2. O grande desastre

Multidões de gente silenciosa […]. Os regimentos passam marchando com suas bandas; cabe lembrar que todos esses homens estão a caminho do morticínio.

Diário do funcionário público Michel Corday
(Paris, 14 de julho de 1915)

 

Depois de agosto de 1914, nada voltaria a ser como antes. O novo século já tinha catorze anos. Todavia, a eclosão daquela que em breve se tornaria conhecida como a Grande Guerra assinalou o começo real do século XX na Europa. Os anos transcorridos entre a data no calendário que marcava o começo do século e o mergulho numa guerra calamitosa pertenciam a uma era anterior. O que veio depois de agosto de 1914 foi uma nova era, muito mais terrível.

UMA TRAGÉDIA SE DESVELA

Dois anos antes da guerra, um mestre-escola e escritor pacifista de Hamburgo, Wilhelm Lamszus, retratou em tons fortes, no romance Das Menschen­schlachthaus [O matadouro humano] o horror e a brutalidade das bem azeitadas máquinas de matar que, numa guerra vindoura, produziriam mortes numa escala até então inaudita. Foi uma profecia tragicamente correta. Oito anos depois, em 1920, Ernst Jünger, oficial alemão muito dedicado à sua carreira e que servira com entusiasmo e enorme coragem como líder de tropas na frente de batalha durante quase toda a guerra, deu a seu best-seller, uma das mais extraordinárias obras literárias sobre a Primeira Guerra Mundial, o título de Tempestades de aço. Jünger não poderia ter achado um título mais apropriado para o que os soldados dos países europeus em guerra teriam de enfrentar ao longo de quatro anos.

Os dois livros, o primeiro deles anterior e o segundo posterior ao conflito catastrófico, captam aspectos do caráter essencial da guerra. Mais do que qualquer guerra até então, aquele foi um conflito marcado pela mortandade em massa e industrializada. Carne humana contraposta a máquinas de matar. Os soldados se confrontavam com artilharia pesada, metralhadoras, fuzis de disparo rápido, morteiros de trincheira, explosivos poderosos, granadas, lança-chamas e gases venenosos. Armas modernas utilizadas em quantidades cada vez maiores infligiam morte impessoal e destruição numa escala sem precedentes. As perdas colossais de vidas humanas eram aceitas já no planejamento de grandes ofensivas. Granadas de artilharia e estilhaços eram os mais frequentes agentes de morte no campo de batalha, mas milhares e milhares de soldados morriam de ferimentos e doenças decorrentes das atrozes condições nas frentes de combate.

A guerra, impulsora de mudanças tecnológicas, introduziu novas armas e métodos de matança em massa que desenharam o rosto do futuro. Os gases venenosos passaram a ter uso generalizado a partir de 1915, depois que os alemães os utilizaram na primavera daquele ano durante o ataque às posições dos Aliados perto de Ypres. Os tanques fizeram sua estreia no Somme, em 1916, como parte da ofensiva britânica, e em 1918 estavam sendo utilizados em grandes formações nos campos de batalha. A partir de 1915, os submarinos tornaram-se uma arma importante na campanha alemã contra o transporte marítimo dos Aliados e mudaram a natureza da guerra no mar. Além disso, o rápido desenvolvimento da tecnologia aeronáutica expôs os civis nas cidades, bem como as forças combatentes nas frentes de batalha, à terrível ameaça de bombardeios aéreos (dos quais as bombas lançadas sobre Liège, na Bélgica, por um zepelim alemão, já em 6 de agosto de 1914, foram uma antecipação). Daí em diante, os civis, por sua exposição aos bombardeios e de muitas outras formas, foram incorporados ao esforço de guerra como nunca antes — trabalhando na indústria bélica e como alvo do inimigo. A propaganda de guerra usou os meios de comunicação de massa para instilar ódio a povos inteiros. Os Estados envolvidos no conflito mobilizaram sua população de maneiras antes desconhecidas. A imprensa francesa criou em 1917 a expressão “la guerre totale” para expressar o fato de que a frente de batalha e a pátria estavam unidas no esforço de guerra.

Além disso, ainda que a Europa fosse seu epicentro, a guerra se tornou, pela primeira vez, um conflito verdadeiramente global, que afetava todos os continentes. Em parte, isso foi um reflexo dos impérios globais da Inglaterra e, principalmente, da França. Os dois países mobilizaram seus territórios para a guerra. Quatro dominions britânicos — a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia e a África do Sul entraram no conflito em apoio à Inglaterra em agosto de 1914. Africanos e indianos foram mobilizados para lutar por uma causa europeia, sofrendo pesadas baixas. Um milhão de indianos lutaram do lado dos Aliados, muitos deles na África e no Oriente Médio. A França alistou mais de 600 mil homens de suas colônias, sobretudo as do oeste e norte da África. Mais de 2 milhões de africanos serviram como soldados e trabalhadores. Cerca de 10% deles não sobreviveram. A taxa de mortalidade entre os trabalhadores, utilizados em grande número no leste da África para carregar suprimentos pesados, foi o dobro dessa, maior até que a taxa de mortalidade de soldados britânicos durante a guerra.

Como ocorre na maioria dos casos, foi mais fácil começar a guerra do que encerrá-la. Em vez de voltarem para casa no Natal de 1914, como tinham prometido aos entes queridos (e a si mesmos), nessa data mais de 250 mil soldados franceses já estavam mortos. As baixas totais (mortos, feridos e capturados) passavam de 450 mil já no fim de novembro. As perdas britânicas a essa altura eram de 90 mil, mais que o número de soldados recrutados de início para a luta. As baixas austro-húngaras passaram de 300 mil logo nas primeiras batalhas contra os russos na Galícia, em agosto e setembro, e ao todo chegaram a meio milhão nos primeiros cinco meses da guerra na frente oriental. A Alemanha tinha perdido 800 mil homens no fim do ano, 116 mil deles mortos (mais de quatro vezes o total de alemães mortos na Guerra Franco-Prussiana de 1870-1). As perdas russas na primeira fase da guerra foram as mais elevadas de todas. Nos primeiros nove meses, o país perdeu quase 2 milhões de homens, 764 mil deles capturados. As baixas foram maiores em 1914, em relação ao tamanho dos exércitos, do que em qualquer outra fase da guerra.

A inclusão da população civil no morticínio, quando os alemães atacaram a Bélgica, começou imediatamente. Mais de 6 mil civis, inclusive mulheres e crianças, foram mortos, brutalmente maltratados ou deportados quando tropas alemãs atravessaram a Bélgica nas primeiras semanas da guerra. O treinamento militar alemão instilara nos soldados um medo paranoico da guerra de guerrilha. Os soldados, muitas vezes tomados de ódio, culpavam os civis, coletivamente, por supostas (e sobretudo imaginárias) ações de franco-atiradores ou por incidentes em que o “fogo amigo” era confundido com ataques inimigos vindos da retaguarda. A “punição” coletiva era infligida mesmo quando os soldados sabiam que suas vítimas eram inocentes.

Na crucial batalha do Marne, travada de 6 a 9 de setembro, quando os franceses detiveram o avanço alemão a pouco mais de cinquenta quilômetros de Paris, toda a estratégia de vitória rápida, com base no Plano Schlieffen (que envolvia derrotar os franceses antes de se voltar contra os russos), já tinha fracassado. Na frente ocidental, a época das ofensivas rápidas estava encerrada. A defesa estava na ordem do dia. Tropas dos dois lados começaram a cavar trincheiras — no começo, primitivas, mais tarde bem mais elaboradas. Não tardou para que essas trincheiras formassem uma linha quase ininterrupta da costa do Canal da Mancha às fronteiras da Suíça. Grandes quantidades de soldados tiveram de se ajustar a uma existência indescritível nas trincheiras — atoleiros de lama infestados de vermes, construídos em zigue-zague, protegidos por rolos enormes de arame farpado, com trincheiras adjuntas que levavam a depósitos de suprimentos e hospitais de campanha. No fim de setembro estava armado, na frente ocidental, o impasse que duraria mais quatro longos anos, até 1918.

As imensas perdas iniciais não persuadiram nenhuma das potências a tentar pôr fim à guerra. Todas tinham enormes reservas de homens às quais recorrer. Como o pensamento estratégico dos dois lados se resumia, em essência, a desgastar o inimigo até que não conseguisse mais lutar, e como a principal maneira de alcançar essa meta consistia em despejar cada vez mais homens no campo de batalha para realizar ofensivas maiores contra linhas defensivas bem entrincheiradas, o colossal derramamento de sangue estava destinado a prosseguir indefinidamente.

No leste, onde a guerra, travada numa frente muito maior e com uma população muito menos densa, nunca ficou tão imobilizada como na frente ocidental, a situação transcorreu de modo mais promissor para as Potências Centrais. Sob o comando do general Paul von Hindenburg, que retornara à ativa e contava com o apoio do general de divisão Erich Ludendorff, o hábil embora às vezes impetuoso chefe do Estado-Maior do 8o Exército, os alemães infligiram, no fim de agosto, uma esmagadora derrota ao 2o Exército russo perto de Tannenberg, na Prússia Oriental. Ali os alemães lutavam em solo pátrio, repelindo uma incursão russa. O que eles viram da devastação causada pelos russos durante a quinzena em que estes ocuparam parte da região confirmou o preconceito já existente e contribuiu para a ferocidade da luta. As baixas russas foram elevadas — quase 100 mil ao todo, sendo 50 mil mortos e feridos. Poucos dias depois, entre 8 e 15 de setembro, na batalha dos lagos Masurianos, os russos perderam mais 100 mil homens, dos quais 30 mil foram capturados. Mais ao sul, enfrentando os austríacos, tiveram mais sucesso em seu ataque contra a Galícia. Os austríacos foram confrontados por forças russas bem superiores em 3 de setembro, sofrendo perdas pesadas e sendo obrigados a uma retirada humilhante.

Como ocorrera com os alemães na Bélgica, a convicção — em grande parte errônea — de que civis estavam participando de ataques às tropas alimentou a brutalidade que acompanhou a ocupação russa da Galícia. Havia quase 1 milhão de judeus na Galícia, e eles foram as principais vítimas. Os cossacos assumiram a vanguarda da violência. Prevendo o que os esperava, grande número de judeus vinha fugindo à medida que os russos avançavam. Os pogroms perpetrados pelos invasores começaram já em meados de agosto. Centenas de judeus foram mortos na escalada da violência dos invasores. Roubos e estupros tornaram-se comuns. Vilarejos judaicos foram incendiados. Mais de mil judeus foram tomados como reféns pelo Exército russo e só libertados mediante extorsão. Propriedades de judeus foram confiscadas. Nada menos de 50 mil judeus — e outros tantos não judeus — foram deportados para a Rússia no verão de 1915, muitos deles acabando na Sibéria ou no Turquistão.

Os austríacos tiveram de suportar outra derrota embaraçosa nas primeiras semanas da guerra, e dessa vez não pelas mãos de outra “grande potência”, mas infligida pelo país que esteve no âmago da crise que se transformou na guerra europeia — a Sérvia. A campanha para “punir” a Sérvia pelo assassinato do arquiduque Francisco Fernando tinha sido quase esquecida pelas potências participantes quando as tropas austríacas lançaram tardiamente sua ofensiva de infantaria, em 12 de agosto de 1914. Não se esperava que a “expedição punitiva” durasse muito. E no começo era de supor que os austríacos logo entrariam em Belgrado. No entanto, uma contraofensiva por parte de sérvios mal armados e altamente motivados conseguiu, depois de três dias de combates encarniçados, rechaçar os austríacos. Ambos os lados sofreram pesadas baixas. Nada menos de 10 mil austríacos foram mortos, e 30 mil saíram feridos. As baixas sérvias ficaram entre 3 mil e 5 mil mortos, além de 15 mil feridos. Um temor exagerado de franco-atiradores e de uma população civil hostil e preparada para uma guerra de guerrilha contra os austríacos fez com que estes agissem com incrível violência. Estima-se em 3500 o número de vítimas civis, a maioria delas sumariamente executadas.

O conflito estava destinado a ampliar-se. Em 29 de outubro, sem provocação, navios turcos atacaram bases navais russas no mar Negro. No começo de novembro, os russos declararam guerra à Turquia, e tropas turcas invadiram a Rússia através do Cáucaso, mas no fim do ano foram repelidas. A derrota custou à Turquia pelo menos 75 mil homens, que sucumbiram tanto a doenças e ao frio quanto às armas russas. No entanto, os turcos obtiveram um triunfo importante em 1915, ao desbaratar uma mal planejada e inabilmente executada tentativa dos Aliados, instigada por Winston Churchill, como Primeiro Lorde do Almirantado (na prática, ministro da Marinha britânica): invadir a Turquia mediante o desembarque de uma grande força em Galípoli, em Dardanelos, em abril daquele ano. Quase meio milhão de soldados Aliados — entre os quais indianos, australianos, neozelandeses, franceses e senegaleses — participaram da campanha. A defesa turca de seu território, que firmou a reputação heroica de Mustafá Kemal Paxá (que se tornaria conhecido como Atatürk) foi feroz, e a praia, bastante fortificada, mostrou-se inexpugnável. Para os Aliados, o desastre foi acachapante. Em dezembro, quando se viram obrigados a abortar a operação e dar início à evacuação, suas baixas totalizavam quase 250 mil, com cerca de 50 mil mortos (muitos em decorrência de doenças). Os turcos sofreram perdas semelhantes.

A crise que a Turquia enfrentou em 1915 causou as piores atrocidades ocorridas durante a Primeira Guerra Mundial, numa região onde massacres horrendos, motivados por reivindicações territoriais conflitantes, litígios étnicos e antagonismos religiosos entre turcos muçulmanos, curdos e armênios cristãos no leste da Anatólia já constituía um capítulo medonho da história do período anterior à guerra. Desde antes do conflito, a liderança nacionalista radical, que controlava a política interna turca a partir de um golpe de Estado em 1913, buscava a homogeneidade étnica e religiosa na Turquia. A minoria armênia, bastante numerosa, representava obviamente um obstáculo a essa pretensão. A guerra entre o Império Otomano e o Russo aumentara sensivelmente as tensões nas regiões de fronteira da Anatólia e no Cáucaso. A tensão entre os turcos e os armênios, em especial, chegou a um ponto insuportável.

Os armênios, que viviam dos dois lados da fronteira com a Rússia e ansiavam por livrar-se do domínio turco, simpatizavam principalmente com a Rússia e viam a guerra como a aurora de sua redenção. Foram incentivados pelos russos, e, por meio de espiões em São Petersburgo, os turcos tomaram conhecimento de planos para provocar um levante armênio. Para os turcos, era um sinal de perigo, sobretudo porque os armênios viviam numa área de importância estratégica vital. Os governantes turcos os viam como colaboradores do inimigo e como uma ameaça a seus planos de guerra. Os armênios, acossados por violentos ataques localizados, viam a colaboração com a Rússia como sua melhor defesa contra massacres maiores.

