É preciso que não prevaleça o princípio de que uma pessoa pode se acomodar às circunstâncias e, com isso, deixar de solucionar os problemas. Ao contrário, são as circunstâncias que precisam adaptar-se para atender às necessidades. Isso não é possível sem “avançar” sobre outros países ou atacar as posses de outras pessoas.
Adolf Hitler, dirigindo-se a comandantes militares,
23 de maio de 1939
Uma nova guerra, apenas uma geração depois que milhões derramaram seu sangue nos campos de batalha do grande conflito de 1914-8, era uma perspectiva aterrorizante para a maior parte dos europeus. Ainda assim, eram poucos os que não percebiam, nos últimos anos da década de 1930, que o continente seguia em marcha inexorável para isso. Dessa vez não se poderia falar de líderes políticos e militares que “se arrastavam para o precipício” ou que, “sonâmbulos”, caíam numa catástrofe que anteviam com pouca clareza. Havia uma potência agressiva cujos atos tolhiam, cada vez mais, todas as outras opções que não fossem a guerra ou a aceitação do domínio do continente europeu por seu poder tirânico. “O inferno está cheio de boas intenções”, reza o ditado. Esse é o melhor comentário que se pode fazer em relação à maneira como as democracias ocidentais tentaram lidar com Hitler. As toscas tentativas de chegar a um bom termo com relação à campanha expansionista alemã permitiram que ele criasse fatos a que só podiam reagir tibiamente. Sua resposta às concessões das democracias ocidentais consistia em pedir mais concessões. O restante da Europa só acompanhava, com crescente ansiedade. Em outros lugares, estavam sendo feitos preparativos para uma guerra muito temida, e cada vez mais esperada.
A DERROTA DA ESQUERDA
A derrota da esquerda na Alemanha, durante os anos da Depressão, e sua destruição em 1933, depois da ascensão de Hitler ao poder, puderam então ser avaliadas plenamente. Embora em posições ideológicas inteiramente distintas, os dois partidos da esquerda alemã, o Social-Democrata e o Comunista, opuseram-se de forma taxativa ao militarismo da direita, que, como previam com acerto, acabaria levando à guerra. Se a esquerda não tivesse sido destruída depois da tomada do poder por Hitler e se a democracia, cujo sustentáculo era o Partido Social-Democrata, houvesse sobrevivido na Alemanha, a probabilidade de uma nova guerra na Europa teria se reduzido bastante. Em vez disso, abriu-se o caminho para uma política externa agressiva, apoiada pelas elites nacionalistas e conservadoras e sujeita às apostas cada vez mais temerárias de Hitler.
O fim trágico da esquerda na Alemanha foi somente um aspecto de sua derrota muito mais ampla em grande parte da Europa. Em 1935, com exceção da União Soviética, a esquerda se encontrava impotente em quase todos os países. A social-democracia continuava a participar do governo nos países escandinavos, de pouco peso na constelação internacional de poder. No restante da Europa, a direita — invariavelmente apoiada pelas Forças Armadas, pela polícia e pelos órgãos de segurança — era fortíssima. Em meados da década de 1930, vigorava em quase todo o continente algum tipo de regime nacionalista opressivo, fosse reacionário ou abertamente fascista, o que deixava a esquerda indefesa e à mercê das forças de uma repressão brutal. As mais poderosas democracias ocidentais, a Inglaterra e a França, tinham sido dominadas por governos conservadores durante a Depressão. Por isso, também nelas a influência política da esquerda diminuíra muito.
A derrota da esquerda ocorreu em escala continental, ainda que estruturas nacionais tenham condicionado a natureza específica dessa derrota. Foi, em parte, um reflexo de divisões paralisantes, principalmente a que se dava entre suas alas social-democrata e comunista (embora a união da esquerda não tenha impedido a derrota na Áustria). A própria esquerda comunista estava desunida, e às vezes dividia-se em facções rivais, sendo a maior delas dominada pelos interesses da União Soviética. A derrota da esquerda também se deveu a uma antipatia visceral pela ideologia socialista e pelo intenso medo do comunismo por parte das classes alta e média, do campesinato e por setores da própria classe trabalhadora. Enquanto os nacionalistas, de qualquer espécie, exerciam atração sobre todos os setores da sociedade, a esquerda, fosse ela socialista ou comunista, procurava em primeiro lugar promover os interesses de um grupo social específico, a classe trabalhadora industrial. A política classista do socialismo e, mais ainda, o objetivo comunista da “ditadura do proletariado” obviamente não atraíam todos aqueles — a maior parte da população — que se viam como perdedores certos no caso do triunfo da esquerda.
O temor, sobretudo de uma vitória dos bolcheviques, era imensamente desproporcional ao poder real, ou mesmo potencial, da esquerda na maior parte da Europa. Contudo, em vista das palavras de ordem classistas trombeteadas pela extrema esquerda nas regiões da Europa onde ainda conseguia se manifestar, das histórias de horror que chegavam da União Soviética e do domínio quase universal de uma imprensa direitista e antissocialista, não surpreende que tantos europeus tenham decidido depositar a esperança naqueles que, imaginavam, manteriam a “ordem” e promoveriam os interesses nacionais, e não os de determinada classe.
Uma falsa alvorada na França
Em meio à derrocada da esquerda na Europa, uma eleição em particular trouxe um raio de esperança. O resultado da eleição geral na França, em 1936, pareceu um triunfo para o antifascismo, uma reviravolta, enfim, naquilo que durante anos tinha sido a tendência rumo à extrema direita militante em todo o continente. Terminada a apuração dos votos do segundo turno, em 3 de maio de 1936 (o primeiro fora uma semana antes, em 26 de abril), a Frente Popular de Socialistas, Comunistas e Radicais obteve uma vitória assombrosa, ficando com 376 cadeiras, muito mais que as 222 da Frente Nacional, de direita. Foi imensa a euforia por parte dos eleitores da esquerda — principalmente trabalhadores, mas também a maioria dos intelectuais, escritores e artistas. Manes Sperber era um escritor judeu, nascido em 1905 na Polônia, mas exilado em Paris desde sua breve experiência na prisão na Alemanha, em 1933, e membro do Partido Comunista, do qual foi se tornando cada vez mais crítico até abandoná-lo em 1937. Mais tarde, escreveu a respeito de sua empolgação com o resultado do pleito. Para ele, e para muitos outros, foi mais do que uma vitória eleitoral. Foi como uma lufada de vento fresco a arejar um ambiente abafado. Uma meta durante longo tempo vista como impossível parecia alcançável. “Nunca a fraternidade se divisou tão próxima como naquele maio de 1936”, escreveu Sperber. “Vindos de todas as direções, homens, mulheres e crianças acorriam às praças da Bastilha e da nação”, com suas canções e brados de alegria chegando às ruas vizinhas, convocando todos para se unir na busca de justiça e liberdade, e tudo sem recorrer à violência revolucionária. Não tardou para que as esperanças humanitárias de Sperber se mostrassem um sonho de desvairado otimismo.
A França continuou dividida de alto a baixo. O ódio da direita nacionalista à Frente Popular ia muito além da oposição política convencional. A fúria maior se voltava contra Léon Blum, intelectual judeu que fora um dos primeiros defensores de Dreyfus. Blum tinha sido agredido fisicamente por uma horda nacionalista em fevereiro de 1936. No ano anterior, Charles Maurras, líder da Action Française, de extrema direita, denunciara Blum, de forma chocante, como “um homem a ser baleado — pelas costas”. O triunfo eleitoral da esquerda não diminuiu a polarização ideológica na França. Na realidade, a vitória fora muito menos contundente do que parecera à primeira vista. A votação da esquerda, de 37,3%, tinha sido apenas um pouco superior aos 35,9% obtidos pela direita. A principal mudança se dera no seio da própria esquerda, o que só fez aumentar o antagonismo da direita. Os radicais, do principal bloco centrista da república, perderam terreno, caindo de 157 cadeiras em 1932 para apenas 106 em 1936. Os socialistas, grupo majoritário na Frente Popular, tinham passado de 131 para 147 cadeiras. Pequenos partidos de esquerda obtiveram em conjunto 51 cadeiras, catorze a mais que em 1932. O que mais preocupava a direita era o fato de os comunistas terem sido os mais beneficiados: haviam saltado de dez para 72 cadeiras.
O que tornou possível a vitória da Frente Popular foi o fato de Stálin, em junho de 1934, ter deixado, de uma hora para a outra, “como uma mudança de cena no teatro” (nas palavras de Blum), de chamar os sociais-democratas de “sociais-fascistas”. O poderio crescente da Alemanha de Hitler exigia uma alteração completa da estratégia comunista anterior em toda a Europa. A nova estratégia envolvia trabalhar em prol da segurança coletiva, ao lado dos países “burgueses” até então condenados. No âmbito nacional, Stálin passou a incentivar ativamente os comunistas a colaborar com os partidos socialistas — e até “burgueses” — na formação de “frentes populares” de esquerda para combater a crescente ameaça do fascismo. A mudança foi confirmada no Sétimo Congresso da Internacional Comunista, em 1935.
Na França, a pressão por uma “frente popular” contra o fascismo viera de baixo para cima, a princípio articulada por sindicatos, depois adotada pelo Partido Comunista. A pressão cresceu ao longo de 1935. Perto do fim do ano, quando os radicais juntaram suas forças às dos socialistas e comunistas, a Frente Popular tornou-se uma realidade.
Entre suas promessas eleitorais estava a adoção de um programa de obras públicas (que assinalava o fim da política econômica deflacionária), a redução da semana de trabalho, a instituição de pensões de aposentadoria e a criação de um fundo de desemprego. Como reflexo do forte clima antifascista, as entidades paramilitares seriam postas na ilegalidade. Entretanto, evitaram-se medidas radicais capazes de amedrontar as classes médias. A revolução social teria de esperar. Os socialistas puseram de lado o desejo de estatizar a economia; os comunistas não fizeram referência a sovietes ou coletivos camponeses. A cúpula administrativa do Banque de France seria ampliada para acabar com o controle exercido por uma oligarquia fechada de acionistas, mas o banco não foi estatizado. O valor do franco deveria ser mantido — para tranquilizar a classe média, que perdera suas poupanças no governo anterior de coalizão esquerdista —, embora isso logo tenha se revelado um compromisso imprudente. Garantiu-se o direito das mulheres ao trabalho, mas, na ânsia de evitar a abertura do debate sobre uma possível reforma da constituição (defendida por grande parte da extrema direita), não se fez menção alguma a seu direito ao voto.
Blum, o primeiro socialista e o primeiro judeu a chefiar um governo na França, encabeçava um gabinete integrado por membros (entre os quais três mulheres) dos partidos Socialista e Radical. Os comunistas (e vários partidos minoritários) apoiavam o governo, mas preferiram ficar fora dele. Mesmo antes que o novo gabinete fosse empossado, a França foi varrida pela maior onda de greves de sua história — muitas vezes espontâneas e realizadas com alegria e numa atmosfera festiva. Quase 2 milhões de trabalhadores, muitos deles não sindicalizados e entre os quais havia grande número de mulheres que recebiam baixa remuneração, participaram de milhares de greves, ocupações de fábricas e demonstrações de desobediência, esmagadoramente no setor privado. Restaurantes e cafés fecharam as portas, os hóspedes dos hotéis tiveram de se arranjar sem o serviço de quarto, as grandes lojas de departamentos de Paris não tinham empregados para atender os clientes e os postos de gasolina foram fechados. A euforia dos grevistas e daqueles que os apoiavam era um lado da moeda. O outro era a condenação generalizada da desordem social por parte de direitistas de classe média, que temiam estar diante da porta para o comunismo. A polarização política se acentuou.
A enorme onda de greves fez com que os empregadores abrissem bem os olhos. Numa única tarde, em 7 de junho, numa reunião na residência do primeiro-ministro, no Hôtel Matignon, eles atenderam às principais exigências dos sindicatos, e as relações trabalhistas transformaram-se de um dia para o outro. Aprovaram-se o direito à sindicalização, a negociação coletiva de contratos de trabalho, a representação dos trabalhadores e a proscrição de medidas punitivas contra grevistas, além de aumentos salariais da ordem de 15%. Em poucos dias tornaram-se lei a semana de trabalho de quarenta horas e as férias remuneradas anuais de duas semanas (o que, com o apoio de passagens de trens a baixo custo, deu início ao êxodo de verão, de Paris e outras cidades, o que se tornou um aspecto permanente da vida social francesa). Aos poucos, as greves diminuíram. O dilúvio de novas leis prosseguiu com a proibição de ligas paramilitares, em 18 de junho, o que reduziu a desordem política e a violência nas ruas (apesar de levar setores da extrema direita à clandestinidade). Outras leis instituíram a reforma do Banque de France, elevaram para catorze anos a idade mínima para sair da escola, nacionalizaram as indústrias de armamentos e apaziguaram os agricultores ao aumentar os preços dos cereais. Criou-se o Ministério dos Desportos e do Lazer, que tinha como meta democratizar o acesso a atividades recreativas ao ar livre (uma reação à militarização desse setor nas organizações fascistas), oferecer formas atraentes de distração à classe trabalhadora e melhorar a saúde pública. O resultado foi o estímulo ao ciclismo, às caminhadas, aos albergues para a juventude e ao turismo popular, a melhoria das instalações esportivas e o fomento do interesse pelos esportes e sua prática. De modo geral, foi notável o alcance da intervenção realizada pelo governo da Frente Popular em tão pouco tempo.
Notável também foi o espírito de euforia da esquerda francesa. Na época um jovem revolucionário de dezenove anos, Eric Hobsbawm, que viria a ser um dos mais famosos historiadores da Europa, experimentou a extraordinária atmosfera de Paris em 14 de julho de 1936, aniversário da Queda da Bastilha. Ele recordou
os estandartes vermelhos e as bandeiras tricolores da França, os líderes, os contingentes de trabalhadores […] que desfilavam diante das massas que lotavam as calçadas, as janelas cheias de gente, os acenos simpáticos dos donos de cafés, dos garçons e dos clientes, o entusiasmo ainda mais acolhedor das profissionais dos bordéis, reunidas para aplaudi-los.
A euforia do verão depressa se desvaneceu, o clima festivo se dissipou, voltaram as obrigações e as preocupações do dia a dia. O governo logo se viu em dificuldades. O limitado experimento socialista de Blum não demorou a enfrentar poderosas ventanias contrárias, sopradas pelas forças dos mercados internacionais. A recusa a desvalorizar o franco mostrou-se equivocada, prejudicando a margem de manobra do governo. As grandes empresas retiraram seus investimentos do país. O maior custo da semana de quarenta horas transferiu-se para os preços, alimentando a espiral inflacionária, que não era compensada por mais produtividade. Aumentou a pressão sobre o franco e as reservas de ouro. Em setembro de 1936, o governo se viu obrigado a admitir o erro e desvalorizar o franco em mais ou menos um terço. Nem isso, porém, eliminou a pressão sobre a moeda. Os ganhos dos trabalhadores e as poupanças da classe média viram-se engolidos pela inflação. O apoio ao governo diminuiu. Quando, em junho de 1937, o Senado, de maioria conservadora, se recusou a conceder poderes de emergência ao governo para que fossem confrontadas as dificuldades financeiras do país, Blum renunciou e foi substituído por Camille Chautemps, um radical. Ministros socialistas (inclusive Blum) permaneceram no governo, mas o ímpeto socialista tinha passado. O governo era agora dominado pelos radicais, cujas inclinações políticas os levavam para a direita, para um maior conservadorismo.
