Neste mundo existem pestes e existem vítimas — e na medida do possível devemos recusar estar do lado da peste.
Albert Camus, A peste (1947)
Em 1945, a Europa era um continente que vivia à sombra da morte e da devastação. “Isto aqui é um cemitério. Isto aqui é a morte” — foi assim que a escritora Janina Broniewska, ao voltar a Varsóvia logo depois de sua libertação, descreveu a cidade, irreconhecível em suas ruínas. De volta à Alemanha após mais de doze anos de exílio forçado, Alfred Döblin, o famoso autor do romance Berlin Alexanderplatz, publicado em 1929, ficou chocado ao ver cidades “das quais só restam pouco mais que o nome”.
Na porção continental da Europa, as redes de ferrovias, os canais, as pontes e as estradas tinham sido arrasados por bombardeios ou destruídos por tropas em retirada. Em muitas regiões não havia gasolina, eletricidade ou água. Era assustadora a escassez de alimentos, remédios e, à medida que o inverno se aproximava, carvão para aquecimento. A produção agrícola tinha caído quase à metade. A desnutrição era generalizada. Por toda parte reinava a fome, acompanhada das doenças causadas por ela. O problema habitacional era avassalador. Em muitos casos, as pessoas que tinham um lugar onde morar eram obrigadas a dividi-lo com outras, frequentemente estranhas. O déficit habitacional, na esteira da gigantesca destruição, alcançava uma escala catastrófica. No oeste da União Soviética, região depredada pelos ocupantes alemães, 25 milhões de pessoas não tinham onde morar. Na Alemanha, 40% das unidades habitacionais de antes da guerra, cerca de 10 milhões de moradias, tinham desaparecido. No fim do conflito, ao todo estavam desabrigadas na Europa mais de 50 milhões de pessoas, esgaravatando as ruínas de cidades e vilas em busca de alimentos e abrigo.
Outros milhões de pessoas não tinham onde morar: eram os “desalojados”, antigos trabalhadores forçados, refugiados ou prisioneiros de guerra. A Cruz Vermelha trabalhava incansavelmente para providenciar socorro. A Administração das Nações Unidas para Socorro e Reconstrução (unrra) fora criada pelos Estados Unidos em 1943 (dois anos antes da fundação da Organização das Nações Unidas). Financiada por mais de quarenta países e com sede em Washington, a entidade proporcionou assistentes sociais que fizeram o possível — o que não era pouco — para ajudar e, quando viável, repatriar 6,5 milhões de desalojados, muitos traumatizados por suas experiências. A maioria conseguiu, quase sempre depois de terríveis sofrimentos, voltar para a família, mas nem sempre tiveram a acolhida que esperavam. Muitos casais tinham estado separados durante anos, distanciando-se demais. Não é de admirar que o índice de divórcios tenha disparado.
Para muitas pessoas não haveria retorno. Morriam longe da família, em campos de desalojados ou na prisão (em especial nas condições duríssimas da União Soviética, onde mais de 1 milhão de prisioneiros de guerra pereceram). Algumas pessoas não queriam mesmo voltar; russos e ucranianos estavam entre aqueles que, com razão, temiam o que os esperava. Cerca de 2 milhões de pessoas, entre as quais dezenas de milhares de cossacos que haviam lutado ao lado do Eixo, foram “repatriadas” para a União Soviética pelas potências ocidentais, segundo acordos feitos com Stálin perto do fim da guerra. Com frequência o destino delas era a execução imediata, ou o gulag, ou um exílio distante, por muitos anos. Poucos judeus, com seus parentes assassinados e suas comunidades destruídas, tinham para onde ir. Outras pessoas — refugiados políticos ou criminosos de guerra — seriam obrigadas a procurar novos países, e às vezes inventar novas identidades.
A escala da devastação física da Europa superava em muito a de 1918. E as perdas humanas foram pelo menos quatro vezes superiores às das baixas militares da Primeira Guerra Mundial. No entanto, a guerra anterior tinha deixado um legado de confusão política e econômica crônica, espalhando as sementes de um novo conflito. Dessa vez, por outro lado, uma catástrofe muito pior acabou levando a um período extraordinário de imprevista estabilidade e, pelo menos na metade ocidental do continente, de progresso sem paralelo. Como isso foi possível?
