9. Transições silenciosas nas décadas sombrias

A história resiste a um fim tão certamente quanto a natureza abomina o vácuo; a narrativa de nossos dias é um discurso contínuo, em que cada ponto é uma vírgula em embrião.

Mark Slouka, Essays from the Nick of Time:
Reflections and Refutations
(2010)

 

Os trinta anos durante os quais a Europa pareceu empenhada na autodestruição foram tão desastrosos e caracterizados por rupturas tão imensas que dificilmente se conseguiria imaginar uma continuidade dos sistemas de valores socioeconômicos e das tendências do desenvolvimento cultural no longo prazo. No entanto, sob a superfície de uma era sombria, a vida das pessoas continuava sendo moldada ou remoldada em transições silenciosas, íntegras e talvez incólumes ao trauma.

Além dos determinantes impessoais de longo prazo representados pelas mudanças sociais e econômicas, havia valores e crenças que orientavam a vida das pessoas, em especial o resguardo silencioso das Igrejas cristãs. No entanto, grande parte do mais importante pensamento político e social da época escapou à influência das Igrejas ou até se opôs a elas. Como a elite intelectual da Europa reagiu ao que percebia como uma crise civilizatória? A dedicação ao trabalho, à reflexão e (às vezes) à oração deixa de fora uma quarta esfera: o lazer e a diversão que se podiam extrair do domínio em rápida mudança do entretenimento popular. Cada uma dessas quatro áreas — mudança econômica e social, o papel das igrejas cristãs, a reação dos intelectuais e a “indústria cultural” — revela ao mesmo tempo continuidades e transições que deixariam uma marca importante no mundo do pós-guerra.

ECONOMIA E SOCIEDADE: DINÂMICA DA MUDANÇA

Ao longo do período de horrores que afligiu a Europa entre 1914 e 1945, as economias e sociedades do continente se tornavam, na verdade, mais parecidas. É claro que permaneciam grandes diferenças — principalmente nacionais, étnicas, regionais e (muitas vezes misturada com estas) religiosas. Eram essas diferenças, mais que qualquer outra coisa, até mesmo que o pertencimento a uma classe social, que moldavam o sentimento de identidade. As oportunidades de trabalho no estrangeiro, a não ser para as classes mais privilegiadas, deixando de lado o serviço militar, eram limitadíssimas, fortalecendo o sentimento de identidade nacional (e os preconceitos que muitas vezes o acompanhavam). Depois da Primeira Guerra Mundial, a fragmentação num continente ainda mais dominado do que antes por Estados-nações muitas vezes orientados por um nacionalismo extremo e a instituição de sistemas de governo com modelos econômicos muito diferentes (e incompatíveis) — mais notavelmente na Rússia, na Itália e na Alemanha — favoreciam mais o afastamento que a aproximação dos países. As duas guerras mundiais, não é preciso dizer, produziram suas próprias distorções e divergências.

No entanto, houve importantes modelos intrínsecos de desenvolvimento que transcenderam distinções políticas e a divisão, ou foram no máximo interrompidos por algum tempo. O impacto de longo prazo da industrialização, que afetou diversas partes da Europa em intensidades e ritmos diversos, foi a força dinâmica dominante. As mudanças que se seguiram afetaram quase todo o continente e não ficaram confinadas por fronteiras nacionais. Mesmo os países menos desenvolvidos foram envolvidos de alguma forma — importando, copiando ou assimilando as mudanças que estavam ocorrendo em outro lugar. O abismo entre as partes mais ricas e economicamente mais avançadas da Europa Ocidental e Setentrional e as mais pobres do sul e do leste pouco diminuiu na primeira metade do século XX. Mesmo assim, as tendências do desenvolvimento — em demografia, urbanização, industrialização, nível de emprego, previdência social, alfabetização e mobilidade social — eram bastante semelhantes.

A população

Apesar de duas guerras mundiais, inúmeros conflitos civis, imensas epidemias de fome politicamente induzidas, depressão econômica e “limpezas étnicas” em grande escala, a população da Europa continuou crescendo substancialmente durante a primeira metade do século XX (embora menos que nos cinquenta anos anteriores). Em 1913, viviam na Europa quase 500 milhões de pessoas. Em 1950, esse número chegava a quase 600 milhões. Esse crescimento populacional não foi uniforme. Fatores políticos e militares tiveram influência em algumas partes do continente. Em 1946, a população soviética contava com 26 milhões de pessoas a menos que em 1941. As estatísticas sobre a população alemã mostram claramente o impacto nefasto das duas guerras e da Grande Depressão. Nesses dois países, no entanto, a redução da população foi temporária, embora durante anos o número de mulheres continuasse muito superior ao de homens. Os retrocessos econômicos também tiveram seu papel nas flutuações demográficas. A população irlandesa, por exemplo, caiu muito quando grande número de jovens começou a deixar o país para trabalhar fora, principalmente na Inglaterra.

Não obstante, a tendência geral foi sempre de crescimento populacional. A causa principal foi a queda pronunciada nas taxas de mortalidade, tendência que se iniciou na segunda metade do século XIX, mas se acelerou de maneira notável na primeira metade do xx. As taxas de natalidade também estavam em queda, mas a um ritmo muito mais lento que as de mortalidade. Em 1910, a expectativa de vida no norte e no oeste da Europa era de cerca de 55 anos; na Rússia, era de 37 anos; na Turquia, de menos de 35. Quarenta anos depois, a maior parte dos habitantes do continente podia esperar viver até os 65 ou mais. No início do século, os índices mais elevados de natalidade e mortalidade achavam-se no leste e no sul da Europa. Em 1950, a distância entre essa parte da Europa e o norte e o oeste já tinha se reduzido consideravelmente. Mesmo na Rússia, apesar dos horrores que o país foi obrigado a suportar, a taxa de mortalidade caiu notavelmente: de 28 por 1000, na época do tsar, para 11 por 1000 em 1948.

A queda na taxa de mortalidade foi, em boa medida, resultado da grande ênfase dada a higiene, melhores moradias e educação sanitária, e a consequente melhora na saúde materna (que contribuiu muito para a queda na mortalidade infantil). Em termos gerais, embora em diferentes proporções em virtude dos respectivos graus de avanço econômico, os países europeus tiveram grande melhora na área da saúde na primeira metade do século XX. O surto de construção de habitações da década de 1920 (mencionado no capítulo 4), muitas vezes subsidiada pelo governo, reduziu o grande número de pessoas dividindo a mesma moradia e trouxe melhoras no saneamento básico e na higiene pessoal. Um pequeno crescimento da renda real e uma alimentação melhor (com o aumento da quantidade de carne em relação à de cereais) também contribuíram para a queda da mortalidade. A consciência da importância da saúde pública disseminou-se a partir dos países relativamente adiantados do norte e do oeste da Europa para o sul e para o leste do continente. Mas, nos lugares em que pouco se fez para superar o atraso no saneamento básico, na higiene pessoal e na falta de hospitais, como na Albânia, na Macedônia, no sul da Itália e na Turquia, as taxas de mortalidade permaneceram desproporcionalmente elevadas.

O progresso da medicina contribuiu para a queda da mortalidade, reduzindo as possibilidades de mortes prematuras devidas a doenças contagiosas. Isso se deu menos na área de técnicas cirúrgicas (embora a cirurgia reparadora tenha apresentado progressos na Primeira Guerra Mundial) do que no tratamento de ferimentos e na criação de medicamentos contra doenças letais, como tuberculose e gripe. A epidemia de gripe espanhola, no fim da Primeira Guerra, causou mais mortes que o próprio conflito. Os bebês eram especialmente suscetíveis a doenças gastrintestinais, e a mortalidade infantil por problemas ocorridos no parto continuava alta. Por outro lado, passou-se a usar cada vez mais as sulfamidas no controle de doenças contagiosas, vacinas contra o tétano e a difteria, e medicamentos contra a malária. O uso da penicilina, primeiro para evitar a infecção de ferimentos, generalizou-se perto do fim da Segunda Guerra, embora só pelos Aliados ocidentais. A vacinação passou a ser amplamente aplicada. Nas áreas rurais do sul da Europa, onde os governos pouco tinham feito para melhorar as condições de vida e de saúde pública, a malária continuou sendo um problema grave, em alguns casos até bem depois da Segunda Guerra. Mas até nesses lugares as doenças infecciosas começavam a ser controladas. Os casos de malária na Itália, por exemplo, caíram de 234 mil em 1922 para menos de 50 mil em 1945. Por volta de 1950, a doença tinha sido praticamente erradicada.

As regiões mais pobres e menos desenvolvidas do continente continuavam longe da tendência geral de queda na fecundidade. Na Rússia, na Espanha e em Portugal, a queda só começou na década de 1920; no sul da Itália e na Turquia, só depois da Segunda Guerra. No entreguerras, a taxa de fecundidade na Turquia era superior a cinco filhos por mulher. Na maior parte da Europa, já tinha caído para 2,5, e em alguns países para menos de dois (ou seja, menos do que a taxa necessária para a manutenção da população sem contar com imigração). O pequeno número de nascimentos e a concomitante perda de importância nacional causaram muita preocupação, principalmente na França (onde a queda se registrou primeiro), nos países escandinavos e não menos na Itália e na Alemanha (fazendo o jogo da ideologia fascista). A popularização do controle da natalidade e a educação em planejamento familiar (ajudada pelo aumento da alfabetização) tiveram muita influência na queda da fecundidade. Na Europa Ocidental, cerca de 90% dos nascimentos se davam dentro do casamento (os filhos ilegítimos ainda eram estigmatizados), e o número de casamentos permaneceu praticamente estável (sem contar um curto período de aumento no fim da década de 1930). Portanto, o fator decisivo foi que os casais simplesmente preferiram ter menos filhos — tendência reforçada pelo grande número de mulheres jovens que entravam no mercado de trabalho. As regiões católicas da Europa e as áreas rurais mais pobres do leste e do sul do continente só aos poucos entraram em compasso com a tendência geral de queda da fecundidade — o tamanho da população rural da Irlanda era uma exceção à tendência geral —, embora a direção fosse a mesma e a velocidade de convergência tendesse a aumentar com a modernização da economia.

As mudanças sociais e econômicas na Europa se intensificaram com a guerra, quando não foram causadas diretamente por ela. O êxodo rural em direção às regiões industrializadas, a partir do sul e do leste para o oeste, foi um dos aspectos dessas mudanças — uma tendência de longo prazo que as pressões do conflito exacerbaram. O deslocamento em massa da população por causa da guerra e da “limpeza étnica”, embora fosse uma consequência temporária dos distúrbios políticos, teve consequências de longa duração.

Antes da Primeira Guerra, a emigração para os Estados Unidos era uma via de escape da opressiva pobreza nas regiões mais miseráveis da Europa, porém depois que o país implantou rígidas cotas de imigração, no começo da década de 1920, a correnteza reduziu-se a pouco mais que um filete. A maior parte das pessoas que buscavam uma vida melhor teve de encontrar uma nova pátria na própria Europa. Para os que emigravam por motivos econômicos, isso significava, principalmente, procurar emprego nas áreas industriais em expansão. O fluxo de migrantes do campo para a cidade, traço característico da recuperação econômica da década de 1920, caiu mas não acabou durante a Depressão da década seguinte.

Em toda parte encolhia o contingente populacional que trabalhava no campo. Em 1910, a agricultura da Europa como um todo respondia por 55% da produção. Em 1950, tinha caído para 40%. A maior virada da atividade econômica deu-se na Rússia, responsável por mais da metade da queda geral na produção agrícola em relação à produção industrial. Entretanto, em todos os países, a população rural diminuía. A Boêmia industrializada atraía trabalhadores da Eslováquia rural. Milão e Turim atraíam migrantes do sul da Itália. Os poloneses saíam do sul e do leste do país para as áreas ocidentais, que se industrializavam mais rapidamente. E grande número de imigrantes do sul e do leste da Europa encontrava emprego permanente nas pujantes indústrias de Alemanha, França e Países Baixos. A França, com a população estagnada (o que mudaria durante a Segunda Guerra Mundial, com um forte crescimento), foi o país que teve maior necessidade de força de trabalho estrangeira no entreguerras. Em 1931, cerca de 8% de sua população, algo como 3,3 milhões de pessoas, era composta de imigrantes recentes.

A Segunda Guerra Mundial acentuou as tendências permanentes — das áreas rurais para as urbanas, da agricultura para a indústria, do sul e do leste para o norte e o oeste. Em 1939, a Alemanha contava cerca de meio milhão de trabalhadores estrangeiros, apesar da ideologia oficial xenófoba. Cerca de metade deles — incluindo poloneses, italianos, iugoslavos, húngaros, búlgaros e holandeses — trabalhava no campo (havia uma aguda escassez de mão de obra na lavoura), muitas vezes sazonalmente, mas a indústria também absorvia grande número de estrangeiros, em especial da Tchecoslováquia. A escassez da força de trabalho na Alemanha durante a guerra, cada vez mais desesperadora, levou a um grande aumento no número de estrangeiros (um terço deles mulheres) — muitos deles recrutados para trabalhos forçados dos mais cruéis —, principalmente a partir de 1942. Em meados de 1944, os 7651970 estrangeiros (dos quais 1930087 eram prisioneiros de guerra) representavam mais de um quarto da força de trabalho.

A Alemanha tinha condições de explorar um império de proporções continentais para satisfazer suas necessidades de força de trabalho (e fez isso da maneira mais implacável), mas, em todos os países participantes do conflito, a guerra provocou uma demanda crescente de mão de obra. Como os homens eram mandados à frente de batalha, grande parte dessa carência foi suprida por mulheres. Isso já acontecera na Primeira Guerra Mundial, mas a mudança acabou tendo curta duração. Quando os homens começaram a voltar do serviço militar, as mulheres foram afastadas do mercado de trabalho. Na Segunda Guerra, a mudança teve mais continuidade. O desemprego na Inglaterra, que parecia endêmico no entreguerras, desapareceu. As mulheres — donas de casa e outras que anteriormente não trabalhavam (ou que deixaram o serviço doméstico) — constituíam mais de três quartos da força de trabalho agregada. Na União Soviética, onde muitas já trabalhavam antes da guerra, elas já constituíam mais da metade da força de trabalho em 1942.

As mudanças internas mais repentinas e radicais na população europeia na primeira metade do século XX não se deram simplesmente em função de tendências permanentes do mercado de trabalho, claro, mesmo quando estimuladas pelas exigências da economia de guerra. Muito mais drásticas foram as turbulências populacionais causadas pela ação política e militar, mais graves na Europa Oriental, embora a Guerra Civil Espanhola tenha feito 2 milhões de refugiados entre 1936 e 1938. Cerca de 8 milhões de pessoas foram desalojadas na metade oriental do continente, em especial por causa de perdas territoriais, mudança de fronteiras e “ajustes” étnicos nos Estados emergentes, durante a Primeira Guerra Mundial ou logo depois dela. Mais de 1 milhão de armênios foram deslocados, e muitos deles morreram nas horríveis deportações a que foram submetidos pelos turcos em 1915. Cerca de 1 milhão de gregos e turcos foram removidos à força com a troca de populações em 1923. Na Rússia, devastada pela guerra civil que se seguiu à Primeira Guerra Mundial e à revolução, o número de mortos e refugiados foi estimado em mais de 10 milhões. Muitos outros milhões morreram ou foram desalojados durante a era da coletivização stalinista e dos expurgos da década de 1930, seguidos de outros milhões que fugiram para o leste ante o avanço do Exército alemão em 1941. As deportações em massa ordenadas por Stálin na época da guerra, visando a pessoas consideradas uma ameaça à segurança, levaram a mais migrações, como, por exemplo, a remoção forçada de 400 mil alemães do Volga para a Ásia Central e a Sibéria em 1941 (e mais tarde as deportações em massa de tártaros da Crimeia, além de calmucos, inguches, carachaios, balkares e tchetchenos — cerca de 1 milhão ao todo — do Cáucaso).

No fim de 1941, o assassinato de judeus europeus estava em franca escalada. Antes da guerra, centenas de milhares de refugiados da Alemanha nazista, judeus em sua maioria, tinham procurado socorro em outros países (que relutavam em recebê-los). Metade tratou de sair do continente, principalmente rumo aos Estados Unidos e à Palestina, mas a guerra fechou essas vias de escape. Cerca de 5,5 milhões de judeus caíram vítimas das políticas alemãs de extermínio. As mudanças de fronteiras e as expulsões depois do fim da Segunda Guerra Mundial levaram a novos deslocamentos demográficos. Em 1950, por exemplo, um terço da população da recém-criada República Federal da Alemanha tinha nascido fora do território do novo país. Essa afluência populacional viria a ser vital para a recuperação da Alemanha Ocidental depois da guerra.

As estatísticas cruas sobre deslocamentos populacionais, como todos os dados macroeconômicos, são impessoais. Nada têm a dizer a respeito das mortes, destruições, tribulações e angústias que estão por trás delas. Mesmo assim, são importantes para ilustrar as mudanças que alteraram de muitas formas o caráter da Europa do século XX. Igualmente impessoais são os dados que mostram, com base em diferentes critérios, que os padrões de vida de fato se elevaram durante a catastrófica primeira metade do século — pelo menos para a maioria daqueles que não morreram ou tiveram a vida arruinada por combates, bombardeios, espoliação ou políticas deliberadamente criminosas. Além da expectativa de vida, aumentaram a renda per capita (mais de 25%) e o poder aquisitivo da maior parte da população; a altura média das pessoas subiu quatro centímetros (indicador de melhor alimentação e maior renda); e a alfabetização se ampliou substancialmente. Embora essas tendências dissimulem, claro, variações importantes causadas pela guerra e outras privações, foram generalizadas em todo o continente. As regiões menos desenvolvidas antes da Primeira Guerra Mundial, no sul e no leste da Europa, mostraram sinais diversos de convergência com as partes ocidentais mais avançadas do continente no período que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

Guerra e economia: As lições aprendidas

Cada uma das guerras mundiais representou uma interrupção catastrófica, ainda que relativamente breve, do desenvolvimento econômico no longo prazo. O crescimento médio em muitos países europeus foi menor ao longo da desastrosa era de 1914-45 do que antes da Primeira e depois da Segunda Guerra Mundial. Levou cerca de uma década para que os países derrotados na Primeira Guerra se recuperassem. Mas eles se recuperaram, e o crescimento, embora menor do que antes da guerra, continuou. Calcula-se que se o crescimento anterior a 1914 tivesse prosseguido sem obstáculos, o nível da produção alcançado em 1929 seria atingido em 1923 no que se refere a alimentos, em 1924 em produtos industriais e em 1927 quanto a matérias-primas. Sejam quais forem as restrições que se façam a esse tipo de extrapolação — que dizem respeito à produção mundial, e não apenas europeia —, os números indicam uma interrupção temporária no crescimento em razão das hostilidades, e não um retrocesso permanente.

