5. Sombras ameaçadoras

Ladeira abaixo, afogado sem deixar sinal, absolutamente destruído. Ordem e limpeza, fim; trabalho, segurança material, fim; progresso e esperança, fim.

Hans Fallada, E agora, Zé-Ninguém? (1932)

 

A Grande Depressão, que apertou suas garras a partir de 1930, foi nada menos que uma catástrofe para a Europa. Mas não atingiu todo o continente de forma homogênea. Alguns países, a depender de suas estruturas políticas e econômicas, escaparam de seu impacto sem grandes traumas. E, dentro de cada país, nem todas as regiões foram afetadas igualmente. Houve algumas áreas de crescimento até em economias gravemente deprimidas. Mesmo assim, o prejuízo trazido pela recessão dificilmente poderia ser exagerado. Foi gigantesco e extenso. Nenhum lugar passou ileso de suas consequências.

As linhas de fratura política da Europa se expandiram durante a Depressão. O continente dividiu-se praticamente em dois. Com exceção de Finlândia, Tchecoslováquia e Espanha (e nestas duas últimas por pouco tempo), a democracia só sobreviveu no norte e no oeste da Europa. Em todos os demais países, o autoritarismo, em uma forma ou outra, saiu triunfante. Estavam se formando sombras sobre o continente econômica e politicamente combalido.

RECESSÃO

O boom americano que promovia cada vez mais investimentos de risco em bens de consumo duráveis, automóveis, siderurgia e construção civil entrou em colapso a partir de 24 de outubro de 1929, quando a bolha especulativa estourou. “O mercado parecia uma coisa insensata que infligia uma vingança brutal e implacável contra os que acharam que podiam dominá-lo”, comentou um observador. Em Wall Street, investidores em pânico vendiam suas ações, cujos preços desabaram. Milhares de especuladores ficaram arruinados. A confiança empresarial acabou. A produção industrial e as importações entraram em rápido declínio. Os preços das commodities caíram. O desemprego disparou. Os empréstimos internacionais já tinham caído antes da quebra, e exigiu-se o pagamento dos créditos de curto prazo concedidos a países europeus, principalmente a Alemanha.

Numa economia internacional desequilibrada, que já se defrontava com fortes tendências deflacionárias, a Europa foi sugada inevitavelmente para o desastre econômico, que só aumentava. O contágio ganhou terreno. Em 1930, a produção industrial europeia estava em frangalhos. O desemprego em massa cruzou o Atlântico. No começo do verão de 1930, já havia 1,9 milhão de desempregados só na Alemanha, e o sistema de seguro-desemprego não dava conta deles. A renda média per capita em todo o país já vinha caindo, e em 1932 estava em cerca de dois terços do que tinha sido em 1929. Um ciclo deflacionário se espalhou pelo continente. À medida que a demanda caía, os preços despencavam. Comprava-se menos. Até os gastos em bens de primeira necessidade foram reduzidos ao mínimo. Os salários sofreram cortes, mas, com a queda de preços, seu poder de compra — para os que ainda tinham trabalho — aumentou. Dessa forma, os “salários reais” muitas vezes aumentavam. As receitas dos governos sofreram grande pressão, já que a arrecadação de impostos caiu.

As tentativas de equilibrar o orçamento por meio de corte de gastos públicos só fizeram piorar a já desastrosa situação. A única tentativa de ensaiar uma reação internacional coordenada, a muito alardeada Conferência Econômica Mundial realizada em 1933, em Londres, foi um fracasso total. Cada governo reagiu com a tentativa de proteger sua própria economia. Em meados de 1930, os Estados Unidos já tinham aderido firmemente ao protecionismo. Outros países retaliaram com suas próprias barreiras tarifárias. Em média, as tarifas de importação na França aumentaram para 38% em 1931, e as da Tchecoslováquia para 50%. A Inglaterra quebrou sua tradição de livre-comércio e implantou uma tarifa geral de 10% em março de 1932. Quatro meses depois, fez um acordo com os países de sua esfera de influência que garantia a preferência por produtos britânicos. O comércio internacional, já combalido, sofreu fortes perdas com a queda vertiginosa das exportações.

O pior estava por vir. O sistema financeiro enfrentava pressão cada vez mais forte em muitos países europeus. Em maio de 1931, a quebra do maior banco da Áustria, o Creditanstalt, de Viena, em meio a uma corrida de correntistas que, temerosos de perder seus depósitos, fizeram saques em massa, foi um choque para todo o sistema financeiro da Europa. O segundo maior banco alemão, o Darmstädter und Nationalbank, foi arrastado pelo redemoinho e, em meio ao pânico de saques, decretou falência dois meses depois. Como os bancos europeus começaram a vender libras esterlinas para reforçar suas reservas de ouro, houve uma desvalorização da moeda britânica. A Inglaterra tentou sem sucesso sustentar a taxa de câmbio, mas perdeu 2,5 milhões de libras por dia na segunda quinzena de julho. Os saques em Londres, entre meados de julho e meados de setembro, totalizaram mais de 200 milhões de libras; as reservas do Banco da Inglaterra caíram a um patamar mínimo perigoso e, em 21 de setembro, a Inglaterra foi obrigada a abandonar o padrão-ouro. A libra esterlina perdeu um quarto de seu valor cambial no período subsequente.

Em 1932, a recessão que assolava a Europa chegou a seu pior momento — um colapso sem precedentes da economia capitalista. Caiu o produto interno bruto praticamente em toda parte. No entanto, as percentagens de queda — menos de 7% em Inglaterra, Suécia e Itália, pouco mais de 10% na Bélgica, porém mais de 17% na Alemanha e na Iugoslávia e quase 25% na Polônia — variavam de acordo com as estruturas econômicas desses países, assim como seu grau de dependência do mercado financeiro americano. Uma das maiores economias da Europa, a França, de início foi pouco afetada, em parte porque o franco já estava desvalorizado antes de 1931. Um grande setor agrícola, com peso substancial da agricultura de subsistência praticada em pequenas propriedades, e um grande número de produtores industriais e artesanais em pequena escala, com raízes em economias municipais e regionais, de início ajudaram a proteger a economia contra os efeitos da quebra da bolsa. As medidas tomadas em 1929 para proteger os preços dos produtos agrícolas, mantendo os mercados internos à tona, contribuíram para a resiliência francesa inicial. O governo proclamava com orgulho que sua “política de prosperidade” teria prosseguimento, enquanto outros países encaravam a falência. “Seja qual for a causa da depressão mundial, a França é capaz de enfrentá-la com relativa serenidade”, afirmou um grande jornal francês. “O feliz equilíbrio econômico e as virtudes do povo fizeram da França um pilar da economia mundial.”

A arrogância em pouco tempo desapareceu. Em 1931, os desempregados no país eram apenas 55 mil. Mas, a partir de então, o governo já não conseguiu evitar ser sugado pela derrocada internacional. E a Depressão, uma vez instalada, durou mais tempo que na maior parte das outras grandes economias. A produção levou uma década para recuperar os níveis de 1929. Em 1936, as exportações francesas chegaram à metade do que tinham sido em 1928. O número de falências empresariais disparou em 1932 e continuou a crescer. Oficialmente, havia mais de 1 milhão de desempregados em 1935. Extraoficialmente, muito mais. A lenta recuperação deveu-se, até certo ponto, à relutância em desvalorizar o franco por razões de prestígio. Como a libra e o dólar se desvalorizaram, os produtos franceses de exportação deixaram de ser competitivos.

Embora a imagem recorrente da Grande Depressão seja a do desemprego industrial em massa nas cidades, os que tiravam seu sustento da terra — agricultores e demais trabalhadores rurais — também sofreram gravemente com a tormenta econômica. A Europa Oriental, muito dependente da agricultura, foi atingida de forma cruel. A pobreza extrema e uma profunda indigência social se generalizaram. Em nenhum lugar foram piores que na Polônia, economia com forte predomínio agrícola e um pequeno setor industrial cujos problemas foram agravados pelo governo com cortes de gastos e manutenção da moeda sobrevalorizada. Um contemporâneo resumiu assim o impacto da Depressão sobre a zona rural polonesa: “No verão é mais fácil, mas no inverno vemos cabanas com crianças amontoadas e metidas até o pescoço em sacos cheios de palha, porque sem essa proteção elas congelariam nas casas gélidas sem aquecimento […]. A vida tornou-se miserável para todos”.

Com os preços dos produtos agrícolas no chão, as torneiras de crédito secas e as taxas de juros nas alturas, a insolvência reduziu muita gente à penúria. As propriedades agrícolas eram vendidas ou iam a leilão. Na Baviera, as vendas forçadas de propriedades entre 1931 e 1932, por exemplo, chegaram a mais de 50%. Os trabalhadores agrícolas lutavam para conseguir trabalho. Pequenos proprietários se mantinham com a agricultura de subsistência. Às vezes, tratava-se de sobrevivência em sentido estrito. As famílias de um vilarejo pobre no sul da França ficaram reduzidas a uma única refeição diária, composta apenas de castanhas, azeitonas, rabanetes e alguma verdura que não conseguiam vender. Compreensivelmente, esses camponeses da França e de muitas outras partes da Europa dirigiam seu ódio a qualquer alvo que acreditassem culpado de seu infortúnio — o Estado, os burocratas, a gente da cidade, agiotas, estrangeiros, judeus —, alimentando o radicalismo da extrema direita.

Nas regiões industriais, a devastação da economia era ainda mais evidente. A produção da Áustria caiu 39% entre 1929 e 1932, enquanto o desemprego praticamente dobrou. Na Polônia, a produção industrial em 1932 chegou a 30% do que tinha sido em 1929, com o dobro de desemprego. A maior economia da Europa continental, a da Alemanha, teve sua produção reduzida quase à metade entre 1929 e 1932. Fábricas e oficinas fechavam as portas, e milhões de pessoas eram postas na rua. O desemprego foi às alturas. No fim de 1932, mais de um quinto dos trabalhadores da Inglaterra, Suécia e Bélgica estavam sem ocupação. Na Alemanha, quase um terço da força de trabalho estava desocupada — 6 milhões de pessoas, segundo as estatísticas oficiais. Se a esse número forem acrescentados os trabalhadores em tempo parcial e o desemprego oculto, a cifra passava de 8 milhões, o que significa que quase metade da força de trabalho do país estava total ou parcialmente desempregada. Os números, por mais assustadores que sejam, mascaram a realidade da miséria e do sofrimento humano.

Os que estavam sem trabalho viviam de algum magro auxílio-desemprego que recebiam de sistemas públicos sobrecarregados. O governo britânico cortou 10% do auxílio-desemprego em 1931. Muitos dos que ficavam desempregados por longo tempo perdiam o direito a esse auxílio e tinham de sobreviver com recursos da assistência aos pobres, que só eram concedidos depois do teste de pobreza, uma rigorosa e odiada avaliação das condições de subsistência do solicitante. Como se dizia na época, ela tinha como resultado tornar os pobres ainda mais pobres, pois limitava a concessão da ajuda a um só membro da família se outros estivessem trabalhando. O pai desempregado de uma família de quatro pessoas de Wigan teve seu benefício reduzido de 23 xelins para dez xelins por semana porque seus dois filhos ganhavam juntos 31 xelins. Uma família de Blackburn, na deprimidíssima área têxtil de Lancashire, onde os estabelecimentos de fiação do algodão tinham demitido a maioria de seus empregados, sobrevivia, em 1932, com o auxílio-desemprego pago a somente um de seus membros. Quando essa pessoa recusou uma oferta de emprego na Cornualha, a mais de quatrocentos quilômetros de seu domicílio, ela e a família foram irrevogavelmente privadas do benefício, sua única fonte de renda. Não é surpreendente que o detestado teste de pobreza tivesse lançado uma sombra sobre a política social britânica pelo resto do século XX e até depois.

Era uma pobreza devastadora que destruía a vida familiar e só trazia desesperança. No começo de 1936, George Orwell, um dos mais influentes escritores e comentaristas sociais ingleses de sua época, passou um tempo em Wigan, no noroeste da Inglaterra, para experimentar diretamente as condições de vida numa área industrial em depressão.*

Quando deixou Wigan, poucas semanas depois, “através do monstruoso cenário de montes de escória, chaminés, pilhas de ferro-velho, canais imundos, caminhos de barro atravessados por incontáveis marcas de tamancos”, ele avistou “o habitual rosto exausto da jovem favelada de 25 anos que parece ter quarenta por causa dos abortos e do trabalho pesado; um rosto que mostrava, naquele segundo em que passou por mim, a expressão mais infeliz e desconsolada que já vi”. Um ano ou dois antes, Orwell quis testemunhar a calamitosa pobreza de Paris. “Você descobre o que é sentir fome. Com pão e margarina no estômago, sai e olha as vitrines […]. Você descobre o tédio que é inseparável da pobreza, nas vezes em que não tem nada para fazer, e, mal alimentado, não consegue se interessar por nada.”

Dos desempregados na Alemanha em 1932, só 15% recebiam o benefício integral, ainda que miserável. Outros 25% tinham pensões de emergência; 40% dependiam do auxílio aos pobres e outros 20% não recebiam absolutamente nada. “A nação inteira está submersa em angústia; a ação do governo não resolve; o povo está passando por um verdadeiro inferno de carência, opressão e doenças”, relatou um observador que viajou por áreas da mais terrível pobreza. Nos meses de inverno, em Berlim e outras cidades, milhares de sem-teto procuravam diariamente os grandes abrigos improvisados para se aquecer, conseguir algum alimento e passar a noite. As consequências disso eram demolidoras para famílias inteiras. “Meu pai está desempregado há três anos”, escreveu uma menina alemã de catorze anos em dezembro de 1932. “Antes pensávamos que um dia ele ia conseguir emprego, mas agora até nós, os filhos, perdemos as esperanças.”

A apatia, a resignação e um profundo sentimento de desesperança causado pelos longos períodos de desemprego ficaram patentes num estudo sociológico clássico do distrito industrial austríaco de Marienthal, a quarenta quilômetros de Viena, onde três quartos da população foram atingidos pelo fechamento da fábrica têxtil, única grande empregadora do local. “Não lhe restou nenhuma esperança, ele só vive de um dia para o outro, sem saber por quê” foi a avaliação sobre um trabalhador desempregado abatido pela pobreza, de trinta e poucos anos, com mulher e dois filhos subnutridos. “Perdeu a vontade de resistir.”

As consequências sobre a vida familiar eram desastrosas, como mostra um relatório sobre a situação na Polônia.

 

Diversas pessoas amontoadas num único cômodo onde em pouco tempo já não havia móveis para sentar ou dormir, e onde há cada vez menos comida a dividir, e o clima se torna cada vez mais desesperado e depressivo — tudo isso não poderia levar a outra coisa que não desavenças constantes […]. A ruptura da vida familiar se acelera e o caminho fica aberto a uma vida de vadiagem e prostituição.