Com certeza não haveria como imaginar esse desdobramento diante das ruínas de 1945. Naquela época, ninguém poderia antever as mudanças notáveis que ocorreriam na Europa em um período tão curto. Na verdade, os primeiros anos depois da guerra deram pouca indicação da transformação que estava por vir. Foram tempos de incerteza política, desordem econômica, miséria social e mais desumanidades terríveis. Só em 1949 os contornos de uma nova Europa — agora um continente dividido por fronteiras políticas, ideológicas e econômicas — ganhariam forma clara.
CATARSE (ATÉ CERTO PONTO)
Antes que pudesse haver algum sinal de recuperação do autoaniquilamento da Europa, era preciso um ajuste de contas com os responsáveis pelo horror do passado recente. Quando a guerra acabou, a Europa não era apenas um continente devastado, mas selvagem. O caos e a desordem imperavam em toda parte, e só aos poucos as forças de ocupação puderam impor seu domínio. Os governos municipais com frequência estavam desmantelados. As condições encontravam-se muitas vezes perto da anarquia. A autoridade pública, quando existia, não tinha condições de evitar vinganças brutais, isso quando não as incitava abertamente. A vingança proporcionava alguma forma de catarse, por mais inadequada que fosse, pelas atrocidades sofridas, pelos maus-tratos absurdos, pelas dores insuportáveis e pela agonia que as pessoas tinham sido obrigadas a aguentar. Para inúmeros europeus, a sede de vingança superou tudo o mais, até a alegria da libertação, assim que a guerra terminou.
A violência dos antes vencidos contra seus antigos algozes foi, de início, generalizada e, com frequência, ilimitada. Prisioneiros de campos de concentração eram às vezes incentivados a se vingar, ou pelo menos não eram detidos por soldados Aliados, chocados com o que tinham presenciado em Dachau, Buchenwald, Natzweiler-Struthof, Bergen-Belsen e outros focos de horrores inimagináveis. Em certos casos, ex-prisioneiros investiam contra seus guardas com furor assassino. Bandos de desalojados e ex-trabalhadores escravizados saqueavam lojas, apoderavam-se de qualquer bebida alcoólica que encontravam e surravam ou matavam civis alemães. Tais atrocidades selvagens foram controladas com relativa rapidez pelas forças de ocupação na Alemanha. Em outros países, porém, os alemães estavam muito mais expostos. Na Europa Oriental, as comunidades alemãs colheram os turbilhões de ódio que seus compatriotas tinham semeado.
Na Iugoslávia, a violência imediata do pós-guerra — numa escala sem paralelo, provavelmente, com qualquer outro lugar da Europa — na verdade não teve como alvo os alemães, que haviam deixado o país em abril de 1945, abrindo caminho à força rumo a oeste. As atenções se voltaram contra a odiada Ustaše croata e os eslovenos colaboracionistas. E a violência era executada não por hordas furiosas e descontroladas, e sim por grupos organizados de partisans vitoriosos, sobretudo comunistas sérvios. Foram inúmeros os massacres. Houve fuzilamentos em massa e horrenda selvageria. A maioria das mortes resultou de vingança de fundo étnico por atrocidades anteriores. As estimativas mais confiáveis indicam que o número de vítimas, tanto civis como soldados colaboracionistas, ascendeu a mais ou menos 70 mil. Levando em conta o tamanho da população, a mortandade foi dez vezes maior que na Itália e vinte vezes maior do que na França.
Ainda assim, mesmo na Europa Ocidental ocorreram represálias selvagens pelo que a população tinha sofrido. As piores se deram na Itália, na fase final da guerra, onde se estima em 12 mil o número de assassinatos, principalmente de fascistas. Durante semanas, no fim da guerra, partigiani levaram a cabo execuções arbitrárias de dirigentes e funcionários do Partido Fascista, além de colaboradores e informantes. Em algumas cidades, multidões arrombaram cadeias e lincharam os fascistas presos nelas. Na França, foram mortos cerca de 9 mil ex-adeptos destacados do regime de Vichy, em especial na época da libertação, em agosto de 1944. Mas na Holanda e na Bélgica não se concretizou plenamente o profetizado “dia dos machados”, quando a multidão faria justiça com as próprias mãos. Nos dois países juntos, houve menos de quatrocentas vítimas. Mesmo assim foram registrados atos brutais de vingança, com a execução sumária de cerca de cem colaboradores — em geral arraia-miúda — após a libertação da Bélgica no último trimestre de 1944, e uma segunda onda de execuções em maio de 1945. Nem todos foram executados por crimes políticos. Houve vítimas de inimizades pessoais e rivalidade em negócios.