Autorizado pelo Parlamento a legislar por decreto (poderes que tinham sido negados a Blum), Chautemps aumentou os impostos e pôs fim às reformas sociais. Muitos fatores que derrubaram Blum mantiveram-se inalterados. Os preços continuaram a subir e a dívida pública a crescer. O franco seguiu perdendo valor. A produtividade continuou estagnada. A intranquilidade social não amainou. A Frente Popular continuou a agonizar, abatida por problemas econômicos insuperáveis, enfrentando a oposição implacável da direita conservadora e fascista, e confrontada por perigos cada vez maiores nas relações internacionais.
Blum voltou ao cargo de premiê em março de 1938, porém num clima internacional drasticamente mudado, depois da incorporação da Áustria ao Terceiro Reich. A França, agora acossada por preocupações relativas à política externa, estava cansada de experiências sociais e econômicas. Blum logo perdeu toda e qualquer esperança de avançar com novas tentativas de criar investimentos estatais, controles cambiais e um imposto sobre grandes fortunas. O aumento das despesas de rearmamento impunha suas próprias limitações aos gastos do governo para fins civis, ao mesmo tempo que a fuga de capitais e a queda das reservas de ouro obrigavam a novos cortes nos gastos públicos e, por fim, a uma terceira desvalorização do franco. O primeiro governo de Blum durara 382 dias; o segundo terminou depois de apenas 26. Com seu novo afastamento, a política passou a ser dominada pela direita conservadora, sob a liderança de um novo primeiro-ministro, o radical Édouard Daladier, um homem visto como “competente, honesto e trabalhador”, o epítome da França provinciana, apoiado pelas grandes e pequenas empresas, além de elogiado pela direita por desfazer grande parte da legislação social de Blum, o que pôs fim à “revolução de junho de 1936”.
A tentativa de confrontar e derrotar o fascismo na França com a formação de uma Frente Popular que reunisse socialistas, comunistas e o centro político, representado pelos radicais, foi uma estratégia racional e sensata. No mínimo, deteve a ameaça da direita paramilitar à república. Mas, se uma Frente Popular era necessária, é igualmente claro que seu fracasso estava quase garantido desde o começo. Um programa social revolucionário, como aquele que os comunistas teriam apoiado, não tinha a menor chance de ser adotado. Com o endosso de apenas 15% da população, era impossível levá-lo a termo. O eleitorado de classe média dos radicais teria se horrorizado com qualquer ameaça às suas propriedades. Os socialistas se viam forçados a pisar em ovos para não perder apoio à esquerda ou à direita. E as reformas sociais, aprovadas apesar da oposição de grande parte da população, arrancadas aos representantes das grandes empresas e antagonizadas pelas forças dos mercados internacionais, tinham contra si grandes probabilidades de insucesso.
A criação da Frente Popular só foi possível graças a concessões que equivaliam a um casamento forçado entre pessoas ideologicamente incompatíveis. A tolerância escondeu de um inimigo comum, durante algum tempo, as divisões profundas. Mas não passava de uma construção frágil cujos alicerces eram corroídos pelos assustadores problemas com que o governo se confrontava. As relações entre os dois partidos de esquerda foram, elas próprias, submetidas a testes severos. A antipatia dos socialistas pelos comunistas era intensificada pelos relatos negativos, amplamente divulgados, sobre as condições na União Soviética e pela repercussão no noticiário dos julgamentos-espetáculos stalinistas. Os comunistas, por sua vez, passaram a tachar Blum de “assassino de trabalhadores” depois que a polícia abriu fogo contra manifestantes comunistas, matando seis deles e ferindo duzentos, numa passeata em Clichy, bairro operário de Paris, em março de 1937.
O caldeirão espanhol
À medida que as agruras do governo da Frente Popular iam sendo superadas na consciência popular por fatos que ocorriam do outro lado da fronteira, o fracasso da esquerda na França começou a ser eclipsado pela tragédia muito maior, que foi a derrota da esquerda na Espanha. Com muito apoio popular e os recursos do Estado à sua disposição, a esquerda espanhola se dispunha a lutar para defender o regime republicano. No entanto, estava seriamente debilitada por terríveis divisões faccionais, conflitos destrutivos e dissensões ideológicas, a que se superpunham separatismos regionais mais vigorosos do que em qualquer outra parte da Europa Ocidental (sobretudo na Catalunha e no País Basco, regiões relativamente desenvolvidas do ponto de vista econômico). Ainda mais lesiva para a esquerda era a antiga e profunda polarização da sociedade espanhola. Muito mais do que na França, um abismo separava os grupamentos ideológicos da esquerda e da direita na Espanha. As lealdades republicanas não eram tão arraigadas como na França. Tampouco estavam ligadas a um evento histórico e simbólico na história nacional equivalente à Revolução Francesa.
A Segunda República na Espanha era de fundação recentíssima, pois datava apenas de abril de 1931. Tinha sido obra da esquerda e era fundamentalmente rejeitada por quase toda a direita, cada vez mais extremada e de um antissocialismo profundo, visceral e generalizado. A aversão à esquerda se inseria com facilidade na trama de valores católicos ferrenhos que caracterizavam grande parte da Espanha provinciana e que a direita tinha incorporado à sua imagem da nação espanhola. Essa hostilidade era secundada, naturalmente, pelos membros das tradicionais elites dominantes, os que mais tinham a perder no caso da ascensão do temido regime socialista — os proprietários de terras, os grandes industriais, a Igreja católica e, em especial, setores significativos da oficialidade do Exército. O poder dessas elites vinha caindo, mas ainda se mantinha intacto. Derrubar a república usando de força era uma opção. Afinal, a ditadura de Primo de Rivera só chegara ao fim alguns anos antes, em janeiro de 1930, e o pronunciamiento (o golpe militar) desde muito ocupava seu lugar na política espanhola. Em março de 1936, os generais espanhóis conspiravam para tentar outra vez derrubar um governo eleito.
Como mencionado no capítulo 5, o triunfo da esquerda socialista e republicana nas eleições de 1931 acabou sendo efêmero. Em novembro de 1933, quando houve novas eleições, a direita tinha recuperado as forças. A esquerda sofreu uma derrota fragorosa para uma coalizão de direita formada pela ceda e pelos radicais, liderados por Alejandro Lerroux, que se tornou primeiro-ministro. Os dois anos seguintes puseram fim, e em muitos casos subverteram, os modestos avanços sociais feitos desde a fundação da república. Para a esquerda, esse período foi o bienio negro, de crescente ameaça fascista e forte repressão. Em outubro de 1934, na região das Astúrias, no norte, uma greve de mineiros que enfrentaram a polícia armados com qualquer coisa em que conseguissem pôr as mãos foi reprimida com violência, depois de duas semanas, por tropas de truculência ímpar trazidas especialmente do Marrocos por ninguém menos que o futuro ditador, o general Francisco Franco. A repressão foi feroz, bárbara até, e deixou um saldo de 2 mil mortos, 4 mil feridos e 30 mil presos, sendo muitos deles torturados na prisão. A Espanha já estava à beira da guerra civil.
Desmantelada a coalizão de direita governante, derrubada por escândalos financeiros e discórdias políticas, novas eleições foram convocadas para fevereiro de 1936. Nesse meio-tempo, a esquerda formara uma Frente Popular, coligação eleitoral de republicanos (cujos eleitores pertenciam basicamente à classe média) e socialistas — as duas maiores forças —, apoiada, com graus variados de entusiasmo, por comunistas, separatistas catalães e sindicatos socialistas e anarquistas. A eles se opunha, na eleição, um bloco nacional de grupos de direita. O país estava rachado ao meio e mais radicalizado que nunca. A eleição foi descrita como uma competição que decidiria o futuro da Espanha. Para a direita, tratava-se de uma escolha entre o bem e o mal, o catolicismo ou o comunismo, “a Espanha das antigas tradições” ou “a anti-Espanha da demolição, do incêndio de igrejas e da […] revolução”. Vozes esquerdistas ameaçavam “fazer na Espanha o que foi feito na Rússia”. Apuradas as urnas, a Frente Popular obteve uma vitória histórica — estreita na diferença de votos (4654111 a 4503524), mas acachapante na distribuição de cadeiras parlamentares (278 contra 124).
A unidade da Frente Popular só durou até a eleição. O governo, formado apenas por republicanos, era fraco desde o começo. Os socialistas, eles mesmos desunidos, recusaram-se a participar. O partido estava dividido entre sua ala reformista, chefiada pelo moderado Indalecio Prieto, e a Unión General de Trabajadores, cada vez mais revolucionária, liderada por Francisco Largo Caballero, que adorava ser chamado de “o Lênin espanhol”, designação que lhe foi dada pela imprensa soviética. O Movimento Juventude Socialista, assim como a organização sindicalista, também viam o futuro em termos de uma revolução em grande escala, e não de reformismo fragmentário. Eram evidentes os atrativos do Partido Comunista, que ainda era pequeno, mas crescia depressa.
O governo começou a restaurar as mudanças sociais e econômicas de 1931--3, libertou presos políticos, expropriou latifúndios e devolveu a autonomia à Catalunha (prometendo o mesmo aos bascos). Entretanto, o controle do país lhe escapava. Camponeses pobres e trabalhadores agrícolas ocuparam grandes propriedades no sul da Espanha. Ocorreram greves em centros urbanos. Os incêndios de igrejas — símbolos da mão opressora da Igreja Católica — tornaram-se mais comuns do que em 1931 e alimentaram a propaganda da direita. Foram numerosos os assassinatos, cometidos tanto pela esquerda como pela direita. Os dois lados estavam se tornando mais extremistas. A Falange, antes uma pequena facção da direita, viu-se de repente ganhando novos filiados, muitos deles pertencentes ao movimento de juventude da Confederação Espanhola da Direita Autônoma (ceda), que apoiava uma posição antirrepublicana mais agressiva do que a defendida por muitos membros mais velhos do partido. Enquanto isso, sem que o governo percebesse, a conspiração fermentava.
Alguns comandantes do Exército, entre eles Franco, tinham aventado um golpe logo depois da eleição. Entretanto, o momento não era propício, e eles preferiram observar e esperar. Na tentativa de neutralizar possíveis problemas causados pelos militares, o governo afastou Franco da chefia do Estado-Maior e deu-lhe um comando nas ilhas Canárias. O general Emilio Mola, sabidamente hostil à república (e, na verdade, o principal instigador do golpe planejado), também foi posto fora de cena. Surpreendentemente, porém, Mola foi trazido de volta de um comando no Marrocos espanhol e posto à frente de uma guarnição em Pamplona, no norte da Espanha — de onde poderia forjar vínculos fortes com figuras que apoiavam o golpe de forma clandestina. Alguns falangistas foram presos, mas teriam sido capazes de levar adiante seus planos mesmo na cadeia. Mas o governo, em sua fraqueza, tomou poucas medidas além dessa para evitar problemas.
O levante teve início no Marrocos espanhol e nas Canárias, em 17 de julho de 1936, e se espalhou para o território continental da Espanha nos dois dias seguintes. Os conspiradores contavam com um golpe rápido e a imediata tomada do poder pelos militares, mas logo ficou evidente que isso não iria acontecer. Em algumas áreas, unidades militares e grande parte da população apoiaram os rebeldes. A nomeação de três primeiros-ministros em dois dias foi um sinal claro de que o governo estava em pânico. Mola sentiu-se confiante o suficiente para rejeitar um pedido de trégua. Em outros lugares, porém, o Exército e a polícia se mantiveram leais à república, embora com frequência fizessem jogo duplo. Em Madri, Barcelona e San Sebastián, no País Basco, trabalhadores pegaram em armas. Em questão de dias, a Espanha estava completamente dividida, tanto quanto estivera na eleição de fevereiro.
O leste e o sul do país mantiveram-se, de modo geral, ao lado dos republicanos. Entretanto, os rebeldes conseguiram avanços rápidos no sudoeste, no oeste e em grande parte da área central do país. Do ponto de vista militar, as forças da república e as dos rebeldes eram bastante equivalentes; as mais importantes áreas industriais ainda estavam nas mãos do governo. Até mesmo nas aldeias as pessoas tomavam partido: esquerda ou direita, a república ou o fascismo. A espiral de violência não parava de crescer. Já nos primeiros dias, registraram-se atrocidades infames dos dois lados. Nas áreas que dominaram, os rebeldes mataram ou executaram sumariamente grande número de pessoas. Não há como determinar a quantidade exata de mortes, mas com certeza chegaram a milhares. Do lado republicano foram comuns atos de violência contra partidários da sublevação ou inimigos de classe. Houve acerto de contas. A aplicação da “justiça revolucionária” em tribunais improvisados levou a numerosas execuções. O clero foi alvo de violências hediondas. Mais de 6 mil religiosos — sacerdotes, monges e freiras — foram assassinados, ao mesmo tempo que se queimavam igrejas e se destruíam imagens religiosas. O golpe já estava se transformando numa guerra civil em grande escala, embora não houvesse um vencedor claro à vista.
Uma mudança importante no equilíbrio do poder militar teve início em fins de julho e em agosto, quando Hitler e Mussolini, que fariam de tudo para evitar que o comunismo se firmasse na península ibérica, forneceram aviões para transportar do Marrocos para a Espanha a tropa de elite de Franco — o Exército da África, mais de 30 mil combatentes calejados e experientes. Isso representou o começo da ajuda da Alemanha e da Itália a Franco. Tanto Hitler como Mussolini esperavam poder contar, no futuro, com o apoio de uma Espanha nacionalista, e ao mesmo tempo aproveitaram de bom grado a oportunidade de testar seu poder de fogo bem longe de seus próprios países. Também Portugal, dominado por Salazar, que temia o triunfo do bolchevismo bem a seu lado, forneceu homens e suprimentos aos rebeldes.
Com isso, os nacionalistas sublevados ganharam nítida vantagem, que poderia ter sido facilmente neutralizada se as democracias ocidentais houvessem fornecido armas a outra democracia. Contudo, em agosto, a Inglaterra e, logo em seguida, a França (onde Blum encheu-se de remorsos por não ajudar os socialistas), lideraram uma iniciativa no sentido de um acordo internacional para que não fossem fornecidos materiais bélicos à Espanha republicana. Os dois países temiam que o aprofundamento do conflito levasse a uma nova guerra em toda a Europa. Com isso, porém, cresceu sobremaneira a perspectiva de uma vitória dos militares nacionalistas. Mais perto do fim do ano, Stálin atendeu a um pedido de ajuda militar feito pelo governo republicano, mas o desequilíbrio no fornecimento de armas se manteve. Por fim, 24 países assinaram o Acordo de Não Intervenção. Alemanha, Itália e União Soviética firmaram o documento, comprometendo-se cinicamente a não interferir, enquanto forneciam armas em grande quantidade.
Apesar dessas políticas oficiais, ao menos 30 mil voluntários (muitos deles judeus) — em geral socialistas, comunistas e sindicalistas oriundos de vários países europeus e organizados pelo Comintern em Brigadas Internacionais — viajaram para a Espanha a partir dos últimos meses de 1936 para tentar salvar a república. De uma forma ou de outra, eram, na maioria, idealistas que entendiam estar numa guerra de classes para derrotar o fascismo. Milhares deles perderam a vida nessa tentativa. Na época, e mesmo depois, a propaganda soviética exagerou a contribuição militar prestada. No entanto, as Brigadas com certeza desempenharam um papel importante em grandes batalhas, começando com a luta para salvar Madri das forças rebeldes. Na opinião de um jornalista britânico, Henry Buckley, que viu as Brigadas em ação, “de modo geral, combateram como heróis. As armas eram ruins, era difícil impor disciplina, eles falavam uma dúzia de línguas diferentes e poucos sabiam espanhol. Fizeram milagre com puro heroísmo”. Para a esquerda espanhola, o início da Guerra Civil Espanhola foi uma fonte de inspiração. Pouco a pouco, virou uma fonte de desmoralização.