A globalização a que se chegou antes de 1914 foi obstaculizada e interrompida pela guerra, depois pelo protecionismo e pelo nacionalismo econômico durante a Grande Depressão da década de 1930. A produção europeia caiu de novo durante a Segunda Guerra Mundial, e muito do que se produzia era direcionado, claro, para equipar as Forças Armadas. Dessa vez, no entanto, a recuperação foi rápida. Depois da Segunda Guerra, o crescimento se acelerou muito mais do que logo após a Primeira, e teve consequências mais duradouras. Algumas lições haviam sido aprendidas. Houve uma disposição no sentido de adotar a cooperação internacional, que tanta falta fez no entreguerras, mas agora era aceita como essencial para a recuperação. Para restabelecer a estabilidade e regular a economia, adotou-se um novo patamar de intervenção do Estado. O fator decisivo foi o completo domínio econômico dos Estados Unidos e sua essencial exportação de ideias, tecnologia e capital. A base para o crescimento econômico sem precedentes das décadas seguintes fora lançada, no entanto, na própria Europa, e nos anos mais sombrios para o continente. Em termos estritamente econômicos, a guerra, ainda que considerando a escala dos conflitos de 1914-8 e 1939-45, não teve um balanço de perdas exclusivamente negativo. As consequências positivas também tiveram importância permanente.

As condições de guerra constituíram um estímulo destacado ao crescimento econômico e ao progresso tecnológico. Mesmo os Estados democráticos, para não falar das ditaduras, foram obrigados a intervir com vigor na economia de modo a dirigir a produção, imensamente aumentada, para o esforço de guerra. Para isso foi necessário investimento estatal na construção civil, maquinaria industrial e qualificação de mão de obra, pois o conflito criava novas demandas (que em muitos casos se perpetuaram), como de alumínio, para a produção de aeronaves durante a Segunda Guerra Mundial. A produção em massa de armamentos exigiu, já na Primeira Guerra, mecanização intensiva e métodos mais eficazes de organização e administração de fábricas.

A agricultura beneficiou-se da mecanização para maximizar a produção num tempo em que faltavam braços à lavoura. Cerca de 3 mil novos tratores foram entregues a agricultores britânicos durante o primeiro ano da Segunda Guerra, e a produção de todo tipo de máquinas agrícolas aumentou. Na Alemanha, país em que a frenética demanda de tanques, armas e aviões deixava pouca capacidade produtiva para dedicar a tratores, os agricultores geralmente precisavam se arranjar com o esforço de membros da família e com trabalhos forçados de estrangeiros e prisioneiros de guerra. Como em outras partes do continente onde a modernização da produção agrícola fez pouco progresso durante a guerra, a mecanização da agricultura e a intensificação da produção tiveram de esperar a época da reconstrução do pós-guerra — já que não havia como reverter o inexorável declínio da mão de obra agrária ocorrido durante o conflito.

As inovações tecnológicas e científicas foram enormes durante as duas guerras, em especial na segunda, e com efeitos permanentes. Não que a guerra tenha dado espaço a descobertas inteiramente novas. Mesmo nos casos em que um progresso importante acontecera em tempos de paz, a urgência da produção em época de guerra muitas vezes levou a avanços rápidos. A tecnologia aeronáutica tinha se aperfeiçoado rapidamente durante a Primeira Guerra, já que a guerra aérea passou a ser vista como decisiva em qualquer conflito futuro, e as inovações alimentaram a expansão da aviação comercial nas décadas de 1920 e 1930. O motor a jato, inventado e desenvolvido de forma simultânea, na década de 1930, por Frank Whittle, engenheiro da Real Força Aérea Britânica, e pelo engenheiro alemão Hans von Ohain, passou a ser produzido em massa na Alemanha a partir de 1944 para o caça Me262 e revolucionou a aviação civil depois da Segunda Guerra Mundial. Mais tarde, a exploração espacial seria erigida com base na tecnologia de foguetes que Wernher von Braun e outros cientistas alemães desenvolveram para lançar o míssil V2.

A capacidade de Braun, membro do Partido Nazista e oficial honorário da ss, foi prontamente reconhecida pelos americanos e, levado a um novo ambiente nos Estados Unidos, ele desempenharia importante papel no programa espacial do país. A fissão nuclear, desenvolvida às vésperas da guerra, levou ao programa americano que produziu a bomba atômica e abriu caminho, depois da guerra, para o uso pacífico da energia nuclear. Muitas outras inovações dos tempos de guerra ou os rápidos progressos em tecnologias preexistentes — como a radiodifusão, o radar, materiais sintéticos e computadores eletrônicos — teriam forte impacto na era pós-guerra. Esses avanços, muitos baseados em descobertas pioneiras do pré-guerra, teriam sido conquistados de qualquer modo, mas, provavelmente, com maior lentidão sem a guerra.

A Segunda Guerra Mundial foi, muito mais do que a Primeira, uma “guerra total”, e não só para sociedades governadas por ditaduras. Com o conflito anterior, os estadistas aprenderam importantes lições sobre como conduzir uma economia de guerra. Foram muito mais eficientes do que seus antecessores, por exemplo, no controle da inflação, que nunca chegou a ganhar um impulso destrutivo como aconteceu em alguns dos países participantes da Primeira Guerra. Na Inglaterra, os impostos aumentaram muito mais do que no conflito anterior, reduzindo a necessidade de empréstimos de curto prazo e permitindo que o governo continuasse a tomar empréstimos de longo prazo com taxas de juros relativamente baixas. Na Alemanha, onde o medo paranoico de um novo mergulho na hiperinflação sempre esteve bastante presente, os impostos puderam ser mantidos num patamar bem mais baixo do que na Inglaterra, pois os custos elevados da guerra eram pagos em boa medida pelos territórios ocupados.

Alemanha e Inglaterra também estavam em extremos opostos do espectro quanto ao controle estatal do abastecimento de alimentos. Na Alemanha, a força incontrolável do descontentamento durante a Primeira Guerra Mundial, que crescia à medida que o padrão de vida despencava e a escassez de alimentos se tornava crítica, estava bem gravada na consciência política dos dirigentes nazistas. Explorando de forma implacável os recursos alimentícios e de outra natureza do continente, eles evitaram que o fenômeno se repetisse durante a Segunda Guerra. Os primeiros cortes importantes nas rações, depois da crise do inverno de 1941-2, foram altamente impopulares, mas não ocorreram reduções drásticas até a fase final da guerra. Países ocupados em grande parte da Europa pagaram o preço, com uma grave e cada vez maior escassez de alimentos que chegou à fome na Ucrânia e na Grécia, e muito perto disso no “inverno da fome” de 1944-5 na Holanda. Embora os preços dos alimentos fossem oficialmente controlados e a distribuição racionada, o mercado negro prosperava em toda parte. Na Inglaterra, os subsídios estatais e o rigoroso racionamento garantiram que os preços dos alimentos subissem mais devagar que os rendimentos da atividade agrícola. O racionamento de todos os gêneros alimentícios, exceto a batata e o pão, causou reclamações inevitáveis, embora tenha sido bem-aceito pela população e ajudado a manter a harmonia social. Na verdade melhorou a saúde de muita gente, embora à custa da monotonia alimentar.

Durante a Segunda Guerra Mundial, figuras proeminentes do mundo dos negócios e da indústria foram chamadas a ajudar a traçar a política do governo ainda mais que na Primeira. Os industriais estavam preocupados não apenas com a produção de guerra, mas também com o planejamento do mundo no pós-guerra. Até na Alemanha, onde o regime nazista apertava o controle sobre a economia (e sobre tudo o mais) e as bombas dos Aliados causavam uma destruição cada vez maior, os industriais casaram sua intensa colaboração com a guerra com planos secretos de reconstrução. Temerosos de ser arrastados, nos últimos meses da guerra, para a inútil autoimolação do regime nazista em seus estertores de morte, eles trabalharam junto do ministro de Armamentos e Produção do Reich, Albert Speer, para impedir a destruição insensata das instalações industriais determinada pela política de “terra arrasada” imposta por Hitler em março de 1945. Na verdade, a destruição da indústria alemã nem sequer chegou perto do nível geral de devastação causado pela guerra, e os industriais puderam continuar — em benefício próprio — seu envolvimento profundo em medidas de estímulo à recuperação. O mesmo ocorreu em outras grandes economias. A guerra tinha mobilizado uma enorme capacidade produtiva, que em muitos casos foi bastante danificada mas não destruída e, com o fim do conflito, recursos vultosos de mão de obra ficaram disponíveis para a reconstrução pacífica em lugar da produção de armamentos. O potencial de retomada permanecia latente entre as ruínas.

A recuperação, assim como a mobilização econômica para a guerra, precisava do Estado. A destruição absoluta na Europa impossibilitava que o Estado se retirasse da administração da economia. A ideia de que as forças do mercado bastariam para recuperar as economias fora refutada pelo nacionalismo econômico do período entreguerras. Só o Estado, e nisso os planejadores franceses e britânicos estavam de acordo, seria capaz de levantar o investimento necessário para os projetos de infraestrutura que reconstruiriam a economia. Os governantes americanos, embora favoráveis ao mercado, não tinham como se opor a essa conjuntura, e um rígido controle do Estado já estava estabelecido havia muito na União Soviética. Grandes programas habitacionais precisavam ser organizados. A escassez de alimentos também exigia controle e distribuição estatais; na Inglaterra, o racionamento continuou até quando já ia bem avançada a década de 1950.

Nos primeiros anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a economia da Europa caracterizou-se por um patamar de investimento e controle estatais jamais imaginado nas décadas de 1920 e 1930. Sob influência americana, no entanto, a Alemanha Ocidental não seguiu o modelo de dirigismo adotado na Inglaterra e na França (embora na Alemanha Oriental, sob controle soviético, o caminho tenha sido completamente diferente, claro). A experiência de rígido controle do Estado durante os doze anos de nazismo estimulou a eliminação das restrições ao livre mercado, a redução drástica da burocracia e a abolição dos cartéis industriais. Em muitos países, no entanto, a intervenção estatal inicial e o dirigismo em pouco tempo começariam a se reduzir, depois que a recuperação já estava em andamento.

O impacto social da guerra total

Ao fim da Segunda Guerra Mundial, as expectativas de que os governos deveriam fazer mais para melhorar as condições de vida da sociedade também induziu à intervenção estatal. Naturalmente, essas expectativas tinham sido criadas durante a Primeira Guerra Mundial, embora a maior parte tenha, lamentavelmente, se frustrado. Numa área essencial, no entanto, houve progressos notáveis. Sob pressão dos partidos trabalhistas, a maior parte dos países economicamente avançados da Europa ampliou, no período de entreguerras, os limitados benefícios sociais que alguns deles, em especial a Alemanha e a Inglaterra, já vinham adotando antes de 1914. Havia grandes diferenças nacionais entre os benefícios e a cobertura, já que os próprios sistemas nada tinham de uniformes, mas existia uma tendência comum. Depois de uma segunda grande guerra, não havia como retroceder na construção de um Estado de bem-estar social pleno. As expectativas eram ainda maiores, e os governos não tinham alternativa. Políticos de todas as tendências, liberais e conservadores, assim como os líderes dos movimentos de trabalhadores, pressionavam, embora com programas diversos, em favor de uma rede de assistência social mais ampla. Mesmo sob as regras estritas dos regimes fascistas, a mobilização das massas aumentou as expectativas de um futuro melhor, nele incluído o Estado de bem-estar social. As promessas de melhora no nível de vida, novas moradias, seguro social abrangente, amplas áreas de lazer e um carro para cada família — o “carro do povo”, ou Volkswagen — faziam parte do apelo nazista, e em grande parte o mesmo ocorria com o fascismo na Itália de Mussolini.

A maior parte dessas promessas não foi cumprida antes do mergulho na catastrófica guerra. Mas as expectativas de que o Estado proporcionaria o contexto para a prosperidade material e a ampliação no bem-estar social sobreviveu ao fascismo e foram absorvidas pelos governos no pós-guerra. Na Inglaterra, havia um sentimento universal de que os sacrifícios feitos pelo povo na “guerra total” precisavam ser recompensados pelo Estado, garantindo que o pleno emprego trazido pelo conflito fosse mantido, o bem-estar social e o serviço de saúde fossem estendidos a todos e a pobreza e as privações da década de 1930 nunca mais se repetissem. Em 1944, o governo britânico comprometeu-se com um programa de pleno emprego, necessário para o êxito das medidas de seguridade social propostas dois anos antes por William Beveridge. As políticas sociais obviamente ocupariam um lugar prioritário na agenda do governo no pós-guerra.

No entanto, convém não exagerar a amplitude das mudanças sociais na Europa durante a primeira metade do século XX. A situação das mulheres na sociedade ilustra bem a questão. Antes da Primeira Guerra, os movimentos feministas tinham sido relativamente fortes, em especial quanto à reivindicação do sufrágio feminino, na Escandinávia e na Inglaterra (onde as campanhas das sufragistas contribuíram muito para trazer a público a questão). Mas os movimentos pelos direitos das mulheres eram bem mais fracos na Europa católica, principalmente no leste e no sul do continente, onde as formas liberais de governo constitucional eram pouco desenvolvidas. Na Europa Central germanófona, os movimentos feministas conquistaram apoio sobretudo entre mulheres de classe média. Seu progresso foi restrito por terem ficado espremidos entre o domínio masculino do conservadorismo reacionário e o do socialismo (que via a questão da emancipação das mulheres como um ramo subordinado na luta mais geral pela transformação econômica e social).

A Primeira Guerra promovera um avanço, pelo menos quanto à questão do voto feminino, em muitos países. O reconhecimento da contribuição vital das mulheres para o esforço de guerra levou a uma mudança de atitude em relação ao sufrágio feminino, e depois da guerra elas adquiriram o direito ao voto na maior parte dos países europeus. A França, porém, só concedeu o voto às mulheres em 1944; a Itália, a Romênia e a Iugoslávia, em 1946; e a Bélgica, em 1948. A Grécia demorou ainda mais, só adotando o voto feminino em 1952, depois da guerra civil. Na Suíça neutra, as mulheres acederam ao voto no âmbito federal só em 1971 (nos cantões, em momentos diversos a partir de 1958), e em Liechtenstein, só em 1984.

Além desse direito, a situação das mulheres em casa e no trabalho pouco mudou. A sociedade ainda era totalmente dominada pelos homens. Na Inglaterra, de acordo com o Relatório Beveridge, a mulher dependia do marido para as contribuições e os benefícios sociais, enquanto a constituição francesa de 1946 ainda enfatizava o papel de mãe. As mulheres continuavam muito discriminadas no mercado de trabalho, sobretudo as casadas, que continuavam a ser vistas, sobretudo, como donas de casa e reprodutoras. Os degraus mais altos das profissões liberais continuavam vedados a elas. A maior parte dos empregos ainda estava nas áreas vistas como “trabalho de mulher” — enfermagem, assistência social, magistério, secretariado, atendimento em lojas.

Na educação, as mulheres também continuavam em grande desvantagem. Inegavelmente, houve na Europa entre 1900 e 1940 uma tendência de alta no número de mulheres em universidades. Isso se deu no contexto da mais que duplicação do número (ainda reduzido) de estudantes universitários no período. Mas elas ainda representavam a menor parte nesse crescimento. Antes da Segunda Guerra Mundial, a proporção de mulheres nas universidades da Europa Ocidental era de menos de um quinto — cerca de um terço na Finlândia, mais de um quarto na França, Inglaterra e Irlanda, mas apenas entre 7% e 8% na Espanha e na Grécia. Com tantos homens convocados para os serviços militares durante a Segunda Guerra, o número de mulheres nas universidades aumentou. Mas as grandes mudanças nessa área, como na posição da mulher em geral, só ocorreriam décadas depois.

As possibilidades de mobilidade social eram também muito menores do que seria de imaginar. Com certeza, a imensa destruição, a colossal ruptura na economia mundial e as turbulências políticas que se estenderam ao longo de uma era de duas guerras mundiais, entremeadas com a Grande Depressão, inevitavelmente trouxeram grandes mudanças — em especial quanto à riqueza da aristocracia rural. A expropriação de terras foi, é claro, uma das marcas da Revolução Bolchevique. Apesar da resistência dos proprietários de terras, uma substancial redistribuição ocorreu também na Polônia, Tchecoslováquia, Romênia e Bulgária. Todo o período entreguerras constituiu uma forte ruptura de antigos padrões de acumulação de capital e aumento de riqueza. No entanto, os que possuíam riquezas e posição social às vésperas da guerra de modo geral mantiveram essa condição depois de terminado o conflito, exceto nas partes da Europa Oriental sob domínio soviético.

Na Inglaterra, que não sofreu ocupação inimiga, a continuidade social e institucional foi mais visível do que na maior parte da Europa. As elites sofreram um baque em sua riqueza em virtude dos impostos mais altos, da requisição de propriedades para uso das Forças Armadas ou da perda de parte delas para pagar o imposto sobre herança. Em especial, a riqueza da aristocracia rural, dos proprietários de terras e de outros detentores privados de grandes capitais foi muitas vezes reduzida de forma drástica. E, como eles frequentemente lamentavam, estava difícil encontrar empregados domésticos, pois as mulheres jovens já não se contentavam com a monotonia do serviço nas casas dos mais ricos. O modo de vida da nobreza dos anos do pré-guerra praticamente desapareceu. Mas houve pouca perda de status. Na Inglaterra e no País de Gales, em 1946-7, apenas 1% da população adulta ainda concentrava em suas mãos a metade de todos os bens de capital.

