somente a Suíça (cuja confederação, que durava séculos, adotara uma moderna constituição republicana federal em 1848), a França (desde 1870) e Portugal (desde 1910) eram repúblicas. Na Áustria-Hungria, o cáiser Francisco José, que ocupava o trono desde 1848 à testa do amplo império multinacional dos Habsburgo, com mais de 50 milhões de súditos, simbolizava a perenidade do poder monárquico.

Não obstante, praticamente em toda parte existia uma estrutura de governo constitucional, partidos políticos pluralistas (embora eleitos por meio de um sistema censitário extremamente restritivo) e um sistema legal. Mesmo a autocracia russa tinha sido forçada a fazer concessões depois de uma malograda revolução em 1905, quando o tsar Nicolau ii se viu obrigado a conceder poderes (que na prática se mostraram debilíssimos) ao parlamento local, a Duma. Entretanto, mesmo na Inglaterra (considerada a pátria da democracia parlamentar), grandes parcelas da população careciam de representação política. Alguns países dispunham de antigos sistemas de sufrágio masculino universal. Na Alemanha, por exemplo, a constituição do Reich (1871) concedia a todos os homens com mais de 25 anos o direito ao voto nas eleições para o Reichstag (embora o sistema censitário restritivo, que garantia o domínio dos proprietários de terras, tenha sido mantido nas eleições para o Parlamento da Prússia, área que compreendia dois terços de todo o território do Reich). Na Itália, a adoção do voto masculino (quase) universal só se deu muito mais tarde, em 1912. Na virada do século XX, as mulheres não tinham direito a voto em nenhum país europeu. Campanhas feministas desafiaram essa discriminação em numerosos países, ainda que com pouco êxito antes da Primeira Guerra Mundial, a não ser na Finlândia (que, embora fizesse parte do Império russo, conseguiu introduzir algumas mudanças democráticas depois da revolução abortada de 1905 na Rússia) e na Noruega.

A mudança fundamental, que as elites em todos os países encararam como uma ameaça real, foi a ascensão dos partidos políticos da classe trabalhadora e dos sindicatos profissionais. A Segunda Internacional tinha sido instituída em 1889 como uma organização “guarda-chuva”, que coordenava as exigências programáticas dos partidos socialistas nacionais. A maioria deles continuava a seguir, de uma forma ou de outra, a doutrina revolucionária enunciada por Karl Marx e Friedrich Engels. O ataque de ambos à natureza intrinsecamente exploradora do capitalismo, bem como sua campanha em favor de uma nova sociedade baseada na igualdade e na justa distribuição da riqueza, tinha um apelo óbvio e crescente para muitos integrantes da pobre e espoliada classe operária industrial. As tentativas das elites dominantes de proscrever ou suprimir os partidos de trabalhadores e os sindicatos, estes em número cada vez maior, tinham fracassado. Os trabalhadores estavam organizando a defesa de seus interesses melhor do que em qualquer época anterior. A rápida expansão dos sindicatos profissionais atestava isso. Em 1914, eles tinham mais de 4 milhões de membros no Reino Unido; eram mais de 2,5 milhões na Alemanha; e cerca de 1 milhão na França.

Na maioria dos países europeus, partidos socialistas e movimentos de diferentes tipos haviam ganhado voz e conquistado apoio cada vez maior no começo do século. Os socialistas franceses eliminaram suas divisões e se uniram em 1905, declarando que eram “não um partido de reforma, mas um partido de luta de classes e de revolução”. Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Section Française de l’Internationale Ouvrière tinha recebido 17% dos votos populares e obtido 103 cadeiras na Câmara dos Deputados. Na Alemanha, as tentativas de Bismarck de suprimir a social-democracia fracassaram espetacularmente. Desde 1890, com um programa marxista, o Partido Social-Democrata da Alemanha (Sozialdemokratische Partei Deutschlands, spd) passara a ser o maior movimento socialista da Europa, chegando a mais de 1 milhão de membros antes da guerra. Na eleição de 1912 para o Reichstag, os sociais-democratas tiveram uma votação maior que a de qualquer outro partido, conquistando mais de um terço das cadeiras e fazendo um arrepio percorrer a espinha das classes dominantes da Alemanha.

Nas áreas de maior desenvolvimento econômico da Europa, o socialismo organizado, qualquer que fosse sua retórica, conduziu seus membros a uma militância aberta e canalizou-a para a atuação parlamentar, e não para a ação revolucionária. Na França, Jean Jaurès ganhou muitos adeptos ao defender, apesar da retórica de seu Partido Socialista, um caminho parlamentarista para o socialismo, e não a revolução. O Partido Social-Democrata Alemão, ainda que retoricamente ligado à doutrina marxista, na prática procurou ganhar o poder nas urnas. Na Inglaterra, o Partido Trabalhista, que adotou esse nome em 1906, crescera a partir dos sindicatos e refletia as preocupações pragmáticas dessas entidades em favor dos interesses dos trabalhadores, e não utopias revolucionárias. A mensagem marxista era praticamente ignorada em favor do discurso não revolucionário de que o capitalismo não precisava ser derrubado, uma vez que poderia ser reformado para o eventual benefício da classe trabalhadora. O poder do Estado, presumia-se, poderia ser transformado por meios pacíficos, de modo a representar os interesses da classe trabalhadora. Na maior parte do oeste, do norte e do centro da Europa, os trabalhadores eram pobres, porém menos miseráveis e menos militaristas do que em épocas anteriores. Tinham mais a perder do que seus grilhões e de modo geral seguiam seus líderes reformistas.

Nas áreas menos desenvolvidas do continente, a situação era outra. O confronto com o poder do Estado era mais nítido. Havia pouca ou nenhuma difusão do poder através de organizações intermediárias ou de estruturas sociais que dessem aos cidadãos uma participação no governo. O poder era em larga medida despótico e exercido de cima para baixo, fortemente baseado na coerção, com uma casta dominante bem estabelecida, um funcionalismo corrupto e instituições representativas fracas ou inexistentes. As ideias a respeito do progresso aparentemente ilimitado da civilização, com base na autoridade benigna do Estado e no respeito às leis, que mais tarde fariam parte da percepção que as classes médias da Europa Central, Setentrional e Ocidental tinham de uma “idade de ouro” perdida, pareciam bizarras para a periferia do sul e do leste do continente. Greves, manifestações e insurreições localizadas contra o poder do Estado e o “domínio burguês” aumentaram, por exemplo, na Catalunha e no País Basco nos primeiros anos do século XX. O anarquismo, com frequência envolvendo violência esporádica contra o Estado, granjeou muito apoio entre os trabalhadores sem terras da Andaluzia. No sul da Itália, onde funcionários estatais corruptos eram paus-mandados das classes proprietárias, a agitação rural violenta era endêmica. Bandos de desordeiros vagueavam pelas zonas rurais e misturavam atos criminosos com protestos populares ao defender camponeses e trabalhadores sem terras contra o poder do Estado e dos grandes proprietários. O alarme manifestado pelos líderes europeus diante do que julgavam ser a ameaça representada por uma classe trabalhadora revolucionária tornou-se bastante sério durante uma ampla onda de greves industriais e agitações políticas em 1905. Na Rússia, diante de uma revolução que quase derrubou o tsar, a mão pesada da repressão estatal transformou-se em franca violência contrarrevolucionária quando soldados em São Petersburgo massacraram duzentos trabalhadores e feriram muitas centenas. Fizeram-se algumas concessões, mais de aparências do que reais, no sentido de representação parlamentar, porém o poder continuou nas mãos do tsar e de seus ministros. Para os que não tinham poder, e sobretudo para os que lideravam o movimento socialista, a situação era óbvia. A autocracia tsarista não podia ser reformada. Teria de ser derrubada. O resultado foi o crescimento do radicalismo no socialismo russo.

Os contramovimentos populistas surgiram não só em resposta à ameaça que os movimentos esquerdistas pareciam representar como também para ajudar governos que tinham pouco ou nenhum apoio das massas a ampliá-lo. Com frequência, esses contramovimentos eram patrocinados, direta ou indiretamente, por industriais ou proprietários de terras desejosos de desviar a possível oposição classista para canais mais controláveis. Procuravam “nacionalizar” as massas, instilar nelas sentimentos assertivos — nacionalistas, imperialistas e racistas —, com vistas a fortalecer o status quo político. Em certa medida, tiveram êxito. O nacionalismo belicoso, o antissemitismo violento e outras formas de racismo eram corriqueiros fora da minoria atraída pelas doutrinas do socialismo internacional. A difusão da educação básica, o crescimento da alfabetização e os jornais populares baratos ofereciam a possibilidade de ampliar essa influência. Tanto na direita como na esquerda, a política de massas estava se abrindo para novas formas de mobilização. As antigas certezas começavam a se dissolver. O sistema político das velhas elites conservadoras e liberais percebia uma nova sensação de insegurança.

A mobilização das massas, vista como grave ameaça à ordem política e social vigente, levou o psicólogo francês Gustave Le Bon a publicar, em 1895, sua análise do comportamento das massas intitulada Psicologia das multidões. Sua afirmação de que a racionalidade desaparecia quando a pessoa era submetida aos impulsos irracionais e emocionais da multidão tornou-se influente no começo do século XX — o livro teve 45 reimpressões e foi traduzido para dezessete línguas, e mais tarde tornou-se leitura obrigatória para aspirantes a ditadores fascistas. Em toda a Europa, os impulsos emocionais que Le Bon considerava característicos das massas podiam ser facilmente estimulados mediante apelos ao nacionalismo. As elites governantes da Europa não julgavam o nacionalismo tão perigoso quanto o socialismo. Antes da guerra, os perigos incorporados ao fervor nacionalista pareciam mesmo controláveis. No entanto, eles lançaram as raízes de forças que viriam a minar, e por fim destruir, a ordem estabelecida.