Depois que as tropas de Franco, avançando para o norte rumo a Madri, fracassaram na tentativa de ocupar a capital após um longo cerco em novembro de 1936, a guerra civil se transformou numa prolongada luta de atrito, travada com uma selvageria sem limites. Os nacionalistas passaram a fazer avanços lentos, porém constantes, ao passo que os republicanos, ainda que capazes de contraofensivas fugazes, viram-se reduzidos na prática a uma defesa eficiente, mas cada vez mais desesperada. No primeiro semestre de 1937, as forças nacionalistas fizeram avanços importantes rumo ao norte. No final do ano, depois de terem dominado a costa norte, inclusive o País Basco (o que deu a Franco acesso a matérias-primas vitais e a uma importantíssima região industrial), o governo passou a controlar apenas um bloco de território, que ia do sudeste de Madri até a costa e, no norte, um pouco além da Catalunha.
A guerra civil deu aos alemães a oportunidade de realizar experiências de bombardeio “sem responsabilidade de nossa parte” (nas palavras de Wolfram Freiherr von Richthofen, comandante da Legião Condor, o esquadrão de bombardeiros alemães). Aos ataques contra Madri seguiu-se o bombardeio de várias cidades no sul da Espanha. Richthofen considerou os resultados “ótimos”. No segundo trimestre de 1938, os italianos também passaram a bombardear cidades e aldeias espanholas durante a ofensiva dos nacionalistas no norte, enquanto os alemães aumentavam seus ataques em apoio à ofensiva, despejando seiscentas toneladas de bombas sobre Bilbao. O terrível ataque à vila basca de Guernica, realizado por cerca de trinta bombardeiros alemães e três italianos na tarde de 26 de abril de 1937, assombrando o mundo, não foi isolado. Naquele mesmo dia, de manhã, num ataque a Guerricaiz, a oito quilômetros dali, bombardeiros alemães não tinham deixado “nenhuma casa intacta”. O ataque a Guernica, que durou três horas e teve como objetivo humilhar os bascos, foi entendido pelos alemães como “um total sucesso técnico”. Transformou a vila em ruínas fumegantes e matou cerca de trezentos de seus habitantes. Um padre que chegou a tempo de testemunhar a devastação descreveu vividamente os gritos das pessoas que fugiam, aterrorizadas, da praça do mercado, com a cidade em chamas. O famoso quadro de Pablo Picasso, exibido no pavilhão espanhol na Exposição Mundial de Paris, em 1937, imortalizou a destruição de Guernica numa representação visualmente explícita da barbárie da guerra moderna. Apesar da condenação universal, continuaram os pesados bombardeios alemães na Espanha. Perto do fim da luta nas Astúrias, meses depois, o comando da Legião Condor tomou a decisão de “utilizar implacavelmente os esquadrões contra todos os lugares e métodos de transporte no reduzido espaço dos vermelhos”.
A guerra estava longe de terminar em fins de 1937, mas seguia um rumo inexorável. A conquista da Espanha pelos nacionalistas foi demorada, mas sem tréguas. A lentidão se explicava, em parte, à forte resistência republicana. Entretanto, deveu muito também à maneira como Franco conduziu a guerra, que para ele foi uma cruzada destinada a restaurar a grandeza da Espanha católica. Isso exigia a erradicação, e não apenas a derrota, daqueles que considerava inimigos internos da Espanha. Por isso, Franco não estava interessado em obter uma vitória rápida, mas superficial.
Nascido em 1892, ele passara toda a juventude no Exército. Uma combinação de excelentes qualificações como comandante militar, ambição fervorosa e determinação inabalável o levaram à cúpula do oficialato. Embora tenha aderido tardiamente à conspiração contra a república, o fato de ser o comandante do Exército da África foi crucial para o sucesso da rebelião. No fim de setembro de 1936, os nacionalistas o aceitaram como comandante supremo do Exército e chefe de Estado. Em abril do ano seguinte, ele unificou as várias facções da direita num partido único, cujo nome era tão longo — Falange Española Tradicionalista y de las jons (Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista) — que na prática nunca era usado, abreviando-se invariavelmente como fet.
Franco não tinha nada do carisma de Hitler ou Mussolini. Era um militar de alto a baixo. Não fora com discursos empolgantes ao povo e com manobras políticas que chegara à elevada posição que ocupava, mas sim com sua ascensão na hierarquia do Exército e com seu indubitável talento militar. Em termos físicos, não era nada imponente — baixo e com uma voz estridente e aguda. Exibia, porém, uma brutalidade implacável em relação aos inimigos, que, segundo ele, eram muitos. Considerava a maçonaria, o comunismo e o separatismo os males que haviam trazido a decadência, a corrupção e o declínio à Espanha desde sua época áurea, no século XVI. Sua cautela como chefe militar era inseparável da determinação de consolidar a conquista nacionalista da Espanha, por meio da eliminação completa e duradoura do inimigo que se interpunha em seu caminho. Lia pessoalmente as sentenças de morte após os julgamentos em massa de seus adversários e as assinava. Suas forças cumpriram, ao todo, cerca de 200 mil execuções. Um milhão de prisioneiros foram mandados para prisões e campos de trabalhos forçados. Tudo isso pretendia ser uma lição perpétua para a esquerda e seus demais inimigos.
É notável que a república tenha sido capaz de resistir às forças de Franco com tamanha resiliência e durante tanto tempo, em vista das divisões, das rivalidades, do rancor e da incompatibilidade ideológica existentes no lado do governo. Socialistas (eles próprios bastante divididos), anarquistas e seus sindicatos, comunistas que seguiam a linha stalinista, facções do comunismo que rejeitavam a linha stalinista e a esquerda catalã, com sua própria pauta — o que unia todos esses grupos era pouco mais que uma férrea determinação de derrotar o fascismo. (As querelas puristas quanto a serem ou não as forças nacionalistas genuinamente fascistas são irrelevantes. Para os republicanos, elas eram. Quem há de dizer que estavam errados?) O antifascismo era a mais poderosa das forças unificadoras. Fora dele só havia cisões e facções.
A república parecia perto da desintegração nos primeiros meses da guerra. O próprio governo deixara Madri, sitiada, em novembro de 1936 e se transferira para Valência (e em outubro de 1937 recuou ainda mais, para Barcelona, na Catalunha). A essa altura, a autoridade do Estado tinha sido substituída várias vezes por comitês antifascistas, surgidos depois do levante nacionalista para tomar o poder em suas cidades. Separatistas bascos proclamaram uma República Basca autônoma. Também a Catalunha e Aragão seguiram seu próprio caminho. Os sindicatos socialistas e anarquistas levavam adiante o que equivalia a uma revolução social espontânea. Propriedades agrárias, indústrias e empresas eram transformadas em coletivos, criavam-se milícias locais e conselhos revolucionários municipais assumiam o governo. Grande parte disso se dava em condições caóticas, embora funcionasse de certa forma, ao menos por algum tempo.
George Orwell descreveu as condições em Barcelona, onde aderira à milícia de uma pequena organização comunista, não alinhada a Moscou, o Partido Obrero de Unificación Marxista, normalmente chamado de poum:
Praticamente todos os prédios, de qualquer tamanho, tinham sido ocupados pelos trabalhadores e estavam cobertos por bandeiras vermelhas ou pelas bandeiras vermelhas e negras dos anarquistas; todas as paredes estavam rabiscadas com a foice e o martelo e com as iniciais de partidos revolucionários; quase todas as igrejas haviam sido destruídas por dentro, e suas imagens, queimadas […]. Todas as lojas e todos os cafés traziam uma inscrição dizendo que tinham sido coletivizados […]. Praticamente todo mundo usava roupas grosseiras de trabalhadores, macacões azuis ou alguma variante do uniforme da milícia.
Era improvável que a revolução social viesse a ser apreciada por muita gente além dos mais dedicados marxistas, embora não houvesse alternativa senão seguir a nova ordem.
Os próprios milicianos estavam mal armados e mal organizados — na opinião de Orwell, “uma corja, por qualquer padrão razoável”. Era muito improvável que tais forças ganhassem uma guerra contra as tropas bem armadas e disciplinadas de Franco. O governo central tinha de adaptar-se, e depressa. Socialistas e comunistas aderiram em setembro a um governo da Frente Popular, liderado por Largo Caballero, visto temporariamente como uma figura unificadora, e não divisionista. O governo concordava que a revolução social teria de esperar. Nesse ínterim, era urgente substituir as milícias por um exército de fato organizado. Aos poucos, afirmou-se uma autoridade central. Ganhou forma um exército unificado, apoiado por uma economia centralizada, recrutamento, racionamento e defesa civil mobilizada.
Parte disso se achava sob influência soviética cada vez maior. Com a chegada das armas dos stalinistas, aumentou o peso dos comunistas no governo — e eles não estavam interessados de verdade numa república “burguesa”, mas apenas em salvá-la do fascismo a fim de orientar uma revolução “genuína” em data posterior, eliminando no processo todos os rivais, como trotskistas e anarquistas, da esquerda radical. Em maio de 1937, forçado a deixar o cargo, Largo Caballero foi substituído por Juan Negrín, político astuto e administrador competente (fora anteriormente ministro das Finanças) que encarava o predomínio comunista como uma compensação aceitável e a melhor chance de derrotar Franco. Na Catalunha e em Aragão, a revolução social chegou ao fim, e o poum deu início a um expurgo impiedoso. A república conseguiu levar a luta adiante, embora o predomínio dos comunistas estivesse longe de ser aplaudido por muita gente na zona republicana e tenha contribuído para uma queda do moral.
Em 1938, aproximava-se a agonia final da república. Uma grande ofensiva republicana fracassou no baixo Ebro, no leste da Espanha. O moral deteriorava-se depressa, e o cansaço da guerra se generalizava. A comida escasseava. A Catalunha por fim caiu, no começo de 1939. Os vencedores fizeram um número gigantesco de prisioneiros, entregues à misericórdia dos nacionalistas. Quinhentos mil espanhóis refugiaram-se na França, onde os esperava um futuro incerto, quase sempre miserável. O que restava do controle dos republicanos acabou por desmoronar em março. No dia 26, os nacionalistas finalmente entraram em Madri. No fim do mês, o restante do território republicano estava em suas mãos. Em 1o de abril, Franco declarou a guerra encerrada. Mais de 200 mil homens tinham morrido em ação. Bem mais de 1 milhão, numa população de 25 milhões, estavam mortos, tinham sido presos ou torturados. Muitos mais partiram para o exílio.
Franco e seus seguidores não mostraram clemência depois da vitória. Enrique Suñer Ordóñez, nomeado presidente do Tribunal Nacional de Responsabilidades Políticas, representava bem o espírito de um expurgo redentor para purificar a Espanha. Ex-professor de pediatria em Madri, descrevera os republicanos, em 1938, como “diabólicos […] sádicos e loucos […] monstros”. Suñer os via como maçons, socialistas, anarquistas e judeus apoiados pelos soviéticos, que tentavam colocar os planos, expostos em Osprotocolos dos sábios de Sião, em prática. Em sua mentalidade distorcida, a finalidade da guerra fora “fortalecer a raça” e “levar à extirpação total de nossos inimigos”. Atitudes desse tipo caracterizaram a postura vingativa em relação a uma esquerda demonizada. Cerca de 20 mil republicanos foram executados depois de vencida a guerra. Outros milhares morreram em prisões, campos de concentração e batalhões de trabalhos forçados. A mortandade prosseguiu na década de 1940.
O silêncio caiu então sobre a metade da Espanha que havia defendido a república contra os rebeldes nacionalistas de Franco. Discriminação, dificuldades e sofrimentos, além de uma amarga resignação à nova e repressiva ditadura, era tudo o que lhes restava. O silêncio duraria mais de 35 anos, até que a morte de Franco, em 1975, trouxe um novo começo para a Espanha.
Poderia a guerra civil ter sido evitada? Parece difícil. As probabilidades de que isso acontecesse eram poucas em 1936. O país estava completamente dividido, e o governo, nos primeiros meses após a eleição de fevereiro, perdeu o controle bem depressa. Quando Prieto foi convidado, em maio, para formar um gabinete, mas foi obstado por Largo Caballero, seu rival esquerdista, é provável que tenha desaparecido a última chance de evitar uma guerra civil. Naquele ponto, um governo socialista forte, mas moderado, talvez tivesse impedido que pelo menos parte da classe média, assustada com a extrema esquerda, se bandeasse para a direita a fim de apoiar os nacionalistas. Largo Caballero fez com que o governo permanecesse fraco e dividido, enquanto a maior parte da classe média buscava apoio nos rebeldes, e não na república. Tampouco os planos de Prieto para limitar os poderes da polícia, desarmar os pelotões terroristas fascistas e nomear um chefe de Estado digno de confiança poderiam ser postos em prática. É extremamente duvidoso, porém, que Prieto pudesse adotar reformas que tivessem atenuado a situação, em vista da pouquíssima fé que grande parte da esquerda tinha então numa solução “moderada” e da determinação da direita de derrubar a república. É igualmente duvidoso que ele ou qualquer outro governante republicano tivesse poder suficiente para prender líderes da direita ou afastar comandantes militares importantes cuja lealdade à república fosse sabidamente dúbia. Seja como for, nada disso foi tentado. Aqueles que mais desejavam o fim da república tiveram liberdade para tramar a sublevação militar que pretendia derrubá-la.
Poderia a república ter vencido a guerra? Depois que começou o levante, que Mola recusou a proposta de uma trégua, que Franco transportou o Exército da África do Marrocos para a Espanha e que os nacionalistas consolidaram importantes ganhos territoriais, a vitória republicana ficou cada vez mais improvável e, em meados de 1937, já era quase impossível. As divisões e desavenças na esquerda não ajudavam a república. Entretanto, não foram a causa da derrota. Aos poucos, as forças do governo se tornaram, se não muito eficientes, ao menos capazes de travar uma prolongada guerra defensiva. Em nenhum momento, porém, pareceram capazes do triunfo final. Poderiam ter sido, se a natureza assimétrica da intervenção estrangeira não houvesse dado uma vantagem inequívoca aos nacionalistas num conflito que rapidamente ganhou o caráter de uma disputa indireta entre as forças internacionais do fascismo e do comunismo. Embora a ajuda soviética tenha permitido que as forças republicanas prolongassem a resistência, o fornecimento de armas da Itália fascista e da Alemanha nazista às forças nacionalistas rebeldes foi vital para sua vitória militar. Tanto a política de não intervenção das democracias ocidentais como a determinação dos Estados Unidos de manter uma rigorosa neutralidade fizeram com que, afora a ajuda soviética, os republicanos se nutrissem de migalhas, enquanto os nacionalistas recebiam das potências fascistas fluxos regulares de armas. Tal disparidade praticamente excluiu a chance de vitória republicana e tornou o triunfo final de Franco quase certo.