Entretanto, quando uma rebelião armênia começou na cidade de Van, em meados de abril de 1915, acompanhada de atrocidades cometidas por armênios, turcos e curdos, a Rússia não prestou ajuda nenhuma. Os armênios se viram sozinhos. Os turcos, enfrentando os Aliados ocidentais que atacavam em Dardanelos, assustados com a ameaça representada pela Rússia através do Cáucaso e vendo a minoria armênia como um cavalo de Troia russo, se dispuseram a infligir represálias cruéis. E a guerra proporcionava a oportunidade de buscar a meta ideológica de homogeneização étnica. As deportações começaram logo depois da sublevação, crescendo rapidamente em escala e violência. Semanas depois, o governo turco ordenou que toda a população armênia da Anatólia oriental — cerca de 1,5 milhão de pessoas — fosse deportada para o deserto sírio. Muitos morreram de doenças ou maus-tratos durante a deportação ou em acampamentos ao chegar. Um número muito maior morreu em massacres medonhos, parte de um terrível programa de morticínio apoiado por governantes turcos. As estimativas relativas ao número de armênios mortos variam de 600 mil a mais de 1 milhão.

Apesar da crescente superioridade numérica dos Aliados sobre o Exército alemão na frente ocidental, não se via um fim para o impasse. Por isso, o chefe do Estado-Maior alemão, Erich von Falkenhayn, que substituíra Moltke em setembro de 1914, depositou suas esperanças no leste. Segundo ele, obrigar os russos a chegar a um entendimento era a chave para vencer a guerra na frente ocidental.

No leste, porém, a Alemanha tinha de se confrontar com a fraqueza militar, cada vez mais evidente, de seu principal aliado, a Áustria-Hungria. Durante uma desastrosa ofensiva austríaca, no auge do inverno de 1914-5, nas montanhas dos Cárpatos, perderam-se cerca de 800 mil homens, inclusive as últimas reservas bem treinadas. Muitos morreram congelados ou vítimas de doenças. Dezenas de milhares foram aprisionados. Os índices de deserção cresceram. No leste e no oeste, as Potências Centrais dependiam cada vez mais do poderio militar alemão.

Para a Áustria, a situação piorou ainda mais quando, em 23 de maio de 1915, a Itália entrou na guerra ao lado da Entente britânica, francesa e russa, abrindo uma frente sul. Foi notável que, debilitados como estavam, os austro-húngaros resistissem bem aos italianos. Enquanto isso, em fevereiro, os alemães infligiam sérias derrotas aos russos na região dos lagos Masurianos, província da Prússia Oriental (com perdas russas de 92 mil homens) e, nos meses seguintes, na Polônia. A Galícia foi tirada dos russos em junho, e a maior parte do que restava do Congresso da Polônia (antes governado pela Rússia), em julho e agosto. A própria Varsóvia caiu nas mãos dos alemães em 4 de agosto de 1915. Quando a grande ofensiva de verão por fim perdeu o vigor, os alemães tinham conquistado também a Curlândia (a parte costeira do oeste da Letônia) e a Lituânia. Entre maio e setembro, as forças tsaristas sofreram perdas arrasadoras, da ordem de mais de 2 milhões de homens, dos quais mais de 900 mil foram capturados.

No outono, as Potências Centrais também fortaleceram sua posição nos Bálcãs. A Sérvia, a fonte inicial do conflito, foi finalmente invadida por divisões alemãs e austro-húngaras no começo de outubro. A Bulgária, que havia entrado na guerra ao lado das Potências Centrais, um mês antes, também enviou forças para participar dessa campanha. No começo de novembro, a Sérvia estava sob o controle das Potências Centrais, e com isso se obtivera uma rota terrestre para o fornecimento de armas ao Império Otomano. Com a Rússia seriamente enfraquecida, os Bálcãs sob controle e até os debilitados austríacos mantendo os italianos imobilizados no sul, a Alemanha estava agora numa posição substancialmente melhor do que um ano antes para tentar forçar uma vitória na frente ocidental. Ainda assim, o tempo não trabalhava a seu favor. Uma ofensiva para obter a vitória ali não podia demorar muito.

O plano de Falkenhayn consistia em dominar os franceses com um ataque de grandes proporções em Verdun, centro de uma grande rede de fortificações à margem do rio Mosa, mais ou menos duzentos quilômetros a leste de Paris. Uma vitória devastadora sobre os franceses em Verdun, ele pensava, seria um passo crucial para o triunfo definitivo no oeste. Verdun esteve sob sítio cerrado de fevereiro a julho de 1916, e os combates cruéis continuaram até dezembro. Para os franceses, a defesa de Verdun tornou-se o símbolo da luta pela própria França. As perdas foram colossais: mais de 700 mil homens — 377 mil franceses (162 mil mortos) e 337 mil alemães (143 mil mortos). Mas não houve uma penetração alemã. Para os franceses, o país havia sido salvo. Para os alemães, as enormes perdas não tinham levado a nada. Em meados de julho, o palco da maior carnificina já se transferira para o Somme.

Ali, tropas britânicas e dos dominions formavam a espinha dorsal da “grande ofensiva”. Se mais tarde Verdun veio a simbolizar o horror da guerra para os franceses, o Somme adquiriu um significado igualmente simbólico na memória britânica. Havia, porém, uma diferença. Verdun podia ser recordado como um sacrifício patriótico enorme mas necessário para salvar a França. No Somme, as tropas britânicas e dos dominions não estavam lutando para repelir um ataque contra a pátria. Para muitos, provavelmente não estava claro o motivo exato de seu esforço. O planejamento da ofensiva coubera basicamente ao general (mais tarde marechal de campo) Sir Douglas Haig, comandante supremo das Forças Armadas britânicas desde dezembro de 1915. Na verdade, o objetivo da ação foi alterado em relação à concepção original. Prevista para ser executada principalmente pelos franceses e destinada a produzir uma investida decisiva, ela se transformou num ataque basicamente britânico para aliviar a pressão sobre os franceses em Verdun. Esperava-se que os alemães se desgastassem e se enfraquecessem bastante. Mas a arremetida crucial para a vitória teria de esperar. Por mais que os oficiais animassem com brados patrióticos e discursos motivadores seus soldados no Somme, para a maioria deles os objetivos estratégicos eram, provavelmente, menos importantes que a sobrevivência. No entanto, dezenas de milhares de homens não sobreviveriam sequer ao primeiro dia da ofensiva. Para os britânicos, o Somme veio a simbolizar o despropósito daquele imenso desperdício de vidas humanas.

Após um intenso e pesado bombardeio que durou mais de uma semana, em 1o de julho de 1916, o primeiro dia da batalha, as forças britânicas e dos dominions perderam 57470 homens, 19240 deles mortos e 35493 feridos. Foi o dia mais catastrófico na história militar da Inglaterra. Aquilo que pretendia ser a grande arremetida logo se revelou uma dispendiosíssima ilusão. Quando os combates no Somme se exauriram, perto do fim de novembro, em meio a chuvas, nevascas e lama, as tropas britânicas e dos dominions tinham ganhado um setor de aproximadamente dez quilômetros de extensão ao longo de uma faixa de 35 quilômetros da frente de batalha; os franceses, o dobro disso. Esse resultado pífio custou mais de 1 milhão de mortos e feridos. As baixas do lado britânico ascendiam a 419654 homens (127751 deles mortos), enquanto as dos franceses totalizavam 204353, e as dos alemães, cerca de 465 mil. Na escala hedionda de suas perdas, e em troca de tão pouco, a batalha do Somme foi a mais terrível da frente ocidental na Primeira Guerra Mundial.

Uma terceira ofensiva de grandes proporções naquele ano, dessa vez na frente oriental, recebeu o nome de um general russo, Aleksei Alekseievitch Brusilov. Foi um lance ousado que começou em 4 de junho de 1916, contra posições austríacas num amplo setor da frente sul, entre os pântanos do Pripet (que se estendiam do sul da Bielorrússia ao norte da Ucrânia) e a Romênia. O imediato e amplo sucesso de Brusilov deveu-se em parte a seus meticulosos preparativos, e mais ainda à inépcia austríaca, a que se somou o baixo moral das tropas. Em dois dias, a frente austro-húngara se achava em estado de colapso. Trouxeram-se reforços com urgência da ofensiva iniciada no norte da Itália. Recorreu-se também a reservas alemãs para evitar uma debacle total. Contudo, no fim de setembro, as Potências Centrais tinham sido empurradas para trás cerca de noventa quilômetros numa frente larga. A essa altura, os austro-húngaros tinham perdido 750 mil homens, dos quais 380 mil capturados. As baixas alemãs também eram gigantescas, da ordem de 250 mil. No entanto, embora triunfante para os russos, a Ofensiva Brusilov teve um custo enorme, com perdas próximas a meio milhão de homens nos primeiros dez dias e cerca de 1 milhão no cômputo geral. Na Rússia, o júbilo pela importante vitória ocultava fissuras cada vez maiores atrás da fachada. Como os fatos logo mostrariam, o país se aproximava do fim ainda mais depressa que a Áustria-Hungria.

Um resultado imediato da Ofensiva Brusilov foi trazer a Romênia para a guerra, em 27 de agosto, ao lado da Entente. Os romenos esperavam colher grandes lucros aos custos da Hungria depois do que julgavam ser a derrota cada vez mais certa das Potências Centrais. Essas esperanças logo caíram por terra quando as Potências Centrais despacharam um exército, sob comando alemão, que anulou os avanços obtidos pelos romenos. No começo de 1917, as Potências Centrais ocuparam Bucareste e grande parte da Romênia, inclusive os campos petrolíferos de Ploesti, de importância estratégica.

Para o governo alemão, porém, os êxitos no leste não compensaram o fracasso do avanço decisivo na frente ocidental. Em agosto, Falkenhayn pagou o preço do revés em Verdun: foi afastado da chefia do Estado-Maior e substituído pelo herói de Tannenberg, o agora marechal de campo Hindenburg, um líder militar popular numa guerra cada vez mais impopular. Seu braço direito, o general Ludendorff, agora nomeado primeiro intendente geral, logo se tornou a verdadeira força impulsora do novo alto-comando do Exército.

Foi o começo daquilo que virou, na prática, uma ditadura militar, já que Hindenburg e Ludendorff passaram a intervir no governo de forma cada vez mais direta. Um indício disso foi a meta de pôr fim à guerra com ataques irrestritos de submarinos a navios dos Aliados, estratégia adotada apesar da oposição do governo civil. O problema do bloqueio dos Aliados, cada vez mais cerrado, permanecia sem solução, porém a frota de superfície alemã pouco conseguira fazer com relação a ele. Apesar de todas as verbas canalizadas pelos britânicos e pelos alemães para a construção de gigantescas armadas antes da guerra, o único grande combate naval, a batalha da Jutlândia, em 31 de maio de 1916, foi inconclusivo. Os alemães afundaram catorze belonaves, mais do que as onze que perderam, e sofreram menos baixas (3058 contra 6768 do lado britânico). Mas as perdas incapacitaram durante meses a esquadra alemã, que era menor, o que, com efeito, impediu que fosse usada durante o resto da guerra, ao passo que a Marinha britânica foi capaz de manter o bloqueio. Por conseguinte, as atenções se voltaram cada vez mais para a perspectiva de aumentar o emprego de submarinos não só para pôr fim ao bloqueio, como também com o intuito de provocar uma mudança decisiva na sorte da guerra. O comando naval alemão calculou que os submarinos poderiam afundar 600 mil toneladas de embarcações por mês — o que levaria a Inglaterra ao colapso dentro de cinco meses, antes que os Estados Unidos pudessem fazer alguma diferença no resultado da guerra. Todavia, se a guerra submarina não lograsse êxito e os Estados Unidos viessem a participar do conflito, as perspectivas para a Alemanha se agravariam de modo significativo.

A aposta foi feita. A partir de 1o de fevereiro de 1917, a Alemanha deu início a uma guerra submarina irrestrita. Navios dos países Aliados ou neutros podiam agora ser atacados em águas britânicas sem aviso prévio. Foi um erro catastrófico. Até aquele momento, o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, que buscava meios de consolidar a liderança americana no mundo do pós-guerra, desejara “paz sem vitória” e evitara empenhar o apoio de seu país a qualquer um dos lados no destrutivo conflito europeu. A decisão alemã de desencadear a guerra submarina pôs um fim abrupto a essa estratégia. Em dois dias, Wilson rompeu relações diplomáticas com a Alemanha. O inevitável afundamento de navios americanos por submersíveis alemães contribuiu para induzir os Estados Unidos a declararem guerra à Alemanha em 6 de abril de 1917 (embora só na primavera de 1918 a Força Expedicionária Americana estivesse em condições de juntar-se à luta na frente ocidental). Só em abril e junho de 1917, porém, os submarinos conseguiram afundar a tonelagem mensal requerida, o que acusava as estimativas otimistas quanto à vulnerabilidade britânica. A guerra submarina foi um fracasso. E, pior ainda, a Alemanha tinha agora um novo e poderoso inimigo, os Estados Unidos.

O impasse na frente ocidental prosseguiu durante 1917. Com seus recursos humanos e materiais gravemente abalados, os alemães tomaram a decisão de defender temporariamente o que controlavam. Na primavera, recuaram para uma nova posição, mais facilmente defensável, que chamaram de Siegfried-Stellung; para os Aliados, era a Linha Hindenburg. A linha, encurtada, tinha a vantagem adicional de liberar cerca de vinte divisões alemãs. Com isso, os alemães estavam em melhor posição para repelir as novas ofensivas Aliadas que sabiam que estavam por vir.

A primeira dessas ofensivas, em Arras, em 9 de abril, feita debaixo de chuva forte e neve, levou aos habituais e dispendiosos combates de atrito sem nenhum ganho territorial. As perdas chegaram a 150 mil soldados Aliados e 100 mil alemães. A ofensiva de Arras pretendia enfraquecer as defesas alemãs para a grande ofensiva francesa no Chemin des Dames, uma crista montanhosa que acompanha o vale do Aisne, a leste de Soissons e a oeste de Rheims. Essa ofensiva foi comandada pelo novo e agressivo chefe do Estado-Maior, o general Georges Robert Nivelle, nomeado em dezembro de 1916 para substituir o general Joseph Joffre. Entretanto, os alemães tinham tomado conhecimento do ataque iminente e prepararam fortes defesas. A ofensiva de Nivelle foi um desastre. Iniciada em 16 de abril, depois de cinco dias, 130 mil baixas (29 mil mortos) e nenhum avanço, foi abandonada. Em 29 de abril, Nivelle foi exonerado e substituído pelo general Philippe Pétain, o herói de Verdun.

Sem se deixar abater pela calamidade, que confirmava sua má opinião sobre o moral dos combatentes franceses, e sem perder o ânimo por causa de seu próprio fracasso no Somme, no verão anterior, o marechal de campo Sir Douglas Haig ainda acreditava ser capaz de realizar uma arremetida decisiva com uma grande ofensiva perto de Ypres, em meados de 1917. O objetivo era uma investida através de Flandres a fim de eliminar as bases alemãs de submarinos na costa da Bélgica. Essa meta nunca chegou nem perto de se concretizar. Em vez disso, os homens de Haig ficaram presos na lama flamenga. Os horrores da terceira batalha de Ypres, que para os britânicos se reduz a uma única palavra, “Passchendaele”, nome do vilarejo num morrote a leste de Ypres, rivalizaram em notoriedade com os do Somme.