A polarização política, assim como a tensão nas relações exteriores e o envolvimento em conflitos externos, definiram o volume relativo da estridente retórica nacionalista. Na Espanha, as tentativas de criar unidade em torno de noções de “regeneração nacional” descarrilaram após a derrota desastrosa e a perda de colônias para os Estados Unidos na guerra de 1898, que de início fora bem-vista pelo povo. De qualquer forma, tais tentativas estavam fadadas ao insucesso, tendo em conta as profundas divisões internas do país, tanto regionais como ideológicas. Entretanto, o zelo cruzadista para forjar uma nação renascida na luta contra inimigos internos acabaria por levar a uma guerra civil catastrófica.

Na maioria dos países, o repertório de imagens de inimigos, internos e externos, foi transformado numa retórica que logo alcançaria novos patamares de agressividade. Os meios de comunicação de massa provocavam animosidades — em geral intensamente xenófobas e, muitas vezes, abertamente racistas — que os governos incentivavam com prazer. A guerra da África do Sul, em 1899-1902, deu novo impulso na Inglaterra à beligerância nacionalista extrema, que veio a ser chamada de “jingoísmo”. Na Alemanha, o governo conservador fez brotar o fervor nacionalista na “eleição hotentote” de 1907 para difamar os adversários social-democratas, acusados de falta de patriotismo. (O fato de o número de eleitores social-democratas ter aumentado — apesar da perda de uma quantidade substancial de cadeiras — indica que, como na Inglaterra, o jingoísmo tinha muito mais curso entre as classes médias do que entre os trabalhadores.)

Organizações nacionalistas como a Liga Pangermânica, a Liga da Marinha e a Liga Alemã de Defesa — com eleitores principalmente nas classes média e média baixa — lutavam por uma política externa mais radicalmente afirmativa e expansionista. Antes de 1914, não passavam de grupos de pressão que, embora relevantes, estavam fora da política dominante e do governo. Ainda assim, a essa altura, ideias nacionalistas afirmativas já permeavam praticamente todo o espectro político além da esquerda socialista. Na Itália, persistia a sensação de humilhação nacional depois da derrota calamitosa das forças coloniais italianas, em 1896, imposta por um exército etíope em Adowa (com a perda de mais de 5 mil soldados). Isso e também a percepção de que o país era uma “nação proletária”, sem assento à mesa das grandes potências imperialistas da Europa, provocaram um sentimento nacionalista, de fervor quase religioso, que enfatizava a luta e o sacrifício, e clamava por um Estado forte e antissocialista, poder militar e uma política exterior mais assertiva. Apesar do barulho que faziam, os nacionalistas italianos estavam longe de representar a opinião da maioria numa sociedade profundamente dividida, e ainda eram um fator de irritação para o governo. Mesmo assim, a pressão nacionalista desempenhou seu papel na decisão do governo liberal de obter uma colônia e invadir a Líbia em 1911 — a primeira guerra em que o mundo conheceu o bombardeio aéreo, quando os italianos atacaram, de um dirigível, tropas otomanas que batiam em retirada. Na Itália, tal como na Alemanha, o nacionalismo radical ainda não atraía muita gente. E talvez as coisas permanecessem assim se não fosse a Grande Guerra. Entretanto, as sementes de uma futura mudança nefasta já tinham sido plantadas.

Cada vez mais, o nacionalismo definia “a nação” não pelo território, mas por etnicidade — por aqueles que deveriam ter permissão para pertencer a ela. Por exemplo, na eleição de 1902, um nacionalista francês, Edmond Archdéacon, se proclamou “um declarado adversário do internacionalismo. Como antissemita, exijo que os 150 mil judeus e seus lacaios, os 25 mil maçons, parem de oprimir e arruinar 38 milhões de franceses”. Ele representava, segundo suas palavras, “a verdadeira República, a república francesa”. Na realidade, na França, como também em outras partes da Europa, o nacionalismo, como movimento político, achava-se dilacerado por divisões internas, incapaz de aspirar ao poder do Estado, mas, ainda assim, capaz de tornar os governos mais veementes em suas declarações de política externa. E, embora o nacionalismo se confinasse às margens da política, suas ideias básicas — uma nação definida pela exclusão daqueles considerados inadequados dela, vale dizer, os judeus — permaneciam parte integrante de uma cultura francesa dividida. Argumentos semelhantes eram ouvidos em grande parte da Europa.

Antissemitismo era um termo novo para um fenômeno antigo e generalizado no continente: o ódio aos judeus. O tradicional antagonismo aos “assassinos de Cristo”, que vinha de séculos, continuava existindo e sendo fomentado pelo clero cristão — protestante, católico e ortodoxo. Outro elemento entranhado nesse ódio decorria de imemoriais ressentimentos econômicos e sociais, reforçados na medida em que os judeus tiravam proveito de liberdades recentes para ampliar seu envolvimento na economia e na vida cultural. Isso não demorou a se expressar no uso dos judeus como bodes expiatórios por ocasião de qualquer retração econômica. No final do século XIX, as formas antiquadas e frequentemente ferozes de aversão aos judeus tinham se revestido de algo ainda pior. Elas se mesclavam agora com novas doutrinas raciais, potencialmente mortíferas, que propunham justificativas biológicas, pseudocientíficas, para o ódio e a perseguição. A discriminação mais antiga, já bastante odiosa, autorizava (e às vezes obrigava) os judeus a se converterem ao cristianismo. O antissemitismo biológico impediu isso. Segundo esse pensamento, os judeus, em termos étnicos, eram cientificamente diferentes. “Estava no sangue.” Era tão impossível um judeu tornar-se um francês ou um alemão, por exemplo, quanto um rato transformar-se num cachorro. Essa doutrina determinava não só a discriminação, como a exclusão total. Mais um passo e incluiria a eliminação física.

A retórica antissemita era estarrecedora. Os antissemitas alemães empregavam a linguagem da bacteriologia para classificar os judeus. Karl Lueger, benquisto e admirado prefeito de Viena, tinha chamado os judeus de “animais rapinantes”, e antes disso dissera que o “problema judeu” seria solucionado se todos eles fossem metidos num grande navio a ser posto a pique em alto-mar. Qualquer que fosse a retórica, o antissemitismo como política parecia em declínio, ao menos na Europa Ocidental, durante a “idade de ouro”, antes da Primeira Guerra Mundial. Em parte isso era ilusório, já que ele muitas vezes se incorporava ao conservadorismo predominante. A propagação de imagens negativas não cessou. Entretanto, antes da guerra, seu impacto era politicamente limitado. Apesar do antissemitismo nas periferias políticas, a maioria dos judeus podia sentir-se à vontade na Alemanha guilhermina. O clima na França, que tão pouco tempo antes passara pelo vergonhoso caso Dreyfus (em que a condenação fraudulenta por traição de um oficial judeu do Exército provocou uma onda de antissemitismo), era mais ameaçador para os judeus. No entanto, também lá a situação melhorou nos primeiros anos do novo século. Bem pior era a situação dos judeus na Europa Oriental. Pogroms brutais, que deixavam milhares deles mortos e feridos, muitas vezes instigados pela polícia e pela administração tsarista, haviam assolado áreas do oeste da Rússia entre 1903 e 1906. Na Polônia, Ucrânia, Hungria, Romênia e nas regiões bálticas, o ódio visceral aos judeus continuava endêmico. Não foi por acaso que esses lugares se tornariam, mais tarde e em outras circunstâncias, as principais áreas de extermínio da Europa.

A face sombria da “idade de ouro” da civilização e do progresso na Europa revelou-se, de forma embrionária, em outra linha de pensamento: a “eugenia” e seu parente próximo, o “darwinismo social”. Esse pensamento teve origem no trabalho de Sir Francis Galton, que utilizou a teoria evolucionista de seu tio Charles Darwin para afirmar que o talento era hereditário e que a raça humana poderia ser aperfeiçoada pela engenharia genética. Já antes da Primeira Guerra Mundial, a eugenia vinha despertando atenção em outros países europeus, como os escandinavos, a Suíça e a Alemanha, bem como nos Estados Unidos. Era vista como um exemplo de ciência “progressista”. Entre os que a apoiavam, na Inglaterra, por exemplo, estavam eminentes pensadores ligados ao sistema liberal ou à incipiente esquerda política, como John Maynard Keynes, Lord Beveridge, H. G. Wells, Sidney Webb e George Bernard Shaw. Numa correspondência privada escrita em 1908, mais de trinta anos antes da “ação de eutanásia” nazista, o aclamado romancista inglês D. H. Lawrence chegava a imaginar, em tom de aprovação, a construção de uma grande “câmara letal” para onde, com um suave fundo orquestral, seriam delicadamente conduzidos “todos os doentes, os coxos e mutilados”.

A eugenia prometia oferecer meios de extirpar da sociedade as características que produziam a criminalidade, o alcoolismo, a prostituição e outras formas de conduta “aberrante”. A ideia fundiu-se com a clássica ideologia imperialista do “darwinismo social”, que se fundamentava em pressupostos segundo os quais determinados tipos raciais eram intrinsecamente superiores a outros. O próprio Galton escreveu, em 1908, que o objetivo primordial da eugenia era limitar a taxa de natalidade dos “inaptos”. Com o tempo, presumia-se, a eliminação dos “doentios” produziria uma sociedade mais apta, mais saudável, “melhor”. Os temores de degeneração étnica, decorrente de medidas de bem-estar que incentivavam a procriação entre os setores “inferiores” da sociedade, mesclaram-se com ideias de eficiência nacional.