 

Um terrível indicador da miséria na Polônia foi o nítido aumento no número de suicídios causados pelo desemprego.

Os mais afetados foram os trabalhadores da indústria pesada — minas de carvão, metalurgia e siderurgia e ramos correlatos, como a construção naval. As áreas têxteis (como Marienthal), onde a indústria de base vinha declinando havia tempos, também foram devastadas. Mas o impacto da Depressão variava de região para região. O desemprego na Alemanha como um todo quadruplicou entre 1928 e 1932. Na Prússia Oriental, predominantemente agrária, dobrou (embora a situação da economia rural fosse de miséria generalizada). Na Saxônia, uma área industrial, o desemprego multiplicou-se por mais de sete. Em 1932, no norte da Inglaterra, era em média o dobro do que se registrava em Londres. Essas médias, porém, escondiam profundas divergências. Em Bishop Auckland e Jarrow, no nordeste, mais da metade dos trabalhadores não tinham emprego. “Por onde quer que se passe, veem-se homens perambulando, não às vintenas, mas às centenas e aos milhares”, observou J. B. Priestley, impressionado, em seu English Journey, escrito no outono de 1933. Em Merthyr Tydfil, na região industrial de Gales do Sul, mais de dois terços dos trabalhadores estavam desempregados. Mas em St. Albans, ao norte de Londres, o desemprego não passou de 3,9%.

Mesmo em meio à depressão tão generalizada, houve áreas com notável crescimento. A prosperidade relativa da metade meridional do Reino Unido atraiu um lento movimento de pessoas que vinham das partes mais assoladas do país em busca de trabalho, aumentando a demanda, o que alimentava o crescimento. A construção civil floresceu para corresponder à necessidade de novas casas, escolas, lojas, cinemas e outras instalações. A ampliação dos subúrbios exigia novas estradas. A construção gerou novas áreas de crescimento. A indústria elétrica, concentrada no sul da Inglaterra, continuou se desenvolvendo à medida que o uso de eletrodomésticos crescia. O aumento de quase dez vezes no consumo de eletricidade no entreguerras criou demanda de artigos elétricos mesmo durante a Depressão. Havia também mais pessoas em condições de comprar um carro. O mercado de veículos automotores continuou a se expandir apesar da crise, e as Midlands, onde ficava a maior parte das fábricas de automóveis, escaparam do pior da devastação econômica que assolou o norte da Inglaterra, Gales e Escócia, onde se concentravam as indústrias mais antigas. O hiato econômico entre o norte e o sul se ampliou. O mesmo aconteceu com a divisão entre empregados e desempregados. O desemprego em massa das regiões mais atingidas parecia um problema remoto para muitas famílias de classe média no sul, mais próspero. Os que trabalhavam nas indústrias em expansão e os consumidores com renda suficiente para tirar proveito do que essas indústrias produziam eram, com efeito, afortunados.

A crise econômica aguçou fontes de ódio e ressentimento já existentes, além de aprofundar temores e preocupações com o futuro. Isso amesquinhou as sociedades e as tornou menos tolerantes. Um indicador disso, em meio ao desemprego em massa, foi o preconceito exacerbado contra mulheres que conseguiam vagas em empregos “de homem”. Os casais em que ambos os cônjuges trabalhavam foram alvo de grande rejeição na Alemanha quando o desemprego disparou. Na França a Depressão também intensificou o preconceito contra as mulheres. Entendia-se que o lugar delas era em casa, na propriedade rural, como esposas e mães, ou, no máximo, em “trabalhos de mulher”, como de assistente social ou enfermeira. À medida que a Depressão se intensificava, elas foram obrigadas a sair de muitos postos de trabalho ou a interromper sua carreira. Passaram a ser malvistas nas universidades e a enfrentar discriminação em quase todas as áreas (não menos na política francesa, pois só tiveram direito ao voto em 1944). Quando conseguiam trabalho — como atendentes de lojas, secretárias ou em outras funções administrativas —, dava-se por certo que seus salários seriam inferiores aos dos homens. Só a Escandinávia escapou à tendência europeia geral de discriminação das mulheres no trabalho. A Suécia, em 1939, chegou a determinar por lei que o casamento não era mais motivo de dispensa do emprego.

O caminho excepcional tomado pela Escandinávia no tocante ao trabalho da mulher se enquadrava numa concepção mais ampla de bem-estar e política populacional. Mas lá também a preocupação com o declínio populacional e com o que se via como inevitável consequência da deterioração da qualidade da população serviu aos propósitos de correntes europeias de pensamento mais amplas que se fortaleceram com o clima de crise econômica. A preocupação com o declínio populacional — comum na maior parte da Europa desde a guerra, e especialmente pronunciada na França e na Alemanha — causou uma reação contra a anticoncepção que vinha sendo promovida cada vez mais na década de 1920. A tendência reacionária era generalizada, tinha apoio popular e, nos países católicos, recebia também o forte apoio da Igreja em sua veemente e incessante oposição ao controle de natalidade. O aborto já era ilegal na maior parte da Europa, mas quanto a isso também as posições endureceram. Na Inglaterra, por exemplo, tornou-se crime em 1929. Qualquer pessoa culpada da “tentativa de destruir a vida de uma criança em condições de nascer viva” (entendida como feto de 28 semanas ou mais) seria condenada a trabalhos forçados perpétuos. Mesmo assim, centenas de milhares de mulheres, na Inglaterra e no resto da Europa, casadas e solteiras, continuaram a abortar, arriscando-se ao severo castigo e a graves complicações de saúde e até à morte em procedimentos ilegais.

Quando a botânica inglesa Marie Stopes promoveu o controle da natalidade, na década de 1920, atuava num contexto de medidas de melhoramento da qualidade da população. Problemas de hereditariedade, genética, declínio da reserva étnica e a busca desesperada de progênies superiores tinham se tornado obsessão entre os intelectuais da Europa desde a guerra. A eugenia, ou seu equivalente de tom mais nefasto, a “higiene racial” — eliminação dos “deficientes” e aperfeiçoamento da “eficiência nacional” por meio do melhoramento racial —, ganhava apoio à medida que a Depressão intensificava as dúvidas sobre a “saúde da nação”. Os gastos com cuidados dispensados a membros “improdutivos” da sociedade passaram a ser ainda mais questionados nos momentos em que os governos apertavam os cintos. Na Inglaterra, não só distintos cientistas, psicólogos e médicos como também intelectuais de renome, como o economista John Maynard Keynes e o dramaturgo George Bernard Shaw, estavam entre os que apoiavam o movimento eugênico. Pouco antes da publicação de seu romance distópico Admirável mundo novo, de 1932 (ambientado numa sociedade cuja estabilidade repousava sobre a engenharia biológica e o condicionamento mental para atingir a máxima utilidade social e econômica), Aldous Huxley falou da eugenia como meio de evitar “a rápida deterioração […] de toda a descendência europeia ocidental”. Alguns dos eugenistas mais radicais — que acreditavam que a “raça” britânica estava se defrontando com uma degeneração inevitável e com a extinção final de suas qualidades biológicas, a menos que se tomassem medidas drásticas de limpeza racial — chegavam a contemplar o extermínio puro e simples dos “indesejáveis”, ou, caso isso fosse impossível, a esterilização compulsória. Embora essas ideias tenham ficado restritas a uma minoria de eugenistas e não tenham sido levadas adiante na Inglaterra, mostram bem para que lado sopravam os ventos durante a Depressão, mesmo numa democracia.

Na Alemanha, em 1932, antes da ascensão dos nazistas ao poder, foram apresentadas propostas preliminares a favor da esterilização voluntária de pessoas que sofressem de defeitos hereditários, com apoio da comunidade médica. O governo de Hitler mais que depressa foi muito além. Mas tinha a certeza de poder contar com muito apoio popular para a lei de 14 de julho de 1933, pela qual se adotava a esterilização compulsória para portadores de numerosas doenças hereditárias, graves deformidades físicas e alcoolismo crônico. Nos anos seguintes, a lei faria cerca de 400 mil vítimas. (As “câmaras letais” para o extermínio dos doentes mentais da Alemanha ainda teriam de esperar seis anos.) A esterilização compulsória, no entanto, não era exclusividade de uma ditadura desumana. Em 1934, todos os Estados democráticos da Escandinávia, com amplo respaldo popular, aprovaram leis de esterilização compulsória que vitimaram milhares de pessoas. A esterilização determinada por lei tampouco estava confinada ao “continente escuro” da Europa. Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, cerca de 42 mil cidadãos de trinta estados americanos foram esterilizados, a maior parte compulsoriamente, sob alegação de “retardo mental” ou “loucura”. Por toda a Europa (e todo o mundo ocidental), a intervenção do Estado na vida dos cidadãos estava se tornando aceitável num grau inconcebível até 1914.

O desastroso agravamento da situação econômica radicalizou não apenas o pensamento social, mas a ação política em toda a Europa. À medida que as tensões de classe se aguçavam, aprofundava-se a polarização política. A esquerda, que em muitos países estava dividida entre socialistas mais moderados e partidos comunistas alinhados com Moscou, mutuamente antagônicos, procurava, quase sempre em vão, evitar a deterioração drástica no padrão de vida da classe trabalhadora. A militância na esquerda era, em boa medida, também uma resposta aos perigos de uma maré montante de movimentos extremistas de direita e antissocialistas. Em quase todos os países fora da União Soviética, a Depressão trouxe um surto de apoio a movimentos fascistas que pretendiam destruir a esquerda e reorganizar as sociedades por meio de uma unidade nacional artificial e forçada. Quanto mais abrangente a crise, maior a probabilidade de mobilização de amplos setores da população pela extrema direita. A crise era mais generalizada na Alemanha; portanto, não surpreende que a reação no país fosse mais extrema do que em qualquer outro lugar da Europa.

A economia europeia mais afetada foi a mais importante do continente. A Alemanha era uma democracia frágil, pressentia uma ameaça a sua cultura, estava ideológica e politicamente dividida e ainda trazia profundas cicatrizes da guerra. Com o colapso da economia, o sofrimento social se intensificou, e o governo democrático implodiu em meio à violência crescente e à polarização política. A democracia, já ameaçada com a chegada da crise, era frágil demais para sobreviver. O desvio para um governo autoritário tornou-se inevitável. Algumas democracias europeias já tinham entrado em colapso. Em outras isso aconteceria em breve. Mas a Alemanha era, de longe, a mais crucial. Não só por seu tamanho, sua poderosa base industrial (ainda que temporariamente muito prejudicada pela retração) e centralidade geográfica, mas também por seus desejos de revisar as determinações territoriais do Tratado de Versalhes, a Alemanha era um caso excepcional — e uma ameaça potencial à paz europeia no caso de um governo autoritário seguir uma política externa agressiva.

Com o agravamento da Grande Depressão, o tecido social se esgarçou, e o hiato ideológico transformou-se em abismo. Intensificou-se demais a sensação de que uma nação outrora grande estava agora tomada pela crise, com sua própria existência em perigo, humilhada, impotente e inapelavelmente dividida. Sob essa pressão, as estruturas da democracia parlamentar capitularam. Abriu-se um vácuo político. E, com isso, uma única força política oferecia a esperança de salvação nacional, aos olhos de um número cada vez maior de alemães: o Partido Nazista de Hitler.

O resultado disso seria a ascensão de Hitler ao poder, em 30 de janeiro de 1933, data que marcaria um calamitoso ponto de virada na história da Europa. De todas as maneiras pelas quais a Depressão remodelou a política e a sociedade na Europa, a mais fatídica viria a ser a que tocou a Alemanha — não só para o povo alemão, mas para toda a Europa e, por fim, para grande parte do mundo.

O PIOR RESULTADO POSSVEL

A crise alemã não foi apenas ou principalmente econômica, mas uma crise total do Estado e da sociedade. O caos econômico nos Estados Unidos não levou a uma crise de legitimidade. Um declínio econômico menos desastroso, ainda que extremamente grave, trouxe na Inglaterra um notável fortalecimento do status quo conservador. Nesses dois países, as elites dominantes viam seus interesses atendidos pelo sistema político em vigor, enquanto a esmagadora maioria da população apoiava as estruturas de governo existentes e os valores que lhes serviam de base. Na França, onde o consenso era menos absoluto, o Estado passou por um choque, mas resistiu. A crise econômica na Suécia acabou reforçando a base social-democrata do Estado.

Já na Alemanha, a Depressão reabriu as feridas purulentas que vinham sendo tratadas com paliativos desde 1918. A superficialidade da aceitação da democracia entre as elites políticas, econômicas e militares ficou plenamente exposta. E a crença das massas numa democracia que, aos olhos de uma maioria crescente, era responsável pelas agruras por que passava a Alemanha diminuía mais e mais à medida que a Depressão se agravava. Desgastada pelas elites e defrontada com o fim do apoio popular, a democracia alemã respirava por aparelhos desde 1930. A política se polarizava, com vantagem para os extremos, e Hitler foi o maior beneficiário.

O chanceler do Reich durante o pior período da crise, Heinrich Brüning, tinha atrelado toda a sua estratégia política à supressão das reparações, tentando provar que a Alemanha, arruinada pela Depressão que só piorava, não tinha condições de pagar. O aprofundamento do mal-estar social interno era, a seus olhos, um preço necessário para livrar a Alemanha do ônus das reparações. Em junho de 1931, seu objetivo chegara ao alcance da mão depois que o presidente dos Estados Unidos, Herbert Hoover, com a oposição da França, pressionou em favor de uma moratória de doze meses no pagamento das reparações. No fim do ano, uma comissão formada dentro dos termos do Plano Young para analisar a capacidade de pagamento da Alemanha concluiu que o país não seria capaz de arcar com os compromissos assumidos depois que a moratória acabasse. O comitê propôs o cancelamento dos pagamentos e também das dívidas de guerra entre os Aliados. A proposta foi adotada numa conferência realizada em Lausanne em meados do ano seguinte. A Alemanha concordou com um pequeno pagamento final (que na verdade nunca foi feito). Com isso, as reparações, que desde 1919 representavam um pesado ônus político, muito mais do que puramente econômico, foram eliminadas. Mas Brüning já não estava em condições de ficar com o crédito. Tinha perdido a confiança do presidente Hindenburg, que o demitiu pouco antes da Conferência de Lausanne. Brüning fora útil aos fins de Hindenburg, porém não era mais necessário.