Na França houve algumas mudanças nas elites políticas e econômicas. Homens — e, apenas excepcionalmente, mulheres — que ganharam prestígio por sua atuação na Resistência substituíram muitos desacreditados governantes da Terceira República e colaboradores de Vichy. Nas municipalidades, porém, depois que os piores colaboracionistas foram expurgados, houve bastante continuidade. Também na Itália, quando acabaram os expurgos de fascistas notórios no pós-guerra imediato e os comunistas foram obrigados a sair do novo governo, a classe política não se alterou radicalmente. Na economia, assim que a poeira começou a assentar, as famílias italianas que controlavam os negócios e as proprietárias dos grandes latifúndios no sul eram em grande medida as mesmas de antes da guerra. Por outro lado, como na França e em outros países, uma nova classe, mais tecnocrática e empreendedora, começou a ganhar terreno na indústria italiana, enquanto em grandes empresas, como a Pirelli e a Fiat, poderosos sindicatos asseguravam um novo clima nos ambientes de trabalho. É fácil subestimar também a amplitude das mudanças que ocorreram na burocracia estatal e no sistema judiciário, no governo central e nos provinciais, depois da queda do fascismo — principalmente onde o controle das cidades ficou nas mãos da esquerda, como em grande parte do norte.

Na Alemanha, membros da classe mais rica tiveram importante papel no complô que pretendeu matar Hitler em julho de 1944. No entanto, essa mesma classe também participou de terríveis atrocidades. Era proporcionalmente numerosa na liderança do Exército e nos cargos mais altos da ss. Muitos empresários estiveram intimamente envolvidos na expropriação de bens imóveis, na exploração implacável de países ocupados, no trabalho escravo e na economia do genocídio. Alguns dos casos mais graves acabaram punidos nos julgamentos dos Aliados no pós-guerra. Mas a continuidade das elites na Alemanha Ocidental foi acentuada, mesmo depois da devastação de 1945, exceto onde tinham perdido suas terras para a guerra e para a ocupação, como aconteceu nas províncias do leste.

Em termos gerais, durante a primeira metade do século XX, as elites políticas e econômicas tendiam a se perpetuar. As mudanças mais importantes viriam na segunda metade do século. A ascensão social continuava rara. Uma exceção entre as principais potências em guerra foi a Alemanha, onde o Partido Nazista, com suas muitas organizações, facilitou alguma mobilidade entre classes. Coisa parecida pôde ser vista na Itália fascista. Mas é fácil exagerar o alcance do fenômeno. As mudanças mais profundas viriam depois. Nem mesmo a afirmação segundo a qual as bombas não conhecem diferenças sociais e caem da mesma forma sobre ricos e pobres é verdadeira. Os setores mais pobres da população, amontoados em casas e cortiços nas cidades industriais, estavam muito mais expostos ao que os bombardeios tinham de pior. Os bairros residenciais de classe média e as mansões das propriedades rurais tinham chances muito maiores de escapar ilesos.

O que mais tarde se convencionou chamar de “ciclo de privação” persistia na maior parte da Europa. Os soldados que voltavam para casa depois da Segunda Guerra em geral retomavam a ocupação que tinham antes de ser mobilizados. Em geral, continuavam pertencendo à mesma classe social, assim como ao ambiente que tinha dado forma à sua vida. O fluxo continuado do campo para as cidades teve como resultado uma classe de trabalhadores industrial maior, normalmente acomodada em moradias de má qualidade perto dos centros urbanos, com poucas oportunidades de ascender para a classe média ou para categorias profissionais superiores. Mas havia possibilidade de uma pequena ascensão social para a categoria dos funcionários de escritório, setor que estava em expansão em toda a Europa, embora em ritmos diferentes. As oportunidades de educação ainda eram mínimas para os nascidos sem privilégios sociais. Nas áreas rurais, a queda populacional, a presença cada vez menor de jovens nos vilarejos e a redução da mão de obra agrícola eram indicadores de uma mudança permanente, intensificada pela economia de guerra. Nas lavouras das partes mais remotas da Europa, fisicamente intocadas pela guerra, onde a mecanização e os transportes modernos quase não chegavam, a rotina diária continuava a mesma de cinquenta anos antes. Isso valia também para a vida diária do operário de fábrica — menos massacrante do que era antes da Primeira Guerra Mundial, com certeza, e com menos horas de trabalho, mas ainda reconhecível por uma geração anterior de trabalhadores.

Nas áreas mais devastadas da Europa pela Segunda Guerra Mundial — que se estendem da Alemanha às regiões ocidentais da União Soviética, passando pelo leste e sul do continente — havia pouca ou nenhuma normalidade do pré-guerra à qual voltar. Grande parte da Ucrânia, Bielorrússia e Polônia estava destruída, tanto pelos combates como pelo genocídio — mais do que em qualquer outra parte da Europa — e pela política de “terra arrasada” praticada pelos alemães na retirada. Na própria Alemanha, onde a recusa à capitulação acarretou uma colossal destruição do país à medida que a derrota se aproximava, dois terços da população tinham sido desalojados de uma forma ou de outra quando a guerra chegou ao fim. Milhões de soldados foram capturados (muitos, quase 3 milhões, que tinham se rendido aos Aliados ocidentais começaram a ser libertados aos poucos em 1948, mas as últimas levas dos outros 3 milhões só saíram da União Soviética em 1955). A população civil, inflada pela massa de refugiados que chegava das províncias orientais, amontoava-se em acomodações superlotadas — 50% das moradias nas grandes cidades foram destruídas — e, assustada pela derrota total, enfrentava um futuro de incertezas. Mesmo assim, sentia-se afortunada quando conseguia encontrar sua parte do país ocupada pelos Aliados ocidentais, e não pelos temidos e odiados soviéticos. O que importava não era apenas a imensa perda de vidas e a devastação da economia, mas o caráter do poder político, acima de qualquer outra coisa. O contexto da vida na Alemanha dividida no pós-guerra imediato seria determinado em grande medida pelos interesses dos ocupantes — no oeste, americanos, britânicos e franceses; no leste, soviéticos.

Para a população soviética, o sentimento de triunfo pela grande vitória e, sem dúvida, de alívio por ter sobrevivido era uma das faces da moeda. A outra era o luto por milhões de entes queridos perdidos ou a tentativa de reconstruir a vida quando suas cidades e seus vilarejos tinham sido obliterados pelo inimigo. O fim da guerra trouxe, com poucas mudanças, a continuidade do sistema stalinista, agora fortalecido e legitimado pelas glórias bélicas. Continuavam as expropriações, as pesadas requisições de produtos ou cotas de produtividade, a exposição à arbitrariedade do estado policialesco, o tratamento desumano dispensado a milhões de prisioneiros de guerra e aos considerados “não confiáveis”, e a mobilização de recrutas para a reconstrução de estradas e ferrovias. Esse sistema agora estava imposto à maior parte do Leste Europeu, onde ficavam as regiões mais pobres do continente mesmo antes da Primeira Guerra Mundial. Agora, para coroar o imenso sofrimento e a devastação impostos pela Segunda, esses países seriam alijados do impulso econômico que em breve instilaria nova vida à Europa Ocidental.

Perspectivas de recuperação econômica

Na economia internacional, a Segunda Guerra Mundial veio acentuar a tendência que já vinha se firmando após a Primeira: o declínio, em termos proporcionais, da participação da Europa na produção e no comércio mundial. Também foi selada a subordinação definitiva da Inglaterra aos Estados Unidos como a potência econômica dominante, um desdobramento já antecipado pela Primeira Guerra Mundial e agora totalmente confirmado pelas demandas de financiamento de guerra na Segunda. À medida que a dívida britânica aumentava para fazer frente ao esforço de guerra, a dependência econômica em relação aos Estados Unidos, que emergiram do conflito como um gigante industrial, tornou-se esmagadora. No fim da guerra, do ponto de vista financeiro, a Inglaterra estava de joelhos, e os Estados Unidos em plena explosão econômica — os vencedores incontestes da Segunda Guerra Mundial. A produção industrial americana foi maior durante a guerra do que em qualquer período anterior de sua história. Vinha aumentando a um ritmo de 15% ao ano (comparados aos 7% durante a Primeira Guerra), e a capacidade produtiva da economia aumentou 50%, segundo estimativas. Em 1944, nada menos de 40% dos armamentos do mundo estavam sendo produzidos nos Estados Unidos. Enquanto as exportações britânicas minguavam, as americanas disparavam: dois terços a mais em 1944 em relação a 1939.

A pujança de sua economia permitiu que os Estados Unidos fossem bem longe no financiamento do esforço de guerra dos Aliados, dentro do esquema Lend-Lease [empréstimos e arrendamentos], uma ideia brilhante do presidente Roosevelt que o Congresso aprovou no primeiro semestre de 1941. Com isso, os Estados Unidos puderam conceder “empréstimos” de equipamentos sem exigir pagamento a seus Aliados altamente endividados e no limite de sua capacidade. No fim da guerra, o valor total das exportações do Lend-Lease chegava a mais de 32 bilhões de dólares, dos quais 14 bilhões tinham ido para a Inglaterra e preciosos 9 bilhões para a União Soviética (na forma de alimentos, máquinas e ferramentas, caminhões, tanques, aviões, trilhos e locomotivas). Os Estados Unidos foram os tesoureiros da guerra. Em breve, se tornariam os tesoureiros da paz.

Antes do fim da guerra, a supremacia econômica deu ao país uma posição determinante para decidir os arranjos institucionais da economia no pós-guerra para a metade da Europa que não entrou para a esfera soviética a partir de 1945, embora o impacto total de suas decisões só fosse sentido décadas depois. Em julho de 1944, um mês depois que as tropas Aliadas desembarcaram na Normandia, mais de setecentos delegados dos 44 países que constituíam as Nações Unidas reuniram-se para uma conferência num hotel americano em Bretton Woods, no estado de New Hampshire (com algum desconforto, pois o hotel era pequeno e estava em condições precárias). Ali tentaram traçar os princípios de uma ordem econômica global para o mundo do pós-guerra, capaz de superar de forma permanente os desastres que deram origem ao nacionalismo econômico, à Grande Depressão e ao triunfo do fascismo na década de 1930. As delegações mais importantes eram a da Inglaterra e a dos Estados Unidos. Mas não havia dúvida sobre quem dava as cartas agora. Algumas das ideias básicas por trás do acordo a que se chegou nessa conferência foram expostas pelo líder da delegação britânica, John Maynard Keynes, que entendera os perigos da ortodoxia econômica predominante na época da Depressão e cujas teorias anticíclicas sobre a intervenção do Estado e dos gastos deficitários para conter o desemprego em massa ganharam muito prestígio durante a guerra. Mas, nos pontos em que britânicos e americanos divergiam, prevaleceram os interesses dos Estados Unidos, expressos pelo chefe da sua delegação, Harry Dexter White.

A Conferência de Bretton Woods instituiu uma nova ordem monetária (inspirada basicamente em Keynes) de livre conversibilidade de moedas, com taxas de câmbio atreladas ao dólar americano em lugar do já desacreditado padrão-ouro. (O primeiro grande teste de “conversibilidade”, no entanto, falhou redondamente no verão de 1947, quando a Inglaterra foi obrigada a revogar a conversibilidade da libra esterlina em meio a uma grave crise financeira e forte demanda de dólares, o que reduziu de forma severa as reservas em dólar.) Duas propostas de White tomariam forma como importantes instituições do pós-guerra: um Fundo de Estabilização Internacional (que mais tarde se transformaria no Fundo Monetário Internacional), com o propósito de corrigir problemas orçamentários de cada país e ao mesmo tempo manter a estabilidade do sistema; e um Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (mais tarde Banco Mundial), que forneceria o capital necessário para a reconstrução do pós-guerra, embora seu fundo inicial fosse pequeno em relação à demanda. Os participantes da conferência reconheceram também a necessidade de uma nova instituição que fixasse as normas do comércio global. Contudo, esse órgão nunca se materializou, e as relações comerciais internacionais acabaram reguladas pelo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (gatt), firmado de início por 23 nações em 1947.

Quaisquer que fossem os insuperáveis obstáculos políticos que pudessem impedir o sucesso imediato de Bretton Woods, a conferência deixou clara a determinação de não permitir a volta dos desastres ocorridos no entreguerras. Foi um indicador do consenso sobre a necessidade de reforma das bases da economia capitalista para evitar uma repetição do colapso do comércio e das finanças internacionais, responsável pela catástrofe. O dólar americano, isso ficou claro, devia assumir o lugar anteriormente ocupado pela debilitada libra esterlina como moeda central das finanças internacionais. Os americanos ficaram felicíssimos com isso, assim como com a liberalização do comércio. Os europeus também aceitaram essa premissa da ordem econômica do pós-guerra, mas com uma diferença de ênfase. Para britânicos e franceses, a intervenção do Estado numa escala impensável antes da guerra se tornara essencial não somente para a reconstrução, mas também para combater a imprevisibilidade das economias capitalistas sem freios e evitar o retorno do desemprego em massa. O acordo resultante — não aplicável ao bloco soviético, claro — foi uma mistura de economia de livre-comércio com direção estatal. O capitalismo foi reformado em alguma proporção em toda parte, embora não tenha sido transformado radicalmente nem fundamentalmente contestado — a não ser pelo número cada vez menor de filiados aos partidos comunistas (que lutavam para manter sua base de apoio à medida que a Guerra Fria se delineava). Embora fosse de difícil previsão em meio à devastação de 1945, a mistura de liberalismo econômico e social-democracia — que os alemães chamaram de “economia social de mercado” (soziale Marktwirtschaft) — traria uma fantástica prosperidade e orientaria politicamente a Europa Ocidental pelos trinta anos seguintes.

Um importante pré-requisito para o sucesso desse acordo depois de 1945 não existia depois da Primeira Guerra Mundial. Os Aliados ocidentais não fizeram nenhuma tentativa de impor pesadas reparações à Alemanha Ocidental — na Alemanha Oriental a história foi outra —, como ocorrera em 1919, com consequências deletérias para a Alemanha e outras nações derrotadas. Durante um curto período, em 1944, o Plano Morgenthau, que propunha reduzir a Alemanha do pós-guerra à condição de economia pré-industrial (oferecendo uma dádiva à máquina de propaganda nazista), foi cogitado com seriedade. Embora Roosevelt e Churchill concordassem em impor restrições à futura produção industrial alemã, a inutilidade de manter 70 milhões de pessoas na pobreza permanente e desativar uma peça-chave para a recuperação econômica europeia foi prontamente reconhecida, em especial depois que se instaurou o contexto da Guerra Fria.

A Cortina de Ferro se tornaria inclusive uma vantagem indireta para a metade ocidental do continente, pois condenou a parte oriental a um destino nada invejável, uma vasta tragédia humana para os povos mantidos atrás dela. Nada é capaz de compensar as mais de quatro décadas de privação de liberdade. Mas a perda para a mão de ferro da opressão soviética de partes da Europa já arruinadas desde o fim da Primeira Guerra Mundial por conflitos étnicos, violência nacionalista e disputas fronteiriças beneficiou as partes mais ricas da Europa Ocidental. Esses países, ao contrário dos que integraram o bloco soviético em formação, puderam tirar partido do apoio americano na reconstrução de suas economias destruídas.

Os europeus pareciam determinados a destruir suas próprias bases econômicas entre 1914 e 1945. Diante das ruínas de 1945, teria sido impossível imaginar que, em surpreendente contraste, os trinta anos seguintes trariam uma prosperidade duradoura e sem precedentes para a parte ocidental do continente. Essa prosperidade contínua transformaria os padrões de vida na Europa Ocidental. Entretanto, mesmo nas condições muito diferentes da Europa Oriental, o padrão de vida melhoraria e, para a maioria da população, iria muito além do que nos conturbados anos do entreguerras. As nações europeias teriam sido incapazes de fazer por si sós essas transformações. As duas metades separadas do continente se tornaram dependentes das novas superpotências, os Estados Unidos e a União Soviética, para a reconstrução, por caminhos diametralmente opostos, da economia de cada uma. Na economia e na política, as duas metades da Europa empreenderam caminhos separados depois de 1945.

IGREJAS CRISTÃS: DESAFIO E CONTINUIDADE

O modo como as pessoas organizavam a vida, além da tarefa elementar de garantir o sustento, ainda era influenciado sobretudo pela moral e pelos valores das Igrejas cristãs. A Europa da primeira metade do século XX ainda era um continente cristão, situado a oeste da União Soviética, oficialmente ateia, e a noroeste da Turquia (estado laico com população muçulmana). As Igrejas ainda exerciam enorme poder social e ideológico, principalmente entre os camponeses e as classes médias. E valiam-se disso, já que em toda parte as Igrejas cristãs foram arrastadas para as convulsões políticas que sacudiram a Europa depois da Primeira Guerra Mundial.

Como é notório, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche anunciara, já em 1882, que “Deus está morto”. Foi um obituário prematuro. Durante a primeira metade do século XX, as Igrejas cristãs certamente se viram na defensiva contra as ameaças apresentadas pela sociedade moderna, sobretudo pelo “bolchevismo ateu”. Como as pessoas recorriam ao Estado, aos movimentos políticos ou a outras instituições públicas para atender a suas necessidades, de fato as Igrejas, aos olhos de um número cada vez maior de pessoas, não tinham mais nada a oferecer. “O nacionalismo é a nova religião. As pessoas não vão à igreja. Vão a reuniões nacionalistas”, afirma o conde Chojnicki, um dos personagens de A marcha Radetzky (1932), do austríaco Joseph Roth, que nele expõe sua visão sombria da modernidade. O “desencanto com o mundo” de Max Weber refere-se à perda da atração outrora exercida pela crença mística em rituais sagrados, salvação, redenção e felicidade eterna após a morte. E, com a guerra e o genocídio devastando a Europa, a negação nietzscheana da racionalidade e da verdade e seu ataque à moral radicada em crenças religiosas pareciam tudo menos ideias equivocadas. As Igrejas não saíram incólumes dessa época. Contudo, nem a perda das crenças nem a queda no número de seguidores das principais denominações cristãs devem ser exageradas. Depois de duas guerras mundiais, sua influência permaneceu profunda. Apesar de todos os percalços, as Igrejas cristãs sobreviveram à catastrófica primeira metade do século XX praticamente intactas. Os maiores problemas viriam depois.