A ofensiva, iniciada em 31 de julho, foi executada sob dilúvios de verão e de outono que, em terrenos planos já revolvidos pela barragem de artilharia que a precedeu, transformaram a área em pântanos de lama viscosa nos quais, com frequência, um homem afundava até a cintura. Quando a ofensiva foi enfim suspensa, logo depois que as ruínas patéticas do vilarejo de Passchendaele foram enfim tomadas, em 6 de novembro (o vilarejo de nome imponente seria de novo evacuado e reconquistado pelos alemães dentro de cinco meses), as forças britânicas e dos dominions tinham perdido 275 mil homens (70 mil mortos), e os alemães, 217 mil. Em troca, os Aliados ganharam (temporariamente) alguns quilômetros.

A última ofensiva do ano na frente ocidental, iniciada em novembro, em Cambrai, a sudeste de Arras — em parte uma tentativa de compensar o fracasso em Ypres —, repetiu o modelo já familiar. Os primeiros ganhos territoriais dos Aliados — sete quilômetros ao longo de uma faixa de quinze — não puderam ser mantidos. As perdas chegaram a 45 mil homens do lado britânico e 41 mil do lado alemão. Faltaram reservas que pudessem ajudar os Aliados a explorar a desordem inicial dos alemães, exauridos pelos lamaçais em Ypres. Contudo, a batalha de Cambrai ofereceu um vislumbre do que aconteceria no futuro. Depois de uma boa operação de reconhecimento aéreo (outra novidade), mais de trezentos tanques britânicos, pela primeira vez, atacaram em massa e em formação cerrada, seguidos por infantaria e artilharia. Os tanques tinham se mostrado praticamente inúteis em Passchendaele. Em terreno mais seco e mais firme, inauguraram um novo método de ataque. Por sua lentidão, ainda podiam ser neutralizados pela artilharia pesada. No entanto, isso viria a mudar.

Embora ainda houvesse um impasse na frente ocidental, o que começava a mudar era a sustentabilidade do conflito. O cansaço causado pela guerra era palpável. Apesar da insatisfação da tropa, as forças britânicas mantinham a disciplina. Já o governo francês preocupava-se com os índices de deserção e com o moral baixo, mesmo antes que cerca de 40 mil soldados franceses se amotinassem contra as ordens de Nivelle — um motim só apaziguado quando Pétain (depois da destituição de Nivelle) atendeu à maioria das queixas da soldadesca.

Malgrado os sinais de intranquilidade, governo nenhum se sentia capaz de fazer mais que buscar condições de paz favoráveis para justificar as terríveis perdas sofridas. Com a guerra ainda num impasse, obter tais condições era improvável. A Áustria-Hungria estava particularmente ansiosa para achar uma saída. O novo imperador Carlos i (sucessor de Francisco José, que morrera em novembro de 1916) fez em dezembro tentativas infrutíferas de diálogo em favor da paz junto ao presidente americano Woodrow Wilson. Entretanto, o alto-comando alemão não tinha nenhuma intenção de abrir mão da Bélgica ou de outros territórios ocupados. Uma paz mediante concessões estava fora de cogitação. A vitória, a qualquer custo, ainda era o objetivo. O Exército alemão continuava disposto a lutar, e a reorganização da produção de armamentos, que levou a um enorme aumento no suprimento de munição, permitiu essa postura. E, justamente quando surgiam profundas fissuras políticas na Alemanha, exausta com a guerra, e as manifestações pela paz se tornavam mais veementes, surgiu uma nova esperança — não na frente ocidental, mas no leste.

Na Rússia, a insatisfação que vinha crescendo havia meses na esteira das enormes baixas na frente de batalha e das graves privações, cada vez piores, no país, explodiu numa revolução em março (fevereiro, segundo o calendário juliano, ainda utilizado no império) de 1917. O tsar foi deposto. O novo governo provisório que assumiu o poder nessas condições de crise considerou que precisava dar prosseguimento à luta, apesar do evidente desgaste das tropas, para garantir uma “paz sem derrota”. O ministro da Guerra (mais tarde chefe de governo) Aleksandr Kerenski, chegou a dar seu nome a uma malfadada ofensiva, em julho, numa longa frente na Galícia e na Bucovina. Contudo, a ofensiva teve lugar em meio a uma mescla de agitação política permanente, oposição à guerra e queda no moral das tropas, à medida que o fervor revolucionário oriundo de Petrogrado chegava aos soldados na frente de batalha. Fracassada a Ofensiva Kerenski, as debilitadas forças russas não tiveram condições de repelir um ataque alemão a Riga, em setembro de 1917. A última batalha entre russos e alemães na guerra terminou com Riga ocupada pelos alemães. Em novembro (outubro no calendário juliano), caiu também o governo provisório, numa segunda revolução que levou os bolcheviques ao poder. Em breve esse fato alteraria radicalmente a constelação política da Europa. De imediato, prometia mudar o futuro da guerra, pois em 20 de dezembro de 1917, cinco dias depois de celebrar um armistício com os alemães, o novo governo bolchevique começou o doloroso processo de negociar um tratado de paz.

Esse foi o pano de fundo da declaração de 8 de janeiro de 1918 do presidente Woodrow Wilson, em que expôs seus Catorze Pontos — um plano idealista que julgava capaz de pôr fim à guerra e servir de base à paz duradoura na Europa. Com o iminente fim do envolvimento russo na guerra, Wilson viu a oportunidade de pressionar no sentido de um fim geral das hostilidades e de propor as bases de uma negociação dos termos da paz. Entre suas propostas estava a eliminação de bar­reiras econômicas ao livre-comércio; o desarmamento; o “ajuste” (como ele definiu vagamente) de reivindicações coloniais; a evacuação de territórios ocupados (inclusive a Rússia, à qual ofereceu uma “sincera acolhida na sociedade das nações livres sob as instituições de sua própria escolha” e “assistência de toda espécie de que ela possa necessitar”; o reajustamento das fronteiras da Itália “ao longo de linhas de nacionalidade claramente reconhecíveis”; a oportunidade de “desenvolvimento autônomo” dos povos dos impérios Austro-Húngaro e Otomano; a criação de um Estado polonês independente; e a associação das nações de modo a garantir sua “independência política e integridade territorial”. Apesar de sua aparente clareza, grande parte da declaração de Wilson era, como não podia deixar de ser, indefinida, imprecisa e sujeita a interpretações díspares e a polêmicas. Os termos “autodeterminação” e “democracia” não figuravam nos Catorze Pontos, mas ambos passaram a ser vistos como a pedra angular da visão liberal que ele estava propondo e como um estímulo para as aspirações nacionalistas na Europa. No que dizia respeito ao futuro imediato, porém, os Catorze Pontos não produziram medidas no sentido de pôr fim à guerra na Europa Ocidental. E no leste não exerceram papel algum nas negociações entre os bolcheviques e as Potências Centrais.

Concluídas essas negociações, em 3 de março de 1918, em Brest-Litovski (na atual Belarus), cidade onde ficara o quartel-general do Exército alemão no leste, alguns dos termos impostos ao impotente governo soviético estavam entre os mais punitivos e humilhantes da história moderna. Todavia, foram também os mais efêmeros, pois o Tratado de Brest-Litovski foi anulado em novembro no Armistício que pôs fim à Grande Guerra. Segundo os termos do tratado, o Báltico, a Ucrânia, o Cáucaso e o que tinha sido a Polônia russa foram tirados desse país — que assim perdia um terço de sua população, além de uma proporção ainda maior de sua indústria, de sua produção agrícola e de seus recursos naturais — petróleo, ferro e carvão. O Cáucaso coube aos turcos, enquanto grande parte da Europa Oriental, inclusive o Báltico, ficaria daí em diante sob influência alemã (embora a Ucrânia não tivesse a menor condição de proporcionar as quantidades de cereais de que a Alemanha e a Áustria-Hungria necessitavam com premência).

Em maio, o desmembramento da Romênia foi quase tão brutal quanto o Tratado de Brest-Litovski. O Tratado de Bucareste, firmado entre a Romênia, por um lado, e a Áustria-Hungria, a Alemanha, a Bulgária e o Império Otomano, por outro, proporcionou novos e importantes ganhos territoriais às Potências Centrais. Se nesse caso o território amputado coube aos aliados da Alemanha — a Áustria-Hungria e a Bulgária (com ganhos menores para os otomanos) —, o verdadeiro beneficiário foi, mais uma vez, evidentemente, a própria Alemanha, cuja esfera e domínio agora se estendiam sobre a maior parte do centro, do leste e do sul da Europa. Além de o ganho ter sido efêmero, problemas futuros em grande escala estavam à espera em todas essas regiões multiétnicas, cujos territórios eram tratados como peças num tabuleiro de xadrez.

O alívio inesperadamente rápido da situação militar no leste trouxe melhores perspectivas para a Alemanha na frente ocidental. As consequências se revelariam em 1918. De forma mais imediata, havia a possibilidade de intervenção para resolver a situação inconclusiva, mas difícil, na frente italiana. Desde 1915, quando entraram na guerra ao lado da Entente, os italianos vinham enfrentando de forma mais ou menos contínua o Exército austro-húngaro ao longo do rio Isonzo, que corria dos Alpes para o Adriático, desembocando perto de Trieste. Em outubro de 1917, os alemães enviaram reforços para ajudar os austríacos. A 12a e decisiva batalha de Isonzo (que os italianos chamaram de batalha de Caporetto) começou em 24 de outubro. Os italianos foram desbaratados e em um mês tinham sido empurrados para trás cerca de oitenta quilômetros. O Exército italiano, cuja infantaria de vanguarda era formada por homens recrutados por alistamento compulsório — mais da metade camponeses ou trabalhadores agrícolas do sul do país — simplesmente não queria saber de luta. Os soldados eram mal liderados, mal equipados e mal alimentados. Em 10 de novembro de 1917, as baixas italianas não chegavam a 305 mil. Os mortos (10 mil) e feridos (30 mil) eram relativamente poucos; a grande maioria (265 mil) tinha desertado ou se deixado capturar. Não admira que a batalha se tornasse um dia de infâmia na história italiana.

Até então, a superioridade numérica de homens e armamentos na frente ocidental sempre favorecera os Aliados, e as perdas alemãs tinham sido bem maiores na frente ocidental que na oriental. Entretanto, a retirada da Rússia da guerra liberou nada menos que 44 divisões alemãs, a serem transferidas para o oeste. Ludendorff, que na prática governava a Alemanha, viu a oportunidade de uma vitória conclusiva na frente ocidental com uma poderosa ofensiva na primavera de 1918. A Operação Michael, centrada mais ou menos na linha do Somme, começou em 21 de março, antes que os americanos pudessem entrar na guerra, com a maior barragem de artilharia do conflito, feita com 6600 canhões. Surpreendidas e inferiorizadas numericamente, as tropas Aliadas foram obrigadas a recuar cerca de 65 quilômetros, quase até Amiens. Entretanto, não houve colapso. O avanço da infantaria alemã foi pequeno, em especial na parte norte da frente. As perdas humanas foram altíssimas. No primeiro dia da ofensiva, os alemães tiveram quase 40 mil baixas, um quarto delas fatal. As baixas britânicas foram pouco inferiores. Juntando as perdas da Alemanha e dos Aliados, foi a pior carnificina num único dia da guerra, maior até que no primeiro dia da batalha do Somme. Cessada a ofensiva, em 5 de abril, as perdas alemãs totalizavam 239 mil homens. Os britânicos e franceses tinham perdido, ao todo, 338 mil homens — quase um quarto deles foi feito prisioneiro. As perdas gerais no decurso de duas semanas se equiparavam às de Verdun ao longo de cinco meses.

Foi o começo do fim para a Alemanha. Em abril, uma ofensiva complementar em Flandres, visando a capturar os portos belgas, também perdeu força depois de êxitos iniciais. Apesar das perdas (outros 150 mil homens), os Aliados ainda dispunham de reservas. Os alemães, porém, estavam recorrendo às suas últimas filas, reunidas para ataques finais em antigas áreas de luta — mais uma vez no Chemin des Dames, até o Marne (onde tivera lugar a primeira grande batalha da guerra). Em junho de 1918, as tropas americanas haviam se somado aos Aliados e estavam chegando a um ritmo de 200 mil homens por mês. Um grande contra-ataque francês no Marne, envolvendo centenas de tanques Renault com apoio aéreo, rapidamente fez 30 mil prisioneiros. O moral das tropas alemãs foi abalado e não demorou para que começasse a desabar. Os ganhos obtidos na ofensiva de março foram anulados por avanços dos Aliados em agosto e setembro. No início de outubro, os Aliados tinham ultrapassado a Linha Hindenburg, pesadamente fortificada, e os alemães batiam em retirada. A essa altura, do ponto de vista militar, a Alemanha estava quase liquidada, mas sua população não fazia ideia de que a derrota era iminente, pois o pior era ocultado pela propaganda, que continuava a pregar uma paz que viria somente depois da vitória.

Hindenburg e Ludendorff se deram conta do que estava por acontecer e se convenceram de que a paz deveria ser negociada antes que as tropas alemãs se desintegrassem e a derrota militar se tornasse óbvia. A posição do Exército (e a deles próprios) no Estado se achava em risco. Começaram a manobrar para escapar da culpa pela derrota iminente e passar a responsabilidade pelas negociações para as forças políticas — sobretudo a esquerda socialista — que, havia muito tempo, exigiam uma democracia parlamentar. Em 1o de outubro, informando aos oficiais do Estado-Maior que a guerra não poderia mais ser vencida, Ludendorff lhes disse: “Pedi a sua majestade [o cáiser] que incorpore aqueles que estão no governo e a quem temos de agradecer por nossa situação. Veremos agora esses cavalheiros assumindo funções oficiais. Eles terão de engolir a sopa que prepararam para nós”. Foi o começo do que viria a ser uma lenda de duradouro e sinistro impacto depois da guerra: o Exército alemão não fora derrotado no campo de batalha — as forças socialistas, que fomentavam a intranquilidade no país, tinham “apunhalado pelas costas” o esforço de guerra.

Nesse ínterim, os aliados da Alemanha entregavam os pontos, acuados por deserções em massa, por sentimentos revolucionários em alta e pela derrota militar, a que se somava a perspectiva de paz, cada vez mais tangível. Às portas de uma derrota desmoralizante, já que as tropas da Entente avançavam implacavelmente do sudoeste, prejudicadas pelas deserções generalizadas de seus combatentes e em meio a exigências de conselhos de soldados e trabalhadores criados em várias cidades e vilas provincianas, a Bulgária assinou um armistício em 30 de setembro. No mês seguinte, foram administrados os últimos ritos ao agonizante Império Otomano. Derrotas militares, uma ignominiosa retirada do Cáucaso e soldados desertando aos magotes, tudo isso acompanhado de caos econômico e anarquia cada vez maior dentro de suas fronteiras, levaram a Turquia a assinar um armistício em 31 de outubro.

Nos primeiros dias de novembro, com os exércitos das Potências Centrais em total desorganização e seus governos em polvorosa, era evidente que o fim da grande conflagração se aproximava rapidamente. Quando o regime do cáiser caiu, em 9 de novembro, e o novo governo alemão deu mostras de sua disposição de aceitar os Catorze Pontos do presidente Wilson como base para as negociações de paz, a guerra pôde enfim terminar. No dia 11, no quartel-general do marechal Foch, o supremo comandante dos exércitos Aliados, na floresta de Compiègne, o político Matthias Erzberger, do Partido do Centro Alemão (o católico Deutsche Zentrumspartei), que encabeçava uma delegação alemã, firmou o Armistício que finalmente pôs fim à luta. As armas silenciaram na última hora do último dia do último mês.