Com o fim das reparações, os revisionistas passaram a considerar de modo mais realista a eliminação das algemas de Versalhes: o Exército querendo reconstruir seu poderio, e as elites antidemocráticas querendo um governo autoritário mais firme. Hindenburg começou a mostrar sua verdadeira face. O governo alemão inclinou-se cada vez mais para a direita com os novos chanceleres que vieram em rápida sucessão: Franz von Papen (de junho a novembro 1932) e o general Kurt von Schleicher (de dezembro 1932 a janeiro 1933). Mas, sem o apoio das massas, nenhum deles foi capaz de solucionar a crise que se agravava rapidamente: não só da economia, mas do Estado alemão. O problema era que qualquer solução precisava passar por Hitler.

A fragmentação cada vez maior do sistema político entre 1930 e 1933 criou um enorme vazio que os nazistas vieram a preencher. Como o sistema estatal perdera quase todo o apoio popular, um vendaval de descontentamento lançou os eleitores nos braços do movimento de Hitler. Ele mesmo tornou-se cada vez mais um ímã para as massas raivosas e assustadas. A máquina de propaganda que tinha atrás de si conseguiu fabricar uma imagem que capitalizou não só a fúria popular pelas condições da Alemanha como as esperanças e os sonhos de um futuro melhor. As pessoas projetavam em Hitler suas próprias crenças, desejos e projetos, e ele reuniu tudo isso numa visão de completo renascimento nacional.

Mas nem todos se deixaram atrair, longe disso. A esquerda ficou com mais de 30% dos votos em 1933. Outros alentados 15% ficaram com os dois partidos católicos. No entanto, os profundos ressentimentos entre os sociais-democratas e o Partido Comunista (este último integrado quase que exclusivamente por desempregados) excluíram qualquer possibilidade de uma frente unida contra os nazistas. Essa fatídica divisão contribuiu para a catástrofe que se anunciava para a esquerda alemã. Sua causa, porém, não foi a cisão. Os partidos de esquerda não tinham acesso ao poder. O problema principal não estava na esquerda, mas na direita. A autoridade do governo se esfacelava, e a desordem pública se espalhava. Confrontos violentos entre organizações paramilitares nazistas e comunistas se multiplicavam. O pânico diante do prestígio crescente do Partido Comunista (em grande parte à custa dos sociais-democratas) e a exageradíssima perspectiva de uma revolução comunista encurralaram as classes médias. Os partidos “burgueses” de centro e direita, por sua vez, desmoronaram, e o mesmo ocorreu com cerca de trinta pequenos partidos regionais ou representantes de grupos de interesse cuja proliferação fora facilitada por um sistema eleitoral de representação proporcional sem restrições. Os nazistas engoliram o que restava de seus adeptos.

A agitação nazista acendeu o fogo da cólera e do ódio, aproveitando-se dos mais diversos ressentimentos e preconceitos. No entanto, seu apelo não era exclusivamente negativo. A propaganda nazista ligava a demonização dos inimigos políticos e raciais a um apelo emocional extraordinariamente poderoso, ainda que formulado de maneira vaga, à regeneração e à unidade da nação. Evocava a unidade nacional que existira brevemente em 1914, e a “comunidade da trincheira”, integrada pelos que combateram na guerra, pretendendo criar, segundo suas palavras, uma “comunidade do povo” de etnia alemã que transcenderia todas as divisões internas. Foi um simbolismo eficaz.

Um escriturário de dezoito anos que entrou para o Partido Nazista em 1929, depois de ir a reuniões de outros partidos, expressou com suas próprias palavras a atração que sentiu depois do empolgante discurso de um orador nazista:

 

Fui envolvido não só pelo discurso apaixonado, mas também por seu sincero compromisso para com o povo alemão como um todo, cuja maior infelicidade era estar dividido em tantos partidos e classes. Finalmente uma proposta prática para a renovação do povo! Acabar com os partidos! Pôr fim às classes! Uma verdadeira comunidade do povo! Esses são os objetivos com os quais eu poderia me comprometer sem reservas. Na mesma noite, tornou-se claro para mim qual era o meu lugar: o novo movimento. Só ele dava esperança de salvar a pátria alemã.

 

Centenas de milhares como ele, quaisquer que fossem seus motivos pessoais, afluíram para o movimento nazista entre 1930 e 1933. Na véspera da ascensão de Hitler ao poder, o número de membros do partido chegava perto de 850 mil — dos quais mais de quatro quintos tinham se filiado depois do início da Depressão. Só a divisão de paramilitares (a Sturmabteilung, ou sa) contava com 400 mil integrantes, dos quais muitos não eram membros efetivos do Partido Nazista.

A maior parte dos eleitores não buscava um programa coerente, nem reformas restritas ao governo. O partido de Hitler os atraía porque prometia um recomeço radical, substituindo inteiramente o velho sistema. Os nazistas não queriam consertar o que proclamavam moribundo ou podre; diziam que o erradicariam e construiriam sobre suas ruínas uma nova Alemanha. Não ofereciam a derrota aos opositores: ameaçavam destruí-los por completo. A mensagem tinha poder de atração justamente por causa do radicalismo. Respeitáveis alemães de classe média, que bebiam a expectativa de “paz e ordem” desde o leite materno, agora estavam prontos para tolerar a violência nazista — desde que voltada contra os detestados socialistas e comunistas, ou contra judeus (vistos por muita gente, e não apenas por ardorosos nazistas, como poderosos demais e como uma força deletéria). As classes médias viam a violência como subproduto de um objetivo totalmente positivo: a causa da renovação nacional. O fato de envolver intolerância e violência não foi obstáculo ao apelo pela unidade nacional para superar as divisões internas. Quando Hitler transformou a intolerância em virtude — ao declarar, num discurso feito no verão de 1932, que “nós somos intolerantes. Tenho um objetivo, que é eliminar os trinta partidos da Alemanha” —, a multidão de 40 mil pessoas ululou sua aprovação.

O frouxo amálgama de fobias e palavras de ordem nacionalistas por trás da retórica violenta levou muitos críticos a considerar o nazismo um movimento de protesto incoerente que se esfacelaria assim que as condições do país melhorassem, ou se em algum momento fosse obrigado a assumir um papel de responsabilidade no governo. Os nazistas compunham de fato um movimento de protesto grande, pouco governável e dividido, é verdade. Mas iam além do simples protesto e da propaganda. Seus líderes, Hitler mais que qualquer outro, não eram apenas hábeis demagogos e propagandistas, mas ideólogos implacáveis, determinados e comprometidos.

Hitler não fazia segredo de seus objetivos. Seu livro Mein Kampf, escrito entre 1924 e 1926 (a primeira parte dele ainda na prisão de Landsberg), anunciava em termos claríssimos sua paranoia antijudaica e a ideia de que o futuro da Alemanha só estaria garantido com conquistas territoriais à custa da União Soviética. Pouca gente além dos adeptos dos nazistas prestava muita atenção ao que parecia ser a distopia maluca de um golpista fracassado com atuação marginal na política.

Tampouco sua ideologia pessoal teve muita importância para atrair as massas para o nazismo no começo da década de 1930. O antissemitismo, central no pensamento de Hitler, teve na verdade menos destaque na propaganda nazista desse período, quando os eleitores estavam se agrupando sob a bandeira do partido, do que no começo da década de 1920, quando relativamente poucos tinham sido seduzidos por ele. Os judeus serviram, claro, de bode expiatório para todos os males da Alemanha. Mas o que atraiu os eleitores na Depressão foi a promessa de pôr fim à miséria que, a seus olhos, a democracia de Weimar tinha criado, de destruir os responsáveis pelas desgraças da Alemanha e criar uma nova ordem nacional baseada na “comunidade do povo”, que criaria as bases para o futuro poderio, o orgulho e a prosperidade alemães. Hitler era celebrado como o único homem capaz de conseguir esses objetivos, “a esperança de milhões”, como dizia a propaganda eleitoral nazista em 1932. Ele era a personificação da ideologia do partido e do anseio popular de salvação nacional.

Seu excepcional talento demagógico, combinado com suas certezas ideológicas (apesar da flexibilidade tática), permitiu-lhe consolidar seu poder supremo sobre o movimento nazista. Sua visão ideológica era ampla o bastante para absorver tendências individuais do pensamento de direita, ou algum interesse potencialmente divisionista, que um ou outro de seus líderes secundários, cada um deles atado a um fetiche específico, pudesse promover com fervor (ainda que de modo impraticável). Os que queriam, por exemplo, assegurar o sucesso entre os trabalhadores acenando com uma variante “nacional” de socialismo, ou que pretendiam dar destaque ao lema “sangue e solo” para ganhar o apoio do campesinato, tiveram seus objetivos programáticos incorporados num nebuloso, apesar de potente, apelo à unidade nacional, enquanto ressentimentos sociais particulares eram desviados por meio de uma retórica antijudaica. Assim, o Líder tornou-se a personificação da “ideia”. E o culto à liderança erigido em torno de Hitler constituiu uma barreira contra a tendência intrínseca comum aos movimentos fascistas de se fragmentar em facções belicosas, como ocorrera nos primórdios do Partido Nazista.

Nos anos da Depressão, o Partido Nazista teve sucesso em minar o terreno do que restara da cambaleante democracia de Weimar. Em 1932, apenas os que ainda apoiavam os sociais-democratas — cerca de um quinto dos eleitores —, junto com os poucos liberais remanescentes e alguns adeptos do Partido do Centro Alemão, queriam manter o sistema democrático. A democracia estava morta. Quanto ao que deveria substituí-la, as opiniões variavam. Cerca de três quartos dos alemães queriam alguma forma de governo autoritário, mas havia várias possibilidades, e entre elas estavam uma ditadura do proletariado, uma ditadura militar ou uma ditadura de Hitler. No verão de 1932, com todo o barulho que tinham feito e a agitação sem pausa, os nazistas chegaram ao limite — pouco além de um terço do eleitorado — das possibilidades de sucesso em eleições livres. Quando, em agosto de 1932, Hitler exigiu o cargo de chefe de governo (logo depois que o Partido Nazista, com o apoio de 37,4% do eleitorado, se tornou o maior do Reichstag), foi firmemente repelido pelo presidente Hindenburg. A forma de autoritarismo que Hindenburg queria — algo como um retorno ao sistema do Império germânico — não toleraria uma chancelaria ocupada por Hitler. Cinco meses depois, no entanto, Hindenburg mudou de ideia — e num momento em que o eleitorado nazista estava em queda.

Hitler por fim foi nomeado chanceler, em 30 de janeiro de 1933, logo depois de uma derrota eleitoral. Na eleição de novembro de 1932, os nazistas perderam votos pela primeira vez desde o começo de sua ascensão, em 1929. Ao que parecia, sua bolha, em meio a uma crise na liderança do partido, tinha estourado. Aquela eleição — a segunda para o Reichstag em 1932, logo depois de dois turnos da eleição presidencial e uma série de eleições regionais — fora motivada pela contínua crise do Estado, cada vez mais grave. O aumento da violência nas cidades alemãs, expressa em choques entre nazistas e comunistas, deu espaço a receios legítimos de que o país estivesse mergulhando na guerra civil. O Exército temia ser envolvido. Os sucessivos governos da direita conservadora foram fracos demais para oferecer alguma solução. Chegou-se a um impasse. As elites conservadoras nacionais eram incapazes de governar sem o apoio das massas que os nazistas controlavam. Mas os nazistas não queriam participar do governo se Hitler não fosse o chanceler. Conchavos tramados por baixo dos panos por pessoas que mantinham diálogo com o presidente do Reich finalmente resolveram o impasse, convencendo Hindenburg de que a única solução era levar Hitler à chancelaria, mas deixá-lo de mãos amarradas por meio de um gabinete integrado por ministros em sua maior parte conservadores. Foi esse o fatídico acordo que enfim deu a Hitler o poder que ele queria.

Ele soube como usá-lo. Mussolini precisou de três anos para adquirir controle completo sobre o Estado italiano. Hitler estabeleceu seu domínio total sobre a Alemanha em seis meses. O principal método que usou para isso foi o terror escancarado contra os opositores, além de fortes pressões para que compactuassem com o novo regime. Dezenas de milhares de comunistas e socialistas — 25 mil só na Prússia — foram presos nas primeiras semanas do governo de Hitler, lançados em prisões e campos improvisados e submetidos a maus-tratos. Decretos de emergência legitimaram o poder policial sem limites. Uma lei aprovada pelo Reichstag em 23 de março, num clima de ameaça, concedeu poderes especiais ao governo, sem restrições parlamentares. A sociedade alemã, acossada e intimidada por um lado e entusiasmada por outro, aceitou. Novos membros entravam em massa para o Partido Nazista, e inúmeras organizações sociais, culturais, clubes e associações nacionais, regionais e municipais se nazificaram prontamente. Além dos 30% dos alemães adeptos da esquerda (e, claro está, a pequena minoria judaica, já perseguida, apenas 0,76% da população), havia muita gente que, não tendo votado nos nazistas, encontrava alguma atração naquilo que o partido dizia oferecer durante o chamado “levante nacional”. Os que não viam nada de bom nos nazistas eram aconselhados a guardar para si suas opiniões. A intimidação era presença constante na atmosfera inebriante de renovação nacional.

A possível oposição organizada ao governo nazista foi sistematicamente eliminada. Os comunistas foram esmagados sem piedade, e o Partido Social-Demo­crata — o maior e mais antigo movimento da classe trabalhadora da Europa — foi posto na ilegalidade. Com isso, e a liquidação obrigatória do grande movimento sindical no começo de maio, a democracia alemã — apenas catorze anos depois de fundada, embora inspirada na existência de ideais democráticos duradouros — estava na prática extinta. Tudo o que restava era uma frágil oposição clandestina, que corria perigo permanente. Os partidos políticos “burgueses” e católicos também foram proibidos, ou se dissolveram. Em 14 de julho, declarou-se oficialmente que o Partido Nazista era o único permitido por lei.

Hitler, nos primeiros tempos de seu governo, precisava atentar não apenas para seu vasto exército de seguidores, mas para os pilares do establishment conservador, representado pela reverenciada figura do presidente Hindenburg. Numa espetacular encenação de unidade em 21 de março (o Dia de Potsdam), Hitler ganhou o apoio conservador ao propor uma renovação nacional baseada nos laços entre a velha e a nova Alemanha, atrelando simbolicamente o militarismo prussiano dos dias gloriosos de Frederico, o Grande, a uma visão de futura grandeza nacional. Muitos céticos ficaram impressionados. Hitler parecia um estadista, ao contrário do que indicava em seus tempos de demagogo. Estava a ponto de transformar sua imagem de líder partidário numa imagem de líder nacional de estatura.