A guerra deixou a Espanha chorando seus mortos (embora muitas de suas feridas mais graves tenham permanecido ocultas durante gerações), com a sociedade ainda totalmente dividida (mesmo que um ralo verniz de declarada união nacional dissimulasse as cisões profundas), a economia em ruínas e suas perspectivas de urgente modernização adiadas por muitos anos. Para a esquerda espanhola, a guerra foi um desastre que se estenderia por décadas, uma derrota catastrófica cuja dimensão não há como exagerar. Mas a tragédia humana teve consequências políticas mais amplas para o resto da Europa? Em caso positivo, como a derrota da esquerda afetou o rumo geral da história europeia? Uma vitória da esquerda na Guerra Civil Espanhola, por mais difícil que fosse, poderia ter alguma influência no sentido de evitar outra guerra mundial?
É muito pouco provável. Não se pode avaliar o que seria a Espanha sob um governo republicano depois de uma derrota das forças nacionalistas de Franco. Pode-se imaginar que os beneficiários em última análise fossem os comunistas, que conduziriam o país pelo caminho que levaria a uma ditadura. Se a esquerda mais moderada tivesse triunfado (resultado ainda menos provável), teria proporcionado um estímulo aos socialistas na Europa Ocidental e oferecido um aliado potencial num conflito vindouro. Outra possibilidade seria a melhora das perspectivas da imaginada “grande coalizão” de forças internacionais, entre elas a União Soviética, para deter Hitler. Contudo, também é possível que um triunfo da esquerda na Espanha (e na França) houvesse mais provocado que dissuadido Hitler — o grande perigo para a paz na Europa. A Espanha talvez se visse, mais tarde, como alvo de uma invasão alemã. Tais cenários são incognoscíveis. O fato é que a guerra espanhola deixou os socialistas desalentados: dezenas de milhares deles, na maioria comunistas, vindos de mais de cinquenta países, impelidos pelo idealismo a se juntar às Brigadas Internacionais a fim de lutar pela república, sentiam-se amargurados com o que consideravam ser a traição da causa por parte das democracias ocidentais. No entanto, a Espanha contribuiu para que a esquerda se convencesse de que não havia sentido em manter uma fé persistente no pacifismo e no desarmamento. Só a força das armas poderia derrotar o fascismo.
O que muitos temiam — que a guerra civil viesse a ser o prenúncio do confronto entre o fascismo e o bolchevismo numa nova guerra europeia — não aconteceu. Apesar do envolvimento da Alemanha, da Itália e da União Soviética num conflito “por procuração” na Espanha, nenhum desses países estava pronto para uma grande guerra europeia (embora a Alemanha estivesse empreendendo ações que a tornariam inevitável). Os alemães, sobretudo, tinham aprendido importantes lições táticas a respeito de ataques aéreos em apoio a tropas terrestres e da necessidade de aperfeiçoar seus tanques. Eles e os italianos viram o que seus bombardeiros podiam fazer à população civil de áreas urbanas; já os soviéticos se deram conta de que não podiam contar com as potências “burguesas” ocidentais contra a ameaça do fascismo. As democracias ocidentais, por sua vez, sentiam-se justificadas por não ter se deixado arrastar para o conflito. Embora o resultado fosse uma Espanha nacionalista que ainda poderia criar laços mais fortes com as ditaduras fascistas, aos olhos das democracias ocidentais isso era melhor do que um triunfo do bolchevismo em um país geograficamente tão próximo.
A guerra civil durou três anos terríveis e arruinou a Espanha por décadas. Não obstante, pode ser separada dos principais fatos que estavam acontecendo no continente. A Espanha estava na periferia da política europeia antes da guerra civil. Durante um período breve e traumático, fatos cataclísmicos no país tinham galvanizado a atenção do continente. Depois de 1939, porém, a Espanha voltou à sua condição marginal na Europa — importante do ponto de vista estratégico ao ser palco de uma guerra de vulto, mas, afora isso, sem despertar maior interesse até que a enorme alteração das circunstâncias durante a Guerra Fria transformasse Franco num patrimônio valioso para o Ocidente.
Para o resto da Europa, os fatos que ameaçavam levar diretamente a outra grave conflagração continental pouco tinham a ver com a Espanha. Estavam ocorrendo na área perigosa da Europa Central. E vinham sendo moldados por uma força que a terrível guerra civil na Espanha não afetou de maneira significativa: o impulso indomável da Alemanha para expansão.
A CORRIDA ARMAMENTISTA
No fim da tarde escura e sombria de 5 de novembro de 1937, os comandantes supremos do Exército, da Força Aérea e da Marinha da Alemanha — o general Werner von Fritsch, o general Hermann Göring (também diretor do Plano Quadrienal) e o almirante Erich Raeder — dirigiram-se à Chancelaria do Reich para ouvir a decisão de Hitler sobre o fornecimento de aço às três forças. Ao menos era isso o que supunham.
Hitler falou durante duas horas, mas não sobre o fornecimento de aço. De início, pouco houve de novo. Já tinham ouvido muitas vezes que no futuro a segurança política da Alemanha não poderia ficar à mercê dos caprichos dos mercados internacionais e só poderia ser garantida pela aquisição de “espaço vital” (Lebensraum). A ideia em si, uma variante da ideologia imperialista, reforçada pela vulnerabilidade da Alemanha ao bloqueio econômico durante a Primeira Guerra Mundial e uma das obsessões de Hitler desde meados dos anos 1920, implicava, claro, expansão territorial e também o risco, se não a certeza, de conflito armado em algum momento. Isso, em si, não preocupava os comandantes militares nem os demais presentes, o ministro da Guerra, Werner von Blomberg, o ministro do Exterior, Konstantin von Neurath, e o auxiliar de Hitler para assuntos da Wehrmacht, o coronel Friedrich Hossbach. O que “espaço vital” significava na prática ficou em aberto. A expressão se referia a várias noções de expansão futura. Nenhuma delas significava guerra no futuro próximo. No entanto, Hitler disse em seguida que estava considerando justamente essa possibilidade. O tempo não estava a favor da Alemanha. A vantagem em relação aos armamentos seria passageira. Ele estava decidido a agir em 1943-4, no máximo, mas, em certas circunstâncias, bem antes disso.
Hitler aventou a possibilidade de atacar a Áustria e a Tchecoslováquia já no ano seguinte, 1938. Isso deixou a pequena plateia bastante tensa. Não que afirmar a supremacia alemã na Europa Central ou o domínio econômico na região do Danúbio (ideia do especial agrado de Göring) fosse o problema. O que acionou o alarme foi a perspectiva de guerra entre a Alemanha e as potências ocidentais. Nem de longe o país estava preparado para uma guerra de grandes proporções, e eles sabiam disso. O que ouviram deixou Blomberg, Neurath e, sobretudo, Fritsch, nervosos. Três meses depois, os céticos tinham sido destituídos. Hitler afastara todos eles de seus cargos.
À medida que o ano de 1937 chegava ao fim, a corrida armamentista entre os países mais poderosos da Europa tornava-se um determinante cada vez mais crucial para as ações dos governos. A princípio, o encontro de Hitler com seus comandantes militares tinha o objetivo de tratar da alocação de aço. Com efeito, a escassez da liga vinha criando sérios problemas para o programa alemão de rearmamento. A produção siderúrgica era baixa demais para as necessidades do Exército, impunha restrições drásticas à produção de aviões e fazia com que a construção de navios de guerra se atrasasse muito em relação às metas da Marinha. A crescente crise do aço provocara, nos últimos meses de 1937, a demissão do ministro da Economia, Hjalmar Schacht, que planejara a recuperação econômica depois de 1933, porém vinha levantando ponderadas objeções a um programa de gastos militares que estava fugindo ao controle. Göring, o diretor do Plano Quadrienal — o crucial programa de rearmamento exposto no último trimestre de 1936 —, assumiu de fato a direção da economia e só se interessava pela gestão econômica na medida em que pudesse maximizar a produção de armamentos e preparar a Alemanha para a guerra no prazo mais breve possível, não importando o custo. Quando os grandes industriais do Ruhr reclamaram dos custos de processar os minérios de ferro de baixo teor para cumprir suas metas de produção nacional, ele criou três siderúrgicas estatais para se encarregar do processo.
Os principais empresários alemães, na maioria pouco entusiasmados com Hitler antes que ele conquistasse o poder, tinham se convertido rapidamente depois, de olho nos enormes lucros a ser obtidos com a revitalização da economia, do programa de armamentos e do previsto domínio do leste e do sudeste da Europa. Por mais que os dirigentes da indústria de base do Ruhr relutassem em investir em minérios de ferro de baixo teor, ainda assim foram os maiores beneficiários das imensas verbas aplicadas no rearmamento. Uma grande empresa como a ig Farben, uma gigante da área química, já vira seus lucros dispararem com as necessidades do Plano Quadrienal e antevia ganhos astronômicos como butim pelas conquistas alemãs. Os acionistas com certeza aprovariam uma expansão na direção da Áustria e da Tchecoslováquia, regiões que acenavam com a perspectiva de grandes lucros num futuro nada distante — a obtenção, no mínimo, de matérias-primas e potencial industrial necessários com urgência cada vez maior para sustentar a produção de armamentos numa economia submetida a enorme tensão.
Os gargalos na oferta e a escassez crítica de mão de obra já se acumulavam. Nos meses seguintes, os problemas só se intensificaram. Por fim, tornaram-se advertências quanto a um iminente colapso nas finanças do Reich. Qualquer governo “normal” se sentiria compelido a atenuar os problemas cortando gastos, a fim de evitar a hecatombe econômica. Todavia, o regime nazista não era “normal”. Na opinião inabalável do próprio Hitler, que veio a ser também a de amplos setores do complexo industrial-militar, só a guerra — e a aquisição de novos recursos econômicos — resolveria os problemas da Alemanha. Em vez de servir como freios na corrida de Hitler rumo à guerra, o agravamento dos problemas econômicos da Alemanha só reforçou sua convicção de que o conflito era uma necessidade urgente.
Outro país europeu que se rearmava com vistas à agressão externa era a Itália, parceira da Alemanha no Eixo. Contudo, o ritmo de seu rearmamento era bastante diferente do alemão. Tal como na Alemanha, a produção italiana de aço impunha fortes restrições à escala da fabricação de material bélico, e as decrescentes reservas monetárias tinham o mesmo efeito. Os industriais italianos estavam satisfeitos com a maximização de seus lucros na produção de armas, mas não se dispunham a arriscar investimentos de retorno demorado. Uma gestão deficiente e erros de fabricação levavam a problemas de tecnologia e desempenho. Além disso, muitos recursos escassos da Itália eram desperdiçados com a guerra civil na Espanha, que estava durando muito mais do que Mussolini previra quando correu a oferecer ajuda a Franco. No fim de 1937, a combinação de problemas na economia italiana começava a impor restrições substanciais ao rearmamento. Faltava ao Estado tanto a capacidade industrial como os recursos financeiros para acelerar o rearmamento no ritmo pretendido. Na verdade, enquanto outros países intensificavam seus programas de rearmamento, em 1937-8 a Itália apresentou uma queda de 20% nos gastos militares em relação ao ano anterior. Mussolini previa que o país só estaria preparado para a guerra em cinco anos. E até mesmo esse cálculo era otimista demais.
A partir de 1936, os dirigentes soviéticos passaram a reagir com mal-estar cada vez maior ao perigo que a Alemanha representava para seu país, além do fato de provavelmente estar aliada, conforme se presumia, a outras potências “fascistas” e “imperialistas”. Com todos os ramos da produção industrial nas mãos do Estado, numa economia fechada e sob uma rígida ditadura, não havia restrições a um rearmamento total. No entanto, a produção era dificultada por ineficiências, disputas entre a indústria e o Exército no tocante a áreas de competência, e também por problemas estruturais decorrentes da conversão da produção civil em militar. E havia ainda os expurgos desastrosos — ao menos em parte, reflexo da paranoia de Stálin em relação a “inimigos internos”, que estariam ameaçando as defesas soviéticas. Não surpreende que observadores estrangeiros do Kremlin julgassem óbvio que a União Soviética tivesse se enfraquecido seriamente e que com certeza não seria, no futuro previsível, uma força a ser temida. Apesar dos grandes avanços no programa de rearmamento, e a julgar pelas informações que estavam recebendo, os dirigentes soviéticos consideravam que o atraso em relação à Alemanha, em especial na esfera crucial da qualidade dos armamentos aéreos, estava aumentando, e não diminuindo. Isso era preocupante.
Para as democracias ocidentais, o rearmamento era um mal necessário, uma reação à ameaça crescente representada pela Itália e, em especial, pela Alemanha (bem como, no Extremo Oriente, pelo Japão). A guerra e uma imensa turbulência continental, se não mundial, só poderiam prejudicar, no plano internacional, suas atividades financeiras, seu comércio e suas empresas. Seu interesse estava em manter a paz. Aos olhos britânicos, essa prioridade era fortalecida pelos dispendiosos esforços que vinham empreendendo para manter o controle de algumas de suas possessões coloniais. A Índia, onde os britânicos enfrentavam uma pressão contínua pela independência, continuava a representar um grave problema. Além disso, a partir de 1936, a Inglaterra se envolveu na brutal repressão (que viria a se estender por três anos inteiros) de uma ampla insurreição árabe contra o domínio colonial e o assentamento judaico no território sob mandato na Palestina.
Não só os recursos necessários para a defesa do Reino Unido estavam sendo desviados em peso para o império; os recursos franceses para a defesa de suas próprias colônias estavam submetidos ainda mais às prementes necessidades de armar a metrópole contra o óbvio perigo que avultava no outro lado do Reno. Mas a manutenção do império exigia vastos recursos materiais e humanos. Os políticos e militares britânicos percebiam claramente que os compromissos globais de defesa do país eram excessivos. Uma guerra simultânea contra a Itália, a Alemanha e o Japão, em três frentes separadas, constituiria um pesadelo. Essa perspectiva medonha fez surgir a política de apaziguamento — a tentativa de dissuadir possíveis inimigos —, em que a Inglaterra tomou a frente, e a França a acompanhou.
A capacidade de igualar o acelerado programa de rearmamento da Alemanha era uma contínua fonte de ansiedade. O estado das defesas aéreas, em particular, causava enorme preocupação. Três anos antes, ao declarar que “o bombardeiro sempre há de chegar a seu alvo”, Stanley Baldwin, a figura dominante no governo britânico e, a partir de 1935, primeiro-ministro pela terceira vez, em nada contribuíra para aplacar o temor de ataques aéreos no caso de outra guerra. Na época, em 1932, ele pretendia com essas palavras expressar a inútil esperança de que a Inglaterra pudesse tomar a iniciativa de lutar pela proscrição dos bombardeios como parte do desarmamento internacional. No fim de 1934, quando tais esperanças se desvaneceram e o rearmamento alemão em grande escala teve de ser reconhecido como um fato sinistro, já se ouviam queixas de que as negligenciadas defesas britânicas não seriam capazes de resistir a uma disparidade em poderio militar que se aprofundava, em especial no que se referia à força aérea. Num encontro em Berlim, em março de 1935, Hitler dissera (visando mais ao efeito que à correção) ao secretário do Exterior britânico, Sir John Simon, e ao Lorde Guardião do Selo Privado (um ministro sem pasta), Anthony Eden, que a Alemanha já garantira paridade em força aérea com a Inglaterra. Isso fez soar o alarme em Londres. A partir daí, os que ainda defendiam o desarmamento — a maioria dos liberais e os eleitores dos trabalhistas — pouco a pouco ficaram com o pé atrás. Em junho de 1935, Baldwin substituiu o ineficaz ministro da Aeronáutica, Lord Londonderry, por Sir Philip Cunliffe-Lister, mais enérgico e impositivo. A expansão e a modernização da força aérea passaram a ser vistas como questão de urgência, como parte de uma ampliação geral (e cada vez mais substancial) do rearmamento britânico.