A VIDA DURANTE A GUERRA

“Você não tem como imaginar este horror. Só pode fazê-lo quem passou por ele”, escreveu um soldado alemão de infantaria, em 2 de julho de 1916, descrevendo a batalha de Verdun. Inúmeros outros que viveram os massacres em diferentes campos de batalha da Primeira Guerra Mundial sem dúvida sentiram o mesmo.

É impossível fazer generalizações sobre as experiências dos milhões de soldados que tiveram de suportar alguns ou todos aqueles quatro anos de inferno, mas cartas trocadas entre os militares e seus parentes e amigos nos dão alguma ideia. Contudo, elas foram muito mais abundantes na frente ocidental que na oriental. E com frequência ocultavam ou diluíam os sentimentos e as atitudes, uma vez que tinham de passar por censores e muitas vezes procuravam não alarmar ou preocupar os parentes que as leriam. As experiências também variavam enormemente, claro. Em grande medida, moldaram as posturas em relação à guerra, mas eram influenciadas por índole, educação, patente, classe social, circunstâncias materiais, tratamento pelos superiores, posições políticas, formação ideológica e mil outros fatores. As impressões contemporâneas podem ser amplificadas pelo vasto número de recordações e memórias, escritas depois da guerra, por aqueles que dela participaram. Contudo, como todo relato de testemunhas oculares feito depois dos fatos narrados — às vezes, muito depois —, esses depoimentos estão sujeitos aos caprichos da memória, assim como à influência, talvez subconsciente, de acontecimentos posteriores. Obras literárias do pós-guerra, embora sempre comoventes e carregadas de percepções profundas, transmitem imagens construídas a posteriori, ainda que realistas, das marcas que a experiência de guerra deixou em homens e mulheres comuns que tiveram de suportá-la na época. Por isso, qualquer tentativa de sintetizar o que foi viver a Primeira Guerra Mundial só pode ser, na melhor das hipóteses, um exercício de impressionismo.

É difícil, por exemplo, saber com certeza como os soldados eram afetados psicologicamente, na época ou depois, por conviver com a presença constante e nauseante da morte. São inúmeros os indícios de que os sentimentos rapidamente se embotavam. Pouco pesar causava a morte de soldados desconhecidos. “Essa indiferença talvez seja a melhor reação que pode ter um homem no meio de uma batalha”, observou um soldado francês de infantaria na frente de Verdun que já não se abalava com a morte de mais um soldado. “O longo período de emoções muito fortes finalmente chegou ao fim, com a morte da própria emoção.” “Vi algumas cenas horríveis, mas éramos tão disciplinados que as aceitávamos como coisa corriqueira, como se aquilo fosse normal”, recordou um soldado raso britânico.

Ao que parece, mesmo a morte de companheiros próximos logo passava a ser aceita como natural. “Só pelo meu pelotão já passaram várias centenas de homens, e pelo menos a metade deles caiu no campo de batalha, mortos ou feridos”, anotou em seu diário, em abril de 1915, um oficial russo de origem camponesa. “Um ano à frente fez com que eu parasse de pensar nisso.” “Era uma torrente contínua de feridos, mortos e moribundos”, recordou um praça do Exército britânico, falando sobre a batalha do Somme. “Era preciso esquecer todas as emoções. A questão era levar adiante o trabalho.” Outro praça falou mais tarde sobre as perdas de sua unidade no primeiro dia no Somme: “Não houve uma chamada pelo nome depois que voltamos porque de oitocentos homens só sobrava [sic] mais ou menos vinte e cinco. Não havia o que contar”. Um cabo foi de uma franqueza chocante: “Lamento dizer que quando voltei da linha, depois de perder um monte de homens, não sentia tristeza nenhuma. Só pensei que havia menos bocas para alimentar, e eu ia receber as rações de todos aqueles soldados durante uma quinzena antes que elas fossem reduzidas”. “À medida que o tempo passava, fui ficando bem insensível”, lembrou um sargento do Corpo Médico do Exército. “A gente tinha de se acostumar com coisas terríveis.” É impossível ter certeza de até que ponto essas manifestações eram representativas do que ocorria nos Exércitos. No entanto esses relatos representam, sem dúvida, muitos outros.

Havia, entretanto, sentimentos mais humanos. Estimulado pelo desejo de vitória e consciente de que aquilo que via diante de si era sua “amarga e difícil tarefa”, o comandante russo Brusilov, um rígido disciplinador, não se mostrou imune ao sofrimento num campo de batalha na Galícia, no qual havia “pilhas altas de cadáveres”, como relatou em uma carta à mulher no primeiro mês de luta. “Isso oprime terrivelmente meu coração”, escreveu. Uma carta publicada em novembro de 1914 no jornal dos mineiros alemães, o Bergarbeiterzeitung, destacava o horror do remetente ao deparar com o corpo mutilado de um soldado de infantaria. “Esse infante aparece constantemente à minha frente”, dizia a carta, “sem cabeça e com um bolo sanguinolento de carne sobre os ombros. Não consigo parar de ver isso.” O remetente observava que “a visão era de tal modo pavorosa, tão horrível, que faz duas noites que não consigo dormir”.

Pouca piedade se sentia, naturalmente, pelos mortos do inimigo. “O inimigo não passa de um obstáculo que tem de ser destruído”, foi uma das muitas declarações coletadas pelo Instituto de Psicologia Aplicada em Berlim. “Estamos nos transformando em animais. Sinto isso em outras pessoas. Sinto isso em mim mesmo”, admitiu um soldado francês numa carta que mandou para casa em 1915. Nem todos os soldados se sentiam brutalizados pela experiência de guerra. Mas muitos, sim. Era uma mortandade brutal, mas despida de sentimentos. A maior parte era causada por artilharia, metralhadoras, granadas ou outras armas letais disparadas a certa distância, contra inimigos sem rosto. Só o fogo da artilharia foi responsável por três quartos das baixas francesas entre 1914 e 1917. Na época e também mais tarde, os soldados faziam comentários sobre a facilidade com que se atirava, à distância, num inimigo anônimo e impessoal. O combate corpo a corpo — saltar para dentro de uma trincheira inimiga e atravessar o corpo de um homem com uma baioneta — era bem mais raro. Só 0,1% das baixas alemãs na frente ocidental, na primavera de 1917, decorreram dele, contra 76% causadas por fogo de artilharia. Para alguns soldados, o combate corpo a corpo exigia a superação de inibições ou escrúpulos. Ainda assim, ele existia. E havia quem encontrasse prazer nisso. Um jovem major britânico, que dizia não pensar muito no futuro, tomou como certo “que massacraríamos os boches em sua linha de frente”. Outro soldado britânico contou em seu diário, em junho de 1915, que havia atirado à queima-roupa num rapaz alemão, que estava com os braços levantados e implorando misericórdia. “Foi uma cena celestial vê-lo cair para a frente”, escreveu.

Alguns, embora decerto uma minoria, viam a guerra como um processo de limpeza para destruir o que julgavam estar podre em sua própria sociedade. Um soldado alemão, que se rejubilara com a declaração de guerra, escreveu a um conhecido, no começo de 1915, que os sacrifícios na frente de batalha valeriam a pena se levassem a um país “mais puro e expurgado de estrangeirismos [Fremdländerei]”. O mundo em breve ouviria falar bastante dele. Seu nome era Adolf Hitler.

A estereotipagem nacional do inimigo contribuiu bastante para o processo de criação de ódio. Em grande parte, esse trabalho já estava feito antes mesmo que a guerra começasse. Quando teve início a luta, a propaganda reforçou em muito os estereótipos, no país e na frente de batalha. De um lado e de outro, a propaganda oficial procurava demonizar o inimigo e instilar o ódio, tanto nas tropas de combate como na população nacional. A transmissão, pelo rádio, de acusações de atrocidades (reais ou imaginárias) era um dos meios para isso. Os estereótipos muitas vezes funcionavam. Militares alemães de esquerda, que antes criticavam intensamente o militarismo, o hipernacionalismo e o governo do cáiser, aceitavam caricaturas que mostravam os eslavos como inferiores e afirmavam a necessidade de uma missão civilizatória alemã para levar cultura ao Leste Europeu. Soldados alemães que entravam na Rússia pela primeira vez viam a confirmação dessas caricaturas. “Ásia, estepe, pântanos […] um ermo esquecido de lama e lodo”, recordava um oficial, e “sem um lampejo da Kultur da Europa Central.” Um sargento alemão, amante de poesia, escreveu em fevereiro de 1918:

 

Por todo lado, meus olhos veem ainda a desgraça

Que a vergonheira do Exército russo infligiu

À sua própria terra, a obras da natureza!

Mas o que parecia perdido para sempre foi recriado

Pelos batalhões alemães da Kultur!

 

Imagens propagandísticas de russos asiáticos, atrasados, incultos e bárbaros alimentariam posturas que preparariam o terreno para atrocidades inenarráveis na Segunda Guerra Mundial, embora o choque étnico de bolcheviques e judeus ainda estivesse por vir. Entretanto, a propaganda de ódio na Primeira Guerra Mundial não foi, de modo algum, um sucesso completo, e, com certeza, não na frente ocidental. Houve alguma confraternização em 1914-5 entre tropas alemãs, de um lado, e britânicas e francesas, de outro — que incluiu a “trégua” oficiosa de Natal na terra de ninguém em 1914 —, até que os oficiais a proibissem. Às vezes, soldados inimigos tinham permissão para buscar seus mortos e feridos. Houve períodos breves e não oficiais de trégua tácita, com base em entendimentos mútuos informais e não anunciados, e casos de soldados que, em patrulha, atiravam para errar o alvo de propósito. E houve indícios de respeito mútuo entre soldados rasos pelas qualidades de combate de seus inimigos, além de um senso de humanidade comum demonstrado num morticínio que desafiava qualquer compreensão.

Mesmo assim, seria conveniente não exagerar quanto a isso. Embora objetivos ideológicos, ostensivos ou subliminares, que ajudavam a dar sentido à balbúrdia, fossem mais comuns entre oficiais e comandantes, sobretudo entre os de patente mais alta, os soldados rasos estavam também sujeitos às forças culturais agindo em sua educação e em seu treinamento. Além do mais, a matança logo criava seu próprio ímpeto. Os soldados se habituavam a ela. Às vezes a encaravam simplesmente como “matar ou ser morto”. De modo geral, aceitavam o que tinham de fazer, não viam alternativa e pensavam, principalmente, em superar aquilo e sobreviver. “A vida é uma coisa boa de comer e nós a mastigamos em silêncio e com dentes saudáveis”, comentou um soldado de cavalaria italiano em 1917, depois de sobreviver a uma batalha feroz em que 50% dos homens foram mortos ou feridos. Ideais grandiosos não tinham muito lugar na guerra. “Estamos aqui porque estamos aqui porque estamos aqui porque estamos aqui”, cantavam, cinicamente, soldados britânicos nas trincheiras.

O medo, como a morte, era um companheiro constante na frente de batalha, por mais que os soldados tentassem escondê-lo. O fatalismo que naturalmente o acompanhava era também onipresente. Os soldados não estavam sempre na linha de frente. Na verdade, estes constituíam uma minoria. Entretanto, o tempo passado atrás das linhas — em recuperação, relaxando ou se divertindo (jogos de futebol e visitas a bordéis parecem ter sido alguns dos passatempos mais comuns das tropas britânicas), além dos intermináveis exercícios de treinamento — era sempre anuviado pela ideia de que o próximo “grande avanço” não estava muito longe. Quando corria a notícia de que era iminente, a apreensão e o medo cresciam. Chegado o momento, alguns homens ficavam tão aterrorizados que se tornavam incontinentes. Outros exalavam confiança — em muitos casos, sem dúvida, para ocultar o nervosismo. Alguns, soldados valentes que já tinham passado pelo horror, ficavam tão assustados que chegavam a um estado de colapso nervoso e se recusavam a sair das trincheiras, pagando o terrível preço da acusação de covardia ou deserção diante de um pelotão de fuzilamento.

A maioria sabia que não tinha alternativa a não ser enfrentar a batalha e se mostrava fatalista. Uma distribuição profusa de rum, schnapps ou vodca, logo antes da ofensiva, ajudava. “Quando eu ia para a batalha, não pensava em nada. Simplesmente tinha de ir. E pronto”, recordou um praça britânico. Muitos relatos mostram soldados com menos medo da morte que de uma mutilação grave. De acordo com um estudo alemão, “Psicologia do medo em tempo de guerra”, publicado em 1920, “imaginar ficar aleijado é suficiente […] para tornar a morte desejável”. Muitos pediam ao céu aquilo que os britânicos chamavam de blighty wound, e os alemães de Heimatschuß*não um ferimento incapacitante ou capaz de levar à morte, mas que os tornasse inaptos para o serviço militar e os devolvesse a seu país. Alguns infligiam a si mesmos esses ferimentos — mas correndo o risco de grave punição, além da dor, se fossem apanhados.

Em vista do que as tropas tinham de suportar, o moral na frente ocidental se manteve surpreendentemente alto. O motim francês no Chemin des Dames, em 1917, foi uma exceção, embora os censores que examinavam as cartas dos soldados notassem sinais de moral vacilante à medida que a épica batalha de Verdun se estendia, e as deserções tivessem aumentado no inverno de 1916-7. A rápida reação francesa para aplacar as tropas amotinadas mostrou até que ponto o governo levara a sério a revolta fugaz. O moral voltou a ser testado durante a grande ofensiva alemã na primavera e no verão de 1918. Entretanto, os franceses estavam lutando por seu próprio país. Isso os levava a pensar. Quando os tanques franceses rechaçaram os alemães no Marne, em agosto, e o fim da guerra estava à vista, o moral voltou a se elevar. As forças britânicas e dos dominions também aguentaram até o fim com o moral praticamente intacto. O ânimo britânico titubeara por ocasião do avanço alemão na primavera de 1918, mas voltou a crescer quando a ofensiva fraquejou e chegaram reforços (com destaque para as tropas americanas).

É claro que também no Exército britânico não faltaram queixas e protestos contra as condições lamentáveis, a má alimentação, as rações escassas, o treinamento pesado, a exaustão física e a arrogância dos oficiais. A exigência de disciplina era alta em todas as forças de combate, e brutal em algumas (sobretudo nas russas e italianas). A coerção se intensificou em todos os exércitos na segunda metade da guerra, visando a neutralizar a queda no moral das tropas. No entanto, por si só ela não explica a disposição de prosseguir na luta, e na realidade não seria capaz de reprimir a grave e generalizada onda de má vontade na maioria dos exércitos perto do fim da guerra. Nos casos em que o moral se manteve elevado, havia a atuação de forças mais positivas. A maior parte dos soldados franceses e britânicos continuou a crer que sairiam vencedores e também a acreditar na justiça de sua causa. O patriotismo e a defesa de seu país continuaram a oferecer aos soldados franceses uma razão positiva para lutar. Esse sentimento desempenhou também um papel importante para as tropas britânicas, ainda que menos preponderante, já que a Inglaterra não tinha sido invadida e seus soldados não estavam lutando em solo pátrio. Os censores que analisavam as cartas enviadas por soldados britânicos não notaram nenhum declínio na disposição de lutar até o fim, e viram pouca disposição de aceitar uma paz obtida com concessões.