O começo da Primeira Guerra Mundial deu um novo impulso ao cristianismo. Quando a guerra eclodiu, era como se Deus estivesse ao lado de todos e de cada um. De fato, as Igrejas cristãs de todas as potências envolvidas pediam o apoio de Deus para sua causa. “Deus esteja conosco” (Gott mit uns), diziam os alemães. “Deus está do nosso lado” (Dieu est de notre côté), garantiam os franceses ao declarar a “união sagrada” (union sacrée) para a defesa do país. Outros países tampouco perderam tempo em misturar patriotismo e cristianismo. O clero não tardou a ver o conflito como uma cruzada nacional, uma “guerra santa” da civilização contra a barbárie, do bem contra o mal. Havia alguns pacifistas, claro, porém no mais das vezes o clero apoiava em peso a guerra de seu país. Benzia os soldados que iam para o campo de batalha e as armas com que lutavam. Rezava pelo êxito das ofensivas iminentes. Em toda parte, o nacionalismo engoliu os princípios básicos do cristianismo. Para homens supostamente de paz, a beligerância do clero parecia clamorosa. Num sermão do Advento em 1915, o arcebispo anglicano de Londres, Arthur Winnington-Ingram, exortou os soldados britânicos a “matar o bom assim como o mau, matar os jovens assim como os velhos” — embora o primeiro-ministro Herbert Asquith considerasse aquilo o delírio de um bispo extraordinariamente burro. Pelo menos um líder religioso proclamou sua neutralidade com coerência e exortou as nações a uma paz justa. Em 1917, o papa Bento xv (eleito em setembro de 1914) propôs um plano de paz que defendia a arbitragem internacional, a evacuação dos territórios ocupados, a renúncia às indenizações de guerra e a redução dos armamentos. Como recompensa, foi acusado de ser secretamente um guerrilheiro, um hipócrita que não admitia suas preferências. Foi chamado pelos franceses de “papa boche” e pelos alemães de “papa francês”.

Para o clero, a guerra trouxe a perspectiva de uma revivescência do cristianismo, evidenciada pelo que os observadores rotularam de “volta aos altares”. Na Inglaterra não ficou claro se houve algo além de um efêmero crescimento na frequência à igreja, que na verdade foi mais baixa em 1916 do que em qualquer outro período antes da guerra (o fato de tantos homens estarem servindo no estrangeiro colaborava para isso). No entanto, a crença na eficácia do espiritualismo — que supostamente permite aos vivos comungarem com os mortos — aumentou de forma proporcional ao número de famílias enlutadas. Numa época de grandes preocupações, não surpreende que as pessoas se voltassem para a oração. Os soldados quase sempre rezavam antes das batalhas, e os que sobreviviam agradeciam pelo fato de terem saído incólumes. A religião se misturava com a superstição. Muitos levavam consigo símbolos religiosos à frente de batalha. Uma cruz, um terço ou uma Bíblia de bolso serviam como talismã. Se o pior acontecesse, capelães de campo estavam por perto para lembrar os camaradas do soldado morto do simbolismo da morte como sacrifício, reforçado pelo grande número de cruzes provisórias de madeira erigidas nas covas dos caídos.

Também deve ter havido aqueles que se perguntavam como era possível haver ainda alguma fé depois de batalhas como as de Verdun e do Somme. É impossível saber quantos soldados perderam a fé cristã em meio ao massacre. Um relatório pastoral alemão atribuía “a aparente falta de sucesso dos pregadores à longa duração e à violência terrível da guerra, que levaram muitos soldados a duvidar da justiça e da onisciência de Deus e, assim, passarem a não dar importância à religião”. No entanto, a maior parte dos soldados, como suas famílias, mantiveram pelo menos formalmente sua lealdade a uma ou outra forma de cristianismo ao voltar, com o fim da guerra, a um mundo transformado. Mesmo aqueles que não frequentavam serviços religiosos costumavam procurar a Igreja para batismos, casamentos e sepultamentos. E havia pouca manifestação de sentimentos antirreligiosos militantes ou radicais (embora em algumas partes do sul da Europa, em especial, houvesse um veemente anticlericalismo). No entanto, onde os laços religiosos já estivessem enfraquecidos, o que ficava mais evidente na população urbana, eles não se fortaleceram de maneira duradoura ao longo da guerra. A tendência que prevaleceu — mais visível entre os homens que entre as mulheres — foi de distanciamento do cristianismo e da ligação com as Igrejas.

No caso do protestantismo, esse efeito foi mais acentuado que no catolicismo. Na Suíça, nos países bálticos, na Escandinávia e nos Países Baixos houve uma tendência de declínio na adesão às igrejas protestantes nas primeiras décadas do século XX, embora acompanhada de um maior fervor dentro das instituições religiosas. Na Igreja da Inglaterra, o número de comunhões na Páscoa caiu consistentemente do início da década de 1920 à de 1950. Na Alemanha, o número de pessoas que comungavam caiu 11% entre 1920 e 1930, e as crismas chegaram a cair 45% no mesmo período.

A Igreja católica mostrou-se mais hábil em controlar suas congregações. Deu continuidade à revitalização da fé iniciada em meados do século XIX e conseguiu ao mesmo tempo ampliar seu apelo popular e conservar sua rigidez doutrinária e centralização organizacional, corporificada na pessoa do papa e usada como muralha contra as ameaças do mundo moderno, principalmente a do liberalismo e a do socialismo. O culto renovado da Virgem Maria, incentivado pelo pronunciamento em que o papa Pio ix proclamou o dogma da Imaculada Conceição, em 1854, despertou a devoção popular. Esse culto foi reforçado com as supostas aparições da Virgem em Lourdes, nos Pireneus, em 1858 (lugar que antes da Primeira Guerra Mundial já atraía mais de 1 milhão de peregrinos por ano); em Knock, no oeste da Irlanda, em 1879; e em Fátima, Portugal, em 1917. A devoção a santos mais populares foi estimulada. Menos de dois anos depois do fim da Primeira Guerra Mundial, que trouxe imensos sofrimentos ao povo da França, considerou-se que o momento era adequado para a canonização de Joana d’Arc — embora ela, na verdade, tivesse sido excomungada pela Igreja (por acusações fraudadas, das quais foi posteriormente absolvida) e condenada à fogueira por heresia cinco séculos antes. A canonização pretendia estimular a fé num país cujo Estado promovia valores laicos e onde o anticlericalismo corria forte. Seguiram-se outras importantes canonizações — a da jovem carmelita francesa Teresa de Lisieux (santa Teresinha do Menino Jesus), retratada como modelo da vida espiritual católica, em 1925, e a de Bernadette Soubirous, que relatou as visões de Nossa Senhora em Lourdes, em 1933. Mais um incentivo à fé popular seguiu-se à proclamação da festa de Cristo Rei pelo papa Pio XI em 1925, pretendida como reação ao nacionalismo e ao secularismo, chamando os católicos a situar a moral cristã no centro da vida política e social.

Organizações sociais e de caridade que incorporavam católicos leigos também ajudaram a aproximar a população da igreja. A Ação Católica, fundada em meados do século XIX, tentou com certo êxito galvanizar o envolvimento de leigos na vida católica e instilar valores cristãos nos movimentos de trabalhadores e camponeses. Em algumas partes da Bretanha, os padres dirigiam jornais municipais e organizavam cooperativas agrícolas onde os camponeses podiam comprar adubos. Na Baixa Áustria e nas áreas rurais do norte da Espanha, o envolvimento ativo da Igreja em financiamentos bancários e outras formas de ajuda aos agricultores contribuiu para cimentar o apoio da população e fortalecer o poder do clero.

A Igreja católica prosperou principalmente nos lugares em que pôde combinar a fé com um forte sentimento de identidade nacional, ou onde representava uma minoria em situação de desvantagem. Tanto na Polônia como no Estado Livre Irlandês, novos Estados que nasceram da Primeira Guerra Mundial, o catolicismo se tornou na prática uma expressão da identidade nacional. Na Polônia da década de 1930, à medida que as tensões políticas e sociais aumentavam, a Igreja se associava intimamente à mobilização conservadora pela unidade nacional com um nacionalismo que enfatizava as diferenças entre os poloneses católicos e as minorias ucraniana, bielorrussa, alemã e judaica. Na Irlanda do Norte, majoritariamente protestante, os católicos fizeram da discriminação uma identidade — em relação a moradia, trabalho e praticamente todas as áreas da vida social e política — e uma subcultura à parte, ligada a aspirações nacionalistas de união com a recém-independente porção sul da Irlanda, maior e católica.

Também na Inglaterra, o preconceito de longa data motivou um forte senso de unidade e lealdade à Igreja entre os católicos, que não era menor entre os imigrantes irlandeses que tinham se mudado em grande número para o noroeste da Inglaterra depois da epidemia de fome de 1845. As fechadas comunidades irlandesas católicas enfrentavam alto grau de animosidade e discriminação por parte da maioria protestante, o que se refletia até mesmo nos esportes. O clube de futebol Glasgow Rangers não aceitava jogadores católicos, e seu vizinho e rival Celtic não admitia protestantes. Nos Países Baixos, uma subcultura minoritária também constituiu a base para o florescente catolicismo, enquanto no País Basco a Igreja identificou-se com o apoio a uma comunidade linguística discriminada. Na Alemanha, uma forte subcultura nasceu dos ataques de Bismarck à Igreja católica (que representava cerca de um terço da população do Reich) na década de 1870. As instituições e as crenças católicas vicejaram até a ascensão de Hitler ao poder. Quando isso ocorreu, da mesma forma que as igrejas protestantes alemãs, as católicas enfrentaram um desafio totalmente novo.

Tanto as igrejas protestantes, em suas diversas denominações, como a Igreja católica, mais centralizada, viam a luta contra o bolchevismo em particular e contra a esquerda em geral como essencial para a defesa do cristianismo no mundo moderno. A “modernidade” em todas as suas formas era vista como uma ameaça a ser afastada. Assim, essas duas correntes do cristianismo permaneceram axiomaticamente na direita, favorecendo os pilares conservadores do Estado e do poder social, vistos como uma muralha contra a esquerda. Inevitavelmente, portanto, as Igrejas e seus seguidores envolveram-se profundamente nos graves conflitos da Europa do entreguerras.

Isso não as tornava automaticamente antidemocráticas. O Partido do Centro Alemão esteve entre as principais forças políticas que constituíram a República de Weimar na Alemanha em 1919 e permaneceu como sustentáculo da nova democracia na década de 1920. O Partito Popolare Italiano, fundado em 1919, deu expressão política católica a seu eleitorado predominantemente rural no sistema político pluralista da Itália até ser banido por Mussolini em 1926. Na Inglaterra democrática, onde o sistema político não estava ameaçado, a Igreja Anglicana foi um dos pilares do status quo — “o Partido Conservador que reza”, como era chamada. Por outro lado, todas as demais Igrejas cristãs, que ainda tinham bastante apoio na Inglaterra, eram propensas a uma atitude mais crítica quanto ao governo, mas não quanto à democracia. Sempre que se apresentava uma ameaça significativa de esquerda, as duas correntes principais apoiavam invariavelmente a autoridade do Estado. Quanto maior se supunha a ameaça, mais extremada era a reação que se dispunham a apoiar.

Em nenhum lugar ela foi mais extremada que na Alemanha. As várias denominações protestantes — na verdade, estavam divididas doutrinária e regionalmente, mas no todo abrangiam mais de dois terços da população — estiveram intimamente alinhadas com a autoridade do Estado desde os tempos de Martinho Lutero. A revolução de 1918, a deposição do cáiser e a nova democracia que substituiu a monarquia trouxeram um desalento generalizado aos círculos das Igrejas. A “crise de fé” (Glaubenskrise) promoveu a esperança de uma restauração da monarquia ou de uma nova forma de liderança capaz de superar a crise moral, política e econômica. Para muitos membros do clero protestante, fazia-se necessário um líder verdadeiro. Nas palavras de um teólogo protestante, escritas em 1932, um “verdadeiro estadista” (em oposição aos meros “políticos” da República de Weimar), que “tenha em suas mãos a guerra e a paz, e comungue com Deus”. De acordo com esse pensamento, a ascensão de Hitler ao poder, em 1933, foi vista pelo clero protestante como o começo de um despertar nacional que inspiraria um renascimento da fé. Havia até uma ala nazificada nas igrejas protestantes. O Movimento Cristão Alemão rejeitava o Antigo Testamento, qualificado de judaico, e se orgulhava de ser constituído dos “guerreiros de Jesus Cristo”. Esses extremismos, cultivados por uma minoria do clero (embora com bastante apoio em algumas áreas), eram rejeitados, no entanto, por grande número de protestantes, cujas ideias de renascimento da fé eram conservadoras, tanto do ponto de vista doutrinário como organizacional.

De início, pareceu que o Movimento Cristão Alemão triunfaria. Prontamente, porém, organizou-se uma reação a suas demandas. O objetivo original dos nazistas de unificar as 28 igrejas regionais autônomas numa única “Igreja do Reich” suscitou enormes ressentimentos e teve de ser abandonado. Reunidos em Barmen em 1934, representantes do clero que rejeitavam com veemência a “heresia” do Movimento Cristão Alemão e a interferência política que pretendia forçar a centralização das igrejas manifestaram-se publicamente contrários a qualquer tipo de subordinação da Igreja ao Estado, no que qualificavam de “falsa doutrina”. No entanto, a Declaração de Barmen restringiu-se a questões de pureza doutrinária (sob influência do teólogo suíço Karl Barth) e se absteve de fazer oposição política. De qualquer forma, a Igreja Confessante (nome assumido pelo grupo que assinou a Declaração) representava uma minoria de pastores protestantes. Grande parte do clero continuou a apoiar o regime de Hitler. Alguns teólogos protestantes expuseram o que viam como razões doutrinárias para o antissemitismo, os ideais raciais e o governo nazista. As igrejas protestantes não fizeram nenhum protesto público contra o tratamento dispensado aos judeus, os pogroms de novembro de 1938 ou a posterior deportação para os campos de extermínio. Poucos protestantes se opuseram à política externa nacionalista e agressiva, à guerra de conquista ou à tentativa de destruir o detestado regime bolchevique da União Soviética.

A posição política da Igreja católica foi determinada em grande medida por sua rejeição ao socialismo e ao anátema de sua variante mais extrema, o comunismo. Na encíclica “Quadragesimo Anno”, de 1931, o papa Pio XI criticou as desigualdades do capitalismo e do sistema financeiro internacional, mas sua condenação do comunismo foi inequívoca: seus princípios materialistas eram incompatíveis com os ensinamentos da Igreja católica. A defesa de uma ordem social apoiada na solidariedade, não no conflito, e de relações trabalhistas baseadas na colaboração entre indústria, força de trabalho e Estado, conduziu sem dificuldade à adoção do “estado corporativo” pelo fascismo italiano e por regimes protofascistas como os de Áustria, Portugal e Espanha. A “solidariedade” no caso era imposta pelo Estado, beneficiava a indústria e era mantida por coação.

A Igreja católica italiana acertou uma trégua um tanto incômoda com Mussolini, selada no Tratado de Latrão de 1929. Em retribuição pela fundação do Estado do Vaticano — os Estados Pontifícios tinham deixado de existir quando se completou a unificação italiana, em 1870 — e pelo reconhecimento do catolicismo como a única religião oficial do país, a Igreja comprometeu-se na verdade com a passividade e a tolerância, para dizer o mínimo, em relação ao governo fascista. Silenciou sobre a violência dos brutamontes fascistas, depois festejou a conquista da Etiópia e não fez objeções à implantação de leis raciais. Aos olhos da Igreja, o fascismo italiano era um companheiro inconveniente, mas infinitamente preferível ao comunismo. Nas questões referentes à Igreja, no entanto, o papado se defendeu com vigor e eficiência, resistindo com determinação à “reivindicação total” do Estado sobre todas as esferas da sociedade. Do ponto de vista da Igreja, essa política teve êxito. Houve um renascimento discreto da atividade religiosa. Aumentou o número de padres, de casamentos na igreja e de alunos nas escolas católicas. O papa Pio XI protegia em especial a educação religiosa e a Ação Católica. E ele teve de aceitar limitações às atividades desta última, mas o Estado abandonou a tentativa de suprimi-la.

Na França, a Igreja católica encarava a Terceira República com hostilidade havia muito tempo. Afinal, o governo francês incitara ao anticlericalismo e promovera os valores seculares da sociedade moderna, em especial quebrando o monopólio da Igreja na educação. No entreguerras, a Igreja apoiou a direita reacionária (e às vezes extremista), e mais tarde acolheu calorosamente o regime de Pétain em Vichy. Na Espanha, o antissocialismo radical que fundamentou o entusiasmado apoio da Igreja a Franco na guerra civil já era antigo. Já em 1916, o jornal religioso mais lido da Espanha afirmava que “soou o alarme contra as audácias do socialismo” e “o contágio do modernismo”. A Espanha, como o jornal insistentemente proclamava, tinha sido grande quando era de fato católica, e o declínio nacional seguiu o declínio religioso. Em pouco tempo a publicação estaria convocando uma “cruzada” para tornar a Espanha católica de verdade outra vez. Compreensivelmente, com essas opiniões, a Igreja católica funcionou na península ibérica como uma trincheira contra a doutrina “ímpia” do marxismo, proporcionando os fundamentos ideológicos do regime de Franco na Espanha depois da guerra civil e da ditadura de Salazar em Portugal.

Os bispos católicos alemães, que advertiam sobre o conteúdo anticristão do movimento nazista antes de 1933, viraram a casaca poucas semanas depois que Hitler tornou-se chanceler e, para encorajar os católicos a apoiar o novo Estado, prometeram manter os direitos das instituições da Igreja. Ratificou-se uma concordata do Reich com a Santa Sé (uma das quarenta que o Vaticano assinou com vários Estados no entreguerras) apesar dos sinais de hostilidade para com as práticas, organizações e instituições católicas desde o começo do regime nazista. Desde o início, a concordata foi letra morta, compromisso de um lado só — vantajoso para a imagem do regime de Hitler enquanto se firmava, mas que nada fez na prática para proteger a Igreja católica da Alemanha.