Uma grave crise surgiu no começo de 1934 por causa das ambições de Ernst Röhm, líder das tropas de assalto, que pretendia radicalizar ainda mais a revolução nazista e subordinar o Exército ao braço paramilitar do partido. A ameaça à posição das elites estabelecidas era óbvia. Hitler foi obrigado a intervir, e o fez em 30 de junho, de maneira brutal, autorizando o massacre dos líderes das tropas de assalto na Noite das Facas Longas. Röhm e outros líderes da sa foram fuzilados. Pessoas que em algum momento se puseram no caminho de Hitler, como Gregor Strasser (visto como traidor por sua oposição no outono de 1932) e o general Kurt von Schleicher, ex-chanceler do Reich que diziam que conspirava contra o regime, também foram assassinados. O número total de mortos foi calculado entre 150 e duzentos.

A posição de Hitler ficou imensamente fortalecida, em especial por sua adesão ao assassinato em massa “em defesa do Estado”. As pessoas comuns achavam que ele estava fazendo uma limpeza e eliminando corruptos — uma “úlcera” no corpo político. O Exército sentiu-se gratificado pela “ação asséptica” que removeu uma grande ameaça a seu poder e solidificou sua condição de instituição indispensável para o Estado. E os que pensavam que podiam desafiar o regime de Hitler receberam uma advertência explícita sobre sua disposição de abater com força brutal até mesmo os mais poderosos. Hitler agora era inatingível. Quando Hindenburg morreu, no começo de agosto de 1934, ele assumiu pessoalmente a autoridade de chefe de Estado. Com essa jogada, seu poder total estava garantido. O poder do Estado e o poder do Führer eram exatamente a mesma coisa.

A consolidação da ditadura foi acompanhada da revitalização da economia e da reconstrução, a passos largos, da força militar — enquanto as democracias ocidentais, atingidas pela Depressão, deixavam à mostra sua fraqueza e suas divisões. Com os países da Europa lutando para superar a crise econômica, a democracia foi obrigada a permanecer na defensiva em quase toda parte, enquanto o autoritarismo, de uma ou outra espécie, avançava. Tratava-se de um desdobramento profundamente preocupante para a paz na Europa.

OS CAMINHOS DA RECUPERAÇÃO ECONÔMICA

Em 1933, a Grande Depressão tinha levado grande parte da Europa ao fundo do poço, e os primeiros indícios de uma recuperação desigual começavam a ser vislumbrados. Em muitas das áreas industriais mais afetadas, as primeiras melhoras — se é que havia alguma — dificilmente podiam ser vistas a olho nu. E a França ainda estava escorregando mais fundo para a Depressão, quando outras grandes economias da Europa já tinham passado pelo ponto de virada. No verão daquele ano, o presidente recém-eleito dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, na Conferência Econômica Mundial, jogou um balde de água fria nos que pretendiam estabilizar as moedas e acabar com a guerra tarifária. Foi a única tentativa de chegar a um acordo internacional sobre medidas de recuperação. Roosevelt, como era de esperar, deu clara prioridade aos interesses americanos e ao estímulo da economia dos Estados Unidos. Sem demora, desvalorizou o dólar em relação à libra esterlina, o que confirmou o modo já estabelecido de lidar com a crise. Cada país que tratasse de encontrar seu próprio caminho para sair da Depressão. Cada um fez isso a seu modo e em seu ritmo. O fracasso de um acordo quanto a um sistema internacional de comércio com certeza atrasou o processo. As democracias, por sua vez, caminhavam aos tropeções rumo à recuperação. John Maynard Keynes reconheceu que a economia estava “numa confusão assustadora” até mesmo para economistas profissionais. Não surpreendia em nada que os governantes quase nunca tivessem uma ideia clara da direção para onde estavam indo.

Em 1933, a Inglaterra — a maior economia do mundo depois dos Estados Unidos — começava a sair da Depressão. No ano seguinte, foi o primeiro país a superar o nível de produção industrial de 1929 — embora isso tenha sido em grande parte resultante do baixo crescimento da década de 1920. A queda do desemprego, de 3 milhões para 2,5 milhões em 1933, foi outro indicador de que o pior ficara para trás. Mesmo assim, permaneceu assustadoramente elevado, caindo lentamente dos 17,6% da população ativa em 1932 para 12-3% em 1935. Nas regiões mais deprimidas, ainda estava acima de 50%. “Marchas da fome” integradas por milhares de desempregados da Escócia, do País de Gales e do norte da Inglaterra, apoiadas pelo Partido Comunista, enfrentaram a hostilidade do Governo Nacional de Ramsay MacDonald e levaram a grandes distúrbios e embates violentos com a polícia. Um abaixo-assinado com grande apoio no sentido de abolir o teste de pobreza foi confiscado pela polícia para evitar que fosse levado ao Parlamento. Em 1936, atormentados pela pobreza, cerca de duzentos trabalhadores demitidos dos estaleiros da cidade de Jarrow, no nordeste da Inglaterra, empreenderam uma marcha até Londres, a quinhentos quilômetros de distância, e atraíram mais solidariedade. O governo, porém, rejeitou a petição de ajuda para a cidade arrasada, apesar da assinatura de 11 mil de seus habitantes.

A Inglaterra aderiu firmemente à ortodoxia financeira que tinha como objetivo o equilíbrio orçamentário. As teorias que pregavam o combate à Depressão por métodos heterodoxos de financiamento deficitário ainda estavam engatinhando. Keynes, que pouco depois da quebra da bolsa fizera uma constrangedora previsão de que não haveria consequências graves para Londres e que “achamos o futuro decididamente animador”, ainda não concluíra sua teoria econômica anticíclica. Quando a Depressão se instalou, o mais ambicioso esquema de planejamento econômico mediante empréstimo para financiar o crescimento veio de Oswald Mosley, em quem a ambição política, a impaciência e o descompromisso eram tão notáveis quanto sua indiscutível capacidade. Mosley, de formação aristocrática, a princípio era um conservador. Desencantado com os conservadores, saiu do partido no começo da década de 1920 para tornar-se membro independente do Parlamento antes de entrar para o Partido Trabalhista. Suas posições sobre política econômica e social eram claramente de esquerda. Quando suas ideias sobre a estimulação da economia mediante financiamento deficitário foram rejeitadas sem contemplação, ele provocou uma secessão no Partido Trabalhista e criou o Partido Novo. E, quando o Partido Novo fracassou na eleição geral de 1931, em que não teve votação significativa, ele passou para a extrema direita, expressando abertamente sua admiração por Mussolini. Fundou a União Britânica dos Fascistas em 1932 e assim empreendeu o caminho para o ostracismo político.

O Governo Nacional, que assumira durante a crise financeira de meados de 1931, era integrado por ministros dos três principais partidos — Trabalhista, Conservador e Liberal — em um pequeno gabinete de dez homens. Entre eles, em pouco tempo se destacaram o ex-primeiro-ministro conservador Stanley Baldwin e Neville Chamberlain, filho do velho político liberal Joseph Chamberlain e meio-irmão de Austen Chamberlain, ministro das Relações Exteriores que foi um dos artífices do Tratado de Locarno de 1925. Mas Ramsay MacDonald, primeiro-ministro do governo trabalhista em 1929 e 1931, manteve o cargo, e Philip Snowden permaneceu de início como chanceler do Tesouro. Entrando para o Governo Nacional, MacDonald e Snowden dividiram o Partido Trabalhista, que, em meio a muita hostilidade e acusações de traição, expulsou-os, forçando-os a fundar um novo partido, que batizaram como Partido Trabalhista Nacional.

Previsivelmente, o orçamento emergencial de Snowden, determinado por imperativos de solidez financeira, suscitou fúria dentro de seu antigo partido. Contudo, o Governo Nacional, respaldado por uma ampla maioria na Casa dos Comuns, conseguiu cortar gastos, elevar impostos, reduzir o salário dos servidores e o auxílio-desemprego, medidas que quando foram propostas pela primeira vez (já que muitos dos cortes recaíam desproporcionalmente sobre os mais pobres) tinham levado à queda do governo trabalhista. Restabelecer a confiança na combalida moeda era um dos objetivos principais dessas medidas, que no entanto acarretaram redução da demanda e deflação. O que aos poucos tirou a Inglaterra da Depressão foi, sobretudo, o dinheiro barato resultante da redução dos juros nos empréstimos de curto prazo. Consequência disso foi o estímulo à construção civil, que aqueceu a demanda por material de construção, mobiliário, eletrodomésticos e outros subprodutos correlatos. Já em 1930, o pior ano, tinham sido construídas 200 mil unidades habitacionais. Entre 1934 e 1938, a média foi de 360 mil por ano.

Enquanto procedia à demolição dos cortiços, que entre 1934 e 1939 acabou com 250 mil moradias impróprias para a habitação, o governo subsidiou a construção de habitações populares conhecidas na Inglaterra como “council houses”. Na Escócia, a maior parte das demolições e reconstruções foi empreendida pelas autoridades municipais. Mais de 300 mil unidades habitacionais populares foram construídas em toda a Escócia nas décadas do entreguerras, embora em 1939 houvesse ainda 66 mil moradias consideradas inabitáveis e mais 200 mil fossem necessárias para evitar a superlotação das já existentes. Na Inglaterra e no País de Gales, autoridades municipais progressistas implantaram grandes programas de construção de moradias. No entanto, muito mais moradias foram construídas — cerca de 2 milhões num total de 2,7 milhões — sem assistência do governo, três quartos delas financiadas por construtoras que ofereciam hipotecas e cujo capital tinha crescido muito depois da guerra. A construção civil privada prosperava, em especial em áreas suburbanas do sul da Inglaterra. Os terrenos eram relativamente abundantes; os custos de construção, baixos; as moradias, acessíveis; e as hipotecas, baratas. A economia foi aquecida também pelo crescimento da demanda interna e pela exportação de novos produtos eletroquímicos e automóveis. A expansão do uso do automóvel trouxe receitas consideráveis para o governo. Os impostos sobre veículos automotores arrecadados em 1939 foram cinco vezes maiores do que em 1921.

Da mesma forma que a Inglaterra, a França tentou sanar sua economia enferma com métodos ortodoxos de retração financeira. Os gastos públicos sofreram severos cortes. Diminuiu a construção de escolas, de casas populares e outras edificações. A burocracia inflada era um alvo fácil e visado, mas quando os cortes implantados por decreto, sem passar pelo Parlamento, atingiram salários, pensões e benefícios dos servidores públicos, aumentando o desemprego e começando a afetar veteranos de guerra e outros setores, o descontentamento cresceu e trouxe turbulências políticas. Por motivos políticos, foi descartado o recurso à desvalorização da moeda, que outros países tinham adotado para estimular as exportações. Quando a Bélgica, que continuava ao lado da França no desgastado grupo de países que ainda mantinham o padrão-ouro, enfim o abandonou, em março de 1935, desvalorizando sua moeda em 28%, a produção e as exportações começaram a se recuperar, enquanto o desemprego caía nitidamente. A França continuou a rejeitar a desvalorização. Por fim, em setembro de 1936, a desvalorização ocorreu, como não podia deixar de ser — imposta ao governo da Frente Popular, de esquerda, que tinha prometido defender o franco, mas incorrera em pesados gastos de rearmamento. Seguiram-se uma nova desvalorização, em junho de 1937, e uma terceira, em 1938. A essa altura, o franco já perdera um terço de seu valor em menos de três anos. Só então a economia começou a crescer outra vez.

Enquanto em quase toda a Europa não se ia além da ortodoxia liberal clássica como meio de administrar a crise econômica até que os mercados se ajustassem e voltasse a haver crescimento, os países escandinavos tomaram outro caminho. A Dinamarca, a Suécia e a Noruega tinham sido duramente atingidas pela Depressão. O desemprego estava alto — mais de 30% na Dinamarca e na Noruega, mais de 20% na Suécia. A Dinamarca, além disso, fora bastante afetada pela queda dos preços dos produtos agrícolas e pela redução das exportações. Desde a guerra, seus governos eram instáveis. Uma maior fragmentação e uma tendência aos extremismos políticos pareciam prováveis. No entanto, a partir de 1933, houve uma consolidação política entre os partidos que começou na Dinamarca e se estendeu rapidamente à Suécia e à Noruega. Assim, conseguiu-se uma base sobre a qual erigir um consenso firme sobre a adoção de políticas econômicas que contribuiriam em muito para a recuperação que se anunciava.

A Dinamarca saiu na frente, em janeiro de 1933, quando a necessidade de acordo sobre a desvalorização da coroa resultou numa barganha pela qual os sociais-democratas apoiariam medidas protecionistas para ajudar os agricultores em troca da disposição do Partido Agrário a apoiar políticas sociais e medidas que aliviassem o desemprego. Acordos semelhantes foram obtidos na Suécia e na Noruega. Na Suécia, em especial, a nova base pragmática de consenso foi usada para implantar uma política econômica anticíclica com o objetivo de combater o desemprego por meio de gastos em obras públicas. No entanto, não ficou totalmente claro em que medida esses esquemas foram importantes na recuperação econômica. O déficit público nos primeiros anos da recuperação foi baixo, e a recuperação já estava em andamento, ainda que em ritmo gradual, antes que tais esquemas fossem implantados, auxiliada pela desvalorização da moeda e pelo aumento das exportações. Mesmo assim, os acordos conseguidos como modo de sair da crise tiveram significado duradouro por lançar as bases de políticas de bem-estar social que se apoiavam na estabilidade política e na aceitação popular. A similaridade das políticas adotadas pelos países escandinavos refletiam novos níveis de cooperação que foram ensejados não só pela necessidade de diluir tensões internas mas também pelos problemas internacionais crescentes, principalmente em relação aos acontecimentos na Alemanha.

As ditaduras traçaram seu próprio caminho para a recuperação. A existência de um regime fascista na Itália não foi barreira contra o avanço da Depressão. Na verdade, a política deflacionária adotada em 1927 enfraqueceu a economia antes do impacto da quebra da bolsa. Medidas deflacionárias se seguiram à revalorização da moeda, com a libra esterlina agora cotada em noventa liras, pois Mussolini considerava o que ele mesmo entendia como uma lira subvalorizada (150 por libra) um insulto ao prestígio nacional da Itália. A revalorização pretendia ser uma demonstração de força e vontade política. Mas em termos econômicos teve consequências desastrosas. A produção industrial caiu cerca de 20% entre 1929 e 1932, enquanto o desemprego triplicou. Para os que trabalhavam, a renda caiu, embora entre 1932 e 1934 essa queda tenha sido mais que compensada pelo vertiginoso declínio dos preços e pela adoção de subsídios familiares. Em 1934, a semana laboral foi reduzida para quarenta horas, principalmente como medida de redução do desemprego, embora não tenha havido um ajuste no valor da hora trabalhada para compensar a perda salarial. Os salários reais caíram outra vez a partir de 1935, e às vésperas da Segunda Guerra Mundial ainda não tinham voltado aos níveis de 1923.