Mulheres condenadas como “colaboradoras horizontais” — vistas como culpadas por deitar-se com o inimigo — muitas vezes se tornavam, na Europa Ocidental, bodes expiatórios da fúria represada de comunidades inteiras. Na França, Itália, Holanda, Dinamarca e nas Ilhas do Canal, foram transformadas em párias sociais e humilhadas ritualmente em público. Cortavam-lhes o cabelo, despiam-nas e às vezes esfregavam-lhe excrementos no corpo. Só na França, cerca de 20 mil mulheres foram submetidas à degradação diante de grupos — majoritariamente masculinos — da população local.
O notável, em retrospecto, não é que ocorresse tal violência, mas que tenha sido tão efêmera, mesmo na França de Vichy ou na Hungria, Eslováquia, Romênia e Croácia, transformadas pelos alemães em países-satélites. Com exceção da Grécia (onde, durante a guerra, reinavam condições propícias a uma guerra civil e que logo dariam ensejo a um longo conflito com muitas mortes), as forças de ocupação ou os governos civis recém-instalados controlaram a situação com espantosa rapidez. A violência desenfreada foi cada vez mais contida, salvo onde as próprias autoridades públicas continuaram a incentivar atos de retaliação — como aconteceu nos casos de expulsão de pessoas de etnia alemã de muitas áreas da Europa Central e Oriental antes ocupadas.
Os Aliados haviam dado seu beneplácito quando os líderes dos governos polonês e tcheco no exílio anunciaram a intenção de expulsar todos os alemães de seus países quando a guerra acabasse. As expulsões, eufemisticamente chamadas “transferências de populações”, de modo algum se limitaram a alemães. As deportações em massa de poloneses e ucranianos, assim como de germânicos, seguiram as alterações acordadas em Yalta e Potsdam, que empurraram as fronteiras da Ucrânia soviética para oeste, de modo a incorporar partes da antiga Polônia, e as fronteiras da Polônia também para oeste, à custa de território antes alemão. Pelo menos 1,2 milhão de poloneses e quase 500 mil ucranianos foram tirados de suas casas, muitas vezes com muita violência e brutalidade, e mandados para locais distantes. Outros 50 mil ucranianos deixaram a Tchecoslováquia, enquanto na direção oposta seguiam mais de 40 mil tchecos e eslovacos (muitos deles da Rutênia Subcarpática, que durante a guerra fora uma província da Tchecoslováquia, mas em 1945 foi cedida à Ucrânia). Cerca de 100 mil húngaros foram expulsos da Romênia e quase outros tantos foram deportados da Eslováquia para os Sudetos, enquanto 70 mil eslovacos, vindos da Hungria, entravam na Tchecoslováquia. Inacreditavelmente, o tormento dos judeus que haviam sobrevivido ao massacre nazista ainda não tinha terminado. Também eles fariam parte da população errante que vagava na maré de desumanidade do pós-guerra europeu. Cerca de 220 mil judeus ainda viviam na Polônia, e talvez 250 mil na Hungria. Entretanto, erupções de violência antissemita em várias cidades polonesas, húngaras e eslovacas, sendo as piores delas os pogroms em Kielce, na Polônia, em julho de 1946 e, semanas depois, em Miskolc, na Hungria, mataram centenas de judeus e obrigaram muitos outros a se refugiar.