Os ataques às instituições da Igreja começaram antes mesmo que a concordata fosse ratificada. O Partido do Centro, reduto católico, foi prontamente dissolvido. O grande movimento da juventude católica foi proibido. As publicações da Igreja foram fechadas. Padres foram perseguidos e presos. Impuseram-se restrições às procissões católicas. As chicanas eram constantes. Em mais de setenta ocasiões, entre 1933 e 1937, o Vaticano protestou em vão por violações da concordata. A esfera da educação, vital como era, tornou-se o centro dos atritos entre a Igreja e o Estado, numa batalha que acabou ganha pelo regime nazista por meio de sua mão pesada, confrontando o ressentimento generalizado e alguns protestos abertos. A posição da hierarquia católica quanto ao nazismo foi em princípio hostil. O alto clero via a essência anticristã da ideologia do regime e a reivindicação total sobre os cidadãos como totalmente incompatíveis com a fé católica. No entanto, na prática, a veemente defesa contra os ataques à Igreja foi acompanhada de uma leniência geral em outras esferas da política oficial, para evitar os riscos de uma ofensiva aberta à instituição. O regime podia ter certeza do apoio da Igreja a seu antibolchevismo e da aprovação para sua agressividade na política externa.

A Igreja católica não condenou oficialmente a perseguição cada vez maior aos judeus na Alemanha, nem mesmo depois dos pogroms de 9 e 10 de novembro de 1938. Em abril de 1933, o arcebispo de Munique-Freising, o proeminente cardeal Michael Faulhaber, explicou ao secretário de Estado do papa e antigo núncio na Alemanha, o cardeal Eugenio Pacelli (mais tarde papa Pio XII), os motivos pelos quais a hierarquia católica “não saía em defesa dos judeus. Isso não é possível no momento porque a luta contra os judeus se tornaria também uma luta contra os católicos”, afirmou. A explicação remete à essência da passividade da Igreja católica diante do destino dos judeus na Alemanha nazista.

Pio xi, é verdade, em sua encíclica de 1937 intitulada “Mit brennender Sorge” [Com ardente preocupação], condena sem reservas o racismo. Mas a encíclica — esboçada por Faulhaber e emendada por Pacelli — era menos direta que uma denúncia anterior preparada pelo Vaticano, mas não publicada. Evitava a condenação explícita do nazismo e não se referia diretamente à perseguição dos judeus. Além disso, chegou atrasada e, embora o regime nazista tenha reagido com fúria e com uma pressão cada vez maior contra o clero católico, teve pouco impacto na Alemanha. E quando o Santo Ofício redigiu uma nova declaração, em meados de 1937, com o propósito de condenar as teorias nazistas, inclusive o antissemitismo, o cardeal Faulhaber advogou contra sua publicação para não pôr em risco a Igreja católica na Alemanha.

Assim, estava aberto o caminho para a inação persistente da hierarquia católica alemã enquanto a pressão sobre a Igreja se intensificava. Durante a guerra, a deportação e o extermínio dos judeus não suscitaram nenhuma denúncia pública dos bispos católicos da Alemanha, em contraste com a corajosa posição contrária à “ação de eutanásia” tomada pelo bispo Clemens von Galen, de Münster, em 1941. Enquanto isso, soldados alemães católicos, assim como seus compatriotas protestantes, iam para a guerra com pleno apoio da Igreja, acreditando, como defendia o clero, que ao promover uma bárbara invasão da União Soviética estavam empreendendo uma cruzada contra o bolchevismo ateu e pela defesa dos valores cristãos.

Nos Estados-satélites da Alemanha, as Igrejas cristãs tiveram, no melhor dos casos, uma conduta vacilante no que diz respeito à ajuda prestada a judeus e outras vítimas da brutal política racista. Na católica Croácia, o sadismo doentio da Ustaše contra os sérvios e os romas, assim como contra os judeus, não foi alvo de condenação pública pelo Vaticano. Ante Pavelic´, o abominável chefe de Estado croata, chegou a conseguir uma audiência com o papa. Frades franciscanos estiveram envolvidos em algumas das piores atrocidades da Ustaše. Contudo, o primaz da Croácia, o arcebispo Alojzije Stepinac, mesmo tendo permanecido leal ao Estado, interveio em 34 ocasiões em favor de judeus ou sérvios, denunciou inequivocamente o racismo e apelou, com êxito, contra a prisão e deportação de cônjuges e filhos de judeus no caso de casamentos mistos.

Quase todos os bispos da Eslováquia, país cujo presidente, o monsenhor Jozef Tiso, era também padre católico, apoiaram a política oficial antijudaica, embora tenha havido corajosas exceções. É digno de nota que o Vaticano tenha preferido não destituir Tiso de sua condição clerical, provavelmente por causa da popularidade de que desfrutava em seu país, assim como dezesseis outros sacerdotes que serviam no Conselho de Estado em Bratislava. Até mesmo o monsenhor Domenico Tardini, assistente do secretário de Estado do Vaticano, parecia perplexo ao comentar, em julho de 1942: “Todos sabem que a Santa Sé não consegue domar Hitler. Mas quem entenderia que não possa controlar sequer um padre?”.

A hierarquia católica na Hungria apoiava com entusiasmo o governo do almirante Horthy e não fez objeções a sua política antijudaica até 1944. Tanto o núncio papal como o chefe da Igreja católica na Hungria só intervieram para tentar impedir a deportação de judeus batizados. No entanto, as deportações foram feitas. Com muito atraso, depois que cerca de meio milhão de judeus tinham sido enviados a Auschwitz, em 1944, os bispos ensaiaram um tímido protesto contra as deportações numa pastoral inócua. O furioso antissemitismo na Romênia, que levou à morte centenas de milhares de judeus sob o comando do marechal Ion Antonescu, contou, no melhor dos casos, com a indiferença, quando não com a aprovação, de parte da hierarquia ortodoxa. Um apelo do núncio papal em Bucareste pode ter contribuído para que o regime resistisse à pressão alemã, em 1942, para deportar mais 300 mil judeus. No entanto, dado o curso que a guerra tomava, Antonescu já vinha postergando as deportações havia meses e, à medida que a situação das forças do Eixo se complicava, sua relutância à deportação dos judeus que restavam na Romênia em 1944 tinha mais a ver com a tentativa de deixar uma porta aberta para as negociações com os Aliados.

Na Bulgária, onde os judeus eram uma pequena minoria e o antissemitismo, relativamente moderado, a hierarquia ortodoxa tomou uma posição bem diferente de sua congênere romena. A Igreja ortodoxa se opôs sem rodeios aos planos de deportação de judeus. Entretanto, a suspensão das deportações da Bulgária propriamente dita (embora as deportações nos recém-adquiridos territórios da Macedônia e da Trácia tenham sido feitas) nada teve a ver com o protesto da Igreja — pela qual o rei não tinha nenhuma simpatia. Baseou-se apenas em oportunismo, não em princípios. Simplesmente refletiu o reconhecimento por parte do governo búlgaro da estupidez que seria ordenar as deportações quando tudo indicava que a Alemanha estava perdendo a guerra.

Nos países da Europa ocupados pelos alemães, a posição das Igrejas e sua reação à perseguição dos judeus variaram muito. No Báltico e na Ucrânia, o clero em peso demonstrava os mesmos sentimentos extremamente nacionalistas, antissemitas e antissoviéticos que o resto da população, e guardou silêncio em relação aos assassinatos de judeus, quando não os apoiou diretamente. Na Polônia, padres e membros de ordens religiosas católicas ajudaram milhares de judeus, correndo grandes riscos, embora existissem também entre os religiosos expressões abertas de hostilidade, coincidentes com as da população. Nos Países Baixos, a Igreja católica e as protestantes se manifestaram a favor dos judeus em julho de 1942 e pediram que não fossem deportados. A hierarquia católica tinha recebido a anuência prévia do papado. Um telegrama enérgico de protesto contra as deportações foi enviado ao comissário do Reich, Arthur Seyss-Inquart, e lido em todas as igrejas em 26 de julho de 1942. O protesto, no entanto, de nada serviu. Como retaliação pela manifestação pública (ao contrário do apelo em privado feito pelas lideranças protestantes) e pela posição inflexível adotada pelo arcebispo de Utrecht, Joachim de Jong, em duas semanas centenas de judeus que tinham sido batizados na Igreja católica foram deportados para a morte em Auschwitz. Embora o clero da Holanda e o da vizinha Bélgica tivessem participado de redes de salvamento de judeus, não houve novas denúncias públicas das deportações.

Para o episcopado católico francês, que recebera o marechal Pétain de braços abertos como restaurador dos valores religiosos e arauto do renascimento moral, os judeus não passavam de uma irrelevância. Os bispos franceses aceitaram sem objeção a legislação antijudaica entre 1940 e 1942. Sua posição mudou com o início das deportações, em meados de 1942. Havia temores de que um protesto público pudesse provocar retaliação contra a Igreja. Alguns bispos, no entanto, manifestaram-se em alto e bom som contra as deportações em declarações públicas e cartas pastorais. O governo de Vichy manifestou preocupação, mas os protestos desapareceram tão rápido quanto tinham surgido. O governo jogou com a lealdade do episcopado a Pétain, adulando-o com isenções de impostos e outros subsídios para associações religiosas. Quando as deportações recomeçaram, no início de 1943, os protestos do ano anterior não se repetiram. Membros do clero católico e protestante, praticantes leigos e casas religiosas ajudaram a esconder centenas de judeus, muitos deles crianças (uma das quais, Saul Friedländer, tornou-se mais tarde um renomado historiador do Holocausto). Os líderes católicos, no entanto, se conformaram com uma posição fatalista, aceitando o que admitiam não poder mudar.

Enquanto isso ocorria, o papa Pio XII não fez nenhuma condenação aberta, pública e inequívoca do genocídio, uma realidade que mais tardar em 1942 estava clara para o Vaticano, ainda que talvez não em sua plena dimensão e em detalhes exatos. Os motivos do mais enigmático dos pontífices para isso talvez nunca venham a ser claramente estabelecidos, ainda que se libere o acesso aos arquivos secretos do Vaticano sobre o período. No entanto, as acusações de que ele foi “o papa de Hitler”, indiferente ao destino dos judeus, ou de que deixou de agir em função de um arraigado antissemitismo não têm cabimento. Pio XII incentivou em segredo a resistência alemã contra Hitler em 1939, passou informações aos Aliados sobre a data da ofensiva na frente ocidental do ano seguinte, providenciou alimentos para os gregos que morriam de fome e instituiu um órgão de ajuda a refugiados. Não ficou inativo em relação à perseguição dos judeus, mas sua preocupação central foi a proteção da Igreja católica. Enxergando a si mesmo, da mesma forma que Bento xv na Primeira Guerra Mundial, como pacifista e defensor do catolicismo, antes de mais nada contra o comunismo ateu, ele tentou agir por meio de uma diplomacia discreta por trás dos panos.

Pio XII tinha a firme convicção de que se falasse poderia piorar as coisas — não só para a Igreja católica e seus seguidores, pelos quais tinha responsabilidade direta, mas também para as vítimas das atrocidades. Os bispos alemães tinham se esquivado a uma confrontação direta com o regime nazista já na década de 1930, temendo piorar a situação da Igreja. Em 1940, bispos poloneses aconselharam o Vaticano a evitar denúncias públicas das atrocidades por medo de horríveis represálias. “A única razão pela qual não falamos”, disse o papa ao embaixador italiano, “é saber que tornaríamos a sina do povo polonês ainda mais difícil.” Ao que parece, essa mesma ideia era aplicada ao destino dos judeus.

No segundo semestre de 1942, a intenção genocida do regime de Hitler tinha se tornado inequívoca. Uma denúncia pública da política alemã nessa fase teria piorado a situação dos judeus. Sabendo que era impotente para desviar o regime de Hitler de sua implacável determinação de aniquilar os judeus da Europa, Pio XII não se dispôs a tentar uma nova estratégia. Sua preocupação maior continuou a ser proteger a Igreja católica. Em setembro de 1942, o encarregado de negócios americano no Vaticano soube, por meio de funcionários da instituição, que o papa não condenaria publicamente o extermínio de judeus porque não queria tornar pior a situação dos católicos na Alemanha e nos territórios ocupados.

Em sua mensagem de Natal, transmitida ao mundo por rádio em 24 de dezembro de 1942, o papa mencionou o genocídio, mas de forma breve e elíptica, ao falar de “centenas de milhares que, sem ter cometido nenhum crime, estão marcados para a morte ou para a extinção gradual às vezes só por sua nacionalidade ou sua raça”. Essas poucas palavras integravam um texto de 26 páginas. Ele afirmou que a mensagem era “breve, mas foi bem compreendida”. Tenha sido assim ou não, esse foi o único protesto público de sua parte. Numa carta dirigida ao bispo de Berlim, monsenhor Konrad Graf von Preysing, em abril do ano seguinte, Pio XII voltou à questão de sua reticência, lembrando que “o perigo de represálias e pressões […] recomenda prudência”. Expressou sua “apreensão por todos os católicos não arianos” — sem mencionar “não arianos” que não fossem católicos —, mas acrescentou que “infelizmente, no presente estado de coisas, não podemos dar a eles outra ajuda além de nossas preces”.

O papa interveio pessoalmente para protestar contra as deportações junto aos governos da Eslováquia e da Hungria, mas nesse caso também se absteve de uma denúncia pública. Em outubro de 1943, ele deparou com a deportação de judeus ante seus próprios olhos. Uma semana antes que os judeus de Roma fossem reunidos para deportação, o Vaticano foi alertado sobre esse perigo pelo embaixador alemão na Santa Sé, Ernst von Weizsäcker, mas o papa não passou a informação aos líderes da comunidade judaica. Quando os judeus foram capturados, o Vaticano protestou oficialmente junto ao embaixador alemão. Mais uma vez não houve protesto público, pois se alegou que “isso só faria com que as deportações fossem feitas com mais vigor”. Talvez, como se cogitou, o papa temesse a destruição da Cidade do Vaticano por bombardeios ou ação militar se incorresse em desagrado a Berlim — reação que não podia ser descartada. Se foi esse ou não o motivo, a Igreja não obstante tomou medidas práticas para ajudar os judeus de Roma, escondendo cerca de 5 mil fugitivos em conventos e mosteiros. Não foi encontrada uma ordem por escrito do papa para que se tomassem essas medidas de salvamento, mas é pouco provável que as iniciativas simultâneas no sentido de esconder judeus em dependências da Igreja tenham surgido de forma espontânea. Uma testemunha ocular, o padre jesuíta Robert Leiber, diria mais tarde que Pio XII ordenara pessoalmente aos superiores das propriedades da igreja que abrissem as portas aos judeus. Quinhentos judeus encontraram abrigo na residência de verão do próprio papa, em Castel Gandolfo.

O silêncio público de Pio XII prejudicou irremediavelmente sua reputação. A mensagem de Natal de 1942 foi uma oportunidade perdida, em especial porque apenas uma semana antes as potências Aliadas tinham condenado de forma pública a “política bestial de extermínio a sangue-frio” de judeus. Tendo decidido referir-se ao genocídio, Pio XII devia tê-lo condenado de maneira explícita, enérgica e inequívoca, mas a linguagem velada que usou fez com que a mensagem tivesse pouco impacto. No entanto, o mais provável era que àquela altura, por mais explícito que fosse, nenhum protesto público feito pelo papa teria detido a sanha alemã na busca da “solução final para a questão judaica”.

Em que medida isso afetou os católicos praticantes em geral? A resposta seria, provavelmente, “não muito”. Na maior parte da Europa, os judeus sempre foram uma minoria reduzida e geralmente antipatizada. A guerra envolveu milhões de pessoas na luta pela própria sobrevivência, na qual o destino dos judeus provavelmente preocupava pouquíssima gente. Onde não havia hostilidade contra eles, havia indiferença generalizada. As pessoas tinham outras preocupações. A omissão das duas maiores correntes religiosas enquanto os judeus estavam sendo aniquilados teve pouca influência sobre a população que frequentava as igrejas ou sobre sua fidelidade a elas depois do fim da guerra.

Na verdade, mesmo deixando de lado a reação hesitante das Igrejas à perseguição dos judeus, os problemas que elas enfrentaram no entreguerras e durante a Segunda Guerra Mundial pouco afetaram sua posição ou o comportamento dos fiéis no pós-guerra imediato. Obviamente, isso não se aplicou às áreas controladas pelos soviéticos.

A Igreja católica desfrutou até de certo renascimento. Em muitos países, a frequência às igrejas aumentou durante a guerra e continuou firme depois, talvez refletindo a sensação de segurança que aparentemente o catolicismo proporcionava aos fiéis depois dos traumas violentos do conflito. Vários partidos políticos, alguns deles novos, na Alemanha Ocidental, nos Países Baixos, na Bélgica, Itália, França e Áustria, cultivavam princípios católicos. Na Alemanha e na Áustria, a Igreja apresentou-se, com sucesso, como vítima do nazismo, sujeita a agressões e perseguição. Transformando-se em veículo de resistência contra o nazismo de forma retroativa, a Igreja cobriu com um véu o passado recente de aprovação e colaboração.

A constituição italiana do pós-guerra confirmou o Tratado de Latrão, firmado em 1929 por Mussolini e pela Igreja, que dessa forma continuou a moldar a educação e a moralidade pública. No Portugal de Salazar e na Espanha de Franco, a identidade nacional estava fortemente ligada à Igreja, que conferia legitimidade ideológica ao antissocialismo radical de ambas as ditaduras. Na Espanha, a instituição obteve isenção de impostos, liberdade de ação sem interferência do Estado e direito à censura em troca do apoio incondicional ao regime e sua parceria nas memórias tendenciosas da guerra civil. Na Irlanda, país majoritariamente católico e o único em que a maioria da população era religiosa praticante, a Igreja também floresceu como nunca, desfrutando de grande popularidade e muita influência política. No Vaticano, o pontificado de Pio XII continuou sem mudanças, com prestígio ainda maior, representando um pilar da reação contra os supostos males do mundo moderno, entre os quais se destacava o comunismo ateu. O apogeu da monarquia papal se deu em 1950, quando o papa usou sua autoridade ex cathedra para declarar que sem sombra de dúvida a Virgem Maria tinha subido aos céus de corpo e alma. Entretanto, numa época cada vez mais secular, cética e democrática, essa forma de monarquia absolutista estava com os dias contados.