O governo de Mussolini reagiu à Depressão aumentando a intervenção do Estado na economia. Ampliou o investimento em obras públicas. Os gastos com recuperação de terras não eram em si nada novo na Itália. Mas se durante meio século, a partir de 1870, eles chegaram a 307 milhões de liras-ouro (em valores de 1927), entre 1921 e 1936 dispararam para 8,697 bilhões de liras-ouro. Isso ajudou a reduzir o desemprego, embora não tenha contribuído para baixar os custos, melhorar a produtividade ou estimular o progresso tecnológico. A busca da autossuficiência alimentar foi adotada como alta prioridade. A “batalha dos grãos”, acompanhada de tarifas de importação altamente protecionistas, levou ao aumento da produção de trigo e forçou a queda das importações do cereal, em 1937, a um quarto do que tinham sido no fim da década de 1920. Em consequência disso, porém, os preços dos alimentos subiram, enquanto caía o consumo médio de muitos gêneros de primeira necessidade.

Ainda durante a Depressão, o regime fascista da Itália empenhou-se em pôr em prática a antiga ideia de Estado corporativo, o que culminou, em 1934, com a fundação de 22 corporações, cada uma delas representando um setor específico da produção econômica. Em conjunto, esperava-se que resultassem numa economia integral planificada. Objetivos e realidade, no entanto, permaneceram distantes entre si. O Estado corporativo revelou-se uma estrutura pesada, burocratizada, mais propensa a sufocar do que a promover o empreendedorismo. Por trás das aparências, o poder econômico real permanecia nas mãos do grande empresariado. Os sindicatos já tinham perdido a independência em 1926, deixando as relações trabalhistas sob controle dos industriais, organizados na Confederação Geral da Indústria Italiana. Nos principais setores da indústria, cartéis garantiam a proteção dos interesses empresariais. As medidas econômicas do regime durante a Depressão também ajudaram os grandes empresários, embora nas aparências a economia estivesse sob rigoroso controle do Estado. Em 1931, criou-se uma corporação estatal para comprar bancos falidos, o que levou a um controle maior do sistema financeiro e à nacionalização do Banco da Itália em 1936. Outra corporação estatal foi criada em 1933, o Instituto de Reconstrução Industrial, para estimular indústrias em dificuldades. Pouco a pouco, o Estado estendia sua participação direta a importantes setores da atividade econômica, como o transporte marítimo, a engenharia e a produção de armas.

As medidas que visavam à instituição de uma autocracia foram fortalecidas no fim da década de 1930, o que aumentou a intervenção do Estado na economia e distanciou a Itália das economias liberais. O Estado impôs limites à liberdade de ação dos líderes empresariais, cada vez mais sujeitos a controles burocráticos. No entanto, os receios iniciais dos industriais de perda de autonomia em favor do Estado nunca se concretizaram. Embora as relações entre o Estado fascista e o grande empresariado não fossem isentas de atritos, havia interesses comuns mais do que suficientes — para não falar dos lucros astronômicos da indústria bélica — para garantir sua colaboração até bem depois do início da Segunda Guerra Mundial.

Acima de tudo, na década que se seguiu ao início da Depressão, a economia italiana permaneceu em boa medida estagnada, com o crescimento econômico num nível muito inferior ao do período 1901-25 e com a iniciativa sufocada pelas restrições oficiais, pelo medo dos trabalhadores de perder o emprego e pela possibilidade de represália contra qualquer demonstração de inconformismo político. O padrão de vida de grande parte da população caiu, e pouco melhorou com a chegada da guerra. O mesmo se aplica à produção industrial. O caminho tomado pela Itália para sair da Depressão, a despeito da mão pesada do Estado repressivo, revelou-se mais acidentado e menos eficaz do que o das democracias europeias. E muito mais perigoso. Em 1935, foi escanteado pela busca de glórias imperialistas, empreendida por Mussolini com a invasão da Etiópia em outubro. Embora a motivação para a conquista colonial fosse ideológica, havia certamente, entre fascistas de destaque, a ideia de que em tempos de graves dificuldades econômicas a expansão colonial na África poderia revitalizar o regime. Para o fascismo, a recuperação econômica fazia parte de uma agenda mais ampla.

O mesmo ocorreu, de forma ainda mais clara, na Alemanha, onde a rápida recuperação econômica deu-se justamente onde a Depressão tinha sido mais profunda. A velocidade da recuperação espantou e impressionou os observadores da época, na Alemanha e fora dela, contribuiu para consolidar o apoio à ditadura de Hitler e deu amplo curso à noção do “milagre econômico” nazista. Os nazistas tinham chegado ao poder sem um programa claro de recuperação econômica. Em seu primeiro discurso como chanceler do Reich, em 1o de fevereiro de 1933, Hitler prometeu dois grandes “planos quadrienais” para salvar os agricultores alemães e eliminar o desemprego. Como esses objetivos seriam alcançados, ele não revelou, e na verdade nem sabia. A economia para Hitler não era questão de destreza técnica, mas — como qualquer outra coisa — de vontade. Em sua mente toscamente determinista, decisivo era o poder político, e não a economia.

O que Hitler e seu regime fizeram nos primeiros meses de governo nazista, como ele prometera aos líderes do grande empresariado antes de chegar ao poder, foi remodelar as condições políticas dentro das quais a economia poderia funcionar. A destruição dos partidos de esquerda e dos sindicatos deu aos industriais o que queriam. As relações de trabalho foram reestruturadas, concedendo aos empregadores o controle dos locais de trabalho. A repressão do Estado garantiu a nova liberdade dada ao empreendimento econômico. Os salários podiam ser reduzidos, e os lucros, maximizados. Em troca, no entanto, os industriais sabiam, com certeza, que os interesses do Estado, não os da economia de mercado liberal, determinariam o contexto do empreendimento econômico. Hitler não se incomodava em entregar a especialistas em finanças na burocracia do Estado e a líderes econômicos a tarefa de traçar planos para pôr em marcha a economia. Para ele, o fator essencial era a imagem de um novo dinamismo, de revitalização. E, ao incutir confiança de que a recuperação estava em marcha, deu sua contribuição mais pessoal para fazer isso acontecer.

Os nazistas tiveram sorte de chegar ao poder quando a Depressão estava em seu ponto mais crítico, de modo que algum nível de recuperação cíclica ocorreria com qualquer governo. No entanto, a velocidade e as proporções da recuperação alemã — mais rápida que a da economia mundial como um todo — foram além de qualquer reversão normal da recessão. A recuperação precoce deve muito a ideias que já tinham sido formuladas (e estavam em alguma etapa de implantação antes que os nazistas chegassem ao poder) e agora estavam sendo resgatadas e expandidas. Projetos de criação de empregos foram apresentados em 1932. Mas eram insignificantes, não davam nenhuma esperança de causar impacto no alto índice de desemprego. Enquanto o governo de Papen destinou 167 milhões de Reichsmarks para a criação de empregos em 1932, o regime nazista investiu 5 bilhões em 1935. Ainda assim, essa importância correspondia a apenas 1% do produto interno bruto, muito pouco para reativar a economia. Mas o impacto da propaganda foi muito maior do que a soma envolvida. Parecia que a Alemanha estava funcionando outra vez.

Os projetos de criação de empregos — construção de estradas vicinais, abertura de canais, aterramentos e outros — traziam uma visibilidade muito grande, fosse qual fosse seu valor econômico real. As filas de voluntários do Serviço de Empregos (que se tornou obrigatório a partir de 1935) transmitiam a impressão de um país que começava a engrenar. O pagamento era irrisório, mas os que se recusavam a executar trabalho pesado em troca de uma recompensa mínima eram enviados a um campo de concentração e brutalmente coagidos a reconsiderar sua atitude. Os que trabalhavam nesses programas de emergência eram retirados das estatísticas. A acentuada curva descendente do desemprego — a queda era autêntica, porém menor do que os números mostravam — também incutiu confiança num país que revitalizava sua economia com dinamismo e energia.

A criação de empregos, os investimentos substanciais na construção civil, incentivos fiscais para a indústria de veículos automotores e outras medidas de reforço à proteção dos produtos agrícolas contra a queda de preços, que beneficiava os agricultores (cuja renda triplicaria nos cinco anos seguintes), foram todos fatores que representaram um avanço do regime nazista no que se refere ao estímulo à economia. Isso foi antes que os gastos com rearmamento a partir de meados da década de 1930 começassem a levar a recuperação a um novo patamar, acabando inteiramente com o desemprego e levando a uma escassez de mão de obra. A indústria automotiva recebeu impulso através do instinto de Hitler para a propaganda eficaz. Bem no começo de seu governo, ele prometeu reduzir os impostos para a produção de automóveis, um grande projeto de construção de estradas e a produção de um “carro popular” barato (embora o Volkswagen só tenha se tornado acessível à população civil depois da guerra). Em 1934, a produção de automóveis tinha aumentado 50% em relação a 1929, o ano de pico antes da Depressão. A abertura de estradas — inclusive o início das construções de autopistas, um grande sucesso de propaganda — se ampliou de modo espetacular. O investimento em estradas em 1934 foi cem vezes maior do que em qualquer momento da década de 1920. O investimento público na construção civil incentivou também a construção privada, abrindo negócios para inúmeras pequenas empresas, que produziam bens e serviços necessários tanto para as construtoras como para os consumidores que desejavam equipar suas novas casas.

As políticas adotadas para estimular a economia alemã tiveram consequências sobre o comércio internacional. A demanda não podia ser satisfeita apenas com recursos alemães. Mas a recusa em considerar uma desvalorização do Reichsmark — não apenas por motivo de prestígio mas também por causa das amargas lembranças da grande inflação de 1923, quando o dinheiro tinha perdido praticamente todo valor — fazia com que as importações fossem caras e a balança comercial se inclinasse contra a Alemanha. A solução encontrada foi fortalecer o movimento de reintegração à economia de mercado mundial por meio de acordos de comércio bilaterais e uma marcha firme na direção da autocracia. Com Hjalmar Schacht, presidente do Reichsbank e, a partir de 1934, ministro da Economia, as medidas adotadas logo depois da quebra do banco em 1931, com o intuito de controlar divisas e regular o pagamento da dívida, foram bastante ampliadas. Em 1934, uma escassez crítica de divisas e uma preocupante queda das reservas levaram o governo a privilegiar acordos de comércio bilaterais, principalmente com países do sul da Europa que forneciam matérias-primas a crédito contra a entrega (sempre atrasada) de produtos alemães manufaturados. A estratégia surgiu mais por pragmatismo, devido à debilidade econômica da Alemanha, do que por alguma pretensão de domínio sobre o centro e o sudeste da Europa. Até certo ponto, ajudou na recuperação daquelas partes do continente. Com o tempo, porém, enquanto a economia alemã se fortalecia, a dependência econômica daquelas regiões aumentou, e elas foram sugadas para a órbita da Alemanha.

A recuperação econômica não era um fim em si mesma, e se subordinava a um programa político voltado para um rearmamento rápido e uma posterior expansão pela força militar. Em 1936, os gastos do governo chegavam quase ao dobro do que tinham sido nos anos pré-nazistas, e estavam a caminho de dobrar mais uma vez nos dois anos seguintes. E a maior fatia dos gastos públicos — bem mais de um terço em 1936, quase a metade em 1938 — ia para o rearmamento, que se tornara o principal motor da economia. Num primeiro momento, o Exército foi incapaz de gastar tudo o que Hitler queria lhe dar. Mas, desde o início, a primazia do rearmamento estava clara. A partir de 1934, sustentada por enormes verbas camufladas que Schacht repassava por meio de uma “contabilidade criativa”, fora do orçamento da nação, a consolidação de Forças Armadas grandes e poderosas ganhou impulso. Os gastos em bens de capital e matérias-primas, engolidos gananciosamente pela indústria de armas em rápida expansão, superaram em muito os investimentos na produção de bens de consumo.

Entretanto, em 1935, surgiu no horizonte um problema óbvio e ameaçador. Pagar pelas importações necessárias de alimentos e conviver com as demandas cada vez maiores do rearmamento era impossível numa época de escassez de divisas na qual as reservas de moeda nacional estavam diminuindo. A safra ruim de 1934 e a ineficácia da superburocratizada Reichsnährstand — Corporação de Alimentos do Reich, criada em 1933 para acelerar a produção agrícola e melhorar a situação dos agricultores — provocaram um grave desabastecimento no segundo semestre de 1935. O descontentamento cada vez maior causou uma preocupação tão grande para o regime que Hitler viu-se forçado a intervir e fazer com que as reservas em moeda estrangeira fossem destinadas à importação de alimentos em lugar das matérias-primas que os fabricantes de armas pediam desesperadamente.

No começo do ano seguinte, chegou-se a um impasse econômico, consequência inevitável do caminho tomado pela Alemanha nazista para sair da Depressão. Só havia duas maneiras de resolvê-lo: deter a escalada armamentista e buscar a reintegração na economia internacional ou apressar a militarização, o que implicaria tomar o caminho da autocracia, que, sem expansão territorial, poderia ocorrer apenas de forma parcial. E a expansão territorial seria impossível sem entrar em guerra em algum momento. Em 1936, Hitler precisou decidir. Era óbvia qual seria sua escolha. Um princípio implícito desde o início do regime nazista confirmou-se com essa decisão: o primado da economia deu lugar ao primado da ideologia. A partir de 1936, estava em marcha a contagem do tempo para o início de uma nova guerra.

GUINADA POLÍTICA PARA A DIREITA

Durante os anos da Depressão, a política europeia inclinou-se de forma clara para a direita. Estranhamente, enquanto o capitalismo atravessava aquela que muitos contemporâneos pensavam ser sua crise terminal, num período de desemprego em massa e mal-estar social generalizado, a esquerda perdeu terreno quase em toda parte. Mesmo na Espanha, onde os socialistas tinham sido a força motriz da fundação da Segunda República, em abril de 1931, o socialismo passou cada vez mais para a defensiva a partir de 1933, e o governo francês socialista da Frente Popular, que chegara ao poder em 1936, foi de curta duração. O sucesso da social-democracia na Escandinávia era a exceção. Em toda parte, a direita estava em marcha — muitas vezes literalmente. Por que foi assim? O que determinava que uma democracia sobrevivesse ou naufragasse? Até que ponto ia a atração do fascismo? Por que a Europa em peso preferiu a direita e não a esquerda? E até que ponto a crise econômica em si foi responsável por esse desfecho funesto? Às vezes, a guinada para a direita fortaleceu o conservadorismo, fosse na forma relativamente branda que assumiu nas democracias da Europa Ocidental, fosse com os regimes autoritários reacionários dominados por elites políticas antidemocráticas no leste e no sudeste da Europa. No entanto, a Depressão também trouxe condições para que movimentos populistas da direita radical pudessem reunir apoio e, em alguns casos, mais adiante desestabilizar sistemas de governo já fragilizados.