A violência em Kielce irrompeu em 4 de julho, depois que o pai de um menino que voltou para casa depois de dois dias de desaparecimento acusou judeus de tê-lo sequestrado. Logo se espalhou o boato de que judeus haviam assassinado um menino cristão. As acusações de homicídio ritual — a velha calúnia mais uma vez revivida — evidentemente encontravam pronta acolhida. A polícia e as autoridades militares nada fizeram para dispersar as multidões que clamavam por sangue. Ao todo, 41 judeus foram mortos no pogrom. Conquanto esse tenha sido o pior incidente, o caso de Kielce fez parte de uma onda maior de violência antissemita que tirou a vida de 351 judeus na Polônia. Um letal preconceito persistia, apesar da guerra, da ocupação e do Holocausto. Na realidade, o ataque nazista aos judeus da Polônia permitira que muitos poloneses se beneficiassem do saque das propriedades deles. Na violência de pós-guerra, estava implícita a ideia de que os judeus ainda representavam uma ameaça à ordem social, que, em parte, fora construída com base em sua exclusão e na expropriação de seus bens. Às vezes, ao voltar a seus lares, na Polônia e em outras áreas da Europa Oriental, sobreviventes dos campos de extermínio tinham uma recepção hostil por parte de pessoas que um dia haviam considerado seus amigos, mas que agora não gostavam de rever aqueles de cujas casas e bens tinham se apossado. Três meses depois dos distúrbios em Kielce, cerca de 70 mil judeus buscaram um novo lar na Palestina. Grande número de outros judeus, saídos da Polônia, Hungria, Bulgária, Romênia e Tchecoslováquia, seguiram o primeiro grupo. Tinham concluído, por fim, que não havia futuro para eles na Europa.
Para os povos da Europa Oriental, não poderia haver catarse enquanto houvesse alemães vivendo entre eles. Os grupos de etnia germânica, muitos residentes em locais onde comunidades alemãs existiam havia séculos, eram os mais expostos à imensa brutalidade. Os Aliados tinham estipulado transferências “ordeiras e humanas”, mas a realidade ficou bastante aquém disso. Ninguém se interessava em proteger aqueles que eram vistos como responsáveis pelo horror dos anos anteriores. Com a derrota alemã, o ódio compreensível que se acumulara durante os anos de guerra e ocupação transbordou em atos de represália sem limites e, a princípio, descontrolados. No fim de julho, entre 500 mil e 750 mil alemães, submetidos a roubos, estupros e espancamentos, privados de alimentos e tratamento médico, foram expulsos das novas áreas da Polônia. Atrocidades tornaram-se corriqueiras, e as autoridades polonesas pouco ou nada faziam para coibi-las. Os alemães eram vistos, na prática, como feras ou vermes, a serem caçados ou mortos à vontade. Até os soviéticos ficaram chocados com a ferocidade do revide polonês pelos sofrimentos causados pelos alemães. “Tornam-se cada vez mais frequentes os casos em que alemães são vítimas de homicídios não provocados, prisões sem fundamento e longos confinamentos com humilhação intencional”, dizia um relatório do Exército Vermelho a Moscou em 30 de agosto de 1945.
Na Tchecoslováquia, os alemães dos Sudetos, fossem simpatizantes dos nazistas ou não, eram vistos como traidores. Em 12 de maio de 1945, o presidente Edvard Beneš, da Tchecoslováquia, falou pelo rádio a respeito da necessidade de “liquidar definitivamente o problema alemão”. Foi o quanto bastou para que, de um momento para o outro, mais de 20 mil homens, mulheres e crianças fossem postos para fora de Brno, sendo que alguns não sobreviveram à marcha forçada até a fronteira da Áustria. Um padre católico declarou que o mandamento que determinava que os cristãos “amassem o próximo” não se aplicava aos alemães. Eram gente perversa, e chegara a hora de ajustar as contas com eles.
Como era de prever, o resultado dessas expressões de ódio foi uma terrível violência. Alemães eram expulsos de sua casa, e suas propriedades, saqueadas. Sofriam brutalidades em campos de internamento, onde as condições de vida eram duríssimas. Margarete Schell, nascida em Praga e que fora uma conhecida atriz, manteve um diário de suas experiências num desses campos. Contou que os homens eram açoitados durante a chamada noturna, e alguns eram obrigados a circular de cócoras pela área comum até cairem exaustos, quando eram chicoteados de novo. Ela mesma, entre outros abusos e humilhações que sofreu, foi surrada pelo comandante do campo por enviar uma carta sem permissão.