Em 1911, uma revista alemã organizou um concurso com base na seguinte pergunta: “Quanto custam ao Estado e à sociedade os elementos inferiores?”. O vencedor foi um funcionário do Asilo Geral dos Pobres, em Hamburgo (que listou em sua resposta quase todos os custos da previdência social). A esterilização dos “inferiores” foi uma ideia que começou a ganhar terreno em círculos médicos. Na Alemanha, o médico Alfred Ploetz ligou a eugenia à “higiene racial”, criando a Sociedade para Higiene Racial, que em 1914 contava com 350 membros e quatro seções em diferentes cidades alemãs. Nesse mesmo ano, a Sociedade reivindicou uma regulamentação de procedimentos para “os casos em que o aborto ou a esterilização possam ser recomendáveis do ponto de vista médico”. Poucas semanas antes da guerra, o governo do Reich preparou um projeto de lei que rejeitava argumentos sociais ou eugênicos para a esterilização ou o aborto, só permitindo ações dessa natureza se houvesse uma “ameaça imediata à vida ou à integridade física”. Antes que o projeto fosse votado, a Alemanha estava em guerra. Sem ela, a eugenia, tal como o antissemitismo — quanto mais sua variante, a higiene racial — talvez nunca tivesse adquirido a relevância que ganhou num clima drasticamente alterado. Ainda assim, os fundamentos intelectuais para desdobramentos posteriores foram lançados durante a “idade de ouro” da civilização europeia.

Antes da Primeira Guerra Mundial, apesar de sua tranquilidade aparente, a Europa produziu as sementes da posterior explosão de violência. Rancores e ódios — nacionalistas, religiosos, étnicos e classistas — desfiguravam quase todas as sociedades. Os Bálcãs e o Império russo eram regiões particularmente violentas do continente. Depois de fracassada a revolução na Rússia, em 1905, gangues protofascistas, muitas vezes apoiadas pela polícia, vingaram-se ferozmente de seus inimigos. Em meio aos episódios de selvageria, foram os judeus os que mais sofreram. Em outubro de 1905, foram relatados mais de 3 mil assassinatos de judeus em 690 pogroms. Em Odessa, o pogrom mais sanguinário de todos assassinou oitocentos judeus e deixou 5 mil feridos e mais de 100 mil desabrigados. Represálias contrarrevolucionárias resultaram na execução de 15 mil opositores do regime tsarista. Pior ainda foi a situação no Império Otomano, que se estendia por grande parte do Oriente Próximo e do Oriente Médio, governado pelos turcos desde o século XV, embora então em declínio terminal. Segundo algumas estimativas, mais de 80 mil armênios foram mortos no Império Otomano entre 1894 e 1896, durante a brutal repressão do sultão Abdul-Hamid ii. A chacina, tolerada pela polícia, teve como motivo receios por parte dos turcos do crescente nacionalismo armênio, alimentado também por insatisfação econômica e por antagonismo religioso e classista. Os massacres de armênios prosseguiram de forma esporádica no Império Otomano. Em 1909, uma nova onda de assassinatos matou entre 15 mil e 20 mil armênios.

Grande parte da violência na Europa foi exportada. Mesmo em países onde havia uma relativa paz e prosperidade, as potências imperialistas usaram da força para impor seu domínio sobre territórios estrangeiros e povos subjugados. Quatro quintos do globo eram controlados, direta ou indiretamente, por Inglaterra, França e Rússia. Onde o domínio imperialista era desafiado, as reprimendas eram ferozes. Em 1900, o cáiser Guilherme ii recomendou que as tropas alemãs se conduzissem como os hunos de Átila ao reprimir a rebelião dos boxers, na China. Uma força internacional reunida em vários países europeus e com interesse direto na exploração econômica da China, juntamente com tropas americanas e japonesas, participou de atrocidades generalizadas, saques e estupros. De acordo com algumas estimativas, 100 mil chineses foram vítimas dos massacres.

A crueldade não tinha limites em alguns territórios coloniais. Entre 1885 e 1908, estima-se em 10 milhões o número de homens, mulheres e crianças da população nativa do Congo — na realidade um feudo pessoal do rei Leopoldo ii da Bélgica — mortos em atrocidades perpetradas por seus senhores coloniais, dedicados a tirar proveito da demanda mundial por borracha. Os britânicos, envolvidos numa guerra violenta de três anos, de 1899 a 1902, para derrotar os bôeres e impor seu controle total na África do Sul, lançaram mão de impiedosas táticas de terra arrasada para destruir os bens dos inimigos e criar o que chamaram de “campos de concentração”, nos quais internaram principalmente mulheres e crianças. Um quarto dos prisioneiros (seu número foi estimado em cerca de 28 mil, grande parte com menos de dezesseis anos de idade) morreu em decorrência das aterradoras condições de superlotação e insalubridade desses campos. E, a darmos crédito a algumas estimativas, no Sudoeste Africano (hoje Namíbia), 80% dos povos hereró e nama (num total aproximado de 65 mil pessoas) pereceram entre 1904 e 1907 de sede e fome nos desertos pra onde foram escorraçados pelas tropas coloniais alemãs, numa retaliação sistemática após a rebelião contra o domínio colonial. Um número ainda maior morreu em campos de trabalhos forçados (que os alemães, adotando a nomenclatura inglesa, tinham começado a chamar de “campos de concentração”).

À medida que cresciam as tensões entre as grandes potências, aumentavam as pressões para que se rearmassem e, concomitantemente, a admissão de que a capacidade de destruição dos novos armamentos resultaria numa devastação sem paralelo na história. Ninguém menos que o tsar da Rússia, Nicolau ii, convidou representantes dos governos de 26 países a uma conferência em Haia, em 1899, que teria o objetivo de preservar a paz e limitar os armamentos, como “um gesto de boa vontade para receber o novo século”. Não tardou para que os resultados — convenções sobre a solução de disputas internacionais, as leis da guerra, a proscrição de certos tipos de armas por um período de cinco anos — se revelassem inúteis. No entanto, essas medidas indicavam uma consciência de que a manutenção da paz na Europa era incerta, além de uma preocupação com a capacidade destrutiva dos modernos armamentos industriais. Havia uma percepção crescente da urgência da prevenção da guerra em si, mas também da imensa turbulência política e econômica que se seguiria ao conflito. A necessidade de manter a paz na Europa e de garantir a continuidade do crescimento econômico e da prosperidade ganhou novo alento. Entretanto, ao mesmo tempo que torciam pela paz, os governantes europeus se preparavam para a eventualidade da guerra. E, se ela fosse inevitável, desejavam vencê-la rapidamente.

ARRASTANDO-SE PARA A GUERRA?

Num texto famoso, o estadista britânico David Lloyd George declarou que em 1914 as nações europeias tinham “se arrastado em direção ao precipício e caído no caldeirão da guerra sem nenhum sinal de apreensão ou temor”. As palavras pungentes captam o impulso irreversível em direção à guerra na última semana de julho de 1914, e a sensação de que os acontecimentos tinham escapado ao controle de quem quer que fosse. Mas se equivocam ao deixar implícita uma atitude de despreocupação geral e ausência de receios. Tampouco devem ser entendidas no sentido de que a guerra chegara como um acidente, uma trágica sucessão de erros, um resultado que ninguém desejava, uma ocorrência imprevista e imprevisível. Ao contrário, apesar das esperanças genuínas, por parte da maioria das autoridades, de que fosse possível evitar um conflito armado, apesar da perplexidade, da hesitação, das profecias de ruína e do nervosismo de última hora, quando a guerra rebentou, a vontade de lutar superou o desejo de paz. Os governantes europeus contemplaram a perspectiva da guerra de olhos bem abertos.

As palavras de Lloyd George também dão a entender que não havia uma pressão óbvia em favor da guerra, que a responsabilidade pelo desastre foi genérica, e não específica. De fato, os governantes e diplomatas europeus agiam, coletivamente, como lemingues a migrar em massa para o precipício. De fato, havia mal-entendidos e uma desconfiança generalizada — nesse ponto, as personalidades dos principais atores políticos desempenharam um papel importante — que ajudaram a empurrar as grandes potências europeias para o abismo. Também é verdade que não havia uma pressão evidente para a guerra por parte de um único país, como aconteceria uma geração depois. E não há como negar que todas as grandes potências tinham alguma responsabilidade pelo que aconteceu. À medida que a crise chegava ao ponto de ebulição, a França incitava a postura cada vez mais belicosa da Rússia. A Inglaterra emitia sinais ambíguos, abstendo-se de agir de maneira a amenizar a situação e preferindo concordar com as medidas cada vez mais perigosas que culminaram na guerra. Contudo, apesar de tudo isso, não se pode afirmar que a responsabilidade pelos passos fatídicos que levaram à guerra em toda a Europa tenha se dividido igualmente entre todos.

A maior parte dessa responsabilidade recai sobre as potências cujos interesses e ambições inconciliáveis mais contribuíram para provocar uma guerra europeia generalizada e cuja temeridade diplomática durante a crise se valia, em última análise, da disposição de lançar mão de seu poderio militar. Quando se chegou ao ponto de ruptura, em julho de 1914, a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Rússia tinham sido as forças decisivas na crise. O papel da Alemanha foi o mais crucial de todos.

O país combinava suas ambições de ser a potência dominante no continente europeu com um medo cada vez maior, quase paranoico, de que a Rússia obtivesse ascendência e uma eventual hegemonia. Para garantir seus propósitos e afastar o perigo, a Alemanha estava disposta a correr o risco de uma conflagração geral na Europa. Em 6 de julho de 1914, deu uma garantia incondicional de apoio à Áustria-Hungria (o “cheque em branco”, como ficou conhecida). A medida foi tomada com base na presunção de que a ela se seguiria rapidamente uma ação limitada contra a Sérvia como punição pelo assassinato, por nacionalistas sérvios, do herdeiro do trono austríaco, o arquiduque Francisco Fernando, e de sua mulher, Sofia, durante uma visita oficial a Sarajevo em 28 de junho. Mas isso era apenas uma presunção. A garantia não impunha nenhum veto a medidas retaliativas da Áustria, ainda que fosse evidente o perigo de um conflito mais amplo e do envolvimento das grandes potências europeias. A pressão da Alemanha para que a Áustria desse um ultimato à Sérvia, o que fez em 23 de julho, sendo o ultimato projetado de forma a tornar impossível sua aceitação, foi decisiva para transformar uma questão inicialmente local numa crise europeia generalizada. O ultimato exigia sanções contra autoridades e militares sérvios ligados ao complô para o assassinato, a prisão de dois oficiais, indicados pelo nome, e a supressão da propaganda contra a Áustria. E a soberania sérvia foi ferida, sobretudo, com exigências de que representantes da Áustria-Hungria colaborassem na investigação do complô e na eliminação do movimento subversivo na Sérvia.