A atração do fascismo

Alguns movimentos da extrema direita radical copiavam abertamente os métodos, os símbolos e o léxico usados pelos seguidores de Mussolini e Hitler, e se autointitulavam “fascistas” ou “nacional-socialistas” com orgulho. Outros aceitavam algumas ou muitas das ideias dos movimentos, mas negavam-se a usar o rótulo. A questão é basicamente de definição — e tentar definir fascismo é como tentar pregar gelatina na parede. Cada um dos numerosos movimentos de extrema direita tinha suas características e suas ênfases. E, como cada um deles se dizia representante “verdadeiro”, “real” ou “essencial” de uma nação e baseava grande parte de seu apelo ultranacionalista na suposta singularidade dela, não podia haver uma organização internacional autêntica que representasse para a direita radical um equivalente do que a Comintern era para a esquerda. Em dezembro de 1934, uma reunião de representantes da extrema direita de treze países (Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França, Grécia, Irlanda, Lituânia, Noruega, Países Baixos, Portugal, Romênia e Suíça), realizada às margens do lago Léman, tentou estabelecer um contexto para uma ação colaborativa, porém o país mais importante, a Alemanha nazista, boicotou o encontro — que nem sequer foi capaz de entrar em acordo sobre uma base doutrinária comum.

Não obstante, existiam algumas características ideológicas comuns aos movimentos de extrema direita, fossem autointitulados “fascistas” ou não: a ênfase ultranacionalista na unidade da nação, que ganhava sua própria identidade por meio da “limpeza”, eliminando todos os que não pertencessem a ela — estrangeiros, minorias étnicas, “indesejáveis”; exclusão racial (embora não necessariamente racismo biológico como na variante nazista), expressa na reiteração da qualidade “especial”, “singular” e “superior” da nação; compromisso radical, extremo e violento com a destruição absoluta dos inimigos políticos (especialmente marxistas, mas também liberais, democratas e “reacionários”); comportamento calcado na disciplina, na “virilidade” e no militarismo (normalmente envolvendo organizações paramilitares); e crença numa liderança autoritária. Outros traços foram importantes, até mesmo centrais, para a ideologia de algum movimento específico, mas não onipresentes. Alguns países orientaram seu nacionalismo para objetivos irredentistas ou imperialistas, com consequências desastrosas, mas nem todos eram intrinsecamente expansionistas. Alguns ainda, embora não todos, tinham forte tendência anticapitalista. Com frequência, mas nem sempre, defendiam a reorganização da economia segundo uma orientação corporativista, a abolição dos sindicatos e a regulação da política econômica por “corporações” de interesses, dirigidas pelo Estado.

Esse amálgama de ideias, com ênfases variadas, em geral era coerente com o objetivo de obter apoio de massas para um regime autoritário essencialmente reacionário, não revolucionário. Mas alguns movimentos da direita radical, declaradamente fascistas, iam mais longe. Queriam mais do que apenas derrubar ou desmantelar o Estado existente e substituí-lo por um governo nacionalista autoritário. Queriam compromisso total com a ambição de uma nação unida. Queriam a alma tanto quanto o corpo. Procuravam criar um “homem novo” (a linguagem era invariavelmente machista), uma sociedade nova, uma utopia nacional. Em última análise, foi essa reivindicação total, mais que qualquer outra coisa, que conferiu ao fascismo seu caráter revolucionário e o distinguiu de correntes da direita a ele relacionadas que, sendo autoritárias e nacionalistas, na prática buscavam manter a ordem social existente. O fascismo pretendia uma revolução não de classe, como os marxistas, mas uma revolução mesmo assim — de mentalidades, valores e vontades.

A exatidão acadêmica da terminologia é uma questão absolutamente indiferente tanto para os que sofreram nas mãos da extrema direita como para os que, sendo de esquerda, fizeram decidida oposição aos movimentos que eles mesmos não hesitavam em chamar de “fascistas”. Naturalmente, os requintes da precisão semântica não devem obscurecer a questão maior da guinada para a direita — em qualquer de suas formas — durante a Depressão.

Fosse na direção da direita conservadora ou da radical, a guinada era vista como essencial para proteger e regenerar a nação. Enquanto os conflitos de classe se intensificavam — já não com predomínio de questões econômicas, mas de natureza abertamente política e ideológica —, a unidade nacional era apresentada como uma barreira essencial contra a ameaça do socialismo. Em lugares onde essa ameaça era vista como pequena, moderada ou distante, caso da Inglaterra, prevaleceu o conservadorismo — comprometido com a manutenção da ordem política e social vigente — e o espaço para o avanço da direita radical era mínimo. No polo oposto, caso da Alemanha, onde o perigo era visto como considerável, o conservadorismo — ele mesmo tentando derrubar a ordem política e social existente — rachou, e seu eleitorado foi em grande parte engolido pela direita fascista. Outros países ficaram em algum ponto entre esses dois polos opostos.

A atração exercida pelo fascismo nunca fora tão forte quanto naquela época. A mensagem de renovação nacional, ligando poderosamente o medo à esperança, era diversificada o bastante para ser capaz de cruzar fronteiras sociais. Sua mensagem envolvia o apelo aos interesses materiais essenciais de grupos sociais dos mais diversos num miasma de retórica sentimental sobre o futuro da nação. Tocava os interesses daqueles que se sentiam ameaçados pelas forças das mudanças sociais modernizantes. Mobilizava aqueles que acreditavam ter alguma coisa a perder — status, propriedades, poder, tradição cultural — para a suposta ameaça de inimigos internos e, principalmente, para o avanço do socialismo e sua promessa de revolução social. Contudo, amarrava esses interesses a uma visão de sociedade nova que premiaria os fortes, os aptos, os merecedores — os dignos de recompensa (a seus olhos).

Dado esse apelo que timidamente tentava transcender os limites convencionais dos interesses setoriais (e se intensificava na medida em que a crise aumentava a fragmentação política), não é de surpreender que a base social dos movimentos fascistas fosse tão heterogênea. Na verdade, alguns setores da sociedade eram mais propensos a sucumbir à atração do fascismo. O lado emocional, romântico e idealista do fascismo, com seu ativismo violento e aventureiro, era atraente em especial para jovens do sexo masculino expostos a tais valores nos movimentos de juventude de classe média — caso ainda não fossem ligados a organizações de jovens, católicas ou de esquerda. A “revolta geracional” contra os valores estabelecidos foi facilmente canalizada para o ultranacionalismo fascista e para a violência paramilitar e racista contra a esquerda. Os membros dos partidos fascistas eram em sua imensa maioria homens, embora na Alemanha, nos lugares em que sua participação pôde ser medida, as mulheres passaram a votar cada vez mais no Partido Nazista à medida que ele se aproximava do poder, e provavelmente pelos mesmos motivos que os homens.

As classes médias descontentes em geral eram atraídas para o fascismo numa proporção maior que outros setores da sociedade. Empregados de escritórios, empresários, profissionais liberais, oficiais e suboficiais da reserva, funcionários públicos, comerciantes, artesãos, donos de pequenas oficinas, agricultores e estudantes (normalmente originários das classes médias) quase sempre estavam presentes em maior número na base de apoio do fascismo do que outras categorias. Mas, embora militantes de classe média fossem dominantes entre os funcionários do partido e nos cargos de liderança, o fascismo não pode ser definido (como era hábito) apenas como um movimento de classe média, nem em termos absolutos de classe. Trabalhadores qualificados e braçais o apoiavam em maior número do que se acreditava. Cerca de 40% dos novos filiados ao Partido Nazista entre 1925 e 1932 vieram da classe trabalhadora. Mais de um quarto dos eleitores dos nazistas eram trabalhadores — possivelmente até 30% ou 40% se forem levados em conta os domicílios da classe trabalhadora como um todo. Em 1932, é provável que mais trabalhadores votassem nos nazistas do que nos socialistas ou comunistas. Entre os paramilitares das tropas de assalto, uma organização masculina de combatentes de rua, os jovens da classe trabalhadora eram maioria: bem mais da metade entre 1925 e 1932, e uma proporção ainda maior depois que o Partido Nazista chegou ao poder.

Desses trabalhadores, não eram muitos os que foram cooptados dos partidos socialista e comunista. Alguns tinham efetivamente mudado de lado, mas a grande maioria não pertencia ao meio institucionalizado dos partidos de esquerda. O Partido Nazista, não só por seu tamanho (já no começo de 1933 era bem mais de três vezes maior que o partido fascista da Itália tinha sido antes da Marcha sobre Roma de Mussolini, onze anos antes), era em muitos aspectos atípico no meio da direita radical como um todo. Mas a estrutura de apoio em movimentos fascistas menores — com um núcleo de classe média, porém com um considerável contingente de trabalhadores não ligados anteriormente a partidos de esquerda — quase sempre era similar. Foi o caso, por exemplo, de França, Espanha, Áustria, Suíça e Inglaterra (assim como da Itália antes da “tomada do poder” por Mussolini).

Não havia correlação direta entre a Depressão e as chances de sucesso da direita radical. A crise gerada pela Depressão, é verdade, levou ao triunfo de Hitler. Mas Mussolini chegara ao poder na Itália quase uma década antes da recessão, e em alguns países o fascismo só surgiu quando a Depressão já estava arrefecendo. Além disso, em outros países, em especial a Inglaterra e, fora da Europa, os Estados Unidos, embora gravemente castigados pela Depressão, não surgiram movimentos fascistas de vulto. Só onde as tensões sociais e políticas criadas pela Depressão interagiram com outro fator dominante — ressentimento por perdas territoriais, medo paranoico da esquerda, rejeição visceral dos judeus e de outros “forasteiros”, descrença na capacidade da política partidária de “endireitar as coisas” — ocorreu um colapso sistêmico que pavimentou o caminho para o fascismo.

A Itália e a Alemanha acabaram sendo, afinal, os únicos países em que os movimentos fascistas gerados internamente tornaram-se fortes a ponto de conseguir remodelar o Estado à sua imagem, com a ajuda de elites conservadoras fragilizadas. Com maior frequência (como no leste da Europa), os movimentos fascistas foram mantidos sob controle por regimes autoritários repressivos, ou (como no norte e no oeste da Europa) causaram violentos distúrbios na ordem pública sem ter no entanto a capacidade de pôr em risco a autoridade do Estado.

O triunfo do fascismo dependia do descrédito total da autoridade do Estado, da debilidade de elites políticas já incapazes de garantir o funcionamento do sistema em favor de seus interesses, da fragmentação da política partidária e da liberdade para construir um movimento que prometia uma alternativa radical. Esses pré-requisitos estavam presentes na Itália do pós-guerra, entre 1919 e 1922, e na Alemanha tomada pela Depressão entre 1930 e 1933, mas não em outros lugares — a não ser a Espanha, onde o confronto cada vez mais violento entre esquerda e direita (ambas divididas em facções) acabaria levando à guerra civil de 1936-9, seguida de ditadura militar, mas não da “tomada do poder” pelos fascistas. Por outro lado, onde o Estado democrático manteve a confiança das elites dominantes e das massas populares, como no norte e no oeste da Europa, ou onde as elites autoritárias conseguiam controlar com rigor um sistema que atendia a seus interesses, restringindo direitos civis e a liberdade de organização, como em grande parte do leste e do sul da Europa, os movimentos fascistas não se fortaleceram a ponto de conquistar o poder.

A direita na Europa Ocidental: Democracia resiliente

A Inglaterra é o exemplo mais claro de Estado cujo sistema político não abriu espaço para que a direita radical viesse à tona. Os valores políticos e sociais dominantes — apoiados na monarquia, na nação, no império, no governo parlamentarista e no estado de direito — eram amplamente aceitos. O sistema de monarquia constitucional baseado na democracia parlamentarista era praticamente inconteste quando o país mergulhou na Depressão. Não existia nenhum grande partido marxista que pudesse representar uma ameaça real ou imaginária à ordem política. O Partido Trabalhista (que durante a década de 1920 substituíra o Partido Liberal como principal opositor dos conservadores) era reformista e não revolucionário, assim como os sindicatos que formavam sua coluna vertebral. O Partido Conservador, ao contrário dos conservadores de outros países da Europa, tinha interesse total em manter a ordem existente. Quando a crise do sistema financeiro levou à queda do governo trabalhista, em 1931, as eleições gerais que se seguiram, em 27 de outubro, deram aos conservadores o maior triunfo da história do parlamentarismo britânico. O Governo Nacional ganhou 521 cadeiras, com mais de 60% dos votos. Os conservadores ficaram com nada menos que 470 dessas cadeiras. Apesar do nome que evocava unidade, o Governo Nacional era na prática uma administração de conservadores. No auge da crise econômica, portanto, o sistema parlamentar britânico não só permaneceu firme como se consolidou. Não houve crise de legitimidade do Estado. Nenhuma ameaça veio da esquerda. Os trabalhistas estavam na oposição, mas apoiavam o Estado. Os extremistas foram marginalizados. Enquanto durou o período da Depressão, não houve nenhum comunista ou fascista no Parlamento.

A força do conservadorismo bloqueou qualquer possível abertura para a extrema direita. A União Britânica de Fascistas (buf), de Oswald Mosley, fundada em 1932, nunca teve chance de se disseminar. A essa altura, tinha cerca de 50 mil membros, uma clientela variada de profissionais liberais de classe média, insatisfeitos, ex-soldados, pequenos empresários, comerciantes, funcionários de escritório e trabalhadores sem qualificação de algumas áreas decadentes da Inglaterra e do East End de Londres (área pobre tradicionalmente, ocupada por imigrantes, onde vivia um terço da população judaica do país). O estilo da buf mais parecia uma tosca imitação importada. As camisas pretas dos fascistas, as marchas, a ação política e a iconografia, para não falar da revoltante violência pública contra judeus e opositores políticos, não combinavam com a cultura política britânica. Confrontos com a esquerda antifascista causavam perturbações cada vez maiores na ordem pública. Seu apoio — inclusive o de Lord Rothermere, dono do muito lido jornal The Daily Mail — desabou depois que uma grande passeata, realizada em Londres em junho de 1934, foi acompanhada de uma brutalidade repulsiva contra os opositores de Mosley, infiltrados às centenas na multidão de 15 mil manifestantes. Mosley tinha tanta certeza da humilhação eleitoral que seu partido sofreria que a buf nem sequer concorreu à eleição de 1935. Em outubro daquele ano, os membros da organização já não passavam de 5 mil, e ela só se recuperou lentamente às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando chegou a 22,5 mil membros. Quando da eclosão do conflito, Mosley e outros líderes da buf foram presos, e o partido foi dissolvido. A União Britânica de Fascistas representou uma ameaça para aqueles que seus membros consideravam inimigos raciais ou políticos e um considerável incômodo para a ordem pública, mas seu impacto sobre a política institucional britânica foi mínimo.