Fora dos campos, milícias tchecas, grupos de ação comunistas e outros bandos armados agrediam, humilhavam e matavam alemães como bem entendiam. Numa das piores atrocidades, em Usti nad Labem (Aussig), em 31 de julho de 1945, centenas de alemães foram massacrados. Muitos alemães se suicidaram — 5558 só em 1946, de acordo com estatísticas tchecas. Cerca de 3 milhões de alemães já tinham sido obrigados a sair da Tchecoslováquia perto do fim de 1947. Calcula-se que entre 19 mil e 30 mil alemães dos Sudetos foram mortos. Entretanto, o número total pode ter sido muito maior se incluirmos os que sucumbiram a doenças, desnutrição e exposição às intempéries depois das brutais expulsões. Após várias semanas de expulsões e atrocidades, as deportações, ainda que continuassem a ser feitas brutalmente, tornaram-se mais ordenadas, pois não só o governo tcheco como também as tropas de ocupação tinham interesse em deter a violência descontrolada.
Ao todo, pelo menos 12 milhões de alemães foram deportados da Europa Central e Oriental para as zonas ocupadas da Alemanha, que, na medonha situação do pós-guerra, estavam pessimamente preparadas para recebê-los. A acolhida na própria Alemanha desses alemães expatriados foi tudo menos calorosa. “Estamos passando fome e sofrendo demais, Senhor Deus, mandai a ralé para casa. Mandai-os de volta para a Tchecoslováquia. Senhor Deus, livrai-nos da ralé”, assim oravam algumas pessoas na zona rural de Württemberg em 1946-7. Em pesquisas de opinião feitas em 1949, cerca de 60% da população alemã e 96% dos expatriados classificavam suas relações como ruins. Os alemães consideravam os recém-chegados pretensiosos, atrasados e indignos de confiança; os novos residentes julgavam seus anfitriões egoístas, insensíveis e maus. “Sabemos que não somos desejados aqui e que as pessoas querem nos ver pelas costas”, dizia o apelo de um queixoso ao prefeito de uma cidade em 1948, “mas também nós, o senhor pode acreditar, preferiríamos estar em nossa terra natal e não ser um peso para ninguém. Não somos refugiados. Em oposição às leis morais, fomos arrancados de nossas casas, enxotados de nossa terra, roubados de tudo o que possuíamos e trazidos para cá mediante o uso da força, e pelo menos não por vontade própria.”
Segundo as estimativas mais otimistas, pelo menos meio milhão de alemães perderam a vida, de uma forma ou de outra, durante as brutais expulsões; a sorte de mais 1,5 milhão é desconhecida. Outros, oriundos de antigas comunidades alemãs na Romênia, Hungria e Iugoslávia, formaram parte de “reparações vivas” e foram deportados para um destino nada invejável em campos de prisioneiros soviéticos.
Em 1950, restava na Europa Oriental um número muito menor de populações minoritárias de qualquer tamanho. As minorias étnicas não foram eliminadas inteiramente, e os países bálticos e a Ucrânia tinham consideráveis minorias russas, que não eram discriminadas. Afinal, a União Soviética era dominada por russos. E a Iugoslávia, que já antes da guerra era formada por uma colcha de retalhos étnica, continuou basicamente assim. Mas a população dos países do Leste Europeu tornou-se muito mais homogênea do ponto de vista étnico. A velha Europa Oriental multiétnica tinha, em grande parte, desaparecido. As drásticas expulsões e a horrenda limpeza étnica cumpriram seu objetivo hediondo.
Depois da erupção de ódio primitivo que conduziu a essa violência extrema e sem peias nas primeiras semanas depois da rendição alemã, os clamores de justiça começaram a ser dirigidos para os canais estatais. Isso ocorreu mais depressa onde havia algum nível de confiança na capacidade dos governos recém-formados para realizar reformas de alto a baixo, expurgar o serviço público de antigos colaboradores do inimigo, prendê-los, julgá-los e punir severamente os culpados. A presença, nos novos governos, de respeitados ex-membros de movimentos de resistência nacional ajudou a agilizar o processo. Os rápidos expurgos na polícia, como ocorreram na Noruega, na Dinamarca e na França, tiveram o mesmo efeito e contribuíram, em certa medida, para restaurar a confiança no governo. Além disso, em grande parte da Europa, a população, cansada de anos de luta e ansiosa por uma volta a qualquer coisa que pudesse ser chamada de “normalidade” e desejosa de ver o término da violência e do conflito, estava disposta a colaborar com as autoridades. Entretanto, onde a confiança na autoridade pública precisava ser recriada aos poucos, como em grande parte da Europa Meridional e Oriental, o declínio da violência descontrolada teve de esperar mais. Com frequência, esconderijos de armas permaneciam nas mãos de milícias, justiceiros e ex-integrantes da resistência, que relutavam em entregá-las. A anistia por assassinatos ditados por vingança convenceram alguns a entregar suas armas. Mas, para que a violência diminuísse ou fosse reprimida pelas autoridades, a população precisava antes acreditar que os governos agiriam com eficiência contra criminosos de guerra e colaboradores.