Com seu controle sobre os Bálcãs em perigo devido ao fortalecimento sérvio e com seu império multinacional cada vez mais ameaçado de desintegração, a Áustria-Hungria estava disposta a fazer a Europa mergulhar numa guerra para beneficiar seus próprios interesses, mas só se pudesse contar com o respaldo alemão. Os termos deliberadamente impraticáveis do ultimato da Áustria à Sérvia (sede da organização terrorista Mão Negra, que fornecera as armas para os assassinos de Sarajevo) foram apresentados com plena consciência de que a Rússia provavelmente apoiaria os sérvios, o que também elevava bastante as chances de uma guerra generalizada na Europa. E a Rússia, ansiosa por evitar o domínio dos Bálcãs pela Áustria-Hungria (o que atrapalharia suas ambições), reagiu exatamente dessa forma, oferecendo total apoio aos sérvios, sabendo que isso significava guerra não só contra a Áustria-Hungria, como também, mais provavelmente, contra a Alemanha; e que uma guerra com a Alemanha inevitavelmente arrastaria para o campo de batalha os franceses (já que era notório que os planos bélicos alemães previam atacar a França, bem como a Rússia) e, quase com certeza, os britânicos.

Foi a estratégia de alto risco da Alemanha, da Áustria-Hungria e da Rússia — permitir o agravamento da situação em vez de sanar um conflito essencialmente local, embora essa estratégia significasse uma guerra europeia total em favor de seus respectivos objetivos de poder — o que, em última análise, causou a catástrofe de 1914. E dessas três potências, como já se observou, cabe à Alemanha especial responsabilidade. Sem o “cheque em branco” com que garantiu seu apoio, a Áustria-Hungria não se atreveria a impor à Sérvia um ultimato tão inflexível. E, sem a agressiva intransigência austríaca, a Rússia não teria empenhado seu apoio à Sérvia, com todas as consequências que isso ocasionou. O “cheque em branco” foi o agente precipitante que tornou uma guerra europeia generalizada mais, e não menos, provável.

Em 1914, o equilíbrio cada vez mais instável entre as grandes potências — Inglaterra, França, Rússia, Alemanha e Áustria-Hungria —, ligadas por sistemas rivais de alianças, ainda se mantinha, embora a duras penas. Uma circunstância fatídica e de longa maturação, que levou a uma tensão crescente, foi a ambição da Alemanha de se tornar uma potência mundial, manifesta na década de 1890. Foi um desafio direto ao status de potência mundial da Inglaterra. A rivalidade entre esse país e a Alemanha aumentou. No entanto, na Europa continental, uma Alemanha forte (que estava aliada à Áustria-Hungria desde 1879 e à Itália desde 1882) representava maior ameaça para a França e a Rússia. O interesse comum provocou uma aproximação um tanto inesperada entre as duas nações — a primeira uma república, a segunda uma autocracia monárquica —, o que levou a uma aliança firmada em 1894, que visava diretamente a neutralizar o desafio da Alemanha. Pouco mais de dez anos depois, a posição alemã se fortalecera pela retumbante derrota da Rússia em 1905 — o que na época surpreendeu a muitos — para o Japão, a potência ascendente no Extremo Oriente, episódio que abalou as fundações do império tsarista. Foi por um triz que a autocracia sobreviveu à desordem interna que se seguiu à derrota. Notavelmente, porém, graças a uma bem planejada administração econômica e política, os anos seguintes foram de prosperidade para a Rússia. Com a ajuda de grandes empréstimos franceses, a economia cresceu a passos largos. A reconstrução das Forças Armadas progrediu rapidamente. E renasceram as antigas esperanças de ganhar o controle sobre o Bósforo, ao custo da desintegração do Império Otomano — uma perspectiva realçada pela acentuada melhora das relações com a Inglaterra.

As duas potências eram rivais tradicionais. Já fazia muito tempo que a Inglaterra estava atenta, a ponto de chegar à guerra na Crimeia, em 1854, à necessidade de evitar que a Rússia dominasse os estreitos turcos — de Bósforo e de Dardanelos, cruciais para o controle do Mediterrâneo e o acesso ao Oriente Médio — e de eliminar qualquer possível ameaça à Índia, sua colônia, decorrente da expansão russa na Ásia Central. Entretanto, a debilidade da Rússia depois da derrota para o Japão convenceu o regime tsarista a aproximar-se da Inglaterra, numa convenção celebrada em 1907, que estipulou suas respectivas áreas de influência na Pérsia, no Afeganistão e no Tibete — possíveis locais de conflito. Essa convenção afetava a Alemanha não de forma direta, mas indireta. O acordo entre a Rússia e a Inglaterra — firmado com base na anterior aliança franco-russa e na Entente Cordiale de 1904, entre a França e a Inglaterra (e voltada especificamente contra a Alemanha) — rearticulou a estrutura da política de poder na Europa. A Alemanha e seu principal aliado, a Áustria-Hungria (a Itália, que não chegava a ser grande potência, embora seus governantes tivessem essa pretensão, era um aliado menos digno de confiança), viram-se confrontados com a recém-criada (e surpreendente, à luz de inimizades passadas) entente formada por Inglaterra, França e Rússia. A compreensível sensação de que o Reich estava cercado de inimigos tornou-se ainda mais forte entre os alemães.

As alianças antagônicas, que o departamento do Serviço Exterior britânico via como uma força dissuasora da agressão (papel que mais tarde seria exercido pelo arsenal nuclear), acabaram determinando que a guerra, quando eclodisse, seria generalizada, e não local. Contudo, não foram as alianças que causaram a guerra. No decênio anterior, houve diversas crises que, embora graves, não levaram a ela. A tensão entre as grandes potências tinha sido aliviada com certa rapidez em 1905, quando a Alemanha desafiou as intervenções da França no Marrocos; novamente em 1908, depois da peremptória anexação, pela Áustria, da Bósnia-Herzegóvina (que formalmente ainda fazia parte do Império Otomano, embora estivesse ocupada pela Áustria nos últimos trinta anos); e em 1911, depois que os alemães provocaram os franceses ao despachar uma canhoneira para o porto marroquino de Agadir. Em 1912, a guerra realmente estourou nos Bálcãs, região cronicamente instável, quando uma aliança formada por Sérvia, Bulgária e Grécia (a chamada Liga Balcânica) procurou tirar proveito da fraqueza otomana. No ano seguinte eclodiu outra guerra entre os membros da Liga Balcânica, depois que a Bulgária atacou a Sérvia para se apoderar dos despojos da guerra do ano anterior, mas as grandes potências tomaram medidas para que o conflito regional não levasse a uma conflagração maior.

Não obstante, a tensão entre essas grandes potências era palpável. As guerras balcânicas tinham desestabilizado ainda mais uma região inflamável. Mais cedo ou mais tarde, outro choque repentino aconteceria. Ademais, enquanto a influência otomana nos Bálcãs vinha diminuindo havia muito tempo, a outra grande potência na região, a Áustria-Hungria, fora vista como passiva e débil durante as duas guerras, mesmo quando seus próprios interesses pareciam ameaçados. Por isso, ficou exposta a novos problemas nos Bálcãs. Os governantes russos, que ainda nutriam esperanças de um dia controlar os estreitos turcos e de proteger suas fronteiras ocidentais mediante a posse da Galícia (região da Polônia em poder dos austríacos), tomaram devida nota da fraqueza austríaca.

Uma guerra europeia estava longe de ser inevitável. Mas ninguém queria se arriscar por falta de preparo. Suspeitas mútuas levaram a uma intensa escalada da corrida armamentista. Os gastos de defesa entre as grandes potências elevaram-se de forma drástica — em 30% na Alemanha e em 50% na Rússia entre 1911 e 1913. A Alemanha e a Inglaterra destinaram recursos astronômicos para novos navios de guerra, numa competição para criar a Marinha mais poderosa. Cresceu enormemente o tamanho das forças terrestres. Quando os alemães aumentaram seu Exército, em 1913, os franceses fizeram o mesmo. Os russos, ainda sofrendo pela derrota para os japoneses em 1905, tinham reconstruído grande parte de seu Exército em 1913 e, como os alemães temiam, planejavam ampliá-lo ainda mais. A Áustria-Hungria ficou para trás, sem condições de ir além de uma guerra regional. Sua cota de recrutas fora fixada em 1889, e uma nova lei para aumentá-la foi aprovada tarde demais, em 1913, para compensar a diferença cada vez maior em relação aos outros Exércitos.

Mesmo assim, na Áustria-Hungria, como em todo o continente, o número de homens em idade militar treinados para o conflito foi altíssimo. Em 1914, milhões de homens, já servindo ou na reserva, estavam prontos ou sendo preparados para lutar. Ao todo, o Exército russo tinha 3,5 milhões de homens; o alemão, 2,1 milhões; o francês, 1,8 milhão; e o austro-húngaro, 1,3 milhão. A Inglaterra era a única grande potência sem uma grande massa de reservistas. Seu Exército, com cerca de 100 mil voluntários, treinados principalmente para atuar nas colônias, era minúsculo em comparação com os das demais grandes potências. Mas os britânicos tinham a Marinha Real, que lhe permitia dominar as rotas marítimas e constituía a base militar de seu domínio colonial, e também os meios para convocar um gigantesco número de recrutas em seu império colonial.