As igrejas protestantes, divididas do ponto de vista doutrinário e organizacional, não tinham como se beneficiar da força internacional e da solidez do catolicismo. Na maior parte do norte e do oeste da Europa, a já antiga decadência do protestantismo continuou. A população da Inglaterra e dos países escandinavos continuava predominantemente cristã num sentido nominal, mas a queda na frequência à igreja só foi interrompida, de forma pouco significativa, pela guerra. Na Suécia, que se manteve neutra, a queda foi contínua e mais acentuada nas cidades do que nos vilarejos, assim como em todo o continente. Na Noruega e na Dinamarca, a associação das Igrejas com a resistência nacional freou por algum tempo esse declínio. Na Holanda, a Igreja Reformada dos Países Baixos também conseguiu se valer de seu declarado passado de oposição durante a ocupação alemã para revigorar o protestantismo nos primeiros anos do pós-guerra. Na Suíça, pátria de Karl Barth, o mais importante teólogo de sua época, sede de numerosas organizações protestantes internacionais e onde as igrejas protestantes atuaram no socorro a refugiados, esse vigor teve continuidade no pós-guerra, desafiando por algum tempo a tendência geral ao secularismo. Na Inglaterra, o protestantismo também renasceu nos anos do pós-guerra, chegando a um ápice no número de fiéis na década de 1950 para logo depois entrar num período de franco declínio.

Na Alemanha, as igrejas protestantes tiveram, claro, de responder pela posição que tomaram durante o Terceiro Reich. Como foi mantido o mesmo clero do período nazista, seu discurso permaneceria, durante pelo menos uma geração, incompleto e muitas vezes apologético, já que o papel das igrejas na resistência ao regime foi enfatizado e o apoio ao nazismo, minimizado. Em contraste com seus congêneres católicos, pelo menos os líderes protestantes se dispunham, num sentido geral, a admitir publicamente os graves erros cometidos na era nazista. No entanto, a declaração de culpa — evitando especificar casos — feita pelas igrejas protestantes em outubro de 1945, em Stuttgart, acabou promovendo mais divisão que unidade. De certa forma, ela teve como objetivo aplacar a consciência do clero, embora tenha sido vista por muitos alemães como inadequada, enquanto outros rejeitavam a implicação de culpa coletiva pelos crimes nazistas. Não obstante, logo depois da guerra, as igrejas alemãs fizeram muito para se reorganizar e revigorar, e desempenharam papel importante na assistência aos refugiados. Acompanhando a tendência geral no norte e oeste da Europa, a filiação formal conviveu com a queda na frequência aos serviços religiosos, principalmente nas áreas urbanas. Na zona de ocupação soviética, protestante em quase sua totalidade, as Igrejas e suas organizações foram submetidas a fortes pressões do Estado. As Igrejas continuaram existindo, porém cada vez mais como instituições de nicho, e a frequência aos serviços religiosos caiu a ponto de se tornar a reserva de uma pequena minoria em busca de conforto numa sociedade oficialmente laica.

Para o protestantismo na Europa, não houve uma bonança comparável àquela desfrutada pelo catolicismo. Para um e para outro, no entanto, no pós-guerra imediato, dominou a continuidade. Só se dariam mudanças significativas na década de 1960. Para os menos comprometidos e mais reflexivos, os horrores da guerra e as posteriores revelações sobre a magnitude das atrocidades perpetradas durante a grande conflagração suscitaram questionamento tanto sobre o comportamento das Igrejas como quanto a um Deus que tinha permitido tal domínio do mal. Essas dúvidas só aumentariam à medida que a Segunda Guerra se tornava mais distante no tempo.

OS INTELECTUAIS E A CRISE NA EUROPA

Durante praticamente toda a primeira metade do século XX, os intelectuais europeus — seus principais pensadores e autores em disciplinas diversas — ocuparam-se da sociedade em crise. A calamidade da Primeira Guerra Mundial intensificou a sensação de um mundo irracional, já presente no pensamento sociológico desde a década de 1890. Era como se a sociedade tivesse afundado na loucura. A civilização revelou-se fragilíssima, demasiado mórbida e doentia, à beira de um novo desastre. Esse sentimento contribuiu para o vigor cultural da década de 1920. Naquela época, durante poucos anos, pareceu que o desastre poderia ser evitado. Mas, com a Depressão, uma crise do capitalismo de gravidade sem precedente a alimentar o apelo cada vez mais ampliado do fascismo e a percepção entre os intelectuais de uma crise cataclísmica da civilização se acentuou.

Os valores liberais burgueses que produziram essa civilização deformada ficaram expostos a ataques de todos os lados. Já na década de 1920, os intelectuais começavam a entender que permanecer numa torre de marfim já não levava a nada. A vitória de Hitler na Alemanha confirmou essa sensação. Em maio de 1933, a queima de livros de autores considerados inaceitáveis pelos novos senhores do país, forçando a emigração de muitas figuras de destaque no mundo artístico e literário, a maior parte judeus, foi um baque de primeira grandeza.

A ideia de crise da civilização era generalizada. A democracia liberal sempre tivera poucos adeptos entre os intelectuais. Muitos duvidavam que a mudança fundamental necessária para solucionar a crise pudesse vir de um sistema que, a seus olhos, era a própria causa dela. A imensa desilusão com a sociedade burguesa e a perda da fé no sistema político que a representava polarizaram a reação intelectual. O mais comum era uma inclinação para a esquerda, para alguma variante do marxismo. No entanto, uma minoria se voltava para a direita fascista. Comum a ambas as tendências, embora de formas diversas, era o sentimento de que a velha sociedade deveria ser desfeita e substituída por uma nova, baseada em ideais utópicos de renovação social.

Os intelectuais quase nunca se voltavam para a esquerda social-democrata, cuja moderação parecia fora de sintonia com os extremos que se confrontavam, sem uma resposta real para a gravidade da crise. (A Inglaterra, em boa medida incólume aos extremos políticos que se instalavam na maior parte do continente europeu, e as nações escandinavas, onde havia surgido um consenso em torno de reformas social-democratas, permaneceram relativamente alheias à tendência geral.) Muitos preferiam buscar a salvação no comunismo, vendo a União Soviética como o único raio de luz na escuridão. Nas profundas trevas do presente, a promessa de uma revolução comunista mundial oferecia muitas esperanças para o futuro. Os princípios marxistas da igualdade sem classes, o internacionalismo e a abolição das cadeias impostas pelo capitalismo exerciam enorme atração sobre intelectuais idealistas. Teóricos marxistas como Antonio Gramsci (que escreveu grande parte de sua obra na prisão, na Itália fascista), o alemão August Thalheimer, o exilado Liev Trótski, o austríaco Otto Bauer e o húngaro György Lukács produziram sofisticadas análises da crise do capitalismo fora da camisa de força da ortodoxia stalinista.

Fora de suas fileiras, no entanto, os intelectuais do entreguerras costumavam ser motivados mais por um compromisso emocional com o marxismo (ainda que nem sempre com a forma política que a doutrina tinha assumido na União Soviética) do que por uma leitura atenta dos textos teóricos como contexto de uma nova ordem social baseada na liberdade, na justiça e na igualdade. Entre muitos outros estavam Henri Barbusse, Romain Rolland, André Gide e André Malraux, na França; Bertolt Brecht e Anna Seghers, na Alemanha; Aleksander Wat, na Polônia; Manes Sperber, polonês exilado na França; o húngaro Arthur Koestler; e John Strachey, Stephen Spender, W. H. Auden e George Orwell, na Inglaterra.

Acima de tudo estava o antifascismo: o comunismo representava a rejeição absoluta do racismo, do hipernacionalismo e do militarismo do agressivo e brutal credo nazista. A imensa maioria dos intelectuais rejeitava a ofensiva nazista sem disfarces contra os valores progressistas e a liberdade cultural. O que mais chocava, porém, era o ataque à própria essência das convicções humanísticas. A defesa aberta da violência contra aqueles que eram considerados inimigos políticos e raciais, mais evidenciada pelo tratamento implacável dispensado aos judeus, convenceu muitos intelectuais de que só lhes restava apoiar o comunismo soviético, a força mais comprometida com o antifascismo.

Como explicou o historiador e destacado intelectual de esquerda Eric Hobsbawm, bem depois da Segunda Guerra Mundial, a escolha que fez quando ainda adolescente em Berlim, assistindo aos estertores da República de Weimar, formou a base de seu compromisso de toda a vida com o comunismo e com a União Soviética. Foi um compromisso que, em seu caso, sobreviveu não somente às revelações sobre os crimes de Stálin mas também às invasões da Hungria em 1956 e à da Tchecoslováquia em 1968, que afastaram muitos intelectuais. “Para uma pessoa como eu só havia um caminho”, lembra Hobsbawm. “O que restava além dos comunistas, em especial para um jovem que chegou à Alemanha já emocionalmente atraído pela esquerda?”

As ilusões sobre o comunismo soviético mantiveram a atração sobre muitos intelectuais mesmo bem depois que os horrores do stalinismo se tornaram irrefutáveis. Alguns tinham simplesmente perdido a capacidade crítica, com a visão ofuscada pela propaganda soviética sobre a gloriosa sociedade em processo de criação. Dois luminares do Partido Trabalhista britânico, Sidney e Beatrice Webb, publicaram em 1935 um constrangedor panegírico ao stalinismo intitulado Soviet Communism: A New Civilization? [Comunismo soviético: Uma nova civilização?]. Eles tinham tanta certeza do que afirmavam que, quando o livro foi reimpresso, dois anos depois, o ponto de interrogação do título foi suprimido. Outros autores, como o grande dramaturgo alemão Bertolt Brecht, simplesmente fecharam os olhos para a desumana realidade da ditadura comunista, agarrando-se à visão humanista da sociedade comunista utópica. Muitas vezes, os intelectuais simplesmente se recusavam a ver a realidade. Não podiam deixar o sonho morrer. Eram psicologicamente incapazes de abandonar a fé no comunismo como a única esperança da humanidade para criar um mundo melhor, mesmo depois que ficaram claros os indícios de que o stalinismo contrariava qualquer paródia dessa crença.

Outros consideravam que a enormidade do banho de sangue stalinista era um lamentável “efeito colateral” na construção da utopia. Embora alguns inocentes sofressem com isso, muitos deles pagando com a vida, havia também os inimigos autênticos da revolução, dizia-se. A extrema violência simplesmente refletia o poder dos inimigos internos da revolução; era uma triste necessidade.

Uma apologia alternativa foi a convicção, expressa com frequência, de que Stálin não representava a continuidade da revolução, mas sua negação, uma distorção completa de seus ideais, um desvio do “verdadeiro” caminho de Lênin, o fundador da União Soviética. O poeta polonês Antoni Słonimski, por exemplo, recusava-se a culpar o marxismo ou a revolução pela opressão dos anos de stalinismo. Um compatriota seu, poeta de vanguarda e editor de um jornal marxista, Aleksander Wat, que sofreu terrivelmente nas mãos do regime soviético durante a Segunda Guerra Mundial, explicou mais tarde que “via Stálin como uma pessoa terrível, capaz de coisas horríveis”, mas se recusava a criticar a União Soviética, “a pátria do proletariado”.

O filósofo inglês Bertrand Russell foi um dos poucos a visitar a Rússia (já em 1920), cheio de entusiasmo pela revolução, para depois se escandalizar com o uso do terror e com a eliminação implacável de políticos opositores. Russell, porém, estava bem consciente de que levantar a voz contra o bolchevismo na época daria margem a acusações de estar apoiando reacionários. O destacado escritor francês André Gide foi outro simpatizante que mudou de ideia depois de visitar a União Soviética, em meados da década de 1930. A publicação, em 1936, de sua crítica ao comunismo granjeou-lhe muita perseguição pessoal e a perda de antigos amigos de esquerda. Manes Sperber, escritor judeu polonês que depois da ascensão de Hitler foi obrigado a sair da Alemanha, exilando-se em Paris — destino de numerosos judeus emigrados —, já tinha sérias dúvidas sobre o comunismo soviético em 1931, depois de visitar Moscou. Embora declarasse que “relutei diante desse conhecimento, que me traria dificuldades políticas e emocionais”, Sperber continuou sendo membro do partido, motivado em primeiro lugar pela luta contra o fascismo, até que os absurdos julgamentos-espetáculos de Stálin levaram-no a se desfiliar, em 1937.

Arthur Koestler, também judeu, prolífico escritor e jornalista nascido em Budapeste, entrou para o Partido Comunista alemão em 1931, mas começou a se desiludir com a realidade soviética depois de testemunhar a coletivização forçada e a fome na Ucrânia. Mas o rompimento não veio de uma hora para a outra. Foi moldado pela Guerra Civil Espanhola. Como muitos outros intelectuais de esquerda, ele foi à Espanha para combater o fascismo. Mas ao ver naquele país que a política dos comunistas era ditada exclusivamente pelos interesses da União Soviética e conhecendo as acusações evidentemente forjadas apresentadas nos julgamentos públicos de comunistas leais, em seu íntimo abandonou o stalinismo numa prisão de Franco (e, durante algum tempo, sob uma sentença de morte). Mesmo então, em benefício da manutenção da unidade antifascista, guardou silêncio durante meses, antes de romper finalmente com o comunismo, em 1938. Seu brilhante romance O zero e o infinito, de 1940, é uma reconstrução sombria da pressão psicológica exercida sobre os acusados de algum desvio em relação à ortodoxia para conseguir “confissões” absurdas de antigos dirigentes soviéticos nos julgamentos públicos stalinistas. Koestler enfrentou diretamente o dilema crucial de muitos intelectuais de esquerda na década de 1930: como permanecer leal à única força capaz de se opor ao fascismo e derrotá-lo e, ao mesmo tempo, reconhecer que a União Soviética se tornara uma grotesca caricatura dos mais caros ideais socialistas?

Para uma minoria significativa entre os intelectuais, os ideais da esquerda — para não falar da violência que acompanhou a Revolução Russa, a guerra civil subsequente e a ditadura stalinista — eram um anátema. Essa minoria procurava na direita a salvação da crise europeia. Alguns tornaram-se defensores diretos do fascismo. O que tinham em comum era a necessidade de renovação espiritual para superar o mergulho na barbárie e o niilismo da humanidade degenerada. O fascismo, nas décadas de 1920 e 1930 — quando a plena expressão de sua desumanidade no horror genocida da Segunda Guerra Mundial ainda não se dera —, oferecia uma utopia alternativa, que fundia o louvor mítico de valores culturais do passado com a visão de uma nação moderna, homogênea e unida que incorporasse esses valores.

Seu apelo não era tão atávico. As esperanças de Filippo Marinetti e dos futuristas, por exemplo, que glorificavam a violência revolucionária da moderna idade da máquina e louvavam Mussolini, não recorriam ao passado, mas à visão de uma sociedade utópica moderna. O poeta expressionista Gottfried Benn acabou atraído pelo nazismo como a força revolucionária que criaria uma estética nova e moderna — embora tenha se desiludido sem demora. O influente poeta modernista e crítico Ezra Pound nasceu nos Estados Unidos, mas fixou-se em Londres antes da Primeira Guerra Mundial. Descontente com o que considerava a responsabilidade do capitalismo internacional pela guerra e desprezando a democracia liberal, mudou-se para Paris, depois para a Itália, onde louvou Mussolini e viu o fascismo italiano como o arauto de uma nova civilização. Ao contrário de Benn e outros, Pound nunca se desiludiu, nem se retratou de forma nenhuma de sua crença no fascismo.

A fé no “homem novo”, na renovação da “verdadeira” cultura e no renascimento nacional muitas vezes resultava numa expressão mística que desafiava o rigor intelectual. Para Pierre Drieu la Rochelle, romancista e comentarista político francês obcecado pela decadência nacional e cultural, o fascismo (e a ocupação da França) foi “a grande revolução do século XX” — uma “revolução da alma”. Outro escritor francês pró-fascista, Robert Brasillach, via-o como “a verdadeira poesia do século XX”, o espírito da “camaradagem nacional”.

A crença na renovação espiritual por meio do renascimento nacional foi responsável, em boa medida, pela atração exercida pelo fascismo sobre os intelectuais. Nada menos que 250 intelectuais italianos assinaram o Manifesto dos Intelectuais Fascistas em 1925, glorificando o fascismo como “a fé de todos os italianos que desprezam o passado e anseiam por renovação”. O Manifesto foi redigido por Giovanni Gentile, destacado professor de filosofia na Universidade de Roma. Ele esperava que o fascismo italiano criasse um Estado ético que substituísse a vontade moral do indivíduo e superasse a decadência do liberalismo burguês. Em meados da década de 1920, falava da “alma da nova Itália, que aos poucos, mas com certeza, vai prevalecer sobre a antiga”. Ele estava inclusive disposto a louvar a barbárie fascista “como a expressão das energias saudáveis que despedaçam ídolos falsos e malignos, restaurando a saúde da nação dentro do poder de um Estado consciente de seus direitos soberanos, que são seu dever”.

Ainda mais notável foi o comprometimento do filósofo Martin Heidegger com o movimento nazista na Alemanha. A filosofia desse pensador complexo e sofisticado, que conquistou renome internacional com a obra Ser e tempo, publicada em 1927, aproximou-o de ideais que ele via representados no movimento nazista. No centro de tudo estava a crença na “decadência espiritual” de sua época, manifesta na erosão daquilo que Heidegger chamava de “ser autêntico”, assim como a crença acessória no destino especial do povo alemão para trazer a renovação cultural. Apesar de sua mente brilhante, tudo isso chegava muito perto do misticismo romântico. Para Heidegger, a Alemanha se situava no centro do que ele descreveu como “a grande pinça formada pela Rússia, de um lado, e a América, do outro”, que juntas produzem “o mesmo frenesi desolado de tecnologia sem limites e organização ilimitada do ser humano médio”. O “caminho para o aniquilamento” da Europa, escreveu o autor em 1935, só poderia ser bloqueado pelo “desenvolvimento de forças espirituais historicamente novas a partir do centro”. Nessa época, Heidegger já estava comprometido havia muito com o movimento nazista, pois tinha ingressado no partido em 1o de maio de 1933. Três semanas depois, em seu discurso de posse como reitor da Universidade de Friburgo, cargo para o qual acabava de ser nomeado, elogiou o regime, glorificou Hitler (referindo-se a ele como “a realidade alemã, presente e futura, e suas leis”) e ordenou a demissão de colegas “não arianos” da universidade (entre eles seu antigo professor e orientador Edmund Husserl).