O moral alemão só desmoronou em 1918. Para as tropas do país, as reclamações — exacerbadas por maiores desigualdades entre os oficiais e os soldados do que no Exército francês ou no britânico — politizaram-se cada vez mais a partir de 1916. O ressentimento pela discrepância entre os pagamentos dos oficiais e dos praças, a sensação de que os oficiais lotados em escalões de retaguarda estavam levando “boa vida”, enquanto os soldados na linha de frente morriam aos milhares, a indignação pela comida de má qualidade, as reduções nas rações a partir de 1916 e as notícias que recebiam de casa sobre o aumento dos preços e a deterioração das condições de vida, tudo isso gerou uma crescente convicção, por parte dos soldados, de que os sacrifícios de todos só serviam para aumentar os ganhos dos capitalistas e aproveitadores. Nos últimos meses da guerra dizia-se, com frequência cada vez maior, que seria necessária uma revolução para corrigir as injustiças. A essa altura, muitos soldados alemães concordavam com a pintora e escultora Käthe Kollwitz, que, com o coração dilacerado pela perda de seu único filho, Peter, em 1914, afirmava que a guerra, que mandara milhões para o abatedouro, não passara de um “terrível conto do vigário”. Naquelas últimas semanas de conflito, ao mesmo tempo que ocorria uma onda de deserções, os soldados na frente de batalha expressavam cada vez mais alto suas exigências de paz, socialismo e revolução.

Bem antes disso, o moral estava ainda mais abalado em outros exércitos que lutavam na frente oriental. Desde o começo do conflito, era frequente que tropas russas, austro-húngaras e italianas acreditassem pouco na “causa” pela qual se dizia que estavam lutando. O general Brusilov se queixou de que muitos praças russos, dos quais mais de três quartos provinham de famílias camponesas e eram, na maioria, analfabetos, “não faziam a mais remota ideia do que a guerra tinha a ver com eles” e, aparentemente, nem sabiam da existência de um país chamado Alemanha. A queda do moral não demorou. Logo depois das primeiras derrotas de 1914, os censores russos informaram que “os soldados não confiam mais na vitória”. A escassez de alimentos, fardamento e armas — já em 1915 constava que muitos soldados na frente de combate não tinham armas — e os reveses militares corroíam o moral. O mesmo efeito tinha a forma brutal como a tropa era tratada pelos oficiais, em geral odiados como membros da classe dos proprietários de terras e desprezados por sua corrupção e pelo gosto por confortos rebuscados na retaguarda. Com frequência cada vez maior, os soldados perguntavam a quem cabia a culpa por seus apuros e encontravam a resposta na traição. “Talvez em breve tenhamos de admitir que nossa campanha bélica está perdida e, acima de tudo, que ela foi traída” foi uma atitude anunciada por censores russos já em 1915. O derrotismo — e a busca de bodes expiatórios e traidores — ganhou ímpeto em 1916, com efeitos danosos sobre a frente de batalha. Um soldado que escutava a “explicação”, dada por um sargento, de que espiões e traidores estavam por trás da mais recente retirada, comentou: “O peixe começa a feder pela cabeça. Que espécie de tsar se cerca de ladrões e trapaceiros? Está claro como o dia que vamos perder a guerra”. A estrada para a revolução estava sendo aberta.

A deserção e a rendição voluntária se generalizaram no Exército russo a partir de 1916. Com a quebra do moral, ocorreram naquele verão vinte motins, que tiveram muito apoio e pouca condenação entre outros soldados na frente de batalha. O cansaço da guerra e o desânimo profundo, assim que se desvaneceram os êxitos fugazes da Ofensiva Brusilov, misturaram-se à crescente preocupação, alimentada pelas cartas recebidas das famílias e pelo agravamento das condições de vida no país. O chefe da comissão de censura militar em Petrogrado observou, em novembro de 1916, que os boatos que chegavam às tropas por meio das cartas de parentes “causam queda no moral dos soldados e muita preocupação com a situação da família no país”. Já em 1916 se ouviam exigências de paz, mesmo que incondicional. Quando da revolução de fevereiro de 1917, a onda já se transformara em tsunami.

As deserções em grande escala começaram cedo também entre outras tropas na frente oriental. No Exército italiano, apesar das duras punições adotadas desde o início, elas quase triplicaram entre 1915 e 1917. Em novembro de 1917, mais de 300 mil soldados tinham desertado do Exército otomano. A disposição de se render, muito mais comum do que na frente ocidental, era outro sinal da fragilidade do moral, que por fim começava a reduzir o empenho e a autodisciplina.

A falta de coesão nacional foi um fator importante na dificuldade para manter o moral no Exército austro-húngaro. Muitas vezes, os oficiais austríacos, germanófonos, tratavam com desprezo os soldados de outras origens étnicas — croatas, romenos, servo-bósnios, tchecos, italianos e outros. Por sua vez, tais soldados não só detestavam os arrogantes oficiais como frequentemente encaravam os superiores através do prisma da etnia e a causa dos Habsburgo com indiferença ou hostilidade. Os tchecos e outras minorias étnicas sentiam-se ofendidos pela forma como eram tratados pelos oficiais austríacos, por eles considerados arbitrários e arrogantes. Os próprios austríacos viam os tchecos, rutenos (provenientes do leste da Hungria, ao sul dos Cárpatos) e, com alguma razão, os servo-bósnios como indignos de confiança. Não era, com certeza, uma boa receita para um moral elevado. As deserções de tchecos, numerosas e crescentes, indicavam que as tendências nacionalistas étnicas estavam promovendo o enfraquecimento do esforço de guerra dos Habsburgo.

Na frente oriental, muito mais do que na ocidental (salvo na fase inicial do conflito), os civis se viram envolvidos diretamente nos combates. As notáveis memórias do prefeito de um vilarejo polonês dão uma boa ideia da vida dos civis durante a guerra na frente oriental. Jan Słomka nasceu em 1842, e sua longa vida chegou ao fim em 1929, aos 87 anos. Durante quarenta anos, foi prefeito de uma comunidade rural pobre em Dzików, perto da cidade de Tarnobrzeg, no sudeste da Polônia, perto do rio Vístula e dos Cárpatos, na porção do país dominada pelos austríacos antes da guerra. Seu vívido relato a respeito do impacto da guerra sobre sua comunidade mais lembra a destruição, as pilhagens e a devastação causadas pelos exércitos que avançavam e recuavam durante a Guerra dos Trinta Anos, no século XVII, que os horrores peculiares à estática guerra de trincheiras que marcaram a frente ocidental, onde as cruéis batalhas de atrito estiveram efetivamente distanciadas da vida civil.

Menos de um ano depois do começo da guerra, a vila de Słomka fora atravessada cinco vezes por tropas austríacas e quatro vezes por russas. Três batalhas de grandes proporções foram travadas nas proximidades. Os russos ocuparam o lugar duas vezes: na primeira por três semanas; na segunda, por oito meses. Os movimentos das tropas e as batalhas provocaram enorme devastação. Quase 3 mil propriedades rurais e casas foram destruídas nas áreas circunvizinhas, sobretudo por granadas de artilharia. Alguns vilarejos foram completamente arrasados. Cerca de 140 quilômetros quadrados de florestas foram queimados, derrubados ou destruídos pela artilharia. Qualquer coisa que restasse nas casas arruinadas era saqueada. Grande parte dos habitantes — aqueles que não tinham fugido antes da chegada dos russos — ficou reduzida à miséria. Muitas pessoas foram forçadas a morar em barracos improvisados entre as ruínas, enquanto seus campos ficavam sem cultivo, ocupados por trincheiras de infantaria e emaranhados de arame farpado, e seus cavalos e seus rebanhos eram afugentados pelos russos. A maior parte dos homens adultos foi deportada para os Urais. Faltavam comida, roupas e moradias, assim como mão de obra, já que não restavam homens para trabalhar. O racionamento de víveres, medida altamente impopular, teve de ser adotado, e, à medida que crescia a escassez, os preços sofreram aumentos astronômicos.

Tudo tinha começado num clima de otimismo em Dzików. Ordenada a mobilização, em 1o de agosto de 1914, os jovens correram para se alistar. A população civil acolheu as tropas com entusiasmo quando desfilaram, cantando, a caminho da frente de batalha, com o moral nas alturas. Havia a convicção geral de que as Potências Centrais seriam vitoriosas, a guerra seria decidida em território russo e seu resultado haveria de ser um novo Estado polonês.

Todavia, o início do conflito trouxe à luz uma divisão importante na população local. A animosidade e o ressentimento dos católicos contra os judeus (que formavam a maioria dos habitantes de Tarnobrzeg, embora não da própria Dzików ou de outras vilas próximas) traduziram-se em acusações de que eles se esquivavam ao serviço militar e não contribuíam com seu quinhão de hospedagem, cavalos e carroças para as tropas, o que aumentava o ônus para os moradores locais. Por fim, os judeus foram reunidos e postos para trabalhar sob coerção.

A retirada russa para além do Vístula, ante o avanço dos austríacos, confirmou a confiança popular num iminente triunfo da Áustria-Hungria e, com isso, numa vitória para a Polônia. Previa-se que a guerra estaria acabada dentro de poucos meses. Contudo, esse otimismo inicial logo se desfez. O ribombar de canhões nas proximidades, em 9 de setembro, trouxe, de repente, alarme e pânico à população, até então confiante de que o Exército austríaco estava a caminho da vitória. Em alguns dias ficou evidente que ele estava batendo em retirada precipitadamente. Soldados dispersos, exaustos, famintos e feridos, muito diferentes dos esplêndidos regimentos que haviam partido semanas antes, voltavam à vila. Primeiro, pediam comida; depois, roubavam o que pudessem para consegui-la. Muitos judeus do lugar fugiam do avanço dos russos, e com bons motivos para isso, já que o tratamento que o inimigo dispensava a eles era “severíssimo e impiedoso”. Os judeus de Dzików foram reunidos e açoitados publicamente. Num vilarejo próximo, cinco judeus foram enforcados sob a acusação de esconderem armas. Outros dois, de Tarnobrzeg, foram enforcados à beira da estrada por suspeita de espionagem. No começo de outubro, quando os próprios russos foram obrigados a se retirar, a população deu boas-vindas, como libertadores, a tropas que julgaram ser austríacas, de retorno à vila. Na realidade eram regimentos húngaros, e os soldados aquartelados na área, em número aproximado de 15 mil, mostraram-se tão predatórios e hostis quanto tinham sido os russos. No começo de novembro, os russos estavam de volta, e sua ocupação, dessa vez acompanhada de novos e generalizados saques, além de muita destruição, durou até junho de 1915.

Com a drástica deterioração da situação econômica nos últimos anos da guerra, quando as dificuldades da população local pioraram bastante e as deserções constituíam um claro indício da fraqueza militar dos austríacos, as esperanças de independência para a Polônia esmoreceram. E quando, em 9 de fevereiro de 1918, a metade oriental da província austríaca da Galícia foi entregue à recém-criada República Popular da Ucrânia, por ocasião de um tratado à parte firmado entre Ucrânia, Alemanha e Áustria-Hungria (reconhecendo a independência da primeira e garantindo apoio militar contra os bolcheviques em troca de alimentos), sem que nenhum polonês participasse do acordo, houve uma sensação generalizada de que a Alemanha e a Áustria tinham traído a Polônia. Como a elevação da Polônia a Estado independente era um dos Catorze Pontos do presidente Wilson, elencados no mês anterior, os poloneses haviam sido levados a questionar sua lealdade, já vacilante, às Potências Centrais. Não obstante, a forma como esse país se materializaria — e até se isso de fato viria a acontecer — era muitíssimo incerta.

No último dia de outubro de 1918, hordas de desertores do Exército austríaco, até então escondidos nas florestas e alimentados pela população local, deixaram seus esconderijos para se juntar na praça central de Tarnobrzeg, depois de arrancar as rosetas austríacas dos barretes. Nos primeiros dias de novembro, as insígnias austríacas começaram a ser removidas de onde estivessem, substituídas pela águia polonesa. Soldados corriam para a estação, a fim de viajar para casa assim que possível. Num comício, os cidadãos se regozijaram: “A Polônia foi restaurada!”. As autoridades locais (entre elas o próprio Słomka), que tinham sido a encarnação das normas opressivas e impopulares durante a guerra, foram destituídas de uma hora para a outra. Os policiais, surrados com frequência, eram um dos alvos prediletos da ira popular. Os judeus, acusados de explorar a miséria da população com escorchantes taxas de juros sobre empréstimos e de fugir ao serviço militar, eram vítimas óbvias das hostilidades, que de vez em quando irrompiam em surtos de violência nos quais lojas eram saqueadas e seus proprietários agredidos. O ódio classista era manifesto. Dois terços das terras na região pertenciam a dez grandes proprietários, enquanto cerca de 14 mil minifúndios de camponeses ocupavam a maior parte do terço restante. Não admira, pois, que nas condições caóticas do fim da guerra, e muitas vezes buscando inspiração na Revolução Bolchevique, bandos de camponeses (às vezes ajudados por servos das propriedades), armados com cajados, forcados e revólveres, atacassem mansões senhoriais e latifúndios, invadissem celeiros e saqueassem cereais, rebanhos, feno, carroças e outros bens, chegando, às vezes, a agredir e assassinar os administradores dessas propriedades.

A guerra que havia começado com expectativas tão elevadas terminou nessa parte da Polônia com intensas inimizades, conflito de classes, maior hostilidade contra os judeus, quebra de autoridade, violência e desordens generalizadas. O incipiente Estado da Polônia era tudo menos uma nação unida. Ao ser firmado o Armistício, o país não tinha governo. Em 16 de novembro de 1918, quando se anunciou a existência de um Estado polonês independente, seus esforços para definir suas fronteiras e construir uma infraestrutura unificada estavam apenas começando. E, fossem quais fossem as esperanças que a comunidade de Jan Słomka em Dzików e as de inúmeros lugarejos poloneses haviam alimentado durante a guerra de restauração do Estado, a forma precisa desse Estado, quando surgiu, teve pouco a ver com os desejos dessas pessoas e quase tudo a ver com as circunstâncias em que ocorreu o colapso das três potências — a Rússia, a Áustria e a Alemanha (ou Prússia, antes de 1871) — que vinham administrando a partição da Polônia desde 1795.

Em toda parte, tanto na Europa Ocidental quanto na Oriental, e malgrado as características diferentes da guerra nas duas frentes, a população de cada país teve de suportar novas agruras, materiais e psicológicas, durante o conflito. Couberam às mulheres os maiores esforços. Muitas tiveram de se responsabilizar pelos trabalhos nas lavouras, ao mesmo tempo que cuidavam de crianças e se preocupavam com o marido que lutava longe. Nas regiões industriais, foram obrigadas a realizar o serviço que antes era feito por homens nas fábricas de armamentos ou a manter em funcionamento as redes de transporte. Enfrentando a escassez de alimentos que só piorava e a disparada dos preços, o medo constante delas era a batida na porta com a notícia de um ente querido morto em ação. Não é de surpreender que a raiva e o ressentimento só aumentassem. As filas em busca de alimentos as punham em contato, o que levava à propagação de notícias e boatos e a debates sobre o descontentamento. As cartas recebidas da linha de frente lhes forneciam indícios de como ia a guerra e de como as tropas vinham reagindo. Suas próprias cartas para os soldados davam uma ideia da situação nacional. Os soldados também se informavam sobre as condições na retaguarda por ocasião dos raros períodos de licença, e essas lembranças os acompanhavam de volta às trincheiras.