Em sua avaliação da dianteira alemã na corrida armamentista, os estrategistas militares britânicos julgavam que 1939 seria o ano de máximo perigo, quando a Inglaterra deveria estar militarmente pronta para confrontar a Alemanha. Havia quem considerasse esse cálculo ilusório. As advertências assustadoras, vindas das Forças Armadas — ansiosas, claro, para defender um forte aumento dos gastos em rearmamento — e dos altos escalões da secretaria do Exterior, davam conta de que a Inglaterra não estaria em condições de conter a ameaça da Alemanha. Apontavam para uma disparidade nos armamentos, sobretudo aéreos, que só fazia crescer. Temia-se também que orientar a economia depressa demais para o rearmamento obrigasse a aumentos de impostos e elevação do custo de vida, o que, por sua vez, talvez ameaçasse a estabilidade social, a ponto de abrir as portas para uma economia militarizada no estilo socialista e estatista. As opiniões variavam entre políticos e militares no tocante à gravidade da ameaça alemã, ao momento de maior perigo e à intensidade a ser dada ao esforço de superar a diferença em poderio militar. A postura dominante, porém, era de que havia necessidade de ganhar tempo, evitar uma guerra prematura e, com sorte, a guerra em si por meio de uma hábil diplomacia — o que significava, sem dúvida, chegar a um ponto de acomodação com a Alemanha. Os principais argumentos econômicos e militares apontavam na mesma direção — a do apaziguamento.
Na França, o argumento econômico em favor dele passou a atrair os ministros ainda mais depois da queda do governo da Frente Popular de Blum, em 1937. As políticas de austeridade adotadas na tentativa de estabilizar as finanças públicas eram incompatíveis com uma expansão do programa de armamentos. O ministro das Finanças, Georges Bonnet, avisou que era impossível ter ao mesmo tempo canhões e manteiga, e que os grandes programas de rearmamento teriam de ser reduzidos. A economia liberal da França, segundo ele, não podia competir com os gastos ilimitados em armamentos da Alemanha, e por isso o orçamento da Defesa para 1938 acabou reduzido. Os comandantes das Forças Armadas queixaram-se em vão.
A ameaça aérea, vista na França e em toda parte como o grande perigo em qualquer guerra futura, causava especial preocupação. A reestruturação da recém-nacionalizada indústria aeronáutica criou problemas de produção que se somavam às limitações financeiras. Somente 370 aviões foram fabricados em 1937, contra 5606 na Alemanha. Para o ministro da Aeronáutica, Pierre Cot, considerado de modo geral um radical de esquerda pouco popular por defender uma aliança estreita com a União Soviética, era preciso que o orçamento de sua pasta fosse aumentado em 60% a fim de estimular a produção de aviões. Em vista das restrições financeiras, isso estava fora de cogitação. Não era de estranhar que a força aérea francesa emitisse prognósticos sombrios quanto às suas perspectivas numa guerra. Seu chefe previu, no começo de 1938, que se a guerra começasse naquele ano “a força aérea francesa seria aniquilada em poucos dias”. Bastante conscientes de suas limitações econômicas e militares, os governantes franceses estavam, naturalmente, sintonizados com a política que vinha sendo costurada em Londres — encontrar um meio de chegar a um entendimento com a Alemanha de Hitler a fim de ganhar tempo.
No fim de 1937, a corrida armamentista desencadeada pela Alemanha estava ganhando ímpeto em todas as grandes potências e restringindo as opções políticas. Delineavam-se os contornos do drama extraordinário que haveria de se desenrolar no decurso dos dois anos seguintes. E, à medida que a margem de manobra se reduzia objetivamente, seria decisivo o papel desempenhado por um pequeno grupo de personagens-chave.
EXTREMISTAS E MODERADOS
Em Londres, em novembro de 1937, mais ou menos na mesma época da reunião na Chancelaria do Reich, Lord Halifax, líder da Câmara dos Lordes que em breve se tornaria secretário do Exterior, preparava-se para visitar Hitler. Esperava chegar a um acordo com o ditador alemão em relação à Europa Central. Era o primeiro passo numa política de apaziguamento mais ativa, que refletia a iniciativa do novo primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, que substituíra Baldwin em 28 de maio.
Pode-se dizer que Baldwin havia deixado o cargo de primeiro-ministro num bom momento. Em dezembro do ano anterior, lidara habilmente com a crise da abdicação, quando o rei Eduardo viii renunciou ao trono, em favor de seu irmão Jorge vi, para se casar com uma americana divorciada, Wallis Simpson. Duas semanas antes da renúncia de Baldwin, a coroação de um novo rei fora uma momentânea exibição de união patriótica no país, que se recuperava da depressão econômica e evitara o extremismo político que tomava conta de grande parte da Europa. E Baldwin, cada vez mais preocupado com a perspectiva da guerra, renunciara antes de ter de enfrentar a grave e prolongada crise internacional que estava prestes a engolfar o continente.
Ao se avistar com Hitler em 19 de novembro, o próprio Halifax deu a entender que o governo britânico aceitaria uma mudança mediante a “evolução pacífica” da situação da Áustria, da Tchecoslováquia e de Danzig, embora desejasse evitar “perturbações de maiores consequências”. Isso era tudo o que Hitler queria ouvir. Respondeu que não tinha o menor desejo de anexar a Áustria ou torná-la politicamente dependente da Alemanha. Nos bastidores, porém, continuou a trabalhar com esse objetivo. Halifax registrou em seu diário que considerou Hitler “muito sincero” e desejoso de relações amistosas com a Inglaterra. O culto aristocrata britânico estava sem dúvida nenhuma fora de seu habitat natural ao tratar com um líder político cuja solução para os problemas da Inglaterra na Índia era, declaradamente, abrir fogo contra Gandhi e várias centenas de membros do Partido do Congresso Nacional Indiano até a ordem ser restaurada. De volta a Londres, Halifax garantiu aos ministros que Hitler não tinha em mente nenhuma “aventura imediata” e sugeriu dar-lhe de presente algum território colonial para torná-lo mais tratável na Europa.
Chamberlain considerou a visita “um êxito completo”. Numa carta privada, escreveu à irmã que, embora os alemães desejassem dominar a Europa Oriental, ele não via motivo para não chegar a um acordo caso a Inglaterra desse garantias de que nada faria para impedir mudanças por via pacífica e a Alemanha rejeitasse o uso da força no trato com a Áustria e a Tchecoslováquia. O ministro que mais se opunha a essa nova forma, mais ativa, de apaziguamento — a busca de um entendimento com a Alemanha mediante relações bilaterais e a aceitação de mudanças territoriais na Europa Central — era o secretário do Exterior, Anthony Eden, que desde janeiro de 1938 se encontrava doente e convalescia no sul da França. Em sua ausência, a condução das relações exteriores estava nas mãos do próprio Chamberlain. Desgastado e em conflito permanente com o primeiro-ministro, Eden renunciou ao cargo em 20 de fevereiro de 1938. Seu sucessor foi o arquiapaziguador Lord Halifax.
Nessa altura dos acontecimentos, um governo britânico preocupado com suas deficiências quanto à defesa, atado a excessivos compromissos imperiais e buscando ativamente um entendimento com Hitler era o principal obstáculo à expansão alemã na Europa. Não era um quadro muito animador. Admitia-se em Paris — na época em que o primeiro-ministro Chautemps e o ministro do Exterior, Yvon Delbos, viajaram a Londres, em novembro de 1937, para ouvir um relato da reunião de Halifax com Hitler — que a política externa francesa estava fortemente subordinada à da Inglaterra. Quando os franceses perguntaram se sua aliada, a Tchecoslováquia, poderia contar com o apoio da Inglaterra, assim como o da França, caso viesse a ser alvo de agressão, Chamberlain evitou comprometer-se, limitando-se a dizer que a Tchecoslováquia ficava a “uma distância muito grande” e era um país “com o qual não tínhamos muita coisa em comum”. Na verdade, em privado, Chautemps reconhecia a inevitabilidade de uma maior influência alemã na Europa Central à custa da Áustria e da Tchecoslováquia, e não se incomodava em deixar a Inglaterra encarregada do apaziguamento.
Em Roma, em novembro de 1937, Benito Mussolini tinha fresco na memória o quanto havia se deslumbrado durante sua visita oficial à Alemanha, semanas antes, quando Hitler não poupou esforços para impressionar seu parceiro no Eixo. No começo do mês, a Itália assinara o Pacto Anti-Comintern, associando-se à aliança celebrada um ano antes entre a Alemanha e o Japão. O Pacto voltava-se ostensivamente contra a União Soviética. No entanto, em suas tratativas com os italianos, antes que estes aderissem ao Pacto, Joachim von Ribbentrop, emissário de Hitler e na época embaixador em Londres, deu a entender o que de fato estava por trás da iniciativa. Os britânicos, explicou, tinham rejeitado as sondagens para uma reaproximação anglo-alemã (e na esperança de que as aceitassem Hitler enviara Ribbentrop a Londres como embaixador). Ribbentrop insinuou para Mussolini e seu ministro do Exterior, o conde Galeazzo Ciano, que o Pacto era “na realidade, antibritânico”, o fundamento preliminar para laços militares mais estreitos entre a Alemanha, a Itália e o Japão. A Itália estava sendo atraída cada vez mais para o abraço de ferro da Alemanha. Em janeiro de 1938, o Exército italiano recebeu, pela primeira vez, uma diretriz que previa um alinhamento dos dois países contra a Inglaterra e a França. Conscientes da precariedade de seu programa de rearmamento, as Forças Armadas italianas só podiam pedir aos céus que a guerra não viesse logo.
Em Moscou, Stálin passara grande parte de 1937 demolindo o comando do Exército Vermelho com seus grandes expurgos. Para os observadores externos, parecia rematada loucura. Essa era a opinião de Hitler. “Deve ser exterminado”, comentou ele com Joseph Goebbels, seu ministro da Propaganda. Contudo, a União Soviética não estava ainda em sua pauta imediata, e não tinha figurado nos cenários que exibira aos comandantes militares um mês antes. Para os dirigentes soviéticos, a guerra com as potências capitalistas — entre as quais eles incluíam a Alemanha e a Itália (já que viam o fascismo como a forma mais extrema e agressiva de capitalismo) — era tida como inevitável. Havia uma crescente convicção de que as democracias ocidentais estavam incentivando Hitler a voltar-se contra o leste, a travar por elas a guerra ao comunismo. Stálin também se preocupava com suas próprias fronteiras orientais. O militarismo japonês ao longo da intranquila fronteira entre o Manchukuo e a União Soviética começava a representar uma ameaça séria. A única dúvida era quanto à data em que ocorreria a guerra. Quanto mais pudesse ser protelada, melhor seria para a União Soviética. Havia um longo caminho a percorrer antes que sua máquina militar estivesse pronta.
Enquanto isso, as opções de Stálin se reduziam. A segurança coletiva, política defendida por seu ministro do Exterior, Maxim Litvinov, tornou-se menos atraente em vista da evidente fraqueza das democracias ocidentais e de sua disposição de buscar um entendimento com Hitler. Uma alternativa, que aos poucos ganharia peso, era voltar a uma forma de aproximação com a Alemanha. O acordo da década de 1920, que se seguiu ao Tratado de Rapallo de 1922 e que usava a vantagem econômica mútua como instrumento, constituía uma espécie de precedente. No entanto, o antibolchevismo visceral de Hitler, que ele voltara a demonstrar pouco tempo antes, no comício do Partido Nazista, em setembro de 1937, impedia até sondagens indiretas. A terceira opção de Stálin consistia em aceitar o isolamento soviético e intensificar ainda mais o ritmo do rearmamento, na esperança de que a guerra não começasse tão cedo. Por ora, esse era o único caminho aberto.
Nas capitais dos países da Europa Central e Oriental, em fins de 1937, os governantes locais estavam mais que conscientes de uma drástica alteração do equilíbrio de poder e da limitação de suas próprias opções. Era óbvio que dependiam de iniciativas das grandes potências europeias, que eles não podiam controlar. A ideia de segurança coletiva por meio da Liga das Nações estava morta e enterrada havia muito, como mostrara a invasão da Abissínia. A França, antes fiadora de proteção por meio de sua rede de alianças, estava gravemente debilitada. Suas divisões internas e seus problemas econômicos saltavam aos olhos. A Inglaterra, evidentemente, não tinha maior interesse em preservar o status quo na Europa Central. A influência política e econômica da Alemanha estava preenchendo o vácuo deixado. Interesses nacionais, assim como suspeitas ou inimizades mútuas, representavam entraves à cooperação militar. Enquanto isso, o poderio alemão crescia visivelmente, sendo a Europa Central o alvo mais óbvio de quaisquer ações expansionistas. O nervosismo e a apreensão eram tangíveis. Tanto a Áustria como a Tchecoslováquia careciam de aliados; os franceses, cuja política externa estava se atrelando à da Inglaterra, eram parceiros menos confiáveis da Tchecoslováquia do que tinham sido no passado. A Áustria, que não tinha mais a proteção da Itália, seria, quase com certeza, o primeiro alvo da Alemanha. Um movimento nesse sentido certamente ocorreria em breve.
Longe da Europa ocorriam também fatos relevantes, que acabariam por ter impacto no continente. Desde julho de 1937, o Japão, cada vez mais militarista e agressivo, vinha travando uma guerra feroz contra a China. O mundo assistia, chocado, às atrocidades cometidas, entre as quais, em dezembro, a horrenda chacina, em Nanquim, de civis chineses por enlouquecidas tropas japonesas. Esses fatos contribuíam para um declínio paulatino, embora vagaroso, da atitude isolacionista dos Estados Unidos, onde o presidente Roosevelt já havia chamado a atenção, três meses antes, para a necessidade de “pôr em quarentena” as potências agressoras que ameaçavam a paz mundial. Por ora, e para a frustração dos britânicos (cujos interesses no Extremo Oriente seriam ameaçados diretamente por agressões japonesas), os Estados Unidos não esboçavam reação alguma. Ainda assim, o ano de 1937 assistiu ao começo do confronto no Pacífico entre o Japão e os Estados Unidos, que acabaria levando os dois países a um conflito global. E foi também em 1937 que Roosevelt começou a perceber a necessidade de persuadir a opinião pública americana de que qualquer agressão alemã na Europa não deixaria de ter consequências para os Estados Unidos.
Em 4 de fevereiro de 1938, foram anunciadas em Berlim importantes mudanças na cúpula do Reich alemão. O ministro da Guerra, Blomberg, e o comandante supremo do Exército, Fritsch, tinham sido destituídos. O próprio Hitler assumira a chefia do alto-comando reestruturado da Wehrmacht. Por conta disso, sua supremacia tornou-se ainda maior, ao passo que a posição do comando militar ficou muito enfraquecida. O número daqueles que manifestavam temores de ser arrastados a uma guerra contra as potências ocidentais era enormemente inferior ao dos correligionários de Hitler, conquistados pelos gigantescos gastos em rearmamento, pela recuperação do prestígio e pela afirmação da posição internacional da Alemanha. Outras elites poderosas na economia ou nos altos escalões do serviço público, cujas esperanças de um ressurgimento da dominação alemã nunca tinham desaparecido, cerraram fileiras com o regime de Hitler. A política externa agressiva, que explorava as fraquezas e as divisões das democracias ocidentais, havia feito com que o líder caísse nas boas graças do povo. As massas lhe conferiram o apoio plebiscitário que incrementava seu prestígio no país e no exterior. O movimento nazista, enorme e complexo, constituía a base organizacional de seu governo e a máquina que garantia a constante mobilização do apoio de massa. A ditadura era forte, segura e não enfrentava a ameaça de uma oposição significativa. O potencial de resistência organizada fora sufocado havia muito tempo. Somente um golpe militar poderia desafiar de fato o poder de Hitler. E disso ainda não havia sinal.