A crença na necessidade de uma revolução cultural ou “espiritual” ia de mãos dadas com uma rejeição dos fundamentos da democracia liberal. Ambas as tendências eram particularmente fortes na Alemanha, embora nem de longe se restringissem a esse país. O historiador cultural alemão Arthur Moeller van den Bruck punha a culpa de “toda a miséria política da Alemanha” nos partidos políticos. Seu livro Das Dritte Reich [O Terceiro Reich], publicado em 1923, oferece uma visão quiliástica da perfeição alemã que deveria ser buscada, embora nunca pudesse ser plenamente alcançada. Bruck não viveu para ver seu lema adotado pelo Estado nazista e, como outros radicais alemães “neoconservadores” que defendiam uma “revolução conservadora”, bem poderia ter se decepcionado com a experiência do regime de Hitler. Outro neoconservador, Edgar Jung, que defendera a construção de uma nação alemã orgânica como caminho para a ressurreição nacional e a renovação espiritual, logo se desencantou com a realidade do regime nazista e acabou assassinado pelos capangas de Hitler na infame Noite das Facas Longas, em junho de 1934.

Carl Schmitt, especialista alemão em direito constitucional, foi mais maleável ante a realidade da nova ordem alemã. Schmitt, já conhecido desde a década de 1920, rejeitava as instituições parlamentares como verdadeira expressão da democracia e defendia um Estado soberano forte, com um líder que representasse a unidade entre governantes e governados e, quando necessário, capaz de exercer um poder decisivo e livre de toda restrição legal para servir o interesse público. Nesse sentido, a lei não unia governantes e governados, mas derivava do “decisionismo” do poder soberano, cuja responsabilidade era manter a ordem. Schmitt, que entrou para o Partido Nazista em maio de 1933, contribuiu mais tarde para legitimar a ideia de “Estado líder”. Depois que Hitler ordenou o assassinato do comando de suas tropas de assalto na Noite das Facas Longas, não seria uma aberração que Schmitt publicasse um artigo intitulado “O Führer protege a lei”.

A complexidade e a variedade da vida intelectual na Europa do entreguerras não podem, claro, ser contidas nos extremos opostos de esquerda e direita, de comunismo e fascismo. Algumas tendências intelectuais eram, na verdade, completamente alheias à política. O positivismo lógico, ramo da filosofia particularmente associado a Ludwig Wittgenstein, segundo o qual só as proposições suscetíveis de verificação empírica tinham sentido, é exemplo disso. O pensamento econômico e político não estava necessariamente ligado aos extremos. Afinal, entre os mais importantes intelectuais da época estava um liberal, John Maynard Keynes, que abominava tanto o comunismo como o fascismo. Enquanto a Europa se voltava cada vez mais para modelos de sociedade baseados no socialismo de Estado marxista ou no autoritarismo fascista, Keynes dava uma sobrevida à democracia liberal capitalista propondo um caminho para um capitalismo reformado numa democracia reformada. Keynes, o mais brilhante economista de sua época, daria uma contribuição indispensável à política econômica depois da Segunda Guerra Mundial. Sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, publicada em 1936, rejeita a ortodoxia econômica clássica, que se baseia em saúde financeira, orçamentos equacionados e no livre mercado para buscar equilíbrio. Em seu lugar, Keynes propôs a base teórica para a intervenção do governo por meio de aumento de gastos para estimular o mercado, criar pleno emprego e assim induzir uma demanda que sustente o crescimento econômico. Mas Keynes também era motivado pela noção de crise abrangente, embora sua origem na classe dominante inglesa e a relativa solidez das estruturas políticas britânicas o levassem a buscar soluções pela política econômica num contexto de democracia liberal.

Provavelmente só na Inglaterra, onde as elites mantinham não apenas seu status social como existiam num contexto de estabilidade política praticamente único, seria possível o surgimento das ideias bizarras de Evelyn Waugh. O romancista esnobe, reacionário e fervoroso adepto do catolicismo tridentino era fascinado pela aristocracia inglesa, desdenhava o restante da sociedade e fazia pouco da política, afirmando absurdamente que as chances de felicidade “não eram muito afetadas pelas condições políticas e econômicas” nas quais o povo vivia, e que nenhuma forma de governo era melhor que outra.

Essas ideias excêntricas estavam muito distantes da preocupação com a crise demonstrada pela maioria dos intelectuais europeus. Os últimos anos da década de 1930 trouxeram uma desesperança cada vez maior para as esquerdas. Muitos dos que foram à Espanha lutar contra o fascismo voltaram decepcionados. Logo depois, veio a profunda desolação por causa da traição da Tchecoslováquia pelos Aliados em 1938. A vitória final de Franco no ano seguinte e o pacto entre Hitler e Stálin — que selou uma amizade entre o regime que eles viam como epítome dos males políticos e o país que tantos admiravam — foram outras pílulas amargas que tiveram de engolir. Enquanto isso, o pluralismo e a abertura indispensáveis à vida intelectual tinham sido esmagados na Alemanha, Itália, União Soviética e em grande parte do resto da Europa. Pouco depois, a vida intelectual “normal” no continente entraria em hibernação pelos seis longos anos de guerra.

Muitas das mais vigorosas vozes intelectuais antifascistas vinham agora de alemães no exílio. Entre elas estavam as dos membros da prestigiada Escola de Frankfurt (transferida para Nova York), composta por eminentes filósofos e cientistas sociais marxistas (embora não leninistas) liderados por Max Horkheimer e Theodor Adorno, e as de escritores de diferentes convicções políticas. Entre estes estavam Thomas Mann, seu irmão Heinrich, Alfred Döblin, Erich Maria Remarque, Lion Feuchtwanger e Anna Seghers. Com o império de Hitler engolindo praticamente todo o continente europeu, Stefan Zweig, exilado no Brasil, perdeu as esperanças na Europa, em sua cultura e no futuro da humanidade. Em fevereiro de 1942, ele e sua mulher tomaram uma overdose de soníferos, deram-se as mãos e esperaram a morte chegar.

Quando a vitalidade começou a retornar à vida intelectual europeia, depois de 1945, tanto o pessimismo como o otimismo em relação ao futuro eram evidentes. As profundezas em que a civilização tinha afundado evocavam — principalmente no renascimento cristão, muito influenciado pela teologia de Karl Barth — um sentimento de esperança no futuro se a sociedade conseguisse voltar aos valores e crenças do cristianismo. Renovaram-se também as esperanças, ainda que só ganhassem força na década de 1950, na democracia liberal, que enfim triunfou sobre a ameaça nazista. Raymond Aron, destacado filósofo político francês (e antimarxista fervoroso), pensava que “podemos encerrar a era das guerras hiperbólicas sem cair de novo sob o jugo”. As lições das duas guerras tinham sido aprendidas. “A violência desenfreada não leva a nada.” A “missão de liberdade” do Ocidente, segundo o autor, demonstrava boas chances de sucesso.

Para outros, no entanto, o otimismo se voltava para o sentido exatamente oposto, com suas renovadas esperanças na vitória final do comunismo. A União Soviética tinha triunfado sobre o nazismo. Os comunistas desempenharam um papel de destaque nos movimentos de resistência que combateram a ocupação nazista. No entanto, na Europa Ocidental, a crença na União Soviética diminuía. À medida que a aliança com a União Soviética dos tempos de guerra dava lugar à Guerra Fria, o Leste Europeu caía sob o jugo soviético e os horrores do stalinismo tornavam-se mais amplamente conhecidos, a esperança naquele modelo de comunismo dava lugar a um novo clima de hostilidade.

Provavelmente nenhuma obra literária foi mais importante no pós-guerra imediato para moldar a posição sobre a União Soviética no nascimento da Guerra Fria que os dois romances distópicos de George Orwell, A revolução dos bichos e 1984. Ele ficara profundamente desgostoso com o que vira na Espanha, durante a guerra civil, a respeito da intolerância stalinista para com qualquer desvio da rígida linha partidária. Seu anticomunismo se intensificou com o pacto entre Hitler e Stálin, em 1939. E quando Stálin aliou-se à Inglaterra, depois da invasão alemã de 1941, Orwell ficou horrorizado com o fato de “esse assassino repulsivo estar temporariamente do nosso lado, de forma que os expurgos etc. de repente sejam esquecidos”. Por causa da aliança com a União Soviética, os editores rejeitaram sua sátira ferina do nascimento da ditadura de Stálin, A revolução dos bichos, quando foi concluída, em 1944. O livro saiu e foi muito aclamado no ano seguinte, depois de terminada a guerra na Europa, ao mesmo tempo influenciando e refletindo a nova atmosfera de Guerra Fria. Ainda mais impactante foi o romance 1984 (o título é uma inversão do ano de sua conclusão, 1948), publicado em 1949, quando o Leste Europeu já estava sob domínio soviético. Nele, Orwell delineia a assustadora visão futurista dos efeitos de tal ditadura sobre as liberdades individuais e a tolerância política.

A nova maneira como a crítica emergente do comunismo soviético se associou à análise estrutural do nazismo foi uma transição notável no clima intelectual do pós-guerra. Os dois sistemas eram vistos como manifestações diversas de um fenômeno que em essência era o mesmo, e os males do regime nazista eram transpostos para aquilo que se percebia como a ameaça viva representada pela União Soviética. O conceito de totalitarismo, embora existente desde a década de 1920, agora era usado de uma maneira diferente e devastadora para englobar a desumanidade dos dois regimes. Em meados da década de 1950, já no clima da Guerra Fria, as publicações de Carl Joachim Friedrich, cientista político americano de origem alemã, se tornariam o centro dessa mudança de uso.

Mesmo antes disso, porém, a obra decisiva — que teve muita influência no mundo ocidental — foi a de Hannah Arendt, judia alemã exilada nos Estados Unidos e, ironicamente, ex-amante do rei dos filósofos de Hitler, Martin Heidegger, e respeitada teórica política. Em 1949, ela estava terminando sua extraordinária análise Origens do totalitarismo, que sairia dois anos depois. O livro era, em sua essência, uma explicação da ascensão do nazismo ao poder, e em suas duas partes analisava o antissemitismo e o imperialismo, temas de pouca relevância para a natureza do poder soviético. A comparação com a União Soviética vinha na terceira parte, “Totalitarismo”, que saiu quase toda numa edição posterior, bastante revista. Essa seção comparativa pintava a imagem tenebrosa de um “mal radical”, fenômeno político inteiramente novo cuja essência é o “terror total”, que destrói todas as bases da lei, “rompe com todos os parâmetros que conhecemos” e gera um sistema apoiado em “fábricas de aniquilamento” nas quais “todos os homens tornaram-se equitativamente supérfluos”.

Era uma avaliação arrasadora do colapso da civilização. Aos olhos de muitos intelectuais, o caminho que a Europa vinha trilhando desde o Iluminismo do século XVII, voltado para uma sociedade civilizada baseada em princípios de racionalidade e progresso, estava em ruínas. Nada menos que os fundamentos da sociedade moderna tinham sido corroídos. A era do Iluminismo, como já tinham concluído Horkheimer e Adorno em 1944, culminara perversamente na “autodestruição da razão”.

Mas a crítica de Horkheimer e Adorno não se restringia ao nazismo e ao stalinismo. Estendia-se à moderna cultura de massas capitalista. E logo essa “indústria cultural”, como a chamaram, envolveria toda a Europa Ocidental.

O ESPETÁCULO DEVE CONTINUAR: A INDÚSTRIA DO ENTRETENIMENTO
POPULAR

Poucas pessoas na massa europeia de baixo nível educacional se preocupavam com as desesperadas tentativas empreendidas pelos intelectuais de entender a crise que atravessavam. E a religião estava perdendo força, lentamente mas de forma inexorável. Quanto mais alfabetizada e instruída uma população, quanto maior o nível de urbanização, quanto mais adiantada a economia industrial, mais a Igreja católica e as protestantes tinham de lutar para manter a adesão popular. Era preciso competir não só com filosofias que rejeitavam o cristianismo e propunham “religiões seculares” alternativas, mas também com a enorme quantidade de distrações do dia a dia da vida moderna, mais predominantes nas cidades do que no campo. As igrejas vinham se esvaziando, mas os bares, estádios de futebol, salões de baile e cinemas viviam apinhados. Entre as duas hecatombes bélicas, separadas pela infelicidade da Depressão, as pessoas ainda procuravam aquilo que fizesse a vida valer a pena. Queriam se divertir. Por mais enfadonha que fosse a vida de muita gente, era determinada não somente pela economia ou pela rigidez moral das Igrejas, mas por aquilo que tornava sua existência mais tolerável — nesgas de cor em meio ao cinza, distrações da insipidez, alívio do intragável.

O que as pessoas mais queriam era entretenimento, não sermões de padres, ruminações intelectuais ou a edificante “alta cultura”. A disseminação do entretenimento de massas já tinha feito enormes progressos durante a década de 1920, mas ainda não era o grande negócio que se tornaria em breve. Os progressos tecnológicos foram uma das principais causas de sua decolagem estratosférica na década seguinte, mesmo sob o manto negro da treva econômica. Se o entretenimento um dia tinha dependido da apresentação ao vivo, que só podia atingir umas poucas centenas de pessoas em cada evento, a produção em massa de rádios e gramofones acessíveis (muitas vezes combinados no rádio-gramofone) fez com que milhões de pessoas, no mesmo instante, em todo o país e na privacidade de sua sala, pudessem ouvir seus artistas prediletos.

A maior parte dos impulsos e das inovações vinha dos Estados Unidos. O país representava tudo o que era novo, vibrante e excitante para milhões, sobretudo para os jovens da Europa Ocidental. A música popular e o cinema eram suas forças mais dinâmicas. A Inglaterra, tendo a mesma língua e fortes laços culturais com os Estados Unidos, era mais aberta que qualquer outro país à influência americana (ainda que na década de 1930 tenham sido impostas barreiras para evitar que músicos britânicos ficassem sem trabalho, substituídos por talentos americanos importados). Os jovens se apressavam em abraçar as novidades. As forças até então dominantes não demonstravam o mesmo entusiasmo. O diretor geral e fundador da bbc, o austero e puritano Sir John Reith, tentou impedir o que via como a poluição cultural do rádio britânico pela influência americana. Mas suas tentativas de deter a maré estavam fadadas ao fracasso. O consumismo em expansão acarretou uma demanda insaciável por tudo o que os novos meios de comunicação cultural tinham a oferecer — uma demanda promovida com avidez pela indústria do entretenimento, em rápido crescimento, e pelas legiões dos que ganhavam dinheiro com ela: empresários, editores de música, agentes de artistas, produtores de discos e muitos outros.

O avanço irrefreável da música popular deu-se no mesmo ritmo que o do rádio, que transformou os principais intérpretes em estrelas da noite para o dia. O fonógrafo já tinha sido inventado por Thomas Edison, juntamente com o microfone, na década de 1870. No entanto, até a década de 1920, a reprodução sonora continuava bastante primitiva. Poucas das mais populares músicas da época sobreviviam para ser ouvidas pelas gerações posteriores. Mas isso estava mudando. Uma década ou pouco mais depois, os microfones e as técnicas de gravação tinham melhorado muito. Com a amplificação, os cantores já não precisavam ter vozes poderosas. Podiam empunhar o microfone em vez de projetar a voz à distância e obter um som muito melhor do que poucos anos antes. Uma nova geração de crooners, que sussurravam letras românticas de uma forma mais “intimista”, ganhou grande popularidade. O primeiro dos superastros da música popular, cuja fama cruzou o Atlântico na década de 1930, foi Bing Crosby. O mesmo ocorreu com Frank Sinatra poucos anos depois. Seus discos eram vendidos não aos milhares, mas aos milhões. Mais de 50 milhões de cópias da melosa “White Christmas”, composta por Irving Berlin, foram vendidas depois que ele a apresentou pela primeira vez, em 1941. Mesmo décadas depois, dificilmente não é ouvida em lojas de departamentos e supermercados quando chega o Natal.

Cantores europeus também ganharam enorme popularidade, que na maior parte das vezes se limitava a seu próprio país. Alguns deles, no entanto, como o britânico Al Bowlly (na verdade, nascido em Moçambique), que fez grande sucesso com “The Very Thought of You”, ficaram famosos nos Estados Unidos. As cantoras também ganharam renome em seus próprios países e às vezes fora deles. Édith Piaf, “o pequeno pardal”, que começou a trilhar o caminho do estrelato em meados da década de 1930, em poucos anos era a mais conhecida artista popular da França (e, nos anos seguintes, uma celebridade internacional). Na Inglaterra, Gracie Fields, uma tecelã de Lancashire que já se tornara nacionalmente famosa na década de 1920 como cantora e atriz, chegou ao auge da popularidade durante a Depressão com um repertório de comédias e canções sentimentais. A guerra e o rádio como entretenimento para os soldados produziram suas próprias estrelas. Vera Lynn, já bem conhecida, no fim da década de 1930, pelo rádio e por seus discos, como vocalista de algumas das mais conhecidas orquestras dançantes da Inglaterra, foi apelidada de “Namorada das Forças Armadas”. Dificilmente se encontraria um soldado britânico que não conhecesse seu maior sucesso, “We’ll Meet Again”, música em perfeita sintonia com a época. “Lili Marlene”, na voz de Lale Andersen, embora não apreciada pelos oficiais nazistas, tornou-se a favorita da Wehrmacht e, extraordinariamente, cruzou as linhas e tornou-se sucesso também entre os soldados Aliados na versão em inglês, cantada por Marlene Dietrich.

Os principais cantores populares das décadas de 1930 e 1940 foram produto da transformação — e da comercialização — da própria música. As pequenas bandas de hot jazz e blues, integradas por instrumentistas negros cujas raízes remontavam à música dos escravos africanos e ao country, foram superadas, no fim da década de 1920, por big bands dominadas por brancos. Elas levavam o nome de seu líder, promoviam a fama de seu vocalista e faziam um som mais suave, mais orquestrado e de apelo mais sentimental, sob medida para as grandes audiências do rádio.

O novo som das big bands nasceu também nos Estados Unidos, com o sucesso da Paul Whiteman Orchestra na década de 1920 (dando a Bing Crosby sua primeira grande oportunidade como cantor). Havia também algumas big bands importantes integradas por músicos negros, como a de Fletcher Henderson. Mas os negros ainda eram discriminados no mercado. Alguns dos maiores intérpretes de jazz, como o trompetista Louis Armstrong, que ganhou fama com suas bandas Hot Five e Hot Seven, na década de 1920, adaptaram-se às novas tendências e tornaram-se astros das novas big bands antes de ter suas próprias bandas. Na década de 1930, quando o sucesso que fazia em seu próprio país, embora digno de nota, ainda era limitado pelo preconceito racial, que vedava aos artistas negros os contratos mais polpudos, Armstrong conquistou grande aclamação popular na Europa. Durante a turnê europeia de sua banda, em 1932, “ele foi recebido com a mais entusiástica aceitação já dedicada a qualquer artista americano”. Duke Elling­ton, o mais complexo e inovador de todos os primeiros “reis do jazz”, viveu algo parecido quando sua banda tocou no London Palladium, em 1933 — “os aplausos foram magníficos, era aplauso em cima de aplauso”, comentou ele. Seis anos depois, sua segunda turnê europeia chegou ao clímax em Estocolmo, em abril de 1939, com muita festa de seus fãs suecos por seu quadragésimo aniversário.