Era impossível para os parentes, em casa, captar de forma plena os horrores da frente de batalha, ainda que na Inglaterra milhões de pessoas tivessem uma ideia do que acontecia pelo filme oficial The Battle of the Somme, que, embora incluísse sequências encenadas, não ocultava a medonha realidade. Foi a primeira vez na história em que se proporcionou a uma plateia civil uma experiência visceral da guerra. O filme era tão angustiante que algumas pessoas que o viam desmaiavam, e as autoridades se viram obrigadas a admitir que a população não estava preparada para tal exposição à terrível realidade da guerra. A maioria queria — ou precisava — bloquear o que seus parentes estavam enfrentando em combate. Por isso não surpreende que muitos soldados retornassem para a luta após uma folga com a sensação de que familiares e amigos não faziam ideia do que estavam vivendo. A acolhida calorosa que um tenente britânico recebeu dos parentes quando os visitou, de licença, em 1917, esfriou rapidamente. A família fez elogios aos soldados, falando da vitória britânica em Passchendaele. Quando ele descreveu os horrores da batalha e deixou implícito que as tropas tinham sofrido baixas imensas a troco de nada, foi praticamente posto porta afora.

Contudo, a insensibilidade e a incompreensão não eram necessariamente a regra geral. A interação entre as famílias e a frente de batalha era mais próxima e mais forte do que tais relatos levam a crer. O enorme volume de correspondência mostra o desejo intenso de uma licença para visitar os parentes (no caso daqueles que tinham a sorte de poder fazê-lo, o que não acontecia, digamos, com soldados canadenses, indianos, australianos ou neozelandeses, ou de regiões distantes do Império russo). Parece também que as atitudes em relação à guerra, no país e na frente de batalha, se aproximavam cada vez mais à medida que o conflito perdurava, em especial nas potências que se defrontavam com a perspectiva da derrota.

O vasto conjunto de experiências diversas, em cada um dos países e nas trincheiras, resiste a resumos simplificados ou generalizações. Não obstante, parece claro e historicamente significativo que as potências que começaram a guerra com sistemas políticos merecedores de amplo apoio, fundamentados em níveis relativamente altos de representação e em valores amplamente aceitos e sólidos — aquilo que poderia ser chamado de “legitimidade” —, gozavam de clara vantagem para manter o moral no país e na frente de batalha, e portanto para maximizar o esforço de guerra. Isso, é claro, não era tudo. Esses países precisavam também de superioridade em suprimentos de armas, alimentos e recursos humanos. A Inglaterra e a França dispunham dessas vantagens, sobretudo porque podiam contar com recursos oriundos não só de suas dependências ultramarinas como também dos Estados Unidos, e perto do fim da guerra tiveram o apoio direto de grande número de tropas americanas. Isso possibilitou manter a expectativa de uma vitória final. E, onde a esperança de vitória pôde de início ser mantida e depois se tornou cada vez mais alcançável, o sistema político conservou sua legitimidade, mesmo em face de baixas numerosíssimas na frente de batalha.

Por outro lado, nos países em que a certeza da derrota crescia, a esperança minguava e as baixas imensas (e cada vez maiores) passavam a ser vistas como inúteis, a legitimidade do sistema político tido como responsável pela calamidade foi sendo solapada até chegar a ponto de desmoronar. A expressão mais clara disso foi a quantidade de deserções nos exércitos das Potências Centrais perto do fim da guerra. Nos países em que a legitimidade era mais fraca, a guerra impôs um ônus de tal monta a seus cidadãos que os regimes que a promoviam se viram cada vez mais ameaçados pela insatisfação tanto da população civil como das tropas nos campos de batalha.

O ESTADO SOB PRESSO

A guerra pôs todos os Estados participantes, mesmo os que por fim colheram a vitória, sob uma tensão sem precedentes. Todas as tarefas num conflito de tamanha escala, fossem elas novas ou imensamente disseminadas, tornaram-se responsabilidade estatal. Era preciso mobilizar tropas e recursos para o combate em quantidades cada vez maiores. Em cada um dos países, uma elevada proporção da população masculina apta a empunhar armas foi recrutada, no meio da guerra, para o serviço militar. (A Inglaterra, que tinha começado a guerra com voluntários, adotou o alistamento obrigatório em 1916.) O armamento tinha de ser produzido em massa para dar aos soldados ferramentas com que lutar. O Estado passou a patrocinar pesquisas de novas tecnologias e o desenvolvimento de tipos novos de armas. O número de hospitais, enfermarias improvisadas e centros de recuperação teve de ser ampliado enormemente a fim de atender ao grande número de feridos e mutilados que voltavam da frente de batalha. Foi preciso organizar sistemas de pensões previdenciárias, por mais precários que fossem, para cuidar do sustento de viúvas e famílias que tinham perdido seu provedor. O governo tinha de orquestrar a opinião pública e manter o moral elevado por meio da propaganda e da censura oficiais, controlando a disseminação de informações e exercendo influência direta ou indireta sobre a imprensa.

Tudo isso impunha a necessidade de economias sob controle estatal e gastos públicos bem maiores. As despesas militares por si só atingiram patamares nunca vistos perto do fim da guerra: 59% do produto interno bruto alemão, 54% do francês, 37% do britânico (ainda que economias menos desenvolvidas, como as da Rússia, da Áustria-Hungria ou do Império Otomano, precisassem se haver com menos). Impuseram-se aos cidadãos tributos novos ou mais elevados. A Inglaterra foi relativamente bem-sucedida em financiar os custos da guerra mediante tributação, mas a Alemanha e, sobretudo, a França relutaram em cobrar mais impostos de seus cidadãos, imaginando que o inimigo pagaria reparações de guerra depois da vitória. A maior parte do custeio da guerra veio de empréstimos. Os Aliados levantaram dinheiro principalmente junto aos Estados Unidos. No entanto, à medida que a guerra se desenrolava, tornou-se impossível para a Alemanha captar empréstimos no exterior, e o esforço de guerra teve de ser financiado, cada vez mais, pelo aumento da dívida interna. Todos os países participantes do conflito lançaram mão de campanhas de bônus de guerra. Em todos eles, a dívida pública cresceu muitíssimo. Quando nem empréstimos nem tributação eram suficientes, os países imprimiam dinheiro, criando problemas a ser solucionados mais tarde.

Com a intensificação do controle da economia pelo Estado e de sua intervenção na vida civil, o tamanho da máquina estatal aumentou. Os serviços públicos nacionais se expandiram. O mesmo aconteceu com os padrões de vigilância, coerção e repressão. Cidadãos de países inimigos foram confinados. Em algumas regiões, em especial no leste da Europa, populações inteiras foram desalojadas. Quando os russos se retiraram do oeste da Polônia e da Lituânia, em 1915, pondo em prática a política de “terra arrasada”, já tinham deportado para o interior da Rússia pelo menos 300 mil lituanos, 250 mil letões, 350 mil judeus (que, além disso, eram muito maltratados) e 743 mil poloneses. No começo de 1917, cerca de 6 milhões de desalojados — refugiados do Cáucaso e de áreas fronteiriças no oeste, bem como aqueles deportados à força — tinham se acrescentado às massas submetidas à penúria nas cidades russas.

Em toda parte, o Estado tinha de garantir o apoio principalmente da classe operária industrial (que agora incluía grande número de mulheres, empregadas na indústria de armamentos), cuja militância crescia de acordo com o agravamento das condições materiais. Muitas vezes, em especial nos sistemas mais autoritários, recorria-se mais prontamente à punição que ao incentivo. Por outro lado, na Inglaterra, na França e — até perto do fim da guerra — na Alemanha, os trabalhadores foram apaziguados com aumentos de salários (em relação a outros setores da sociedade), promessas para o futuro e concessões para facilitar a formação de sindicatos. Na Alemanha, as medidas drásticas para obter mão de obra, nos termos da Lei de Serviços Auxiliares, de dezembro de 1916 — trabalho compulsório nas indústrias de guerra para todos os homens entre dezessete e sessenta anos —, combinaram-se com a criação de comitês de trabalho em fábricas com mais de cinquenta empregados, com igual representação de trabalhadores e patrões. Ainda assim, e independentemente de seu apoio ao esforço de guerra, os trabalhadores (inclusive mulheres) se dispunham a fazer greve em defesa de seus interesses materiais. Na Inglaterra, onde as condições deterioraram-se menos que em qualquer outro país envolvido e onde o apoio à guerra permaneceu relativamente alto, houve mais greves do que em qualquer outra nação em guerra, exceto a Rússia. Em 1918, o número de trabalhadores britânicos em greve triplicou em relação a 1914. Fora da Inglaterra, as greves foram relativamente poucas nos primeiros dois anos de guerra, mas em 1917-8 cresceram substancialmente, em número e em conteúdo político.

À medida que aumentavam o sofrimento e as dificuldades causados pela guerra, aparentemente intermináveis, intensificava-se também a busca de bodes expiatórios. A propaganda governamental insuflava ódios correntes. O ressentimento popular voltava-se contra capitalistas e financistas, mas não se tratava simplesmente do óbvio ódio de classe a quem lucrava com a guerra. Com pouca dificuldade, podia ser transformado em ódio étnico. Os judeus eram cada vez mais caricaturados como exploradores das massas trabalhadoras e encarnação do capital financeiro. Contudo, a aversão a eles era demasiado antiga em grande parte da população europeia e demasiado camaleônica na adaptação de suas cores a qualquer preconceito para ser confinada a uma mera ligação com o capitalismo. Com frequência, uma antipatia profunda mesclava ressentimento econômico com antigos preconceitos contra os “assassinos de Cristo” — muito presentes ainda, em especial na Europa Central e Oriental, e amiúde promovidos pelo clero cristão. A esse amálgama de ódios adicionou-se outro ingrediente letal em 1917: os judeus como causa do bolchevismo e da revolução. Quando a guerra se aproximava do fim, a imagem multifacetada do judeu não poderia ser mais caricatural: inimigo da cristandade, explorador capitalista, insubmisso ao serviço militar, fomentador de intranquilidade interna, força impulsora do bolchevismo. Não era de admirar que depois de 1917, ao começar a reação contra a Revolução Russa, aumentasse em muito a circulação de uma obra forjada pela polícia tsarista, antes da guerra, para revelar uma conspiração judaica que visaria a assumir o poder mundial, chamada Osprotocolos dos sábios de Sião.

Em cada um dos países envolvidos, as mudanças na sociedade foram afetadas pelo efeito da guerra sobre a política nacional e pela viabilidade do respectivo sistema de governo, mas, ao mesmo tempo, influenciaram diretamente esse efeito e essa viabilidade. A princípio, os Estados tentaram manter seu sistema político funcionando como antes da guerra, ou da maneira mais próxima possível. “Business as Usual” — negócios como de costume — foi a palavra de ordem criada por Winston Churchill num discurso de novembro de 1914 para sublinhar a necessidade de manter a vida normal, sem se deixar perturbar pelas hostilidades no exterior, que supostamente seriam breves. Essa esperança seria de curta duração em todos os países envolvidos na guerra. No entanto, a política se manteve mais ou menos como de costume, até que internamente esses países passaram a se sentir fustigados, em maior ou menor grau, pelas pressões da guerra.

Na Inglaterra e na França, as divergências político-partidárias continuaram intensas e às vezes violentas, mas sem jamais suplantar um senso de união produzido pelo compromisso com o esforço de guerra — uma união só desafiada por minorias que por vezes se mostravam veementes, embora sem exercer influência em escala relevante. Nesses países, a mudança ocorreu depois de períodos de adversidade, mas no sentido de pôr “homens fortes” à frente do governo a fim de buscar a vitória com redobrado vigor. Depois das enormes baixas no Somme e na esteira da grave rebelião na Irlanda, que ameaçou o domínio britânico, o dinâmico David Lloyd George tornou-se primeiro-ministro em dezembro de 1916, chefiando um pequeno, mas poderoso, gabinete de guerra. Sua liderança logrou conferir uma nova organização e um novo impulso à economia e galvanizar o esforço de guerra. Na França, a crise política depois dos problemas de 1917 — motins na frente de batalha e greves, passeatas contra a guerra e exigências de paz negociada na cidade — levou de volta ao governo, em novembro daquele ano, o líder radical veterano Georges Clemenceau. Símbolo do nacionalismo republicano, ele foi nomeado para encarnar um empenho enérgico, restaurar a confiança e simbolizar “a luta obstinada e patriótica por uma paz de vencedor”.

Nem na Inglaterra nem na França as disputas internas quanto à direção da guerra e aos variados graus de discórdia social e política, principalmente na esquerda socialista, chegaram perto de um desafio revolucionário ao Estado. O moral britânico foi mantido, em boa medida, pela confiança de que o país não seria invadido, pela perspectiva de vitória e pelas relativamente poucas privações materiais. Claro que, indiretamente, a guerra afetou a todos. Contudo, seu efeito direto limitou-se aos que haviam prestado serviço militar. Na França, as posturas foram mais diversificadas. Protestos pacifistas e passeatas em favor da paz, no começo de 1918, em que se ouviram manifestações de apoio ao bolchevismo e à revolução, levaram, em maio, a uma grande greve de trabalhadores em fábricas de munições. Essas opiniões poderiam ter sido mais comuns se a guerra não estivesse sendo travada em solo francês. No caso, o pacifismo foi mais que neutralizado pela urgência de continuar a lutar para enfrentar a grande ofensiva alemã. Assim que o avanço adversário esmoreceu e a vitória deu sinal, o moral francês se manteve alto até o fim. Tanto na Inglaterra como na França, a esquerda socialista, de modo geral, continuou a apoiar o esforço de guerra. Em nenhum dos dois países viu-se uma séria ameaça à legitimidade do Estado. A situação poderia ter sido diferente também neles se a derrota se anunciasse próxima e as baixas passassem a ser vistas como inúteis.

Na Rússia, a realidade estava no outro extremo desse espectro. Só nela houve uma revolução durante a guerra. Só nela a revolução representou uma transformação de alto a baixo nas relações socioeconômicas e nas estruturas políticas. E só nela a classe dominante foi inteiramente destruída.