Muita gente imaginava que os controles e contrapesos que haviam mantido a Europa praticamente pacífica ao longo do século anterior continuariam a funcionar. Mas havia quem achasse que a guerra era inevitável e não tardaria, e não apenas em decorrência da militarização e do aumento da tensão. Isso era reflexo do temor das elites das grandes potências, para as quais seus países enfrentavam uma ameaça à sua existência e o tempo corria contra eles, o que significava que uma conflagração grave seria provável em algum momento. Fosse como fosse, não havia ninguém disposto a apostar alto na ideia de que a frágil paz europeia durasse indefinidamente.

Era essa a situação antes do assassinato do arquiduque Francisco Fernando, em 18 de junho de 1914. O nacionalismo sérvio se intensificara bastante depois que a Áustria anexara a Bósnia-Herzegóvina, em 1908. Nacionalistas radicais, alguns deles oficiais do Exército, tinham criado em 1911 uma organização secreta, a Mão Negra, cujo inspirador, Dragutin Dimitrijevic´ (vulgo Ápis), tornou-se o chefe do serviço de informações militares da Sérvia em 1913. O complô para matar o arquiduque tomou forma nas redes clandestinas controladas por ele. Para a execução do atentado recrutaram-se vários jovens bósnios, um dos quais seria o futuro assassino, Gavrilo Princip. Longe de opor-se às minorias eslavas, o alvo da trama, Francisco Fernando, herdeiro do trono imperial, desejava dar maiores poderes aos “eslavos do sul” a fim de estabilizar o império. Todavia, os radicais sérvios viam essa perspectiva como uma ameaça às suas ambições nacionalistas. O assassinato seguiu-se a um incidente bizarro durante a visita oficial do arquiduque e de sua mulher a Sarajevo. O motorista da limusine aberta dele entrou, por engano, numa rua estreita. Quando tentou dar marcha a ré, o motor do veículo morreu, e isso, inesperadamente, deu a Princip uma oportunidade magnífica para corrigir uma malfadada tentativa anterior, por parte de outro membro do grupo de sete nacionalistas sérvios fanáticos. Ainda assim, não havia nenhuma razão óbvia para que o assassinato de Francisco Fernando (e de sua mulher) deflagrasse uma guerra generalizada na Europa. Pouco antes, houvera outros assassinatos, até de reis, que não provocaram um grande conflito. O presidente francês Sadi Carnot tinha sido assassinado em 1894; o rei italiano Umberto i fora baleado e morto em 29 de julho de 1900; o rei sérvio Alexandre e sua mulher haviam sido assassinados em 11 de junho de 1903; e o rei Jorge i da Grécia também fora morto em 18 de março de 1913. Na verdade, a possibilidade de que o assassinato de Francisco Fernando causasse uma guerra generalizada parecia remota quase até o fim de julho de 1914.

Passaram-se mais de três semanas desde o atentado de Sarajevo antes que a pressão indicativa de uma grave tensão diplomática passasse a subir de forma considerável. Só na última semana de julho os mercados financeiros de Londres começaram a dar sinais de inquietação quanto à perspectiva de guerra. E mesmo então houve indícios de confiança em que o pior seria evitado. Em 30 de julho, o líder socialista francês Jean Jaurès comentou: “Haverá altos e baixos. Mas é impossível que as coisas não saiam bem”. No dia seguinte, 31 de julho, ele foi baleado mortalmente por um ultranacionalista demente que o considerava um traidor que deveria ser morto. Sua “traição” fora lutar pela paz internacional.

Uma reação austríaca óbvia ao assassinato de Francisco Fernando teria sido obter “satisfação” por meio de um breve ataque “punitivo” à Sérvia — tida como responsável pelo assassinato e cujo Exército sofrera graves perdas nas recentes guerras balcânicas. Com toda a probabilidade, as demais potências teriam aceitado isso como uma razoável retaliação pela morte do herdeiro do trono dos Habsburgo. Havia, de fato, quase uma presunção de que seria uma resposta natural e justificada. Em Viena, mas não só lá, a retaliação era considerada uma questão de prestígio, necessária para confirmar o status da monarquia Habsburgo como uma grande potência. Cerca de três semanas depois do assassinato, os governantes alemães, em particular, julgavam que uma guerra localizada seria a única consequência.

Entretanto, mesmo uma ação limitada como essa levaria muito tempo para ser organizada. A pesada máquina governamental, diplomática e militar do império multinacional levava tempo para começar a funcionar. Enquanto o belicoso chefe do Estado-Maior, o conde Franz Conrad von Hötzendorf, apoiado pelo ministro do Exterior austríaco, o conde Leopold Berchtold, insistia numa guerra imediata contra a Sérvia, o chefe do governo na metade húngara do império, o conde István Tisza, recomendava cautela, por temer “a pavorosa calamidade de uma guerra europeia”. A falta de união entre os líderes do Império Austro-Húngaro foi, precisamente, o motivo para que se buscasse uma garantia por parte dos alemães. Os austríacos julgavam o Exército alemão invencível; seu apoio era uma garantia sólida, mesmo que uma ação contra a Sérvia não redundasse numa guerra continental. E os austríacos tinham a impressão, vinda de Berlim, de que, se a guerra fosse inevitável, a ocasião não poderia ser mais propícia.

Entretanto, o Império dos Habsburgo só conhecia duas velocidades: lento e parado. Na época, muitos homens que deveriam estar no Exército se faziam ainda mais necessários, e com urgência, na colheita. Por isso, uma reação imediata era impossível. Dois dias depois do assassinato, alguém observou que seria preciso esperar pelo menos mais dezesseis dias para mobilizar as Forças Armadas para um ataque à Sérvia. E sucedeu que a demora da resposta austríaca representou um lento estopim que, por fim, levou todas as grandes potências a se envolverem. À medida que a crise se aprofundava, as ações iam sendo afetadas por subjetivismos, metas, ambições e receios que vinham se formando havia muito tempo.

A Alemanha, um país unificado apenas em 1871, porém com a mais robusta economia industrial do continente, tinha ambições e estava ansiosa para ganhar “um lugar ao sol”, tornando-se uma potência mundial capaz de rivalizar com o Império britânico em status e influência. Ao mesmo tempo, a Alemanha temia muitíssimo que o tempo não corresse a seu favor e que o poderio militar combinado de seus inimigos pudesse barrar suas ambições. O chefe do Estado-Maior Geral, o marechal de campo Helmuth von Moltke, deixara claro já em 1912, na presença do cáiser, que via a guerra como inevitável, “e quanto mais cedo melhor”. Instava a imprensa a insuflar sentimentos antirrussos para que o povo apoiasse a guerra quando chegasse. Moltke era o principal proponente de uma guerra preventiva — um ataque antes que a Alemanha pudesse ser atingida, pela Rússia, pela França ou por ambas em aliança. Nas semanas que antecederam a guerra, ele continuou a argumentar que a Alemanha tinha de garantir que o conflito, inevitável, deveria ocorrer enquanto tinha condições de vencer. Segundo consta, teria afirmado, em maio de 1914, que a Rússia completaria seu programa armamentista dentro de dois ou três anos, e o poderio militar dos inimigos da Alemanha seria então de tal magnitude que não poderia contê-lo. A única possibilidade, concluiu, seria “levar a cabo uma guerra preventiva para esmagar o inimigo enquanto ainda pudéssemos, em alguma medida, ter sucesso na luta”.

Embora ocupasse o mais alto posto na hierarquia militar alemã, o sombrio e pessimista Moltke não traçava a política de governo. E Bethmann-Hollweg, chanceler do Reich, tinha dúvidas reais e cada vez maiores quanto às consequências de uma guerra. Ele via o conflito como um “salto no escuro”, que só deveria ser dado “em último caso”. Chegou a prever, contrariando o que alegavam alguns alemães mais belicosos, que a guerra, longe de destruir a social-democracia e eliminar sua ameaça à ordem social existente, na realidade a fortaleceria, “e derrubará vários tronos”. Perto do fim de julho, quando a crise entrava em sua fase final e suas próprias iniciativas políticas tinham fracassado, Bethmann-Hollweg tentou “puxar os freios com toda a sua energia”, já que visivelmente perdia terreno para a liderança militar. Ainda assim, não descartava por inteiro o argumento do Estado-Maior Geral: com o passar do tempo, a posição militar da Alemanha só poderia tornar-se menos favorável, enquanto a da Rússia ficaria imensuravelmente mais forte, e era melhor, portanto, ter a guerra “não mais tarde, mas agora”, quando a vitória podia ser alcançada rapidamente, em vez de esperar e ver as condições se agravarem. Como a Rússia estava aliada à França, o grande inimigo da Alemanha no Ocidente, a essa altura o medo do cerco era geral.

Na Alemanha, o governo civil, e não a liderança militar, ainda detinha o poder de decisão no tocante a questões políticas até a mobilização russa em 30 de julho, quando a guerra se tornou inevitável. Mesmo assim, em nenhum outro país europeu os militares tinham tanta autonomia em relação ao governo civil como na Alemanha. E quando a crise chegou ao clímax, no fim de julho, a influência de Moltke e do Estado-Maior se mostrou decisiva. Imperativos militares levaram a melhor sobre a iniciativa política. O cáiser, que às vezes parecia concordar com a análise de Moltke, era, apesar de toda a sua bazófia belicosa, um homem hesitante que se amedrontou durante a crise e, no último momento, tentou fugir da guerra. Contudo, na realidade, o cáiser não estava em condições de controlar forças muito mais poderosas do que ele. O planejamento militar alemão foi rígido quanto à sua decidida estratégia de derrotar os franceses rapidamente antes de voltar-se contra os russos. Por isso, quando, em 30 de julho, o cáiser exigiu que Moltke cancelasse o ataque à França (na esperança de que isso garantisse a neutralidade britânica) e redirecionasse todo o Exército contra os russos, o chefe do Estado-Maior respondeu, sem titubear, que isso não poderia ser feito, pois transformaria o Exército bem treinado em pouco mais que uma “horda caótica”. A ação militar, declarou Moltke, era resultado de anos de planejamento e não podia ser mudada de um momento para o outro. Durante a crise, longe de determinar a política, o cáiser só pôde reagir às decisões de seu governo e, em última análise, aos imperativos de suas Forças Armadas.