No entanto, até mesmo Armstrong e Ellington estavam perdendo terreno para novas tendências da música popular, cuja nova febre era o swing. O expoente máximo (e maior beneficiário) dessa transição foi Benny Goodman, cujo pai tinha fugido do terror antissemita na Rússia para os Estados Unidos. Goodman, apelidado “Rei do Swing”, era um excelente clarinetista cuja banda tocava uma versão autêntica do jazz, beneficiada por arranjos de Fletcher Henderson (que, como muitos outros músicos negros de destaque, tinha vivido tempos difíceis durante a Depressão). Mas Goodman tinha muitos imitadores menos inovadores e menos talentosos. Eles transformaram o swing basicamente em música para dançar, explorando o filão do “furor dançante” que tomou conta de grande parte da Europa na década de 1930.

Os salões de baile, mais ainda que na década de 1920, eram o núcleo dinâmico do entretenimento popular ao vivo para os jovens, embora o ritmo frenético do charleston estivesse dando espaço à música dançante mais tranquila, como o foxtrot, o quickstep e a valsa, antes que os soldados americanos levassem o jitterbug (ou jive) à Europa durante a guerra. Os mais populares líderes das bandas dançantes eram grandes celebridades. Jack Hylton, líder da mais famosa da Inglaterra, podia pedir um pagamento semanal de 10 mil libras numa época em que o salário por uma semana de trabalho massacrante numa fábrica era de duas ou três. Em 1938, Hylton levou sua banda — integrada por muitos judeus — a Berlim, onde tocou durante um mês para animados dançarinos num salão de cuja parede pendia uma enorme suástica.

Na Alemanha nazista, no entanto, o swing, como o jazz, eram considerados “música de negros”. Durante a guerra, jovens que imitavam modas e maneirismos britânicos chegaram a transformar sua devoção numa forma de protesto contra as normas nazistas, e foram devidamente punidos por isso. Mas a Alemanha de Hitler não podia ignorar totalmente essa tendência, e inclusive tinha sua banda de swing “oficial” — a Charlie’s Orchestra, que, apesar da guerra, tinha ouvintes na Inglaterra. Enquanto isso, embora agindo de forma “politicamente incorreta”, jovens oficiais da ss continuavam a frequentar clubes de jazz em Paris. Nem mesmo o nazismo pôde frear a atração exercida pela música popular.

No entanto, o que o regime podia fazer era eliminar artistas populares que não se encaixassem em seus critérios de pureza racial. Entre eles estava o famoso artista de cabaré Fritz Grünbaum, judeu que tentou fugir da Áustria imediatamente depois do Anschluss, em 1938, mas foi barrado na fronteira tcheca. Ele foi mandado para o campo de concentração de Buchenwald e para o de Dachau, onde morreu em 1941. Fritz Löhner-Beda, também judeu e originário da Boêmia, libretista famoso que tinha trabalhado em musicais e operetas com Franz Lehár, entre outros, foi preso em Viena depois do Anschluss, enviado a Dachau, depois a Buchenwald e, por fim, em 1942, a Auschwitz. Foi espancado até a morte no complexo industrial anexo, Monowitz. Ralf Erwin, judeu nascido na Silésia, compositor mais conhecido pela canção “Ich küsse Ihre Hand, Madame” [Beijo sua mão, madame] — famosa na voz do tenor Richard Tauber —, fugiu da Alemanha na época da ascensão do nazismo ao poder, em 1933. Foi capturado na França durante a ocupação e morreu num campo de internação em 1943. No âmbito do entretenimento popular, como em muitas outras áreas da vida cultural, os nazistas empobreceram grotescamente a Alemanha com suas políticas raciais absurdas e truculentas.

Os dias de glória do swing e das orquestras dançantes, porém, estavam acabando. Os salões enfrentavam dificuldades óbvias, com tantos jovens convocados para o serviço militar. Muitas bandas interromperam suas atividades porque seus membros tinham sido convocados. Alguns continuavam tocando mesmo de farda, mas outros já não podiam fazer o mesmo. Muitos foram mortos em ação. Glenn Miller, renomado líder da orquestra americana da Força Expedicionária Aliada, que reunia 48 músicos, morreu em dezembro de 1944 no Canal da Mancha, quando o avião que o transportava da Inglaterra para a França, onde se apresentaria para soldados franceses, desapareceu. Sua morte marcou o começo do fim das big bands, que entraram num longo período de decadência e foram substituídas por formações menores e mais baratas. No entanto, a comercialização da música foi no máximo interrompida pela guerra, nunca acabando de fato. Sua expansão no pós-guerra foi imensa.

Em setor nenhum a explosão da indústria do entretenimento foi mais evidente do que no cinema — e em nenhuma outra esfera dessa indústria a inovação tecnológica foi mais importante. Na década de 1920, já tinha havido um grande crescimento no público de cinema mudo. Mas a transição para os filmes sonoros levou o cinema a seus dias de glória. O primeiro longa-metragem sonoro (na verdade, com apenas dez minutos de som), O cantor de jazz, musical sentimental que mostra Al Jolson com o rosto pintado de preto, foi sucesso imediato nos Estados Unidos em 1927. Em dois anos, a maior parte dos filmes de Hollywood já empregava o recurso do som. A rápida expansão dos “filmes falados” (e a maior produção de filmes em cores, ainda caros, que representavam uma pequena fatia do total) foi acompanhada pela gigantesca expansão da indústria do cinema e pela enorme influência cultural de Hollywood.

Algumas grandes empresas — Metro-Goldwyn-Mayer (mgm), Warner Brothers, Paramount, rko Pictures e 20th Century Fox — em pouco tempo dividiram entre si a produção cinematográfica, a propriedade dos cinemas e o controle do mercado. Em meados da década de 1940, em seu ponto alto, os estúdios de Hollywood rodavam quatrocentos filmes por ano, entre comédias, musicais, faroeste e desenhos animados de Walt Disney. Grande parte dessa produção cruzava rapidamente o Atlântico. Em meados da década de 1930, o Mickey Mouse e o Pato Donald eram tão conhecidos na Europa quanto nos Estados Unidos, e o primeiro longa-metragem de animação da Disney, Branca de Neve e os sete anões, fazia furor em ambos, logo após o lançamento, em 1937. Apesar das restrições aos filmes estrangeiros e da aversão oficial a tudo o que era visto como produto da decadência da cultura americana dominada por judeus, até mesmo Hitler gostava dos desenhos da Disney. Inclusive ficou feliz quando seu ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, deu-lhe de presente de Natal em 1937 dezoito filmes do Mickey Mouse.

A outrora criativa indústria cinematográfica alemã estava nessa época sob o domínio ferrenho dos nazistas. Entre os produtos dos últimos anos de democracia vacilante, pouco antes da chegada de Hitler ao poder, conta-se o primeiro “filme falado” alemão, O anjo azul, lançado em 1930 com uma versão em inglês, que catapultou Marlene Dietrich ao estrelato internacional da noite para o dia. Em pouco tempo, porém, produtores, atores e diretores foram obrigados a emigrar, principalmente para os Estados Unidos. Milhares de “não arianos” que ficaram na Alemanha perderam o emprego. O talento criativo que restou foi posto a trabalhar para o regime. A jovem e glamorosa Leni Riefenstahl mostrou seu toque artístico como diretora de filmes de propaganda, principalmente Triunfo da vontade, de 1935, e Olympia (1938), que glorificavam Hitler e seu regime.

Mas os alemães afluíam aos cinemas em números sem precedentes — por volta de 1 bilhão de ingressos eram vendidos por ano —, e o que queriam era entretenimento, não propaganda. Até Goebbels, o mestre da propaganda nazista, reconhecia isso. A maior parte dos filmes produzidos na Alemanha nazista não era de propaganda, pelo menos explicitamente, mas de entretenimento leve. Filmes românticos e musicais — como Concerto a pedidos (1941) e O grande amor (1942) — proporcionavam um breve escape à dura realidade da guerra. Um indício da importância que Goebbels atribuía ao entretenimento escapista (e sua capacidade de manter o moral) foi a abundância de recursos que destinou à produção do filme em cores Münchhausen, uma comédia fantástica sobre a aventuras do barão de Münchhausen que em 1943 deleitou e distraiu o público alemão atordoado com o desastre de Stalingrado.

Na Itália fascista, a indústria cinematográfica também sofreu muito com o controle e a censura do regime. Assim como na Alemanha, a importação de filmes era limitada. A maior parte das películas italianas estava enlaçada de alguma maneira com a propaganda fascista e a glorificação da guerra, embora muitas fossem comédias ligeiras e dramas românticos. Quase nada disso resistiu ao tempo, mas duas instituições ficaram como legado. Em 1937, Mussolini inaugurou o primeiro estúdio cinematográfico da Itália, dotado de instalações de produção tecnicamente avançadas, a Cinecittà [cidade do cinema], nas proximidades de Roma. Cinco anos antes, tinha sido realizado o primeiro Festival de Cinema de Veneza, no qual se concedia anualmente a Taça Mussolini para o melhor filme italiano e para o melhor estrangeiro — quase sempre alemão.

A criatividade também foi quase completamente reprimida na União Soviética da década de 1930, época em que o controle de Stálin sobre todas as esferas da vida civil aumentava de forma substancial. A produção cinematográfica se burocratizou. Em consequência disso e da intromissão da censura, em dez anos o número de lançamentos caiu à metade. A importação de filmes foi praticamente suspensa. E o experimentalismo de vanguarda, que tinha se destacado na década de 1920, foi substituído pela monótona uniformidade do “realismo socialista” — embora o público soviético preferisse, quando tinha oportunidade, como em qualquer outro país, comédias e musicais leves (ainda que impregnados dos valores do regime).

Fora dos limites dos regimes autoritários, a produção cinematográfica na Europa teve maiores oportunidades de florescer. Mas ninguém conseguia competir com o poderio financeiro, o glamour e a ambição das gigantescas produtoras de Hollywood. A língua também constituía uma barreira para a penetração no mercado anglófono. Na França, pátria do cinema e onde a obra cinematográfica tinha sido parte destacada da vanguarda artística da década de 1920, o advento do filme sonoro não só transformou o cinema, até então uma forma de arte intelectualizada, em entretenimento de massas, como criou problemas de financiamento para a produção nacional. O número de filmes produzidos cresceu velozmente no começo da década de 1930, mas a indústria, fragmentada, passou a ter dificuldades para financiar sua produção. Três quartos dos filmes lançados em 1934 eram estrangeiros, o que gerou protestos contra a ameaça à produção artística nacional, expressões de desprezo pela “invasão” americana das salas francesas e pedidos de intervenção protecionista. Os cineastas franceses lutavam para ficar à altura da concorrência. Não havia possibilidade de financiamento por grandes empresas privadas, como nos Estados Unidos. O Estado teve de intervir quando um relatório ordenado no governo da Frente Popular recomendou o financiamento público, que foi instituído logo depois da queda da Terceira República e continuou com o regime de Vichy.

O financiamento, além da concorrência dos Estados Unidos, também era um problema para a indústria cinematográfica britânica. As tentativas de incentivo à produção nacional e a restrição aos filmes importados, principalmente americanos, levaram apenas a um número maior de filmes ruins. Como em outros países, a produção teve números notáveis. Só em 1936, cerca de duzentos filmes foram lançados — um ponto alto da indústria cinematográfica britânica. Mesmo assim, as produtoras lutavam para sobreviver. Em 1937, restavam apenas vinte das mais de seiscentas em atividade na década anterior. Mesmo produtores com orçamentos generosos, como o imigrante húngaro Alexander Korda, enfrentavam dificuldades. A concentração do capital era inevitável. No fim da década de 1930, um pequeno número de grandes empresas, entre elas a Rank Organization (fundada em 1937 por J. Arthur Rank), controlava a maior parte da produção, das salas de cinema e da distribuição de filmes na Inglaterra. Rank em pouco tempo tornou-se dono das grandes cadeias de cinemas, os Gaumonts e os Odeons, que a essa altura ocupavam lugar de destaque no centro de quase todas as cidades britânicas.

Muitos desses “palácios de sonhos” eram edifícios resplandecentes, em estilo art déco, com amplos espaços internos e, às vezes, capacidade para receber mais de mil espectadores por sessão. A maior parte, porém, nada tinha de “palácio”: na verdade, estava mais para pulgueiro molambento. Eram os pequenos cinemas independentes, que ficavam à mercê das grandes distribuidoras e só podiam exibir filmes fora de cartaz nas salas maiores. Em 1939, a Inglaterra tinha 5 mil cinemas, a maior parte bem-sucedidos, numa época em que sua popularidade atingia novos píncaros. Ir ao cinema saía bem mais barato que ir ao teatro. Os donos de muitos teatros de província perceberam para que lado o vento estava soprando e transformaram seus estabelecimentos em cinemas, empreendimentos mais lucrativos. Mesmo durante a Depressão, as entradas eram acessíveis — e proporcionavam um par de horas de diversão e escapismo, longe do clima desolador da economia. Durante a década de 1930, entradas a preços reduzidos permitiam que 80% dos desempregados fossem ao cinema com regularidade. Ao todo, 23 milhões de pessoas iam ver filmes a cada semana. As vendas anuais de ingressos chegavam na época a quase 1 bilhão.

Os cinemas eram os novos templos de culto; os astros e estrelas, os novos deuses. Os países europeus produziam seus próprios astros, embora a fama da maior parte deles não atravessasse as fronteiras nacionais. Um ator britânico que teve destaque internacional foi o refinado Robert Donat, que se tornou conhecido pelos papéis que representou em Um fantasma camarada (1935), 39 degraus (1935), de Alfred Hitchcock, e Adeus Mr. Chips (1939). Fora do mundo anglófono, era ainda mais difícil conquistar o público internacional. Embora famoso na Alemanha, Hans Albers era pouco conhecido no exterior. Para isso, era preciso ir aos Estados Unidos. Marlene Dietrich e Peter Lorre (este de ascendência austro-judaica) fizeram isso e se tornaram astros internacionais. Emil Jannings e a atriz sueca Zarah Leander, por sua vez, deram as costas a Hollywood e tiveram sua celebridade restrita a países de língua alemã. Dada a influência praticamente hegemônica de Hollywood, a maior parte dos astros e estrelas internacionais era composta de americanos. Quando a guerra se abateu sobre a Europa, Clark Gable, no maior dos sucessos de Hollywood na época, E o vento levou (1939), chegou ao auge da popularidade internacional, logo acompanhado de John Wayne, Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Orson Welles e outros. Estava aberto o caminho para o domínio americano sobre a cultura popular europeia — pelo menos na metade ocidental do continente — uma vez que a guerra tivesse acabado.

Além das continuidades e transformações silenciosas da conjuntura socioeconômica, dos hábitos de fé e da força institucional das Igrejas cristãs, das mudanças nas tendências intelectuais e da abrangência da indústria consumista do lazer, cada vez mais dominada pelos Estados Unidos, subjaz uma realidade inescapável: a Europa tinha chegado perto de se despedaçar na catastrófica e quase suicida primeira metade do século. Num continente devastado pela guerra, a pergunta que se impunha sobre o futuro era se — e como — uma nova Europa, capaz de superar as tendências suicidas da velha, poderia começar a tomar forma a partir das ruínas.

As ideias de uma Europa unida não eram novas, mas nos estertores da catástrofe continental estavam voltando à tona como meio de transcender o nacionalismo que levara o continente à beira da destruição total. Logo depois da Primeira Guerra Mundial, o aristocrata austríaco Richard von Coudenove-Kalergi (filho de um diplomata do Império Austro-Húngaro e uma japonesa) propôs a criação de uma unidade monetária e alfandegária que se estenderia de Portugal à Polônia. Ele via a superação do ódio recíproco entre franceses e alemães como a base essencial de uma nova Europa. Poucos anos depois, em 1929, o ministro das Relações Exteriores da França, Aristide Briand, cogitou a ideia de uma federação de nações europeias baseada na cooperação econômica e política. Jean Monnet, conterrâneo de Briand que mais tarde inspiraria os primeiros movimentos voltados para a integração europeia, declarou, quando fazia parte do governo francês no exílio em Argel, em 1943, que não haveria paz no continente até que os Estados europeus se reconstituíssem como partes de uma federação. Levantavam-se ideias como essa em toda parte, até mesmo em círculos antinazistas na Alemanha.

Mesmo nos dias mais negros da guerra, aqueles que, com imensa coragem, uniram-se à resistência alemã contra Hitler — e que muitas vezes pagaram com a vida — imaginavam uma Europa melhor, construída com base na cooperação, não no conflito entre as nações. Em 1942, o teólogo Dietrich Bonhoeffer, reunido em Estocolmo com o bispo de Chichester, George Bell, falou da disposição de um futuro governo alemão, depois do afastamento de Hitler, de dar apoio efetivo a uma integração das economias das nações europeias e a construção de um exército europeu. Ao elaborar suas ideias para uma nova Europa depois da guerra, membros do grupo de resistência Círculo de Kreisau afirmaram categoricamente, em 1943, que “o desenvolvimento livre e pacífico de uma cultura nacional já não pode conviver com a manutenção da soberania absoluta de cada Estado”. No mesmo ano, um memorando escrito pelo conservador Carl Goerdeler falava na criação de uma “federação europeia” para proteger o continente de uma futura guerra, com um conselho econômico europeu permanente, eliminação de barreiras alfandegárias e organizações políticas comuns — ministérios europeus de economia e relações exteriores, além de Forças Armadas continentais.

Essas ideias não foram adiante — na época. Na Alemanha, os que as defenderam logo foram silenciados para sempre. Mas o idealismo a que deram voz, e até mesmo algumas das sugestões que fizeram, ganhariam curso, uma vez superada a devastação do continente, e seus objetivos pareceriam proféticos. Uma nova Europa, com princípios completamente diversos, poderia então erguer-se das cinzas da velha.