A tentativa de revolução no país em 1905 tinha fracassado devido à falta de coesão dos descontentamentos dos trabalhadores em greve, dos camponeses em rebelião e dos soldados e marinheiros, dos quais só um número relativamente pequeno se amotinou. Houve também falta de uma liderança revolucionária unida. O tsar havia dissuadido os revolucionários, em parte, mediante concessões no sentido de um governo constitucional que, como logo se viu, eram pouco mais que cosméticas. A polícia política tsarista, a Okhrana, foi eficiente para prender líderes revolucionários ou mandá-los para um exílio distante, infiltrar-se em suas organizações, fechar jornais sediciosos, reprimir greves e executar líderes camponeses rebeldes. Por ora, o regime evitara sua própria queda. No decurso dos anos seguintes, as comunicações melhoraram, a economia cresceu (nos anos que antecederam a guerra, a uma taxa mais elevada que a dos Estados Unidos), a industrialização fez progressos consideráveis e as receitas públicas cresceram. No entanto, o grande problema continuava a ser a natureza esclerosada da autocracia tsarista. É possível que, sem a guerra, os russos pudessem ter adotado mudanças que transformassem seu regime numa monarquia constitucional. Contudo, isso parece improvável, devido à resistência obstinada da classe dominante a uma mudança sistêmica e à extensão da hostilidade arraigada e organizada (apesar da repressão) do operariado e do campesinato à autocracia. Era mais provável uma revolução num futuro indeterminado. No fim de 1916, ela parecia iminente.

No inverno inclemente de 1916-7, quando muitos camponeses russos escondiam alimentos ou os vendiam a preços elevados, os grandes centros industriais sofreram uma dolorosa escassez de víveres e combustíveis. Os transportes achavam-se à beira do colapso. As finanças públicas arruinavam-se. A inflação subia às alturas. Os salários (salvo os de trabalhadores qualificados nas indústrias de munições) não conseguiam acompanhar os preços desenfreados. Muita gente estava à beira da fome. Tudo isso enquanto uma minoria privilegiada lucrava com a guerra — o que era fonte de grande ressentimento. Em janeiro de 1917, em Petrogrado (antes São Petersburgo) e em outras cidades, ocorreram greves e manifestações de protesto nas quais a indignação causada pelo aumento do custo de vida se somava a sentimentos de oposição à guerra e ao governo tsarista. Trabalhadoras saíram às ruas, em 8 de março (23 de fevereiro no antigo calendário juliano), para protestar contra a falta de pão, e essas manifestações incitaram greves e passeatas de operários da indústria de armamentos. Em Petrogrado, soldados e marinheiros apoiaram a insurreição. Os disparos contra manifestantes não conseguiram pôr fim à greve de mais de 200 mil trabalhadores. E o governo se viu impotente para desmobilizar um movimento que, se chamado pelo verdadeiro nome, seria uma greve militar no seio das Forças Armadas. Ordens para supressão dos motins caíram em ouvidos moucos. A situação não demorou a fugir ao controle das autoridades tsaristas. Os trabalhadores elegeram sua própria forma de governo representativo, o soviete (conselho em russo). A ordem desintegrou-se rapidamente. Os soldados também elegeram sovietes que os representassem, exigindo a deposição do tsar. Quando oficiais e políticos de destaque concluíram que o monarca deveria deixar o poder, Nicolau ii assentiu e, em 15 de março, abdicou. Ele e sua família foram fuzilados pelos bolcheviques em julho de 1918, e seus restos mortais só foram identificados oitenta anos depois, após a extinção da União Soviética.

A guerra havia gerado as condições para que a fúria inflamada voltada contra o tsar e o sistema de domínio que ele representava, tido como responsável pela miséria do povo, transcendesse, temporariamente, a divisão de interesses entre trabalhadores urbanos e camponeses. Em 1917, as forças revolucionárias da classe operária industrial e as do campesinato uniram-se durante algum tempo. Mesmo irmanadas, talvez tivessem sido insuficientes para derrubar o sistema, como fora o caso em 1905. No entanto, e isso foi crucial, a guerra aliou os interesses dos operários e camponeses aos do número cada vez maior de soldados em combate, imensamente insatisfeitos. Quando o descontentamento se propagou nas frentes de batalha, os soldados perderam a vontade de combater, e seu ardor revolucionário se somou ao das cidades e dos campos russos, o regime já estava com os dias contados. A onda de descontentamento com as imensas baixas e com os horrores insuportáveis aglutinou-se numa explosão de oposição à guerra que varreu o sistema tido como responsável por ela. Um regime baseado na repressão e na coerção, com poucas estruturas intermediárias capazes de integrar a massa da população num apoio voluntário a seus governantes, viu-se praticamente sem chão à medida que as pressões se avolumavam, até a barragem estourar, em 1917.

Mesmo depois da deposição do tsar e da criação do governo provisório de “democracia revolucionária”, em março de 1917, a situação continuou muito instável. A fluidez da situação nos meses seguintes e o prosseguimento de uma guerra irremediavelmente perdida criaram o clima para uma segunda revolução, bem mais radical.

Nessa altura, em outubro de 1917 (no calendário antigo), o quadro organizacional para canalizar e conduzir a revolução estava à mão. Em contraste com 1905, esse foi um fator decisivo no sucesso da revolução. O Partido Bolchevique não contava ainda com uma base de massa além de exíguos setores da classe operária. Tinha, porém, um núcleo de liderança fanático e muito coeso, com um programa preconcebido em que a destruição do antigo sistema não era um fim em si, mas apenas o prelúdio da construção de uma sociedade inteiramente nova. O Partido Bolchevique nascera como facção do Partido Operário Social-Democrata Russo, que, fundado em 1899, mais tarde cindira-se em duas alas: uma maior, revolucionária (bolchevique) e outra menor, reformista (menchevique). Vladímir Ilitch Uliánov, mais conhecido pela alcunha de Lênin (que tinha sido exilado para a Sibéria no fim da década de 1890 e depois vivera bastante tempo fora da Rússia, até 1917) imaginava o partido como a vanguarda da classe trabalhadora e defendia uma disciplina rígida e total lealdade a serviço do objetivo de derrubar o tsar. Sua meta seguinte foi criar, mediante o uso impiedoso do terror contra os “inimigos de classe”, uma “ditadura democrática revolucionária provisória do proletariado e do campesinato”. Em abril de 1917, alemães que pretendiam fomentar maior insatisfação, além de agitação em prol da paz, com vistas a minar a titubeante vontade russa de continuar na guerra, transportaram o carismático líder bolchevique de seu exílio na Suíça para o caos revolucionário de Petrogrado. À luz de acontecimentos posteriores, esse foi um dos maiores “gols contra” da história. Em julho, em meio à repressão dos bolcheviques pelo governo, Lênin teve de se refugiar na Finlândia (parte semiautônoma do Império russo desde 1809 que, depois da deposição do tsar, passou a pressionar mais e mais pela independência). Entretanto, com a queda do governo, ele voltou a Petrogrado para liderar a segunda revolução.

O que mantinha a coesão dos líderes e membros do Partido Bolchevique era uma ideologia utópica de salvação, a visão de uma futura sociedade sem classes e livre de conflitos. Porém, o que deu aos bolcheviques a possibilidade de buscar o apoio de um público mais amplo foi uma estratégia menos etérea e mais pragmática: a promessa de paz, pão, distribuição de terras, propriedade e controle das fábricas e administração da lei pelo povo. Politicamente, os bolcheviques exigiam todo o poder para os sovietes (que já tinham sido criados em todas as cidades importantes). A impopularidade do governo provisório de Aleksandr Kerenski, além da escassez de alimentos, da inflação estratosférica e das imensas baixas na última e desastrosa ofensiva, acabou beneficiando os bolcheviques. O controle do soviete de Petrogrado (dirigido por Liev Trótski, nascido Liev Davidovitch Bronstein, talentoso organizador e demagogo que pregava a necessidade de revolução permanente) proporcionou a catapulta para a revolução de outubro, que por fim levou à completa encampação dos sovietes pelos bolcheviques. Uma implacável campanha de terror interno contra os inimigos de classe e mais de dois anos da mais brutal guerra civil que se possa imaginar foram necessários para que as poderosas forças da reação e da contrarrevolução fossem derrotadas e a Rússia começasse a percorrer com firmeza o caminho para uma completa transformação política, social, econômica e ideológica. Todavia, uma coisa ficou clara desde o começo: a Revolução Bolchevique foi um fato de relevância histórica mundial. E o que produziu foi um tipo de Estado e de sociedade inteiramente novos. Notícias do que estava acontecendo na Rússia provocaram, em toda a Europa, ondas de choque que reverberariam durante décadas.

Em outras partes da Europa, a crise de legitimidade ocorreu um ano depois da Revolução Bolchevique, na esteira da derrota que se tornava visível. Na Alemanha, a guerra não significou o fim da política partidária. Ao contrário, a polarização da política alemã, que se deu claramente antes da guerra, embora de início mascarada pela “trégua civil” de 1914, ficou plenamente exposta à medida que crescia a percepção de adversidade, enormes perdas humanas a troco de muito pouco e derrota iminente. As divisões ideológicas e de classe que tinham sido apaziguadas apenas temporariamente no começo do conflito logo voltaram à tona e, a partir de 1916, sob uma forma nitidamente radicalizada. Enquanto os suprimentos de víveres se reduziam, os preços disparavam e os padrões de vida despencavam, intensificavam-se as dissensões políticas sobre a paz e os objetivos anexionistas da guerra.

O principal impulso para uma mudança política drástica partiu de esquerdistas alemães. Os sociais-democratas tinham se dividido em 1917 com relação à posição diante da guerra. Uma minoria radical, que a rejeitava como um conflito imperialista que só poderia ser superado por uma revolução socialista, separou-se e formou o Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (o USPD, cujo núcleo tornou-se mais tarde o Partido Comunista Alemão). A facção maior dos sociais-democratas, que agora assumiu o nome de Partido Social-Democrata Majoritário da Alemanha (MSPD), também condenava a guerra imperialista e as anexações alemãs, mas rejeitava a revolução em favor de uma reforma, mediante a adoção da democracia representativa e de um governo que prestasse contas ao Parlamento, e não ao cáiser. (Na Alemanha imperial, os partidos de todo o espectro político estavam representados no Reichstag. Contudo, não controlavam a tomada de decisões. O poder estava nas mãos do cáiser, dos ministros por ele nomeados e dos líderes militares.)

Em 19 de julho de 1917, o MSPD, com o apoio de alguns liberais (o Partido Popular Progressista) e do Partido do Centro Alemão, votou no Reichstag a favor de uma resolução de paz. No entanto, enfrentavam adversários poderosos da ala direita conservadora e liberal que apoiava a liderança militar e defendia não só o prosseguimento inflexível da guerra como novas anexações territoriais. Grupos de pressão, com apoio de grandes instituições como a Liga Pangermânica (Alldeutscher Verband) e, sobretudo, o Partido da Pátria (que, fundado em 1917, assumiu posições nacionalistas e imperialistas extremadas e chegou a 1,25 milhão de membros), defendiam a luta até a vitória com maiores ganhos territoriais e, ao mesmo tempo, rejeitavam a democracia parlamentar. Essa constelação política se manteve até o fim da guerra, aumentando sua influência à medida que as dificuldades materiais cresciam e a derrota se avizinhava. A polarização radical da política alemã que se seguiu à derrota em 1918 já se prefigurava no andamento dos últimos dois anos da guerra.

Foi apenas nos últimos meses, porém, depois do fracasso da ofensiva do verão de 1918, que o moral na frente de batalha desabou, aumentando ainda mais a pressão interna para o fim da luta. Em janeiro, as greves de operários industriais tinham sido recebidas com pouca simpatia pelos combatentes, que acreditavam no sucesso da ofensiva a ser lançada em março. No início da ofensiva, a reação das tropas foi de exultação por “essa expressão fundamental da força alemã”. Mas, quando se começou a perceber que ela falhara, a raiva resultante se transformou em ação direta. Mais do que qualquer coisa, soldados que haviam lutado com coragem e determinação durante quase quatro anos queriam sobreviver ao que agora viam ser uma peleja perdida. O cansaço da guerra converteu-se num desejo cada vez maior de simplesmente parar de lutar. Nos últimos quatro meses do conflito, renderam-se na frente ocidental 385 mil soldados alemães — um número muito maior do que em todos os quatro anos da guerra. Estima-se que 750 mil outros tenham desertado de agosto de 1918 em diante. Isso se somou à insatisfação geral no país. Nas greves gigantescas do começo do ano, os protestos dos trabalhadores tinham se concentrado principalmente no custo de vida.

Quanto mais durava a guerra, mais era questionada a natureza do próprio Estado alemão. O sistema político em que os ministros prestavam contas ao cáiser, e não ao Parlamento, já tinha sido rejeitado pelos socialistas antes da guerra, mas se mantinha graças a forças poderosas que resistiam a qualquer mudança democrática. O agravamento da situação militar teve como resultado um aumento do clamor por parte da esquerda, não só para pôr fim ao derramamento de sangue como para tirar do poder aqueles que eram considerados responsáveis por ele e adotar um governo parlamentar democrático. Cada vez em maior número, os alemães viam como irreformável um sistema de governo que tinha como sustentáculos o militarismo, os privilégios de classe e o poder sem controle, encarnado na figura desagregadora do cáiser — um sistema que arrastara a Alemanha para uma guerra desastrosa e que precisava ser substituído. Era preciso instaurar a democracia. O povo que suportara o sofrimento, a dor e as privações da guerra precisava fazer com que sua voz fosse ouvida. No outono de 1918, a legitimidade do sistema de governo da Alemanha imperial tinha praticamente vindo abaixo.

Os Catorze Pontos que o presidente Wilson propusera no mês de janeiro previam, entre outras coisas, a devolução de territórios que a Alemanha tinha anexado ou ocupado, e por isso foram vistos como anátema pelos líderes alemães. Contudo, em 5 de outubro, diante de circunstâncias que se alteravam rapidamente, o recém-nomeado chanceler do Reich, o príncipe Max von Baden, que havia muito tempo defendia uma reforma política e a paz sem anexações, apelou para o presidente norte-americano, esperando um armistício em termos aceitáveis pela Alemanha. Entretanto, Wilson não quis fazer concessões e insistiu na adoção da democracia parlamentar (o que acarretava a perda de poder pelas elites dirigentes do país), na renúncia aos ganhos territoriais e num substancial desarmamento (que incluía a entrega da esquadra). Seguiu-se um acalorado debate entre os governantes alemães sobre a conveniência de aceitar tais termos, por eles considerados muito duros. Ludendorff opinou que seria melhor dar prosseguimento à guerra e não aceitar tamanha humilhação. No entanto, ele não estava mais em condições de dar ordens. E os acontecimentos, velozes, já não estavam sob seu controle — ou de quem quer que fosse. Em 26 de outubro, culpando a todos, menos a si mesmo, ele renunciou.

Na noite de 29 para 30 de outubro, marinheiros amotinados em Kiel desafiaram as ordens absurdas do comando naval para que a esquadra saísse ao mar a fim de enfrentar a Marinha britânica numa última grande batalha do tipo tira-teima. Teria sido um sacrifício sem sentido, apenas para salvar a honra da Marinha alemã. Os marinheiros não concordaram. O motim espalhou-se rapidamente e acendeu o estopim para uma revolução. Criaram-se conselhos de trabalhadores e de soldados, que tomaram o poder nas mãos. Os generais deixaram claro ao cáiser, o símbolo da velha ordem, que ele tinha de deixar o poder. Relutantemente, ele lhes deu ouvidos. Na noite de 9 para 10 de novembro, Guilherme ii deixou o quartel-general em Soa, na Bélgica, e rumou para o exílio na Holanda, onde permaneceu até a morte, em 1941. Sua abdicação foi anunciada de forma prematura, pois a renúncia formal ao trono só se deu em 28 de novembro. Mesmo antes de sua partida, entretanto, fora proclamada apressadamente, da varanda do Reichstag, em Berlim, a criação de uma república. Também sem verdadeira legitimidade constitucional, o chanceler, Max von Baden, nomeou seu sucessor, o líder socialista Friedrich Ebert. Sutilezas constitucionais não importavam no momento revolucionário. Em meio a um tumulto que duraria meses, a Alemanha estava a caminho de criar uma democracia parlamentar propriamente dita.