Na grande reestruturação da cúpula do regime, no começo de fevereiro de 1938, a outra importante destituição, juntamente com a dos militares Blomberg e Fritsch, foi a do conservador Neurath, substituído pelo linha-dura Ribbentrop, num momento crítico, como ministro do Exterior. Ribbentrop era conhecido por replicar as ideias de Hitler, e desde seu fracasso como embaixador em Londres tornara-se furiosamente antibritânico. Outras mudanças ocorreram nos altos escalões da burocracia e do corpo diplomático. Hitler tinha agora representantes em posições-chave, homens sintonizados com sua política externa de alto risco. Possíveis restrições a qualquer decisão sua tinham se tornado insignificantes. Pessoas próximas a Hitler conjecturavam que ele poderia tomar em breve uma atitude ousada. Kurt von Schuschnigg, o chanceler austríaco, devia estar “tremendo”, registrou em seu diário pessoal um alto funcionário da Chancelaria.
Pouco mais de um mês depois, o governo austríaco rendeu-se à intensa pressão de Berlim, tropas alemãs cruzaram a fronteira da Áustria e as leis que incorporariam o país a uma Grande Alemanha foram preparadas às pressas. Em 15 de março, diante de uma multidão em êxtase na Heldenplatz, em Viena, Hitler anunciou “a entrada de minha terra natal no Reich Alemão”. Como ele previra, as democracias ocidentais protestaram timidamente, porém nada fizeram. Tampouco a brutal perseguição de judeus austríacos e de adversários políticos dos nazistas, que logo se seguiu, provocou alguma reação em Paris ou Londres ou anulou as esperanças de Neville Chamberlain de que talvez fosse possível “para nós, um dia, retomar negociações de paz com os alemães”.
A Tchecoslováquia, com suas fronteiras agora expostas, decerto seria o próximo alvo. A Inglaterra e a França haviam praticamente desistido da Áustria muito antes que ela caísse diante dos alemães. O caso da Tchecoslováquia era diferente. Sua posição geográfica lhe conferia uma importância vital. O país tinha uma aliança com a França e outra com a União Soviética. E a França era aliada da Inglaterra. Um ataque à Tchecoslováquia poderia precipitar uma guerra europeia generalizada. Da perspectiva alemã, os vínculos da Tchecoslováquia, um país da Europa Central, com o oeste e o leste do continente constituíam um problema estratégico potencialmente sério. Suas matérias-primas e seus armamentos seriam valiosíssimos para os preparativos bélicos da Alemanha. Entretanto, atacar a Tchecoslováquia era uma aventura de alto risco, que poderia arrastar o país à guerra com as democracias ocidentais — uma guerra que alguns de seus comandantes militares, como o general Ludwig Beck, chefe do Estado-Maior do Exército, tinham certeza de que o país não poderia vencer.
A Tchecoslováquia, porém, não podia contar com proteção. Mesmo enquanto a Alemanha engolia a Áustria, o ministro da Defesa francês, Édouard Daladier, avisava a seu governo que a França não poderia oferecer nenhuma ajuda militar direta; da mesma forma, os comandantes militares soviéticos descartavam qualquer possibilidade de o Exército Vermelho socorrer a Tchecoslováquia. Semanas depois, o governo francês soube que a Inglaterra não daria garantia alguma de empreender ações militares se os alemães atacassem a Tchecoslováquia. Em meados de 1938, as potências ocidentais tomaram posição. A França, por mais que afirmasse seu apoio à Tchecoslováquia, não agiria sem a Inglaterra; e a Inglaterra não acenaria com nenhuma perspectiva de intervenção militar. Os tchecos estavam entregues à própria sorte.
Sua situação, nada invejável, era agravada, tal como a dos austríacos anteriormente, pela intranquilidade interna. Konrad Henlein, líder da minoria alemã cada vez mais nazificada nos Sudetos (maltratada pela maioria tcheca, mas nem de longe tanto quanto a propaganda alemã afirmava), foi instruído por Hitler a fazer exigências de autonomia que Praga jamais poderia atender. Para as potências ocidentais, ao menos algumas delas pareciam razoáveis. E, quando Hitler alegou que não desejava nada além de trazer os alemães perseguidos “de volta ao Reich”, foi como se, mais uma vez, ele não passasse de um político nacionalista, embora extremado e absolutamente intransigente, em busca do objetivo limitado de incorporar ao Reich outro bloco étnico alemão. A falta de compreensão das motivações de Hitler era um componente crucial da crescente tragédia da Tchecoslováquia. A agressividade da Alemanha, a impotência da Tchecoslováquia e a apatia anglo-francesa desempenharam um papel no drama que estava levando a Europa em direção a outra guerra.
Num verão de ameaças, temeridade política e tensão insuportável, Hitler se dispôs a arriscar-se a uma guerra com as potências ocidentais a fim de destruir a Tchecoslováquia. Os preparativos para o ataque previam a data de 1o de outubro, no mais tardar. Para consumo público, Hitler aumentou o volume de suas agressões verbais cada vez mais desabridas ao governo tcheco e afirmou em público que não tinha outras exigências territoriais na Europa além da solução do problema dos Sudetos.
Acreditando que desejava a incorporação dos Sudetos à Alemanha e nada além disso, Neville Chamberlain viajou duas vezes a Berlim, em meados de setembro, para reunir-se com o ditador. Ao retornar de sua primeira viagem, no dia 15, mostrou-se otimista quanto à perspectiva de um acordo próximo: os tchecos cederiam os Sudetos e Hitler renunciaria ao uso da força. Em conversas reservadas, opinou que o alemão, embora duro e implacável, “era um homem em cuja palavra se podia confiar”. Muito em breve o primeiro-ministro britânico se desiludiria quanto à presunção da boa-fé de Hitler. Entrementes, a Inglaterra e a França tinham exercido enorme pressão sobre os desafortunados tchecos, ressaltando que não podiam ajudá-los se fossem atacados e instando-os a concordar com concessões territoriais. Em 21 de setembro, com imensa relutância e um profundo sentimento de terem sido traídos, os tchecos enfim capitularam ao diktat anglo-francês. Para Hitler, contudo, isso não bastou. Em sua segunda reunião com Chamberlain, em 22 de setembro, ele repudiou o que o primeiro-ministro britânico julgara ser um acordo, definido uma semana antes. Agora exigia que os tchecos aceitassem a ocupação alemã dos Sudetos em 1o de outubro; caso contrário, tomaria a área à força. E ainda declarou ser indiferente às advertências da Inglaterra de que isso poderia levar à guerra com as potências ocidentais.
Em privado, no entanto, Hitler recuava em sua intenção de usar a força militar para destruir totalmente a Tchecoslováquia. Afinal de contas, os britânicos e franceses estavam forçando os tchecos a lhe dar o que, ostensivamente, ele desejara. Depois de os tchecos aceitarem a mutilação de seu país, as áreas de desacordo com as potências ocidentais passaram a ser relativamente secundárias. “Não se pode fazer uma guerra mundial por causa de tecnicidades”, foi como o ministro de Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, resumiu a questão.
De qualquer forma, a guerra quase aconteceu. Hitler tinha ido além dos limites toleráveis por certos membros do gabinete de Chamberlain, entre os quais o secretário do Exterior, Lord Halifax. Em 25 de setembro, eles se opuseram à aceitação do ultimato alemão. Franceses e britânicos concordaram em enviar um emissário a Berlim a fim de advertir Hitler de que, se atacasse a Tchecoslováquia, haveria guerra. Os franceses começaram a se mobilizar, assim como os soviéticos. Os britânicos prepararam a esquadra. A guerra parecia cada vez mais provável. Fizeram-se tensos esforços para convocar uma conferência que levasse a um acordo. Por fim, Mussolini interveio para intermediar uma conferência quadripartite entre Alemanha, Itália, Inglaterra e França. (A União Soviética, que não contava com a confiança de ninguém, ficou de fora.) Com isso, abriu-se o caminho para o desfecho do drama no Acordo de Munique, assinado em 30 de setembro de 1938. Os tchecos não estiveram representados no encontro das grandes potências, reunidas para dividir seu país. As duas democracias ocidentais forçaram outra democracia a se submeter à intimidação de um ditador.
Segundo o anúncio oficial da capitulação, feito em Praga, “o governo da República da Tchecoslováquia” protestou “junto a todo o mundo contra as decisões de Munique, tomadas unilateralmente e sem a participação tchecoslovaca”. O escritor alemão Frederick W. Nielsen, que deixara a Alemanha em outubro de 1933, exilando-se em Praga, indignado com um regime inumano que, para ele, decidira ir à guerra (mais tarde Nielsen mudou-se para a Inglaterra e, depois, para os Estados Unidos), exprimiu a amargura de toda a população de seu país adotivo nas cartas abertas que dirigiu a Chamberlain e Daladier. “Não se engane!”, escreveu ele ao primeiro-ministro britânico. “As mesmas vozes que o louvam hoje hão de amaldiçoá-lo no futuro não muito longínquo quando ficar claro o veneno que escorre da semente desse ‘ato de paz’.” Sua crítica a Daladier não foi menos cáustica: “A grandeza da França, fundada na tomada da Bastilha, tornou-se agora, por meio de sua assinatura, motivo de troça para o mundo”.
Hitler tinha obtido aquilo que, ao menos nas aparências, desejava. A ocupação dos Sudetos ocorreria de imediato; o resto da Tchecoslováquia, ele não duvidava, poderia ser tomado mais tarde. A paz fora preservada. Mas a que preço?
Ao regressar a seus países, Chamberlain e Daladier tiveram recepções delirantes. Somente aos poucos veio a ser percebida a vergonha que fora a capitulação às ameaças alemãs, à custa dos tchecos. Teria havido alternativa? No tocante a isso, as opiniões diferiam na época e continuaram divididas ao longo das décadas. Naquele jogo de apostas altas, Hitler estava com os ases. E a mão de Chamberlain era ruim. Quanto a isso, pouco se discute. Mas até que ponto ele também jogou mal?
A carta mais fraca de Chamberlain era o estado do rearmamento britânico. A situação de Daladier, do outro lado do Canal da Mancha, era ainda pior. Em ambos os casos, o comando militar deixara claro que as Forças Armadas não estavam equipadas para travar uma guerra contra a Alemanha. Na realidade, tanto os franceses como os britânicos exageravam o poderio militar adversário, mas sua avaliação de uma flagrante inferioridade em equipamento, principalmente aéreo, baseava-se nas informações disponíveis no momento, e não nos benefícios de uma visão retrospectiva. (Uma campanha de bombardeios estratégicos do tipo tão temido estava, na verdade, muito além da capacidade da Alemanha.) Outros relatórios dos serviços de informações, que sublinhavam a falta de matérias-primas na Alemanha e os preparativos inadequados para uma guerra de vulto, foram ignorados ou minimizados. Os comandantes militares viam como necessidade absoluta ganhar tempo para o rearmamento.
Mesmo assim, no auge da crise, em 26 de setembro, o comandante em chefe francês, general Maurice Gamelin, informou os governantes franceses e britânicos que, juntas, suas forças militares, somadas às dos tchecos, eram maiores que as dos alemães. No caso de ser necessária uma ofensiva para retirar os alemães da Tchecoslováquia, a França dispunha de 23 divisões em sua fronteira com a Alemanha, contra somente oito divisões alemãs. Se a Itália participasse das ações, Gamelin pensava em atacar no sul — lançando uma ofensiva do outro lado da fronteira alpina, no vale do Pó —, derrotar os italianos, depois avançar para norte, em direção a Viena, e seguir adiante para ajudar os tchecos. Menos tranquilizador foi o fato de Gamelin declarar que, ao enfrentar os alemães, as tropas francesas avançariam até encontrar oposição e então recuariam para a linha defensiva Maginot. Os militares franceses, em especial, mas também os britânicos, padeciam de um injustificado complexo de inferioridade em relação aos alemães. Contudo, o problema latente sempre fora, em essência, político, e não militar.
Isso começara bem antes de 1938. Em inúmeras ocasiões, nos cinco anos anteriores, os britânicos e franceses tinham anunciado aos quatro ventos suas deficiências e dificuldades tanto para compreender os objetivos de Hitler como para lidar com ele, sendo o caso mais claro a remilitarização da Renânia em 1936. Nada fizeram para impedir que a Alemanha de Hitler se tornasse militarmente forte. Foi com isso que Chamberlain deparou ao se tornar primeiro-ministro em 1937; com isso e também com as consequências dos anos que a Inglaterra passara se desarmando e não se rearmando, ao mesmo tempo que executava um verdadeiro número de equilibrismo, durante anos de severas restrições econômicas, para dividir as Forças Armadas em missões no Extremo Oriente, no Mediterrâneo e em águas nacionais. Chamberlain era, obviamente, a figura de maior destaque nas democracias ocidentais, em vista da confusão interna e dos problemas econômicos dos franceses. Ademais, tinha não só uma maneira mais proativa de tentar acomodar as exigências expansionistas alemãs, como também uma autoconfiança muito exagerada, que o levava a crer que sabia o que Hitler desejava, que podia lidar com ele e que era capaz de convencê-lo a chegar a uma solução pacífica para os problemas da Europa.
A marca pessoal que Chamberlain imprimia na política externa britânica, às vezes ao arrepio da opinião de membros experientes da secretaria do Exterior, refletia essa convicção. Um sinal dessa autoconfiança foi, em sua primeira visita à Alemanha, em meados de setembro, ter negociado sozinho com Hitler, face a face. O secretário do Exterior, Lord Halifax, nem sequer o acompanhou na viagem. Numa época posterior, um amplo aparato de diplomacia internacional decerto teria sido empregado na tentativa de esfriar a situação crítica. Mas isso aconteceu muito antes da diplomacia da ponte aérea transcontinental. E, com a Liga das Nações mais ou menos sepultada, não havia nenhum órgão internacional que interviesse. Tendo sangrado numa guerra europeia, os dominions britânicos não queriam ouvir falar de outra, e apoiaram o apaziguamento. Os Estados Unidos, ainda na era do isolacionismo, assistiam de longe. Roosevelt fizera um apelo em favor da paz em meados de 1938, mas ficou nisso. Chamberlain, cujo antiamericanismo nunca se ocultava inteiramente, mostrava-se indiferente a qualquer ajuda que pudesse receber do outro lado do Atlântico. Fosse como fosse, a fraqueza militar americana não deixava os Estados Unidos em condições de intervir, mesmo que quisessem. De qualquer forma, Roosevelt enviou um telegrama a Chamberlain — “Bom homem!” — ao saber que ele compareceria à conferência de Munique. Mais tarde, o presidente comparou o resultado, que fora absolutamente previsível, à traição de Jesus por Judas.