Também nos países do norte e do oeste da Europa que tinham saído vitoriosos da Primeira Guerra Mundial — ou que se mantiveram neutros durante o conflito — pouco existiam sentimentos de humilhação nacional ou ambições irredentistas. Dessa forma, a direita radical encontrou seu caminho para o poder bloqueado pela resiliência das estruturas políticas existentes. Os movimentos fascistas conquistaram apoio popular irrisório na Dinamarca, Islândia, Suécia e Noruega. Na Finlândia tiveram um pouco mais de sucesso, mas seu desempenho eleitoral não passou de 8,3% nas eleições de 1936. Em alguns dos cantões suíços de língua alemã, a Frente Nacional fascista conquistou mais de 27% dos votos entre 1933 e 1936, mas esse apoio caiu nitidamente pouco depois, enquanto no resto da Suíça o fascismo encontrou um número insignificante de adeptos e muita oposição.

Os camisas-azuis irlandeses — oficialmente, Associação dos Camaradas do Exército, rebatizada em 1933 com o nome de Guarda Nacional — tiveram existência breve. Organizaram-se em 1932 e tiveram como líder Eoin O’Duffy, conhecido por seu temperamento volúvel e pelo extremismo político, um ex-chefe do Estado-Maior do Exército Republicano Irlandês (ira) que acabara de ser demitido do cargo de comissário da polícia irlandesa. Em 1934, afirmavam ter 50 mil membros, a maioria no sudoeste do país, a região mais afetada pela crise econômica. Mas o apoio ao movimento logo se diluiu depois de sua proibição pelo governo e do fim de uma disputa comercial com a Inglaterra que afetara gravemente a agricultura irlandesa. Os camisas-azuis abandonaram o radicalismo e a identidade fascista e se uniram ao novo partido político dominante, o Fine Gael. Em 1935, já haviam deixado de existir. O’Duffy acabou rompendo com o Fine Gael — sua presença constrangia cada vez mais o partido — e mais tarde liderou uma brigada irlandesa que lutou por algum tempo a favor do general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola.

Nos Países Baixos, apesar do desemprego de 35% em 1936, a direita radical conseguiu pouca inserção nas estruturas políticas, que permaneceram solidamente vinculadas às subculturas protestante, católica e social-democrata. Os governos mudavam, mas na verdade existia uma continuidade na burocracia, e muita adaptação prática e concessões entre os partidos governantes. O medo cada vez maior da Alemanha nazista contribuiu também para uma ideia de unidade nacional que ajudou a manter a coesão do sistema parlamentar em vigor. O fascismo era visto como “estrangeiro” e como uma ameaça nacional. O ponto alto do principal movimento fascista, o Nationaal Socialistische Beweging, foi alcançado em 1935, quando obteve 8% dos votos. Mas em dois anos esse percentual caiu para 4%, e o apoio à extrema direita continuou em baixa durante o que restava do período anterior à guerra.

A Bélgica testemunhou uma breve lufada de apoio a um movimento corporativista católico e autoritário que beirava o fascismo. Em 1936, o Partido Rex (que tomou o nome de uma editora católica chamada Christus Rex, por sua vez assim chamada por causa da recém-instituída festa de Cristo Rei) conquistou 11,5% dos votos — em boa medida como protesto das classes médias de língua francesa nas partes industrializadas do sudeste do país contra a corrupção dos partidos convencionais. Mas esse eleitorado em pouco tempo encolheu, restando dele apenas uns poucos adeptos. Da mesma forma que nos Países Baixos, as forças tradicionais do meio social e político — católicos, socialistas e liberais — preencheram o espaço que os novos movimentos de extrema direita poderiam ter ocupado. Na Bélgica, a inexistência de um nacionalismo genuinamente belga era também um obstáculo. O Rex tinha uns poucos adeptos em Flandres, onde havia movimentos nacionalistas e protofascistas (embora sem apoio majoritário).

Durante algum tempo, considerou-se que a Terceira República na França podia estar seriamente ameaçada pela extrema direita. O sistema político não dava ensejo a mudanças frequentes de governo (que quase sempre se resumiam a uma dança das cadeiras, com as mesmas pessoas em torno da mesa do gabinete), mas sim a alianças pragmáticas variadas entre os partidos. Essas alianças quase sempre incluíam os radicais, que constituíam o partido central da república. Os radicais eram anticlericais, defendiam princípios econômicos liberais, apoiavam-se firmemente nas classes médias e se dispunham a acordos com facções moderadas da direita ou da esquerda com intuito de permanecer no poder (o que geralmente acontecia). Nas eleições de 1932, quando a Depressão ainda estava se instalando, o Partido Socialista e os radicais, numa incômoda aliança de esquerda moderada, tiveram ganhos importantes. A derrota do bloco direitista integrado pelos partidos conservadores desencadeou uma reação exagerada da direita, num clima de xenofobia, acentuado nacionalismo, antissemitismo, antifeminismo e medo da “ameaça vermelha” (embora os comunistas só tivessem obtido doze das 605 cadeiras na Câmara dos Deputados). O clima de agitação foi exacerbado pelos acontecimentos dramáticos do outro lado do Reno. As Ligas — organizações paramilitares e extraparlamentares da direita nacionalista, formadas por grandes associações de veteranos, algumas delas com pelo menos algumas características fascistas — ganharam novo fôlego depois do declínio sofrido durante a estabilização financeira no governo de Poincaré.

Em meio à tensão crescente, a imprensa parisiense, esmagadoramente direitista, não perdia oportunidade de condenar o governo com uma virulência sem limites. A cena política francesa era notoriamente mercenária e corrupta, mas um escândalo denunciado no fim de 1933 foi agarrado com unhas e dentes pela imprensa com especial apetite, e continha ingredientes que podiam ser preparados de modo a pôr em risco não somente o governo mas a própria república. Esse escândalo surgiu de uma fraude nas finanças públicas perpetrada por Alexandre Stavisky, personagem indigesto de origem judaica do Leste Europeu — feito sob medida para o preconceito de direita. O escândalo envolvia figuras de alto escalão, principalmente do Partido Radical. Segundo alguns boatos havia nada menos de 132 políticos na folha de pagamento de Stavisky. Quando se soube que o fraudador tinha cometido suicídio, a fábrica de boatos passou a funcionar a todo vapor. Judeus e maçons foram acusados de envolvimento numa conspiração para silenciar Stavisky, cuja morte desencadeou graves distúrbios nas ruas de Paris. Em 6 de fevereiro de 1934, grandes grupos de adeptos das Ligas — algumas estimativas falavam em 30 mil — saíram às ruas da capital francesa. O ato culminou numa noite de violência em que a polícia e milhares de manifestantes se confrontaram, com um saldo de quinze mortos e mais de 1400 feridos.

A escala da violência organizada — no pior caso já ocorrido em Paris desde a Comuna de 1871 — teve grande impacto nas instituições políticas francesas. O governo, que assumira poucos dias antes, foi derrubado — e de fato pela violência das ruas e pelas forças paramilitares. A turbulência política resultante agravou o confronto entre esquerda e direita que caracterizaria a política francesa pelo resto da década de 1930. Mas a ameaça substancial à existência do Estado não passou de miragem. A República Francesa não foi seriamente ameaçada — embora na época as aparências mostrassem outra coisa. As Ligas, apesar de uma ideologia comum de extremo nacionalismo, anticomunismo feroz e autoritarismo (quase sempre em favor de uma forma corporativista de Estado), estavam divididas internamente em termos de liderança e objetivos. A maior delas, a Croix-de-Feu, com estimados 40 mil membros no começo de 1934, de modo geral conseguiu manter a disciplina durante os distúrbios de fevereiro, se comparada à violência de membros da Action Française e outras organizações de direita — o que lhe rendeu aplausos da imprensa conservadora. O líder da Croix-de-Feu, coronel François de la Roque, mais tarde inclusive se distanciou do antissemitismo de alguns de seus seguidores.

Além disso, um resultado direto dos acontecimentos de 6 de fevereiro de 1934 foi a unificação da até então dividida esquerda francesa na luta contra o fascismo. Se isso não tivesse acontecido, a ameaça à república poderia ter sido muito mais séria. Diante da situação, a esquerda reagiu com rapidez e eficiência. Em 9 de fevereiro, os comunistas já tinham mobilizado seus adeptos. Os confrontos com a direita paramilitar deixaram nove mortos e centenas de feridos. Três dias depois, mais de 1 milhão de sindicalistas paralisaram Paris com uma greve geral de 24 horas. Durante os dois anos seguintes, houve mais de mil manifestações de uma ou outra espécie, principalmente da esquerda contra a ameaça do fascismo. Em 1934 — logo depois que o triunfo de Hitler na Alemanha enfim convenceu Stálin a abandonar os absurdos ataques da Comintern aos partidos social-democratas, chamados de “social-fascistas”, e a convocar a classe trabalhadora para uma frente comum contra o fascismo —, o violento confronto fez com que os franceses encarassem a realidade e abriu caminho para ao governo da Frente Popular, formado em 1936. Depois dos acontecimentos de fevereiro de 1934, a direita, dividida, deparou pela primeira vez com uma esquerda unida.

As Ligas, postas na ilegalidade em junho de 1936 pelo governo da Frente Popular, em alguns casos se reorganizaram em partidos políticos. A Croix-de-Feu metamorfoseou-se no Parti Social Français e aumentou muito seu eleitorado. Em 1937, tinha cerca de 750 mil membros, mais que os socialistas e os comunistas juntos. Nesse processo, porém, o Parti Social afastou-se do estilo fascista de mobilização e se aproximou do conservadorismo autoritário. O Parti Populaire Français, autenticamente fascista, surgiu em junho de 1936, liderado por um ex-comunista, Jacques Doriot. A ameaça cada vez maior representada pela Alemanha nazista, o colapso do governo da Frente Popular em 1938 e, com ele, o fim da ameaça interna representada pela esquerda, além da ênfase crescente na solidariedade nacional à medida que se vislumbrava a possibilidade de guerra, corroeram o partido de Doriot, que entrou em franca decadência. Mesmo assim, em suas inúmeras formas — algumas abertamente fascistas, outras beirando o fascismo —, a direita francesa formou uma ampla base de apoio popular. Sem ele, o apoio imediato ao governo de Vichy, depois de 1940, teria sido impensável.

Apesar de todas as suas tribulações, o republicanismo na França tinha uma extensa e tradicional base de apoio popular. A situação da Espanha era outra, e as forças antagônicas à república democrática eram muito mais poderosas. De início, no entanto, as perspectivas para uma direita autoritária pareciam ter diminuído, em vez de aumentar, à medida que problemas econômicos cada vez maiores assolavam o país, cuja fragmentação social e política, profundamente arraigada, fazia com que nunca estivesse muito distante da crise. A ditadura militar de Primo de Rivera, que vinha desde 1923, tinha perdido o que lhe pudesse restar de alento no início de 1930. Entre o descontentamento generalizado e a crise de autoridade, com o fim do boom econômico que sustentara seu sucesso inicial, Primo foi forçado a renunciar, deixou o país para exilar-se em Paris e morreu algum tempo depois. Em poucos meses, foi seguido no exílio pelo rei Afonso XIII, e as eleições de abril de 1931 inauguraram uma nova república democrática. Numa conjuntura em que a democracia em grande parte da Europa estava se voltando para a direita, a Espanha avançou no sentido oposto — pelo menos por ora. A vitória esmagadora da esquerda nas eleições de 1931 foi, no entanto, ilusória. Embora muitos espanhóis, desencantados com Primo de Rivera e com a monarquia, estivessem dispostos a dar uma chance à república, seu apoio quase sempre foi morno, vacilante e condicional. Faltava à república uma autêntica base nas massas que lhe desse apoio confiável, fora da classe dos trabalhadores industriais — setor relativamente pequeno da população, concentrado em algumas grandes cidades e regiões específicas, em especial na Catalunha, no País Basco e nas Astúrias. E havia as graves dissensões entre os partidos republicanos. A esquerda estava irremediavelmente dividida entre socialistas, o pilar da república, e os anarcossindicalistas (com força no campo, sobretudo no sul), que a viam apenas como a primeira etapa de uma violenta luta, conduzida pelos sindicatos, contra a autoridade do Estado. As fortes identidades regionais e o antagonismo a Madri, principalmente na Catalunha e no País Basco, dificultavam a consolidação de uma esquerda unida. A direita, enquanto isso, estava derrotada, desorganizada e confusa depois das eleições de 1931. Mas a derrota parlamentar escondia a força e a resiliência das tendências antirrepublicanas radicalmente conservadoras. A instituição da república na verdade reacendeu a chama ideológica que tinha estado até certo ponto adormecida durante a ditadura de Primo de Rivera.

A nova democracia foi um sistema violentamente contestado desde o início. Em dois anos, as leis de reforma agrária e de proteção aos trabalhadores, além de uma redução significativa do poder da Igreja católica, decidida pela coalizão de governo integrada por socialistas e liberais, provocaram uma reação cada vez mais ruidosa da direita autoritária, numerosa ainda que fragmentada, antissocialista e ferrenhamente católica. Os latifundiários, a Igreja e as Forças Armadas faziam oposição implacável à república, enquanto o progresso lento, limitado e parcial da reforma social frustrava e afastava muitos adeptos da república. Nas eleições de novembro de 1933, a esquerda sofreu uma pesada derrota, os partidos de direita triunfaram e, nos dois anos seguintes, as reformas do início da república foram revertidas ou barradas, já com o poder de volta às mãos de latifundiários e empregadores. Formava-se o embrião da guerra civil.

A direita espanhola estava muito longe de ser unida. Alguns setores eram declaradamente reacionários — pretendiam a restauração da monarquia e um Estado corporativo autoritário sustentado pelas Forças Armadas. Uma parte muito maior da direita — na verdade o maior grupo político da Espanha, que dizia ter 735 mil membros — formou-se em 1933 com o nome de Confederación Española de Derechas Autónomas (ceda), um vasto conglomerado de conservadores católicos populistas. A ceda dizia-se defensora do cristianismo contra o marxismo, referia-se ao principal nome do partido, Gil Robles, como “líder” e adotava outras formas de expressão do fascismo como marchas, uniformes, saudação específica, estilo de mobilização e organização de um movimento jovem cada vez mais fascistizante. Distinguia-se do fascismo radical por rejeitar o paramilitarismo e por aderir, ao menos formalmente, a instituições do Estado e a métodos legais e não violentos de luta política. Na prática, porém, cada vez mais apoiava a violência antirrepublicana e mostrava inclinação pela adoção de um Estado corporativo autoritário. Sua identidade democrática era no mínimo ambígua. “Quando chegar a hora, ou o Parlamento se submete ou será eliminado”, dizia Robles.