Até a posição de Moltke ser enfim aceita, quando os acontecimentos chegaram ao clímax no fim de julho, as ações do governo alemão tinham sido moldadas por seu grave erro político anterior — dar carta branca à Áustria para lidar com a crise sérvia —, o que acabou por criar o risco de uma guerra continental. Esse erro colossal obrigou a Alemanha a passar o mês de julho basicamente reagindo a fatos gerados por outros países — que rapidamente fugiam ao controle de todos.

Os interesses no longo prazo da Rússia voltavam-se para o controle dos estreitos turcos, vitais para o comércio e, como controlavam o acesso ao mar Negro, para sua segurança no sul. Os russos não podiam permitir que nenhuma outra potência dominasse a região. Ao se tornar cada vez mais evidente a debilidade do Império Otomano, a principal ameaça aos seus interesses nos Bálcãs vinha claramente da Áustria-Hungria. Membros mais belicosos da liderança naval chegaram a debater uma guerra prévia para tomar Constantinopla (como os russos ainda chamavam Istambul) e os estreitos antes que os turcos recebessem os cinco encouraçados novos que haviam encomendado (aos britânicos). No entanto, essas ideias tiveram pouco ou nenhum efeito na formulação das ações russas durante a crise de julho. Os preparativos militares da Rússia não estariam concluídos antes de 1917. Não se previa nenhum confronto iminente com a Alemanha em 1914 — quer dizer, até os termos do ultimato austríaco à Sérvia se tornarem conhecidos, em 24 de julho. Desse momento em diante, o apoio da Rússia à Sérvia significou que era literalmente impossível evitar o mergulho numa guerra continental generalizada. As considerações de prestígio por si só eram suficientes para que nenhum lado pudesse pensar em voltar atrás.

A Áustria-Hungria, a mais fraca na tríade de grandes potências cujas ações prepararam o caminho para a guerra em julho de 1914, agiu principalmente por medo de seu próprio futuro. A instabilidade nos Bálcãs (ampliada pela erosão da influência otomana), os temores de perder o domínio na região para os russos (ressentidos pela anexação da Bósnia-Herzegóvina pela Áustria em 1908) e a crescente assertividade da Sérvia, que tinha atrás de si a sombra do apoio russo, causavam muita preocupação nos corredores do poder em Viena. Por isso, em julho de 1914, esmagar a Sérvia era uma ideia tentadora — desde que o apoio alemão estivesse garantido e uma guerra limitada pudesse ser levada a cabo com êxito e rapidez. Mas não houve uma retaliação rápida ao assassinato de Francisco Fernando. Em vez disso, o ultimato de 23 de julho foi um convite para o envolvimento da Rússia (e da Alemanha e da França) no conflito que se avizinhava.

Já em 6 de julho, a Alemanha manifestara seu apoio incondicional à ação da Áustria contra a Sérvia, tida como inteiramente justificada. A Sérvia tinha como opção recuar ou ser punida militarmente. Em função disso, a posição nos Bálcãs do principal aliado da Alemanha se fortaleceria. Não se imaginava que a Rússia interviesse. Por acaso o tsar daria apoio a assassinos de monarcas? E o país, julgava-se, ainda estava despreparado militarmente para a guerra. As outras potências assistiriam aos acontecimentos e aceitariam o fato consumado. O quanto os cálculos políticos da Alemanha eram questionáveis logo se tornaria claro. Entretanto, assim que deu seu “cheque em branco”, percebeu-se que, na verdade, tais cálculos eram falhos e envolviam graves riscos. O próprio chanceler, Bethmann-Hollweg, reconheceu que “uma ação contra a Sérvia pode levar à guerra mundial” e que isso viraria “tudo o que existe de cabeça para baixo”.

Mais hesitações em Viena fizeram com que as esperanças alemãs de um desfecho rápido para uma crise localizada estivessem condenadas logo de saída. O texto de um duro ultimato aos sérvios só foi dado como finalizado em 19 de julho, e mais quatro dias transcorreram antes que fosse apresentado. Três semanas e meia já tinham se passado desde o atentado em Sarajevo. A resposta sérvia poderia ser esperada para dali a mais 48 horas. Cumpre observar que, temendo o pior, ou seja, um ataque austríaco, os sérvios de início se prepararam para curvar-se aos termos hostis. Isso foi antes que os russos, cientes havia dias dos termos inflexíveis do ultimato devido a um vazamento, endurecessem a resolução sérvia. Os próprios governantes russos tinham sido incentivados a assumir uma postura dura com a Áustria e a pôr-se ao lado da Sérvia, quaisquer que fossem as circunstâncias, graças ao firme apoio de sua aliada, a França, durante uma visita oficial do presidente Poincaré e do primeiro-ministro Viviani a São Petersburgo entre 20 e 23 de julho.

O presidente francês, que quando menino assistira à invasão prussiana de sua nativa Lorena, se ressentia dos alemães. Havia apoiado a ideia de uma intervenção russa nos Bálcãs em 1912 ciente de que isso provocaria um conflito com a Alemanha. Na época, como em 1914, era do interesse da França um enfraquecimento da posição alemã na Europa, devido a um choque militar com a Rússia. Em 1912, a Rússia preferira manter-se fora do conflito balcânico. Dessa vez, São Petersburgo achou que seria um equívoco ficar de fora. O apoio à Sérvia promoveria os interesses estratégicos da Rússia. Se isso significava guerra, com a Alemanha obrigada a combater em duas frentes, os membros mais belicosos do governo acreditaram que se tratava de um conflito de que sairiam vitoriosos. Essa decisão fez com que as opções diminuíssem rapidamente. Depois do ultimato austríaco, os acontecimentos se precipitaram. Uma guerra generalizada começou a se tornar mais, e não menos, provável. A essa altura, porém, poderia ter sido evitada. Só não havia a vontade necessária para isso.

“Isso significa guerra na Europa”, foi a resposta no dia seguinte do ministro do Exterior russo, Serguei Sazonov, ao ultimato austríaco. Pouco depois, ele acusou os austríacos de provocarem a guerra deliberadamente, dizendo a seu embaixador: “Os senhores estão ateando fogo à Europa”. Entretanto, como Sazonov sabia muito bem, as ações dos próprios russos estavam ampliando as chances de o continente se inflamar. Antes mesmo que expirasse o prazo do ultimato austríaco, já em 24 de julho, a Rússia havia retirado todos os depósitos do Estado em Berlim, no montante de 100 milhões de rublos. E mais: decidira começar, em segredo, a mobilização parcial do Exército (o que envolvia mais de 1 milhão de homens) e das frotas do Báltico e do mar Negro. Em 25 de julho teve início o “período preparatório de guerra”. Os movimentos das tropas logo fizeram com que os alemães tomassem ciência da mobilização secreta, muito embora ela só fosse anunciada em 28 de julho. Foi nessa data que a Áustria por fim declarou guerra à Sérvia.

Daí em diante o impulso para a guerra geral mostrou-se irreversível. Houve manobras diplomáticas, frenéticas e inúteis, algumas mais autênticas do que outras, para prevenir uma guerra continental. Era tarde demais. As esperanças alemãs de que uma ação austríaca contra a Sérvia pudesse ser limitada e localizada tinham evaporado havia muito tempo. Ainda assim, cinco dias depois da decisão russa de começar a mobilização em segredo, a Alemanha ainda não tomara nenhuma medida militar decisiva. Em 29 de julho, Berlim ainda hesitava quanto a ordenar um “estado de perigo iminente de guerra” (a última medida antes da mobilização total). Nessa noite, porém, o governo russo se decidiu pela mobilização geral. No dia seguinte, 30 de julho, depois de um período de hesitação em que primeiro confirmou a ordem e depois, numa crise de nervos, cancelou-a, o tsar concordou com a plena mobilização.

Por fim, os imperativos militares suplantaram as considerações diplomáticas em Berlim. O “estado de perigo iminente de guerra” foi declarado em 31 de julho. Uma preocupação central dos alemães era garantir que os sociais-democratas, cujo espectro de defensores incluía fortes componentes pacifistas, apoiassem a guerra. Era essencial, pois, que a Alemanha desse a impressão de estar sendo forçada a uma guerra defensiva. A mobilização geral russa proporcionou essa justificativa. O chanceler Bethmann-Hollweg manifestou satisfação pelo fato de os russos aparecerem agora como a parte culpada, antes de acrescentar em tom fatalista: “As coisas saíram do controle e a pedra começou a rolar”. Em 31 de julho, à meia-noite, a Alemanha deu à Rússia um ultimato com prazo de doze horas no qual estipulava a mobilização geral alemã se o país se recusasse a retirar sua ordem de mobilização. Ao expirar o prazo do ultimato, em 1o de agosto, sem que nenhuma medida fosse tomada em São Petersburgo, a Alemanha declarou guerra à Rússia. No mesmo dia, a França mobilizou suas Forças Armadas em apoio à Rússia. Dois dias depois, em 3 de agosto, a Alemanha declarou guerra à França.

A Inglaterra, mais preocupada com a possibilidade de uma guerra civil na Irlanda do que com a crise que se agigantava no continente, não se mostrara muito inclinada ao belicismo enquanto crescia a pressão para a guerra. Dentre todas as grandes potências, era a que menos tinha a ganhar com uma guerra na Europa. Os governantes do país estavam mais do que cientes de que, como dissera Sir Edward Grey, o secretário do Exterior, em 23 de julho, a guerra “envolveria o gasto de uma soma de dinheiro tão vasta e tal interferência no comércio” que teria como resultado “um completo colapso do crédito e da indústria europeias”. E profetizara: “Independentemente de quem forem os vencedores, muitas coisas chegarão ao fim”. Como Grey, os demais membros do gabinete britânico temiam as consequências da guerra e esperavam que a paz fosse preservada. Durante a semana seguinte, o secretário do Exterior tentou, hesitante, explorar as possibilidades de um acordo mediado para a crise. Os termos da entente com a Rússia e a França não obrigavam a Inglaterra a intervir, e Grey continuou a proteger os interesses britânicos. Uma firme declaração de neutralidade por parte da Inglaterra, que os alemães desejavam (embora não esperassem), poderia, mesmo naquele momento já tão adiantado, ter evitado a guerra generalizada. Entretanto, a hesitação de Grey fez desaparecer a margem para iniciativas diplomáticas. E, em última análise, a Inglaterra não podia correr o risco de um domínio do continente pela Alemanha. Essa foi a principal razão pela qual o país se dispôs a lutar. Além disso, havia no governo britânico e também na oposição pessoas que viam o apoio à França e à Rússia como uma questão de honra e prestígio. Sir Eyre Crowe, uma voz influente na secretaria do Exterior, argumentou que a Inglaterra não podia dar-se ao luxo de permanecer fora de uma grande guerra sem ver diminuído seu papel como grande potência.