O drama se centrava, portanto, no duelo pessoal entre Hitler e Chamberlain, o mais desigual já visto na história mundial. Chamberlain só vacilou em sua convicção de que poderia negociar uma solução pacífica com Hitler quando se viu diante da oposição do leal Halifax e de outros em seu gabinete ao voltar de sua segunda viagem à Alemanha. Essa convicção se reafirmara na época da conferência de Munique, a ponto de Chamberlain considerar que, por ter a assinatura de Hitler num papel sem nenhum valor, exibido em sua volta à Inglaterra, tinha alcançado a “paz em nossa época”. Mais tarde ele lamentou seu entusiasmo, manifestado sob a influência das empolgadas multidões em Londres, e se mostrou suficientemente realista para imaginar que havia apenas adiado, e não evitado, a guerra. Insistiu até sua morte, em 1940, que lutar em 1938 teria sido muito pior que protelar a guerra, já que não era possível evitá-la. A Inglaterra não estava pronta, insistia, e ele precisava ganhar tempo.
Já se debateu interminavelmente se a Inglaterra e a França não teriam obtido melhores resultados lutando em 1938, apesar das advertências dos comandantes militares, do que esperando mais um ano. De fato, só em 1939 os gastos militares dos dois países quase igualaram os da Alemanha, e apenas naquele ano as duas democracias iniciaram um sério planejamento de guerra. Todavia, também a Alemanha se rearmou fortemente em 1939, e ficou muito mais equipada para a guerra do que estivera. Esse estado de coisas foi reforçado pela destruição do poderio militar tcheco e pela aquisição de novas fontes de matérias-primas e de armamentos na antiga Tchecoslováquia. Na realidade, em 1939, em certos sentidos o novo equilíbrio de forças favorecia um pouco mais a Alemanha.
Também se debate até hoje se o desastre de Munique poderia ter sido evitado. Winston Churchill, que durante muito tempo se manifestara contra o apaziguamento, mas como uma voz bastante isolada, defendera abertamente, em 1938, uma “grande aliança” com a União Soviética e os países da Europa Oriental para deter Hitler. Mais tarde, argumentou com veemência que a guerra não teria sido necessária se a estratégia tivesse sido a dissuasão, e não o apaziguamento. O Partido Trabalhista e outros grupos da esquerda apoiavam a “grande aliança”. A arraigada falta de confiança na União Soviética e a aversão entranhada ao bolchevismo, para não falar dos pavorosos relatos sobre os expurgos de Stálin, fizeram com que tal estratégia jamais pudesse ganhar o apoio do governo britânico ou do francês.
A possibilidade de uma “grande aliança” teria sido, com efeito, a melhor opção para deter Hitler. Se poderia traduzir-se em ação é outra história. A posição da União Soviética era a de cumprir suas obrigações com os tchecos, assumidas por tratado, assim que os franceses agissem no sentido de cumprir as suas — o que era improvável que acontecesse. Mesmo que a União Soviética houvesse agido, romenos e poloneses não teriam permitido que tropas soviéticas cruzassem seu território. Não obstante, os romenos declararam que permitiriam que aviões soviéticos cruzassem seu espaço aéreo. A força aérea soviética estava em condições de prestar assistência à Tchecoslováquia, se os franceses defendessem o país por terra, e uma mobilização parcial do Exército Vermelho chegou a acontecer. No entanto, Stálin mostrou cautela durante toda a crise, à espera dos acontecimentos, tomando cuidado para não se envolver num conflito de “potências imperialistas”. A possível ameaça à Alemanha, pelo leste e pelo oeste, representada por uma “grande aliança”, nunca se materializou.
A dissuasão por meio de uma “grande aliança” poderia ter também encorajado a incipiente oposição na Alemanha. Em meados de 1938, vinha ganhando forma um complô, por parte de comandantes militares e altos funcionários do ministério do Exterior, para prender Hitler no caso de um ataque à Tchecoslováquia. O Acordo de Munique pôs fim a qualquer possibilidade de ação pelos conspiradores. O mais provável é que, de qualquer forma, a trama não daria em nada ou não teria êxito, mesmo que posta em prática. Mas há ao menos a possibilidade de que, se Hitler — contrariando ponderados conselhos militares — houvesse atacado a Tchecoslováquia, provocando uma temida guerra em duas frentes, teria saído do episódio bastante enfraquecido, se não derrubado.
É impossível afirmar que a “grande aliança” teria evitado uma guerra generalizada. O mais provável é que a guerra se mostrasse inevitável em algum ponto futuro. Não obstante, se em 1938 Hitler tivesse sido detido, ou até derrubado, o conflito teria sido diferente e travado em outras circunstâncias. O fato é que, depois de Munique, o caminho para a guerra que de fato ocorreu foi curto.
OS LTIMOS RITOS DA PAZ
Hitler se sentira irritado, e não satisfeito, com o dividendo que sua agressão lhe valera em Munique. Tinha sido obrigado a renunciar ao que queria, cedendo à pressão por uma solução negociada com relação aos Sudetos, quando o que desejava era destruir a Tchecoslováquia pela força armada. Consta que ao voltar de Munique comentou: “Aquele sujeito [Chamberlain] estragou minha entrada em Praga”. As multidões alemãs exultantes estavam aplaudindo menos um triunfo territorial, obtido com um alto risco de guerra, que a preservação da paz (que muitos creditavam a Chamberlain). Semanas depois do Acordo de Munique, em 10 de novembro, Hitler admitiu num discurso (não destinado a publicação) para uma plateia de jornalistas e editores que o fato de ter sido obrigado a simular durante anos que a Alemanha tinha intenções pacíficas preparara mal os alemães para o uso da força.
Na véspera dessa franca admissão, a Alemanha fora convulsionada por uma terrível noite de violência, a Reichkristallnacht. Pogroms horrendos causaram a morte de quase cem judeus (número oficial divulgado pelo governo, e provavelmente inferior ao real; inúmeros outros foram cruelmente agredidos por turbas de nazistas ensandecidos, que queimaram sinagogas e destruíram propriedades de judeus de um lado a outro do país). Era o ponto culminante da aterradora espiral de violência antijudaica — superando as ondas de 1933 e 1935 — que começara após a anexação da Áustria em março e ganhara impulso com o aumento da tensão em meados do ano. Desprezando a fraqueza de seus adversários estrangeiros depois de Munique, Hitler aprovou que as hordas nazistas, por indução do ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, dessem vazão à sua sanha homicida.
A finalidade dos pogroms era acelerar a imigração dos judeus, o que aconteceu. Antes da ascensão dos nazistas ao poder, viviam na Alemanha meio milhão de judeus, em geral totalmente assimilados, a despeito do crescente e horrendo clima de perseguição. Agora, às dezenas de milhares, eles cruzavam fronteiras em busca de refúgio na Europa Ocidental; muitos atravessavam depois o Canal da Mancha, procurando asilo na Inglaterra, ou cruzavam o Atlântico para buscar proteção nos Estados Unidos. Apesar das políticas imigratórias, que continuavam restritivas, cerca de 7 mil judeus foram para a Holanda, 40 mil para o Reino Unido e 85 mil para os Estados Unidos. Mais ou menos 10 mil crianças foram recebidas pela Inglaterra através do programa de refugiados conhecido como Kindertransport, criado pelo governo britânico dias depois dos pogroms.
Ao longo das décadas seguintes, os imigrantes judeus dariam uma contribuição importante para a vida científica e cultural de seus países adotivos. Para a Alemanha, o prejuízo autoinfligido foi imenso. Entretanto, dezenas de milhares de outros judeus, que tiveram sua entrada negada por países europeus, pelos Estados Unidos e pela Palestina (ainda sob o mandato britânico) foram bem menos afortunados. Muitos deles permaneceram à mercê dos alemães, e um número muito mais vasto corria o risco de cair em suas garras em caso de guerra. Menos de três meses após os pogroms, Hitler emitiu um aviso sinistro — uma “profecia”, como o chamou —, dirigido ao mundo: outra guerra acarretaria o extermínio dos judeus da Europa.
A Alemanha não foi o único país a se beneficiar do desmembramento da Tchecoslováquia. A Polônia não alimentava a menor simpatia por seu vizinho, e os poloneses, de olho num possível ganho territorial decorrente da divisão da Tchecoslováquia, permaneceram neutros durante a crise de 1938. Sem perder tempo, anexaram Teschen, uma fatia do sudeste da Silésia, logo depois do acordo de Munique. Esse território, com uma população dividida, tinha sido reivindicado depois da Primeira Guerra Mundial pela Polônia e pela Tchecoslováquia, mas fora concedido a esta última em 1920. No entanto, os poloneses logo descobriram que o pacto de não agressão por dez anos, firmado com os alemães em janeiro de 1934, nada significava se eles fossem um obstáculo para Hitler.
O primeiro sinal de dificuldade surgiu nos últimos meses de 1938, quando os poloneses se recusaram a concordar com a devolução de Danzig (cidade livre sob a égide da Liga das Nações desde 1920, embora sua população fosse quase toda alemã) à Alemanha e com a criação de uma rota de transporte através do “corredor” que separava a Prússia Oriental do restante do Reich. A obstinação da Polônia em relação a essas questões prosseguiu em 1939. Hitler conteve sua irritação. Podia esperar. Só no segundo trimestre daquele ano sua atenção começou a se concentrar na Polônia.
Isso aconteceu depois que as tropas alemãs concluíram o que Hitler desejara um ano antes — a invasão do restante da Tchecoslováquia, em 15 de março. Criou-se o Protetorado da Boêmia e Morávia. Os eslovacos fundaram seu próprio Estado autônomo. A Tchecoslováquia, a mais bem-sucedida das novas democracias surgidas com o fim do Império Austro-Húngaro, desapareceu do mapa. Depois da entrada alemã em Praga, não podia mais haver ilusões quanto a Hitler ser um mero político nacionalista interessado em incorporar grupos de etnia alemã a um Reich expandido. Tratava-se de conquista imperialista pura e simples. As democracias ocidentais enfim o viram como realmente era. O apaziguamento estava morto. Ficou claro para todos, excetuados os proverbiais cegos que não queriam ver, que Hitler não se deteria diante de nada. Estava igualmente claro que, quando se desse a ocupação seguinte, o que com certeza ocorreria, ele teria de enfrentar resistência armada. Haveria guerra.
Em 31 de março de 1939, constrangido por ter sido ludibriado com a ocupação alemã do que restava da Tchecoslováquia, Chamberlain ofereceu à Polônia, considerada a provável nova vítima de Hitler, uma garantia de apoio militar em caso de ataque. Os franceses, que na verdade não tinham política externa própria, acompanharam a decisão britânica. Os soviéticos ainda não eram vistos como prováveis aliados numa tentativa de confrontar Hitler com a possibilidade de uma guerra em duas frentes. Notificados da garantia poucas horas antes que fosse anunciada, seus furiosos dirigentes ficaram mais convictos do que nunca que Chamberlain estava fazendo um jogo de paciência que acabaria resultando no que ele queria: uma guerra entre a Alemanha e a União Soviética.
A dissuasão era a principal intenção da garantia. Finalmente, Chamberlain tinha decidido tentar impedir que Hitler cometesse novos atos de agressão. Sua esperança era que dessa vez ele fosse sensato e solucionasse suas questões territoriais sem o uso da força. No entanto, Chamberlain escolhera um contexto inapropriado para isso e deixara a iniciativa em mãos alheias. Ele sabia que a Inglaterra nada poderia fazer, do ponto de vista militar, para impedir que os alemães dominassem a Polônia, objetivo que, como seus assessores lhe informavam, estaria consumado três meses depois de uma invasão. Mas tendo se recusado, no ano anterior, a dar uma garantia semelhante a uma democracia que estivera disposta a lutar e estava aliada à França e à União Soviética, ligou o destino da Inglaterra ao da Polônia. No entanto, a Polônia, nas palavras de Churchill, “com um apetite de hiena, apenas seis meses antes tinha participado da pilhagem e da destruição do Estado tchecoslovaco”, e era um país exposto em termos geográficos e militarmente mal equipado para resistir a uma arremetida alemã. A entrada da Inglaterra numa nova guerra estava agora nas mãos da Alemanha e da Polônia.
A garantia por parte de Chamberlain jamais deteria Hitler. Seu efeito, na realidade, foi provocá-lo. Furioso com os britânicos, prometeu “cozinhar para eles um guisado com que vão se engasgar”. No começo de abril, autorizou uma ordem militar para a destruição da Polônia em qualquer data posterior a 1o de setembro de 1939. A teimosia polonesa em relação a Danzig e ao Corredor se encarregou do resto. Estavam esboçados os contornos da crise que chegaria ao clímax no verão de 1939.
Nesse ínterim, sentindo-se inferiorizado pelo golpe de Hitler contra Praga e não querendo ficar para trás no jogo de conquista de territórios, Mussolini deu uma demonstração do poder militar italiano anexando a Albânia. A Inglaterra e a França reagiram estendendo sua garantia à Romênia e à Grécia. Embora pessimamente executado, o ataque italiano foi qualificado como um grandioso triunfo, que, como expressou o político e diplomata fascista Dino Grandi, “abriria as antigas rotas das conquistas romanas no leste para a Itália de Mussolini”. As estradas que os italianos começaram a construir no pequeno e empobrecido país levavam à Grécia. No caso de guerra, a intenção italiana era expulsar os britânicos do Mediterrâneo. Também no sul da Europa começavam a surgir tensões.
Tudo o que as populações europeias podiam fazer era acompanhar, ansiosas, os governantes dos países mais poderosos determinarem o destino de cada uma delas, como se movessem peças num tabuleiro de xadrez. Em meados de 1939, a atmosfera geral não tinha nada a ver com a do ano anterior. No auge da crise dos Sudetos, o medo de que a Europa estivesse cambaleando à beira do abismo era generalizado e palpável. A euforia com que Chamberlain, Daladier, Mussolini e Hitler foram festejados no regresso da Conferência de Munique expressava o alívio com o fato de a guerra ter sido evitada. Só mais tarde calaram no espírito — ou não calaram, em alguns casos — as implicações morais do que tinha sido feito para preservar a paz. Durante a crise polonesa, em 1939, o clima foi mais resignado, estranhamente menos apreensivo.
Na Alemanha, quase inexistia a “psicose de guerra” que informes internos haviam registrado no ano anterior. Predominava a sensação de que, se as potências ocidentais não tinham se animado a defender a Tchecoslováquia, tampouco o fariam em relação a Danzig (o alvo ostensivo da Alemanha na crise polonesa). “As pessoas nas ruas ainda estão confiantes que mais uma vez Hitler conseguirá o que quer sem guerra”, declarou no fim de agosto William Shirer, jornalista e radialista americano baseado em Berlim. “Tudo vai dar certo de novo”, foi a opinião que Viktor Klamperer, acadêmico judeu que vivia em perigosa reclusão em Dresden, mas que era um lúcido observador do ambiente hostil a seu redor, julgava ser a convicção geral. À medida que a crise se agravava, persistia a esperança de que mais uma vez a guerra seria evitada, combinada com uma resignada disposição de resistir se a Inglaterra e a França forçassem a Alemanha à guerra (a mensagem que a propaganda procurava instilar). Havia o desejo de que o problema de Danzig e do Corredor fosse resolvido segundo os interesses alemães, ainda que muita gente, talvez a maioria, julgasse que tais questões não justificavam uma guerra. Observadores da época relataram a diferença de atmosfera em relação a 1914. Dessa vez não havia entusiasmo em parte alguma.