Dentro desse vasto, mas fragmentado, corpo de apoio à direita autoritária, em grande parte constituído de autoritarismo conservador com nuances fascistas, o fascismo radical autêntico tinha pouco espaço. O movimento fascista mais importante, a Falange Española, fundada em 1933 por José Antonio Primo de Rivera, filho do antigo ditador, atacava a direita burguesa e a esquerda marxista. Previsivelmente, José Antonio não foi muito longe. A Falange chegou a ter 10 mil filiados num país de 25 milhões de habitantes, e conquistou 44 mil votos (0,7% do total) nas eleições de 1936. Nesse mesmo ano, foi posta na ilegalidade e seus líderes, encarcerados. José Antonio foi condenado à morte e executado em novembro. Nessa época, a rebelião contra a república, lançada a partir do Marrocos sob a liderança do general Francisco Franco, já tinha começado. Só em abril de 1937, quando Franco assumiu a Falange e fez dela, pelo menos formalmente, a pedra angular do conglomerado de forças nacionalistas de direita que apoiavam sua rebelião, o fascismo na Espanha tornou-se um movimento de massas — e por fim, depois da guerra civil, na condição de partido oficial de uma ditadura militar à qual servia mas que não controlava.

Antes da guerra civil, a Falange competia em terreno muito disputado. Além disso, sua mensagem social revolucionária afastava grande parte da classe média, assim como o status quo católico. Nas condições da democracia pluralista pré-guerra civil, a tentativa de construir um movimento de massas verdadeiramente fascista na Espanha foi um fracasso. Mas que importância tinha isso? Aos olhos de seus mais viscerais opositores de esquerda, havia pouca diferença entre o pequeno grupo da Falange e a massa de apoio da direita. Fossem quais fossem as minúcias quanto à definição de cada uma delas, a ceda lhes parecia tão fascista quanto a Falange. E estariam errados? Do ponto de vista daqueles que tanto sofreram nas mãos da direita, durante a guerra civil e depois dela, o fascismo espanhol tinha ampla base de apoio e não se reduzia aos poucos adeptos da Falange.

Enquanto na Itália e na Alemanha abriu-se um vácuo político em decorrência do colapso dos partidos da direita conservadora e liberal — deixando aos grandes partidos de massa, populistas e fascistas, o papel de ocupar esse espaço e reunir uma nova direita em torno de um programa de renovação nacional capaz de destruir a ameaça representada pela esquerda —, na Espanha isso não existiu. O vácuo político foi preenchido por numerosos movimentos conservadores autoritários, mais e menos fortes, alguns deles com nuances inequivocamente fascistas, em especial a ceda. A direita espanhola antidemocrática era muito numerosa, e assim a força da própria reação conservadora bloqueava o caminho do fascismo radical. Na época do levante comandado por Franco, em julho de 1936, a crise da democracia espanhola era profunda. Mas a esquerda estava pronta para a luta. Foram necessários três anos de uma cruenta guerra civil para derrubar a democracia.

Campo fértil para a direita: A Europa Central e a Oriental

A Espanha era um caso excepcional na Europa Ocidental. No centro e no leste do continente, a guinada para a extrema direita era o lugar-comum. Os maiores movimentos fascistas surgiram na Áustria, na Romênia e na Hungria. Para a Áustria, a chegada de Hitler ao poder na vizinha Alemanha foi um acontecimento determinante. Na Romênia e na Hungria, a turbulência persistente que decorreu dos ajustes territoriais do pós-guerra foi um pré-requisito de peso.

Grande parte dos que não simpatizavam com o socialismo na Áustria já eram protofascistas à época da Depressão. O colapso do sistema financeiro em 1931 e o desemprego galopante minaram a economia do país e as condições de vida de grande parte da população. Sob o impacto da Depressão, a divisão da política austríaca em três setores se aprofundou e radicalizou. Dois grandes movimentos fascistas, o Heimwehr [Defesa da Pátria], de origem local, e o Partido Nazista da Áustria, inspirado nos acontecimentos da vizinha Alemanha e em franco crescimento, defrontavam-se com um grande Partido Socialista que mantinha o sólido apoio da classe de trabalhadores industriais. Em 1930, os seguidores do Heimwehr eram duas vezes mais numerosos que os do Partido Nazista da Áustria, que muitos viam como uma versão local de uma organização estrangeira. Mas os nazistas vinham ganhando terreno com rapidez. Nas eleições regionais e municipais de 1932, conseguiram 16% dos votos.

Depois que Hitler assumiu na Alemanha, em janeiro de 1933, a ameaça nazista na Áustria tornou-se óbvia. O chanceler austríaco, o miúdo porém enérgico Engelbert Dollfuss, de 39 anos, aboliu o regime parlamentarista e instituiu o que definiu como “o Estado social, cristão e germânico da Áustria baseado em propriedades [corporativas] e forte liderança autoritária”. Seu regime, apoiado pela maior parte dos partidos não socialistas, pelo Heimwehr e pelos católicos, restringiu liberdades e eliminou a oposição. Em fevereiro de 1934, esmagou brutalmente um levante armado socialista provocado por suas próprias ações e pôs o socialismo na ilegalidade. As forças de esquerda mostraram não ser páreo para as da direita, mesmo não tendo se dividido em grupos rivais de sociais-democratas e comunistas, ao contrário do que ocorrera na Alemanha e em muitos outros países. Uma nova constituição aboliu o Parlamento em favor de um Estado corporativista, baseado na imposição de cima para baixo de uma elaborada combinação de “corporações” e conselhos consultivos apoiados por uma única organização política, a Frente da Pátria, apoiadora do governo. O poder real permaneceu nas mãos do chanceler. Dollfuss foi assassinado pelos nazistas em julho de 1934, mas o regime autoritário — mais conservador, reacionário e repressivo do que fascista, ou pelo menos ligado a uma forma relativamente branda de fascismo, em comparação com o que estava por vir — permaneceu com seu sucessor, Kurt von Schuschnigg, apesar da pressão cada vez maior dos nazistas. Von Schuschnigg tentou reafirmar a independência austríaca com um plebiscito que se realizaria em 13 de março de 1938, mas foi impedido pela invasão alemã e pela consequente anexação (Anschluss) em 12-3 de março.

Como a Romênia tinha saído da guerra em boa situação, com mais que o dobro do território anterior (principalmente à custa da Hungria, mas com ganhos sobre a Rússia, a Bulgária e a Áustria), não fica claro, à primeira vista, por que o fascismo foi tão atraente nesse país. O pano de fundo foi uma prolongada e paralisante depressão no setor agrícola que fez a renda do trabalho rural cair 60%. À medida que as dificuldades econômicas no campo pioravam, aumentava o ressentimento contra as minorias étnicas — magiares, alemães, mas, acima de todos, judeus — dominantes na indústria, no comércio e nas finanças. Com a expansão territorial, os não romenos passaram a representar cerca de 30% da população. E a Romênia, onde os judeus eram privados de direitos civis até 1918, sempre fora um dos lugares mais antissemitas da Europa. Nessas condições, não foi difícil associar a penúria econômica ao preconceito e ao ódio contra as minorias, nem construir um imaginário nacionalista no qual o “verdadeiro” povo romeno aparecia ameaçado por estrangeiros.

O movimento fascista romeno Legião do Arcanjo Miguel, também chamado Guarda de Ferro, ultraviolento (mesmo para os padrões fascistas) e ultra-antissemita, liderado pelo carismático Corneliu Zelea Codreanu, ex-estudante de direito, chegou a reunir 272 mil membros em 1937 e recebeu 15,8% dos votos na eleição daquele ano, tornando-se o terceiro partido mais importante da Romênia. Codreanu conseguiu tal apoio usando uma inebriante mistura de nacionalismo etnorracista, exaltado e romantizado, fermentada por uma doutrina de limpeza violenta com o objetivo de purificar a nação de todos os elementos externos (principalmente judeus, associados a uma suposta ameaça às fronteiras romenas, vinda da Rússia bolchevique, e ao capitalismo especulativo). A essa infusão somava-se a invocação dos “verdadeiros” valores morais romenos, radicados na pureza cristã e no solo — a “revolução espiritual” do “socialismo nacional-cristão” que daria origem ao “homem novo”. Professores, funcionários públicos, advogados, religiosos ortodoxos, oficiais da reserva, jornalistas, estudantes, intelectuais e, é claro, camponeses constituíram a coluna vertebral do partido. Os trabalhadores rurais não se deixaram atrair apenas pela romantização irracional do campo, representada pela “volta ao solo”, mas pela forma como esse apelo emocional foi ao encontro de suas agruras econômicas, aprofundadas pela depressão agrícola e pela promessa das terras que ganhariam com o confisco das riquezas dos judeus.

Na Romênia, apesar de seu prestígio em alta na década de 1930, o fascismo continuou sendo um movimento de oposição, incapaz de chegar ao poder. O sucesso do movimento de Codreanu nas eleições de 1937 assustou o monarca e a classe dominante. Apoiado pelo Exército, pela burocracia e por grande parte do governista Partido Nacional Liberal, e explorando divisões em outros partidos, o rei Carlos ii dissolveu o Parlamento no começo de 1938 e instituiu uma ditadura real. A Legião do Arcanjo Miguel foi posta na ilegalidade, Codreanu foi preso e assassinado na prisão. Muito do que o fascismo propunha — inclusive o extremo antissemitismo — foi incorporado pelo regime monarquista. Mas foi uma vitória de pirro. A organização fascista passou para a clandestinidade e, apesar da execução de centenas de membros, renasceu na Segunda Guerra Mundial para participar do governo durante um curto período, mas em circunstâncias muito diversas.

Na Hungria, onde os graves ressentimentos irredentistas gerados pelas perdas territoriais determinadas pelos acordos do pós-guerra ainda eram uma ferida aberta, a Depressão, que trouxe uma queda vertiginosa na produção agrícola e desemprego para um terço da força de trabalho industrial, exacerbou as tensões sociais e políticas. No entanto, principalmente entre 1932 e 1936, durante o governo do primeiro-ministro Gyula Gömbös, cujas inclinações para a extrema direita dividiram e desarmaram por algum tempo as pequenas forças fascistas, as elites governantes, depois de reconquistar sua força com a restauração conservadora da década de 1920, conseguiram controlar e manipular o Parlamento e se adaptar à administração da crise, de modo que nenhum grande partido fascista surgiu até 1937. A fragilidade da esquerda socialista, que nunca se recuperou do massacre a que foi submetida depois do colapso do regime de Béla Kun em 1919, e a limitada participação das massas nos anos seguintes na democracia de fachada do regime autoritário de Miklós Horthy desempenharam seu papel em reduzir as chances de uma mobilização fascista. Só a partir de 1937, por influência do que acontecia na Alemanha e pelas rápidas mudanças no horizonte da política internacional, surgiu um movimento fascista de grandes proporções. O Partido Nacional Socialista da Hungria — amálgama de oito grupos nacionalistas extremistas — nasceu do Partido da Vontade Nacional, fundado pelo oficial da reserva Ferenz Szálasi em 1935, e em 1939 assumiu o nome de Partido da Cruz Flechada. Começou a recrutar apoio com sucesso entre profissionais do setor público, oficiais do Exército e trabalhadores das áreas industriais de Budapeste, chegando a 250 mil membros em 1939-40. O breve momento de glória da Cruz Flechada — embora tenha sido de horror para suas vítimas — viria mais tarde, durante a guerra, com a Hungria sob domínio alemão e a derrota cada vez mais próxima.

Em outros países do leste e do sudeste da Europa, o controle do Estado por elites autoritárias conservadoras, inclusive militares, que viam a mobilização populista como ameaça a seu poder, foi o maior obstáculo à irrupção dos movimentos fascistas. Em alguns casos, com efeito, estes foram suprimidos, embora seus objetivos e suas ideias tenham sido em geral encampados por regimes autoritários ultranacionalistas e muitas vezes violentamente racistas. À medida que os governos se voltavam para o autoritarismo (como os da Estônia e da Letônia, em 1934; da Bulgária, também em 1934; e da Grécia, em 1936), ou em lugares onde as elites leais ao Estado fortaleceram regimes autoritários já implantados, o espaço para que o fascismo organizasse e mobilizasse as massas quase inexistia, e até mesmo a necessidade da existência de um movimento fascista para isso.

Às vésperas da Segunda Guerra Mundial, a democracia estava confinada a onze países do norte e oeste da Europa (Inglaterra, Irlanda, França, Suíça, Bélgica, Países Baixos, Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e a minúscula Islândia). Todos tinham sido vitoriosos ou permanecido neutros durante a Primeira Guerra Mundial. Cerca de 60% dos europeus (sem contar por enquanto a população da União Soviética) viviam em dezesseis países submetidos a alguma forma de governo repressivo e autoritário, onde os direitos civis foram severamente restritos e as minorias enfrentavam discriminação e perseguição: Itália, Alemanha (agora tendo anexado a Áustria), Espanha, Portugal, Hungria, Eslováquia, o antigo território tcheco (agora protetorado da Boêmia e Morávia, sob domínio alemão), Romênia, Bulgária, Albânia, Grécia, Iugoslávia, Polônia, Lituânia, Letônia e Estônia. Das democracias criadas depois da Primeira Guerra Mundial em substituição à Áustria-Hungria, só a Tchecoslováquia sobrevivera — até a destruição pela invasão alemã de março de 1939. A derrota da democracia nos Estados que sucederam o Império Austro-Húngaro foi a prova mais clara da falência dos arranjos do pós-guerra.

A Itália e a Alemanha, países que deram origem a partidos fascistas poderosos a ponto de tomar o poder e constituir regimes ditatoriais, foram a exceção — mesmo considerados todos os regimes autoritários da Europa — não só no caráter e na escala abrangente de seu controle interno mas também em seus objetivos expansionistas. No entanto, havia um grande desequilíbrio em seu potencial de ameaça à paz na Europa. A Itália pretendia controlar o Mediterrâneo e obter um império colonial extemporâneo na África. Essa ameaça poderia ter sido contida e, seja como for, era em si extremamente improvável como causa de uma guerra geral europeia. A Alemanha de Hitler — o maior, mais dinâmico, brutal e ideologicamente radical dos dois regimes — era outra questão. Tinha como alvo o coração da Europa para sua expansão. Isso, sim, representava um perigo para todo o continente. O precário equilíbrio de poder via-se mortalmente ameaçado pela hegemonia alemã. A paz europeia, a partir de então, estava com os dias contados.

 


* Surpreendentemente, um observador tão arguto da classe trabalhadora perdeu a oportunidade de assistir a um típico esporte proletário, a Rugby League, em Wigan. No primeiro sábado que passou na cidade, 15 de fevereiro de 1936, Orwell poderia ter visto, perto de onde estava hospedado, o poderoso time de Wigan ser humilhado pelo Liverpool Stanley por dezessete a dez, diante de 15 mil espectadores e em seu próprio estádio. (N. A.)