Forças ainda poderosas, defensoras da velha ordem, sentiam-se ameaçadas e passaram a aguardar uma oportunidade que lhes fosse favorável, fazendo os necessários ajustes táticos até que outras circunstâncias eliminassem as concessões à democracia e ao regime parlamentar. Pouco antes do Armistício, podia-se ouvir no seio da liderança militar alemã a opinião de que “os partidos de esquerda têm de assumir o opróbrio dessa paz. Depois a tempestade da fúria se voltará contra eles. Existe, pois, a esperança de se voltar a assumir as rédeas e governar à maneira antiga”. A democracia era vista nesses círculos como “a maior desgraça” que poderia suceder à Alemanha.

Na Itália, a crise do sistema de governo, que se aprofundava, foi apenas um pouco menos grave do que na Alemanha. Embora o país estivesse do lado da Entente, não se sentia vencedor. Em 1915, uma pequena elite política, que esperava uma vitória rápida que rendesse consideráveis ganhos territoriais no Adriático, tinha imposto a guerra a um país profundamente dividido. Até mesmo os generais foram mantidos desinformados, em larga medida, no tocante à decisão de intervir, e o Parlamento não fora consultado. A maior parte da população sentia não ter nenhuma participação na limitada representação política existente. Os italianos não tinham razões para se entusiasmar com governos que, apesar de mudar com frequência, pareciam sempre iguais e dedicados a proteger os interesses da mesma elite. Agora, derrota, dificuldades materiais e baixas pesadas polarizavam a sociedade e erodiam o apoio não só a uma sucessão de governos fracos como também ao próprio Estado.

Como a simbolizar a fraqueza e a divisão, o Parlamento raramente se reunia. Os gabinetes governavam por meio de decretos. Além disso, embora arcassem com a culpa pelo que saía errado, eram incapazes de controlar o general Luigi Cadorna, o austero, dominador e brutal comandante do Exército italiano até a humilhação de Caporetto, em 1917, que forçou seu afastamento. Antes disso, prevaleciam imperativos militares. A disciplina nas fábricas estava sujeita a controle marcial. Aumentaram a censura e as restrições à liberdade de expressão, ao mesmo tempo que crescia a repressão aos protestos contra o desabastecimento e às greves que ocorriam nas fábricas. As divisões sociais e políticas se aprofundaram, com foco nas desigualdades e no número absurdo de baixas na guerra. Com o aumento, a partir de 1916, das baixas, das derrotas, da escassez material e da sensação de humilhação nacional, a intranquilidade manifestou-se em greves, passeatas e protestos contra a escassez de gêneros alimentícios. O espírito geral não chegava a desembocar num movimento revolucionário — mas por pouco.

A esquerda era a principal fonte de expressão do descontentamento popular e da oposição à guerra, embora o próprio movimento socialista estivesse rachado em dois grupos: os que rejeitavam abertamente a guerra e pregavam a revolução, e a maioria que continuava a dar apoio patriótico, ainda que sem entusiasmo, ao esforço. Fato preocupante era que os ataques mais virulentos ao governo italiano vinham da direita. Os nacionalistas ampliaram sua base de apoio, aumentaram a agitação em prol de expansão territorial no sudeste da Europa e na África e, como afirmou o ministro do Interior, procuraram ganhar o controle da polícia e aterrorizar seus adversários. Queriam acabar com o que diziam ser o poder estéril do Parlamento e com sua burocracia, defendendo uma mudança social radical por meio de um Estado e de uma economia a serem dirigidos segundo princípios quase militares, mesmo depois do fim da guerra. Já estavam na vanguarda das formações municipais de defesa que se autodenominavam fasci. Delineava-se a crise italiana do pós-guerra.

A casa de Habsburgo, que governava a Áustria havia séculos, também pagava o preço de uma guerra cada vez mais impopular. Desde o começo, o conflito, cujo estopim foi uma disputa praticamente esquecida com a Sérvia, nunca teve muito apoio. Dificilmente poderia ser apresentado como uma guerra de defesa. E, como a Áustria-Hungria dependia da Alemanha mesmo para as pequenas vitórias que conseguia, o fato era por demais evidente e chegava a constranger. Com o prosseguimento da guerra desastrosa, potencializavam-se as forças centrífugas que ameaçavam fender e destruir o império dos Habsburgo. As tensões já eram visíveis bem antes da última e catastrófica fase do conflito. O idoso imperador Francisco José fora, durante décadas, praticamente o único símbolo de união no debilitado império multinacional (cuja metade húngara já era, em suas estruturas institucionais, quase uma entidade separada). O falecimento do imperador, em novembro de 1916, se deu em meio a uma crise de legitimidade, tanto para o esforço de guerra como para o trono dos Habsburgo. Seu sobrinho-neto e sucessor, o imperador Carlos, não tinha a menor condição de reverter o rumo dos acontecimentos, a despeito de tentativas vãs de diminuir a dependência da Alemanha e buscar um acordo de paz com os Aliados.

Durante algum tempo, depois de Caporetto, os austríacos sonharam de novo com a glória. Entretanto, os trens que tinham transportado quase que exclusivamente provisões para o Exército não estavam disponíveis para levar combustíveis e alimentos à população no duro inverno que se seguiu. Nos primeiros meses de 1918, enormes greves de protesto multiplicaram-se em várias partes do império. A insatisfação trabalhista, a indignação com as péssimas condições de vida, o desejo de separação alimentado pelos nacionalistas e a ânsia pela paz produziram uma combinação perigosa. “Total incapacidade dos governantes, absoluta desmoralização e insegurança geral” foi o diagnóstico do médico e escritor vienense Arthur Schnitzler. Em outubro de 1918, quando se multiplicavam os distúrbios provocados pela falta de alimentos, greves, protestos, antagonismos nacionalistas e anarquia, a situação, nas palavras do diretor do Departamento Austríaco de Alimentos, Hans Loewenfeld-Russ, tornara-se “absolutamente desesperadora”. O Império Habsburgo estava se esfacelando visivelmente.

Em grande parte da Áustria-Hungria, as divisões de classe estavam embutidas na política do nacionalismo étnico ou eram dominadas por ela. Fora do território da Áustria, onde os protestos da classe operária contra a deterioração do padrão de vida ameaçavam se transformar em revolução, inspirando-se com frequência na Rússia, elas se fundiram com exigências de independência e de dissolução do império, que se ouviam cada vez mais entre tchecos, poloneses e eslavos do sul. Na Hungria, apesar da disposição manifesta do imperador Carlos de adotar reformas liberais e caminhar no sentido de um império de estrutura mais federativa, a pressão pela independência cresceu nos últimos anos da guerra, com apoio dos socialistas e de muitos liberais. O poder civil e o debate parlamentar haviam se mantido, pelo menos nominalmente; já na metade austríaca do império, o Legislativo (Reichsrat) estava suspenso, e as assembleias provinciais, fechadas. Além disso, a censura e a vigilância sobre os cidadãos tinham aumentado, e a lei marcial foi adotada em áreas não alemãs e não tchecas. Dissidentes eram detidos e encarcerados. No entanto, a repressão não foi capaz de sufocar os movimentos separatistas de cunho nacionalista, particularmente vigorosos entre os tchecos nos últimos anos da guerra.

Quando o que restava do Exército austro-húngaro, cujos integrantes não desejavam quase nada além de salvar a própria pele, foi destroçado pelos italianos em Vittorio Veneto, em outubro de 1918, o império entrou em seus estertores. O Exército desintegrou-se. No fim de outubro, o imperador Carlos aceitou que as tropas se juntassem a suas forças nacionais. A anuência não foi mais que o reconhecimento do que acontecia na frente de batalha, onde tchecos, poloneses, húngaros, croatas e outros desertavam e voltavam para casa. No fim de outubro, com extraordinária rapidez, a Tchecoslováquia, a Hungria e o território que se tornaria a Iugoslávia proclamavam-se independentes. O armistício da Áustria com a Itália, em 3 de novembro, marcou o fim de seu esforço de guerra. Com relutância, o imperador Carlos renunciou a seus poderes (mas não ao trono) em 11 de novembro, e passou seus últimos três anos de vida exilado na Suíça e, por fim, na ilha da Madeira. Cinco séculos de poder dos Habsburgo chegavam ao fim.

Na Alemanha e na Áustria-Hungria, a revolução, a deposição dos soberanos e a substituição das monarquias por repúblicas (sendo que no último caso surgiram vários “Estados sucessores”) só se deram quando a derrota na guerra ficou evidente. No caso do Império Otomano, depois que os líderes turcos fugiram num submarino alemão para Odessa e então Berlim, à derrota seguiu-se o desmembramento do império ao sul da Turquia (a maioria das antigas possessões nos Bálcãs tinha conquistado a independência na década de 1870, e as guerras balcânicas de 1912 e 1913 levaram à perda final dos territórios otomanos na Europa). Também no Império Otomano, a hostilidade à guerra levara o Estado a uma crise insuperável de legitimidade. O elevado índice de deserções indicava uma queda perigosa do moral no Exército turco. O instável e pesado Império exagerara a fé em suas possibilidades no esforço de guerra e saiu de mãos vazias de suas tentativas de obter ganhos territoriais no Cáucaso. No Oriente Médio, uma revolta árabe deflagrada em 1916 (bastante favorecida por britânicos e franceses, ansiosos por promover seus interesses imperialistas) fez com que o governo otomano pouco atuasse na parte meridional do império.

Mesmo na Turquia, nesse ínterim, os problemas se acumulavam de maneira alarmante. As perdas na frente de batalha eram imensas. Estimativas da época calculavam as baixas turcas em nada menos que 2,5 milhões, o triplo das sofridas pelos ingleses. A enormidade dessas perdas, acompanhadas internamente pelo colapso da moeda, pela inflação galopante e por enorme escassez de víveres e outros produtos, minou os alicerces já abalados do Império Otomano. O Armistício não pôs fim ao sofrimento e à violência na Turquia, que logo afundou numa guerra de independência que durou até 1923, quando um país devastado enfim emergiu das ruínas como um Estado soberano e independente. A tomada de possessões otomanas no Oriente Médio pelas potências imperialistas ocidentais, Inglaterra e França, fez-se acompanhar de uma imensa intranquilidade anticolonial, ondas de protesto e violência endêmica que também não cessaram com o término da guerra. As consequências para o futuro indefinido foram gigantescas.

A guerra deixou uma Europa fragmentada, em que era difícil reconhecer o continente do começo do conflito, quatro anos antes. Dela saíram em pedaços até mesmo as potências vitoriosas — a Inglaterra e a França, além da Itália (como potência nominalmente vitoriosa, nominalmente “grande”). Com toda probabilidade, a missão de recolher os cacos caberia à única grande potência emergente, saída da guerra fisicamente incólume e economicamente robusta, na mesma medida em que as potências europeias se enfraqueciam: os Estados Unidos. Mas os americanos acabaram deixando a cargo dos europeus a obrigação de pôr ordem à barafunda que eles próprios haviam criado, o que teve consequências nada secundárias na longa crise do pós-guerra. Contudo, havia no legado catastrófico um fato crucial: as ruínas da Alemanha imperial, da monarquia dos Habsburgo e da Rússia tsarista tinham dado origem a uma situação perversa que teria efeitos sinistros nos anos seguintes.

A combinação de nacionalismo de cunho étnico, conflitos territoriais e ódio de classes (agora centrado, em aspiração ou aversão, na nova força que era o bolchevismo na Rússia) mostraria ser altamente explosiva. O nacionalismo étnico foi um dos principais legados da guerra. E se tornaria mais letal exatamente naquelas partes da Europa Central e Oriental onde, durante séculos, comunidades étnicas mistas tinham vivido lado a lado, mas novas tensões, cizânias e malquerenças, engendradas em larga medida pela guerra, agora se manifestavam em ferozes litígios em torno de fronteiras contestadas e terras divididas, e onde os ódios venenosos tinham inflado imensamente devido a um novo ingrediente: o triunfo do bolchevismo na Rússia. O conflito de classes, em especial na Europa Oriental e Central, recobria ressentimentos étnicos e territoriais para produzir um caldeirão fervente de violenta animosidade. Isso fez com que os primeiros anos do pós-guerra não fossem nada pacíficos nessas partes do continente, onde a violência desmedida prosseguiu sem pausa. A violência deixaria desavenças profundas que assumiriam o primeiro plano quando, vinte anos depois, a Europa se lançou em outro conflito, ainda mais arrasador.

A guerra causou perdas humanas descomunais, inimagináveis. O número de militares mortos chegou a quase 9 milhões, e o de civis (vitimados principalmente por deportação em massa, fome e doenças) totalizou cerca de 6 milhões. Considerando todos os envolvidos, nada menos de 7 milhões de combatentes tinham sido capturados pelo inimigo e, às vezes, passado anos em condições precárias em campos de prisioneiros de guerra (embora a maioria fosse repatriada com certa rapidez depois do Armistício). A vitória foi obtida, por fim, graças a uma combinação de maior poderio militar e recursos econômicos superiores. Mas a que fim servira tudo aquilo? A opinião das pessoas a respeito variava bastante, claro, principalmente de acordo com a experiência de cada um e com a sorte de seu país. Muitos, em todos os lados, tinham lutado por ideais — com frequência fora de lugar, mas, mesmo assim, ideais. Entre eles estavam a defesa da pátria, a honra e o prestígio nacionais, a liberdade e a civilização, o dever patriótico e, cada vez mais, a libertação nacional, assim como a esperança de um futuro melhor. Quando os quatro anos de mortandade chegaram ao fim, em 1918, o conhecido escritor austríaco Robert Musil fez um registro cínico em seu diário: “A guerra pode ser reduzida a uma fórmula: você morre por seus ideais, porque não vale a pena viver por eles”. Àquela altura, era provável que só uns poucos, entre os milhões de combatentes, ainda prezassem os ideais, quaisquer que fossem, com que tinham começado a lutar. Para muitos, entre as legiões de soldados convocados para os exércitos europeus, talvez houvesse de início pouca coisa em termos de idealismo abstrato. Muitas vezes os homens lutavam porque não tinham alternativa. E, para muitos deles, a matança não tinha sentido algum.

As palavras pungentes de um francês, escritas na frente ocidental em 1916, pouco antes de tombar, servem como expressão dos sentimentos de milhões de soldados rasos, em todos os exércitos combatentes:

 

Pergunto, esperando entender

A finalidade desta matança. A resposta

Que ouço é “Luto pela Pátria!”

Mas nunca descubro por quê

 

A carnificina fora monstruosa, e a destruição, imensurável. O legado, numa Europa radicalmente transformada, seria profundo. O balanço do conflito, de efeito prolongado, estava para começar.


* Respectivamente, “ferimento para voltar ao lar” (“Blighty” é um termo afetuoso com que os britânicos, principalmente os soldados no exterior, se referem à Inglaterra) e “tiro que leva à pátria”. (N. T.)