Por fim, depois que tropas alemãs cruzaram a fronteira da Bélgica, um ultimato britânico exigiu que a Alemanha respeitasse a neutralidade belga. Como esse ultimato deixou de ser atendido à meia-noite de 4 de agosto, a Inglaterra declarou guerra. Ironicamente, a Áustria-Hungria, aquela cujas ações tinham precipitado a crise, foi a última das grandes potências a entrar no conflito, só declarando guerra à Rússia em 6 de agosto. A França declarou guerra à Áustria-Hungria cinco dias depois, e a Inglaterra, por fim, um dia mais tarde. A Sérvia, que motivara a centelha inicial do conflito, só veria guerra em seu próprio território catorze meses depois. Contudo, a Sérvia era agora um ator secundário, e o espetáculo principal estava para começar.

O que esses passos fatídicos em direção à guerra ocultavam era o temor. Cada uma das potências sentia medo por seu próprio futuro, em parte moldado por pressões internas no sentido de democratização e socialismo, ou, sobretudo no caso da Áustria-Hungria, por ruidosas demandas nacionalistas que poderiam acabar cindindo o império (o que de fato aconteceu). No entanto, o que cada uma das grandes potências mais temia, na realidade, era o poderio das demais. A Alemanha receava ficar cercada por seus inimigos, a França e a Rússia. Temia em especial a Rússia e a perspectiva de ter seu poderio militar superado pelo do regime tsarista, o que suporia um futuro domínio russo dos Bálcãs, área tida como vital para a expansão da influência alemã. A Rússia, por sua vez, temia que a Alemanha viesse a controlar os Bálcãs, o Oriente Próximo e sua crucial corda de segurança econômica, o Bósforo. A França, invadida pela Prússia pouco mais de quarenta anos antes, em 1870, nutria um medo quase paranoico da Alemanha. A Inglaterra temia a perda de seu predomínio comercial e a supremacia alemã na Europa. O controle alemão das costas belga e francesa, do outro lado do Canal da Mancha, era uma ideia intolerável. O medo impulsionava a corrida armamentista. Impelia também a disposição de agir antes que fosse tarde demais, tirar partido da oportunidade antes do inimigo, aproveitar o momento. E todas as grandes potências tinham em comum um mesmo medo: o da vergonha de recuar à beira do abismo.

A disposição de arriscar-se à guerra era incentivada pela convicção de todas as partes envolvidas de que o conflito seria breve. Talvez isso fosse menos uma convicção do que uma esperança disfarçada de expectativa, que fugia da reflexão sobre o que viria a acontecer se não fosse esse o caso. Poucas autoridades em cada país — não mais que meia dúzia de pessoas por potência — manifestavam apreensão em relação às graves consequências da guerra. Quaisquer que fossem seus medos, agiam como se estivessem seguros de que o conflito seria breve. Não que os governantes dos países europeus, ou seus conselheiros militares, ignorassem a capacidade altamente destrutiva da moderna artilharia ou a elevada taxa de mortalidade esperada numa nova guerra ao mandar a infantaria enfrentar o fogo de metralhadoras. Meio século antes, a Guerra de Secessão, nos Estados Unidos, dera uma ideia do morticínio que se poderia esperar. Mas pouca atenção fora dada a isso na Europa. Tampouco os 184 mil mortos na Guerra Franco-Prussiana, em 1870-1, tinham deixado uma mensagem clara. No máximo, levava a crer que o elevado poder de destruição dos armamentos modernos produziria resultados rápidos. Afinal de contas, embora aquela guerra tivesse durado dez meses, a batalha crucial, em Sedan, ocorrera apenas seis semanas depois de iniciado o conflito. Mais recentemente, observadores tinham dado ampla divulgação ao enorme número de baixas da Guerra Russo-Japonesa de 1904-5. Mas ela também fora breve — durara pouco mais de um ano.

Com base em experiências relativamente recentes, podia-se prever outra guerra curta. Por isso, em vez de serem dissuadidos pela perspectiva de um conflito prolongado e por um impasse marcado por massacres, os conselheiros militares europeus estavam tão impressionados pelos avanços na tecnologia e no poder de fogo que imaginaram que uma ofensiva rápida e móvel, mesmo que acompanhada de pesadas baixas, conduziria a uma vitória rápida. Os estrategistas militares alemães eram os que mais seguiam essa linha. Era preciso evitar a todo custo uma prolongada guerra de atrito, reconheciam, uma vez que a aliança inimiga era numericamente superior e poderia sufocar o esforço de guerra do Reich com um bloqueio naval britânico. O Estado-Maior alemão, responsável pelo planejamento militar, concluiu então que quanto mais rápida e devastadora fosse a ofensiva, mais provável seria a derrota do inimigo antes que houvesse tempo de mobilizar forças de defesa adequadas — e mais depressa, portanto, a guerra acabaria.

Moltke adaptou uma variante do plano imaginado em 1905 por seu predecessor como chefe do Estado-Maior, o general Alfred Graf von Schlieffen, que propunha uma guerra em duas frentes, prevendo um avanço inicial acelerado para oeste, destinado a nocautear os franceses com uma ofensiva rápida e fortíssima, e depois a volta para derrotar o inimigo no leste antes que os russos pudessem atacar. Schlieffen calculara que uma ofensiva vitoriosa poderia durar mais ou menos um mês. No entanto, os franceses estavam bastante atentos ao perigo e, com um exército de campanha de dimensões comparáveis, preparavam-se para resistir ao ataque com enormes ofensivas. Os russos também pensavam em termos de grandes ofensivas contra a Galícia austríaca (para azar dos franceses, uma ofensiva contra os alemães na Prússia oriental estava subordinada a esse objetivo principal) para chegar aos Cárpatos. Também os austríacos imaginavam que o ataque era a melhor forma de defesa. Entretanto, admitiam que, embora pudessem atacar os sérvios, uma investida contra os russos só poderia ser empreendida com um devastador avanço alemão contra o inimigo oriental. Cada um dos adversários continentais presumia para si a iniciativa da ofensiva. Esse, acreditavam, era o caminho para uma vitória rápida e decisiva. Não havia previsão de retirada. O que aconteceria no caso de não se obter uma vitória rápida era inimaginável. Só poderia significar uma longa guerra de atrito — e o triunfo final caberia à aliança com maior capacidade econômica e militar.

A convicção de que a guerra era necessária e justificada, bem como o consolo de que seria curta — uma aventura breve, excitante e heroica —, acompanhada de uma vitória rápida e com poucas baixas, foi muito além das classes dominantes europeias e penetrou em amplos segmentos da população. Isso ajuda a explicar por que tanta gente, em cada um dos países participantes, se mostrava tão entusiasmada, até eufórica, à medida que a tensão — não experimentada no nível das pessoas comuns antes da última semana de julho — se acumulava e, por fim, rebentava numa guerra em grande escala. Com certeza, tal crença estava longe de ser universal, e o entusiasmo era muito mais limitado do que poderia parecer à primeira vista. Na realidade, havia um amplo espectro de emoções, que diferiam de acordo com países, regiões, classes sociais e posições políticas, variando de histeria pró-guerra a intenso pacifismo, de euforia bélica a profunda angústia. Não há como negar, porém, a existência de um júbilo generalizado, ao menos em certos setores da população das grandes capitais da Europa diante da iminente perspectiva de guerra.

Em Viena, o embaixador britânico referiu-se às “vastas multidões” que, num “frenesi de alegria”, desfilavam pelas ruas “entoando canções patrióticas até as primeiras horas da manhã” quando foram rompidas as relações com a Sérvia. Mais tarde, o escritor pacifista austríaco Stefan Zweig narrou que ele próprio se sentira dominado por um clima que se transformara em entusiasmo patriótico. “Havia desfiles nas ruas, bandeiras, fitas, e a música vinha de todas as direções, com jovens recrutas marchando, triunfantes, com o rosto atiçando as aclamações.” Zweig admitiu que seu “ódio e aversão à guerra” tinham sido temporariamente superados pelo que julgou ser “majestoso, arrebatador e até sedutor”. O “ânimo guerreiro”, logo que foi aceita a ideia de que o conflito seria uma luta de proteção contra a tirania tsarista, predominou sobre os protestos iniciais por parte dos socialistas austríacos contra iniciativas que ameaçavam a paz.

Em Berlim, cerca de 50 mil cidadãos, principalmente de classe média e estudantes, reuniram-se diante do palácio real em 31 de julho, quando saiu a notícia da mobilização russa, para ouvir o cáiser declarar que “no conflito que se aproxima, não tenho mais conhecimento de partidos entre meu povo. Agora, entre nós só há alemães”. Em bares, cafés e cervejarias, as pessoas ficavam de pé para entoar canções patrióticas. Rapazes desfilavam nas ruas, exigindo guerra. Em outras cidades alemãs havia manifestações jubilosas em favor da guerra. Da varanda do Palácio de Inverno, em São Petersburgo, o tsar Nicolau saudou uma imensa multidão que, como se seguisse ordens, ajoelhou-se diante dele, agitando bandeiras e cantando o hino nacional. Em Paris houve uma efusão de fervor patriótico quando o presidente Poincaré proclamou a superação das divisões internas numa “união sagrada” de franceses. Os socialistas juntaram-se à multidão. A ameaça externa fez com que a fúria da classe trabalhadora pelo assassinato de Jaurès se abatesse em vista da necessidade de união patriótica e resistência à agressão alemã.