Também na França o estado de espírito era outro. Não diminuíra o medo do que a guerra poderia trazer, em particular o receio dos bombardeios, mas desde a entrada de Hitler em Praga havia uma maior resiliência, uma resolução mais profunda de resistir a novas agressões alemãs — a sensação de que o limite da tolerância fora ultrapassado. Numa pesquisa nacional realizada em julho de 1939, três quartos dos entrevistados disseram apoiar o uso da força na defesa de Danzig. Reinava um espírito de falsa normalidade. Cinemas, cafés e restaurantes continuavam apinhados, com as pessoas “aproveitando a vida”, fazendo questão de não pensar no que estava por vir. Nas rodas intelectuais abundavam os catastrofistas. No mês seguinte, as cidades se esvaziaram, com as pessoas viajando aos bandos para balneários litorâneos ou para o interior, muitas levando o mais recente best-seller, a tradução de E o vento levou, de Margaret Mitchell, para gozar suas férias remuneradas num agradável ambiente de veraneio. Talvez fosse a última chance de fazê-lo durante um bom tempo, e por isso não podia ser desperdiçada.
Quase a mesma situação imperava na Inglaterra. A ocupação do resto da Tchecoslováquia pela Alemanha tinha alterado a posição do público. “Havia uma acentuada transformação na atitude do país em relação ao pacifismo e ao recrutamento”, recordou mais tarde William Woodruff, na época um jovem da classe trabalhadora do norte da Inglaterra que conseguira uma bolsa para estudar na Universidade de Oxford. Os estudantes discutiam “se teriam de lutar este ano ou no próximo. Rearmamento não era mais uma palavra proibida”. Numa pesquisa de opinião feita na Inglaterra em julho, uma proporção dos entrevistados quase igual à da consulta na França — cerca de três quartos — respondeu que a Inglaterra deveria honrar seu compromisso de combater ao lado da Polônia se o conflito por Danzig levasse à guerra. Tal como na França, as pessoas se apegavam a ilusões de normalidade, bloqueando na mente o rufar soturno dos tambores de guerra. Os salões de baile e os cinemas viviam grande movimento, os torcedores estavam interessadíssimos nas partidas de um torneio internacional de críquete contra uma equipe visitante das Índias Ocidentais (a terceira partida foi disputada no estádio The Oval, em Londres, pouco mais de uma semana antes do começo da guerra), enquanto o êxodo da população das cidades industriais do norte do país para as praias durante as férias se deu como de costume. Na zona rural inglesa, pacífica e bela naquele verão ameno, os horrores da guerra pareciam muito distantes. Eram muitos os que acreditavam, em todo caso, que Hitler estava blefando quanto a Danzig e que no fim recuaria em sua decisão de atacar a Polônia caso isso acarretasse uma guerra com a Inglaterra.
Na própria Polônia, a garantia dada ao país pela Inglaterra transformara a postura da população, tornando-a subitamente pró-inglesa ou pró-francesa. A hostilidade contra a Alemanha saltava aos olhos. Pairava no ar a sensação de que haveria guerra, eclipsando tudo o mais. O clima era de apreensão. A romancista Maria Dąbrowska, famosa desde a publicação de sua saga Noites e dias e agraciada com o mais prestigiado prêmio literário da Polônia em 1935, recuperava-se de uma cirurgia e desfrutava a placidez de um retiro no sul da Polônia em julho, refletindo sobre a conveniência de voltar para Varsóvia, mas relutando em partir. “O tempo está tão maravilhoso, a perspectiva de guerra tão próxima, talvez este seja o último momento de paz na vida”, pensava. Havia uma sensação de que o tempo era precioso. Quando ela regressou a Varsóvia, no começo de agosto, um amigo persuadiu-a a mudar-se para uma estância hidromineral no noroeste do país. “Não perca muito tempo pensando nisso”, recomendou. “É a última possibilidade, a última oportunidade. O que há para discutir? Em poucas semanas, no máximo, haverá guerra.” Nos últimos dias do mês houve uma apressada mobilização de homens, carroças e cavalos. As pessoas armazenavam provisões. Houve uma corrida em busca de máscaras antigás, que as autoridades não tinham disponibilizado em quantidade suficiente. Procurava-se improvisar cômodos à prova de gases, e as janelas eram lacradas com tiras de papel. Como todos sabiam, as chances de paz estavam por um fio. “A Polônia defrontava-se com uma terrível catástrofe.”
A bomba estourou na noite de 21 de agosto. A Alemanha e a União Soviética, arqui-inimigas figadais, estavam prestes a celebrar um acordo impensável. Depois de anos ouvindo que o fascismo era o mal supremo, os cidadãos soviéticos ficaram atônitos ao saber que Hitler agora era seu amigo. Como mais tarde expressou uma mulher que morava em Moscou, “o mundo estava de cabeça para baixo”. Depois de anos de arengas sobre a natureza diabólica do bolchevismo, os cidadãos alemães ficaram igualmente aturdidos com a reviravolta quase inacreditável. Todavia, sentiram-se sobretudo aliviados. Aquilo significava “que o temido pesadelo do cerco” estava afastado.
Alguns meses antes, a Alemanha tinha ensaiado uma extraordinária reaproximação com a União Soviética. A destituição de Maxim Litvinov, em 3 de maio, e sua substituição por Viacheslav Molotov no cargo de comissário do povo para Assuntos Exteriores assinalou uma mudança no pensamento no Kremlin. Ribbentrop via uma possível abertura para um novo entendimento que eliminaria qualquer aliança antialemã entre a União Soviética e as democracias ocidentais (que estava sendo debatida, mais uma vez sem entusiasmo, em Londres e Paris). Além disso, esse novo entendimento de um só golpe isolaria totalmente a Polônia.
A época em que Hitler imaginava atacar a Polônia — no fim de agosto, antes que viessem as chuvas do outono — impunha sua própria pressão. Em 19 de agosto, Stálin finalmente deu sinais de que estava disposto a um acordo com a Alemanha. Sem demora, Hitler tomou providências para enviar Ribbentrop a Moscou. Quatro dias depois, Molotov e Ribbentrop assinaram um pacto de não agressão entre a União Soviética e a Alemanha. Um protocolo secreto delineava esferas de interesse no Báltico, na Romênia e na Polônia, com vistas a “uma transformação territorial e política” nessas regiões. Foi o pacto mais cínico que se possa imaginar. Contudo, fazia muito sentido para ambas as partes. A Alemanha assim fechou sua frente oriental; a União Soviética ganhou tempo para consolidar suas defesas.
Com isso, nada obstava uma iminente invasão da Polônia pela Alemanha. Hitler nutrira tênues esperanças de que a Inglaterra e a França recuassem na garantia dada aos poloneses, mas estava disposto a ir em frente mesmo que isso significasse guerra com as democracias ocidentais. Seu desprezo por elas fora confirmado no verão anterior. “Nossos inimigos são uns vermezinhos”, disse ele a seus generais. “Eu os vi em Munique.” Sua maior preocupação consistia em evitar uma intervenção de último minuto que pudesse resultar numa segunda “Munique” e impedir que a Polônia fosse demolida.
No ano anterior, quando a política de alto risco de Hitler ameaçara causar uma guerra com as potências ocidentais, surgira um embrião de oposição entre as elites das Forças Armadas e do Ministério do Exterior. Entretanto, a Conferência de Munique erodira as chances de sucesso dessa oposição. Um ano depois, aqueles que continuavam a se opor em segredo à corrida precipitada de Hitler para a guerra e para o grande desastre que vaticinavam, não tinham nenhuma possibilidade de desafiá-lo. Os comandantes do Exército, divididos em 1938 a respeito de suas opiniões sobre a guerra, agora não diziam nem faziam coisa alguma quanto a eventuais dúvidas. Com fatalismo, se não com entusiasmo, apoiavam o ditador. Isso foi crucial. Internamente, nada se interpunha à determinação de Hitler de buscar a guerra.
Desde 22 de agosto, o embaixador britânico em Berlim, Sir Nevile Henderson, vivenciara diversas reuniões extremamente tensas na Chancelaria do Reich, durante as quais Hitler, ao que parecia, oferecera alguma esperança de uma solução pacífica para a crise, ao mesmo tempo que, em segredo, se preparava para invadir a Polônia. Além disso, Göring enviara três vezes a Londres um emissário pessoal, o industrial sueco Birger Dahlerus, com acenos das boas intenções dos alemães. Da parte dos alemães, porém, as negociações eram um simples embuste. Eles não tinham a mais remota intenção de se abster do planejado ataque à Polônia. Na realidade, ele deveria ter ocorrido em 26 de agosto. Hitler tinha dado as ordens de mobilização ao Exército na tarde do dia 25, mas viu-se obrigado a cancelá-lo algumas horas depois, quando Mussolini avisou ao parceiro no Eixo que a Itália não estava em condições, no momento, de entrar numa guerra. Se a conversa foi embaraçosa para Mussolini, não passou de um revés passageiro para Hitler, que logo fixou uma nova data para o ataque. Na manhã de 1o de setembro de 1939, tropas alemãs cruzaram a fronteira da Polônia.
Como os britânicos vinham esperando até o último instante que Hitler negociasse, o ataque pegou-os de surpresa. Seguiram-se dois dias de hesitação, nos quais a Inglaterra e a França não agiram de forma coordenada, enquanto as tropas de Hitler devoravam a Polônia. Mussolini ofereceu-se para mediar, junto a Hitler, a convocação de uma conferência em 5 de setembro. Os franceses se mostraram mais dispostos que os britânicos a concordar com a sugestão, que, previsivelmente, não surtiu nenhum efeito em Berlim. O ministro do Exterior francês, Georges Bonnet, considerado por Churchill e outros em Londres como a “quinta-essência do derrotismo”, enviou sinais diplomáticos confusos, procurou ganhar tempo e relutou em comprometer a França com o temido passo final. Ainda na tarde de 2 de setembro, Churchill e Halifax disseram-se dispostos a aceitar uma conferência se as tropas alemãs se retirassem da Polônia. Naquela tarde, porém, no Parlamento, Chamberlain não teve a menor dúvida de que a perspectiva de novas negociações com Hitler derrubaria seu governo. Diante da ameaça de uma revolta em seu gabinete, ele concordou em enviar um ultimato, exigindo que a Alemanha retirasse suas tropas da Polônia imediatamente. O ultimato seria apresentado em Berlim às nove horas da manhã seguinte. Hitler tinha duas horas para responder.
Às 11h15 da manhã de 3 de setembro de 1939, muita gente em toda a Inglaterra se acotovelava em torno de aparelhos de rádio para ouvir Chamberlain anunciar, com voz melancólica, que nenhuma resposta ao ultimato tinha sido recebida “e que, consequentemente, este país está em guerra com a Alemanha”. Imediatamente soou um uivo de sirenes de ataque aéreo; foi um falso alarme, mas serviu de prenúncio ao que estava por vir. Em grande parte devido a mais uma procrastinação de Bonnet, a declaração de guerra não foi sincronizada. Houve um intervalo de quase seis horas antes que, às cinco da tarde, a França por fim acompanhasse a Inglaterra.
O caminho para o inferno de outra guerra fora sinuoso — e, na prática, “pavimentado com as boas intenções” dos apaziguadores. Chamberlain declararia na Câmara dos Comuns, em 3 de setembro: “Tudo pelo que trabalhei, tudo o que esperei, tudo em que acreditei durante minha vida pública desmoronou”. Ainda que estimulada pelos melhores motivos, a política de apaziguamento fora, como disse Churchill, “uma história triste de avaliações erradas formuladas por pessoas bem-intencionadas e capazes”, mas que acabou sendo “uma linha de marcos miliários para o desastre”. Os apaziguadores, na Inglaterra e na França, eram, sem dúvida, “bem-intencionados”. Mas sua educação, suas experiências e suas vivências políticas os tornavam pessoas totalmente despreparadas para enfrentar um bandido no palco internacional. Eles simplesmente não eram páreo para Hitler. Eles achavam que podiam negociar um acordo que levasse à paz, mesmo que isso custasse atirar outro país aos lobos. Ele nunca quis nada além da guerra. Só a conquista, de acordo com a visão de mundo que Hitler cultivara durante quase duas décadas, poderia atender às necessidades alemãs. Por isso, o fim da estrada provavelmente sempre foi o mesmo: a guerra na Europa, de novo.
“Em certo sentido, é um alívio. As dúvidas estão resolvidas”, foi a reação lapidar de Sir Alexander Cadogan, subsecretário permanente da secretaria do Exterior britânica. William Woodruff, estudante de Oxford, filho de uma família proletária inglesa, renunciou a suas convicções pacifistas naquele dia: “Lutar era o menor de dois males. Eu ia resolver minha vida acadêmica junto à universidade e me alistar para a guerra”. Um número incontável de outros jovens correu a se voluntariar para o serviço militar. Woodruff resumiu, provavelmente com toda correção, a opinião da maior parte da população britânica, que considerava a guerra inevitável e que era preciso deter Hitler: “Eles estavam satisfeitos com o fim do logro e com o começo da luta de vida ou morte”. O escritor judeu Manes Sperber se achava nas longas filas de voluntários em Paris, temeroso quanto ao que o esperava, mas aliviado por seus pais e irmãos estarem em segurança na Inglaterra. “Nada de entusiasmos loucos. Há um trabalho a ser feito. É só isso”, observou Pierre Lazareff, editor do Paris Soir, em seu diário. Lembrando a carnificina que ocorrera em solo pátrio apenas uma geração antes, os franceses convocados — que logo totalizavam 4,5 milhões, da França e das colônias — estavam, segundo relatórios administrativos, resignados a combater, mas sem nenhum sinal do entusiasmo que se via em 1914.
Na Alemanha a sensação não era muito diferente. William Shirer descreveu a atmosfera de Berlim em 3 de setembro: “No rosto das pessoas, assombro, depressão […]. Em 1914, creio, era tremenda a empolgação em Berlim no primeiro dia da guerra mundial. Hoje não há entusiasmo, nem hurras, nem vivas, nem flores, nem febre guerreira, nem histeria de guerra”. Já em Varsóvia, recordou Marcel Reich-Ranicki, que mais tarde seria um famoso crítico literário na Alemanha, quando se soube que a Inglaterra e a França tinham declarado guerra à Alemanha, o estado de espírito era de alegria quase incontida. Uma multidão em delírio juntou-se diante da embaixada britânica, gritando “Viva a Inglaterra!” e “Viva a luta pela liberdade!”. Mais tarde, no mesmo dia, cantaram A Marselhesa diante da embaixada francesa. Pensavam que a ajuda estava a caminho. Logo, quando as bombas alemãs choveram sobre as cidades polonesas e o martírio teve início, eles se deram conta de que não viria ajuda nenhuma.
Quaisquer que fossem os sentimentos em todo o continente no dia 3 de setembro, praticamente todos perceberam que a vida se transformaria de forma drástica. O que a guerra traria, exatamente, ninguém sabia. Eram muitos os motivos para que os anos vindouros fossem encarados com ansiedade. Muitas pessoas se davam conta de que teriam de suportar, mais uma vez, o fogo do inferno. Entretanto, talvez tenham sido poucos os que perceberam a profundidade dos maus presságios registrados em um diário (num inglês imperfeito) pelo escritor Stefan Zweig, um judeu austríaco, então exilado na Inglaterra. A nova guerra, escreveu ele em 3 de setembro de 1939, seria “mil vezes pior que a de 1914 […]. Não fazemos ideia dos novos horrores de envenenamento e pústulas que esta guerra trará. Eu espero tudo desses criminosos. Que decomposição da civilização”.