Anos de doutrinação nacionalista em escolas e universidades, durante o serviço militar, em organizações patrióticas e grupos de lobby, bem como na imprensa popular, tinham cumprido sua tarefa e gerado essas emoções extraordinárias. Na classe alta e na média, em especial, e entre intelectuais e estudantes, o fervor nacionalista prevalecia amplamente. Além disso, para muita gente a guerra era bem-vinda como uma regeneração nacional, como uma libertação do que se julgava ser a decadência moral da sociedade contemporânea. Na Itália, o Manifesto Futurista expressara isso de forma expressiva e radical em 1909: “Queremos glorificar a guerra, a única fonte de higiene no mundo — o militarismo, o patriotismo, o ato de destruição”. Ela era vista como atividade heroica, aventureira, viril — o antídoto para o declínio nacional. Havia uma sensação de unidade no país, com as divisões internas temporariamente superadas. Para os intelectuais alemães, parecia a personificação do “espírito de 1914”, quase uma sensação de despertar religioso. Ela fortalecia a ideia de que a cultura alemã não era apenas diferente, mas superior à francesa, que tinha raízes na revolução e no republicanismo, e estava muitíssimo acima da democracia materialista britânica. Os valores da cultura superior precisavam ser defendidos e, se necessário, impostos à força ao resto da Europa.

Nem essa sensação de superioridade, grandiosa e intelectualizada, nem o entusiasmo mais amplo pela guerra representava de forma correta ou plena a postura da população como um todo. O júbilo ante a perspectiva de guerra limitava-se em grande parte às cidades grandes. Mesmo nelas, porém, estava longe de ser universal. O filósofo pacifista Bertrand Russell mais tarde afirmou ter testemunhado em Londres, atônito, “que homens e mulheres comuns se mostravam felizes com a perspectiva de guerra”. Contudo, segundo indicadores da época, o que havia em Londres e em outras regiões da Inglaterra era um clima de ansiedade e nervosismo, e não de entusiasmo jingoísta, que parece ter se limitado em grande parte a setores da classe média, sobretudo entre os jovens.

O fervor patriótico de grupos de estudantes no centro de Berlim não encontrou eco entre os trabalhadores das áreas industriais da cidade. Nelas predominava o sentimento de oposição à guerra — ou pelo menos o nervosismo diante da perspectiva combinado com o desejo de manutenção da paz. Também no interior do país, o entusiasmo bélico tinha pouco curso. A imprensa relatou que “muitas de nossas famílias camponesas estão acabrunhadas e tomadas de enorme tristeza”, e que a população rural não via muito motivo de alegria quando pais, filhos, irmãos ou netos podiam perder a vida. Muitas vezes os camponeses russos não faziam ideia do motivo por que estavam lhes pedindo que lutassem. Em vilarejos franceses houve choque, pessimismo e aceitação fatalista do cumprimento do dever, mas nenhum sinal de júbilo quanto à declaração de “união sagrada” de Poincaré.

Na classe operária industrial e principalmente entre os trabalhadores ligados a partidos socialistas e a sindicatos — internacionalistas e com tendência ao pacifismo —, o ultranacionalismo jingoísta e o entusiasmo aberto pela guerra eram relativamente pouco visíveis. No entanto, mesmo entre eles quase não havia oposição à guerra. A resistência à convocação foi mínima em todos os países. O senso de dever ou uma aceitação fatalista bastavam, mesmo quando não havia entusiasmo. Apenas 1,5% dos que foram mobilizados na França resistiram à convocação. O governo especulava uma resistência de 13%. Os sindicalistas alemães concordaram em suspender as greves durante a guerra. Nos parlamentos de Alemanha, França e Inglaterra, os socialistas votaram a favor da concessão de recursos ao governo para a guerra. Na Rússia, os socialistas se abstiveram (embora os cinco membros bolcheviques da Duma votassem contra e depois fossem presos).

O que convenceu os partidários do socialismo internacional a apoiar a guerra nacionalista foi a convicção de que ela era defensiva e inevitável. O conflito era visto como algo que, relutantemente, tinha de ser enfrentado, e como uma guerra pela liberdade, não para domínio imperialista. Gerações posteriores o veriam, em retrospecto, como um desperdício sem propósito de vidas humanas numa escala imensa. Em agosto de 1914, não parecia, em absoluto, despropositada. Os trabalhadores estavam dispostos a lutar — e morrer — por seu país, ao lado de seus compatriotas e aliados, naquilo que consideravam uma guerra justa de autodefesa contra a agressão por parte de inimigos externos. Como reservistas, tinham sido doutrinados em patriotismo e disciplina. Agora se revelavam, em primeiro lugar, patriotas; em segundo, socialistas.

Na Alemanha, a defesa contra as forças da detestada autocracia tsarista motivava e unia os socialistas. Nos últimos dias de julho, os sociais-democratas tinham organizado grandes comícios contra a guerra em cidades alemãs, a que compareceu, segundo estimativas, cerca de meio milhão de manifestantes pela paz. Não obstante, eles faziam questão de ressaltar que os trabalhadores estavam prontos a defender a pátria em sua hora de necessidade. Essa necessidade era uma “guerra contra o tsarismo”. Quando a Alemanha declarou guerra, depois da mobilização russa, a situação mudou de repente, e o clima passou a ser de defesa patriótica. Na Áustria, os socialistas germanófonos apoiavam a guerra pela mesma razão. Também os socialistas russos, ignorando a postura antibélica dos bolcheviques, cerraram fileiras em torno da defesa da “Mãe Rússia” contra os alemães, que “pisoteavam todas as regras da humanidade”. As greves foram interrompidas, e os pacifistas e internacionalistas, obrigados a se exilar. Os socialistas franceses sentiam o mesmo em relação à defesa da patrie contra a invasão dos odiados alemães. O Partido Trabalhista Britânico também aceitou que a guerra tinha de ser travada até a derrota da Alemanha.

Em todos os países, os jornais estimulavam a histeria contra os estrangeiros. A bem da verdade, algumas pessoas resistiram a isso. Contudo, a imaginação vívida, incitada pela imprensa, fazia aparecer espiões e quintas-colunas em toda parte. Qualquer pessoa com nome ou sotaque estrangeiro corria risco. Aqueles cujo sotaque germânico revelava serem alsacianos podiam ser agredidos por franceses. Duas mulheres que conversavam em francês em Munique tiveram de ser protegidas pela polícia. Turbas patriotas em São Petersburgo depredaram a embaixada alemã e saquearam lojas de alemães. O tsar mudou o nome da capital russa para Petrogrado, em reação ao furor. São Petersburgo parecia demasiado alemão.

Mais de 250 mil homens se apresentaram como voluntários na Alemanha nos primeiros dias de agosto — um número impressionante, já que quase toda a população masculina estava sujeita à convocação obrigatória, que só isentava aqueles com menos de dezessete ou mais de cinquenta anos. Na Inglaterra, a única grande potência onde não havia alistamento obrigatório, 300 mil homens apresentaram-se como voluntários em agosto e outros 450 mil em setembro de 1914. Diversos trabalhadores de uma mesma companhia e vizinhos de bairros de cidades industriais se alistavam juntos, formando os chamados “batalhões de amigos”. A pressão social para o alistamento era intensa. Ainda assim, como aconteceu em outros países, e feitas todas as ressalvas, o entusiasmo geral era inequívoco, e a oposição, mínima. Em seu início, tratava-se de uma guerra popular.

Em cada país participante, num clima festivo, multidões se despediam, nas estações ferroviárias, dos soldados que partiam para a frente de batalha. As despedidas lacrimosas de mães, esposas e filhos eram acompanhadas por canções patrióticas e votos animados de vitória rápida e breve retorno. No entanto, muitos daqueles reservistas que partiam para a guerra, talvez a maioria, qualquer que fosse o ar de confiança que encenavam para os parentes e amigos, deixavam seu lar, sua lavoura, seu escritório ou seu emprego com certa relutância e alguma apreensão. Consolavam a si mesmos e aos entes queridos com o sonho de que “Tudo estaria acabado no Natal”. Poucos captaram a realidade com a mesma lucidez do político e historiador austríaco Josef Redlich, ao ver milhares de reservistas subirem em trens rumo à frente de batalha na estação norte de Viena, em 3 de agosto de 1914: “Mães, esposas e noivas chorosas: quanto sofrimento as espera”.

A mobilização obedecia aos horários dos trens. Os alemães reservaram 11 mil composições, e os franceses, 7 mil, para levar suas tropas à linha de frente. Era preciso também transportar um número imenso de cavalos para as linhas de combate. Juntos, austríacos, alemães e russos mobilizaram perto de 2,5 milhões de montarias, e os britânicos e franceses, centenas de milhares. No que se refere à sua dependência de cavalos, os exércitos de 1914 pouco tinham mudado desde o tempo de Napoleão.

No tocante às fardas, a maioria era agora cáqui ou cinza. Os franceses, porém, continuavam a ir para a guerra usando as túnicas azuis, as calças vermelhas e os quepes vermelhos e azuis de uma época anterior. E em agosto de 1914 não havia na mochila de nenhum soldado um capacete de aço — esse elemento de proteção só foi entregue a soldados franceses e britânicos em 1915 e às tropas alemãs no ano seguinte —, nem uma máscara antigás — que logo se revelou uma proteção necessária, ainda que insuficiente, contra uma nova e mortífera arma.

Os exércitos que foram à guerra em 1914 eram do século XIX. Contudo, travariam uma guerra do século XX.


* Crepúsculo dos deuses. Em alemão no original. (N. T.)