Nos países agora sob a égide da União Soviética, o expurgo “oficial” de fascistas e partidários de regimes colaboracionistas foi drástico, porém logo se tornou um meio bastante arbitrário de demonstrar lealdade aos novos governantes. Aqueles que eram vistos como piores criminosos foram julgados e executados, muitas vezes em público. Uma enorme multidão (ainda que, com certeza, não os 100 mil que alguns afirmaram) assistiu ao enforcamento de sete alemães em Riga, em 1946. Ex-colaboradores incontestes em geral eram fuzilados sem perda de tempo quando os soviéticos recuperavam territórios perdidos, como os 1700 executados na Lituânia em julho e agosto de 1944. A forma mais comum de punição, no entanto, era a deportação para campos de trabalhos forçados em áreas inóspitas da União Soviética, de onde em geral ninguém voltava. Calcula-se que pelo menos meio milhão de pessoas tenham sido deportadas da Estônia, Letônia e Lituânia entre 1944 e 1949. Entre 140 mil e 200 mil foram presas na Hungria e deportadas para a União Soviética, em sua maioria confinadas em campos de concentração. Muitos suspeitos de simpatia pelo fascismo ou atividades anticomunistas, o que dava no mesmo, eram presos. Na Romênia, o número de presos políticos chegou a 250 mil em 1948 — cerca de 2% da população total. A essa altura, a linha divisória entre colaboracionismo real e atos julgados “contrarrevolucionários”, cometidos pelos chamados “inimigos de classe”, tinha se apagado havia muito tempo.
Numa cidade da Hungria, em fins de 1945, um frade franciscano, Szaléz Kiss, e cerca de sessenta rapazes, muitos deles membros de um grupo de jovens dirigido pelo religioso, foram presos e acusados de pertencer a uma “conspiração fascista” que matara soldados soviéticos. Obtiveram-se confissões mediante tortura. Kiss e três adolescentes foram executados; outros foram condenados à prisão ou deportados para a União Soviética. Como a teoria e a prática comunistas consideravam o fascismo a mais extrema forma de reacionarismo, o aparelho judicial na Europa Oriental enfrentava dificuldades para realizar expurgos sistemáticos e dirigidos, já que grande parte da população não comunista estava potencialmente implicada. Por isso mesmo, os expurgos se tornaram, na Romênia, na Bulgária e na Hungria, meios arbitrários de garantir subserviência política. Uma pessoa inocente podia, de forma deliberadamente falsa, ser denunciada como “fascista” em decorrência de alguma expressão inócua de inconformismo político.
Os expurgos “oficiais” na Europa ocidental foram menos draconianos do que nos países comunistas, inclusive menos do que a população em geral desejava. Vidkun Quisling, na Noruega, Anton Mussert, nos Países Baixos, e Pierre Laval, na França, foram executados. (Aos 87 anos de idade, o marechal Pétain teve sua sentença comutada para prisão perpétua.) Os expurgos eram, com certeza, levados a sério, em especial logo depois da guerra. Em toda a Europa Ocidental, centenas de milhares de pessoas foram presas e submetidas a julgamento por traição, crimes de guerra ou colaboracionismo — 40 mil na Dinamarca, 93 mil na Noruega, 120 mil nos Países Baixos e nada menos que 405 mil na Bélgica. De modo geral, esses condenados tinham sido acusados de delitos relativamente secundários e receberam penas leves. Muitos foram soltos logo ou anistiados dentro de pouco tempo.
Houve relativamente poucas sentenças de morte ou mesmo penas de prisão muito longas. Mais de 80% dos presos na Bélgica, por exemplo, nem foram indiciados; 241 foram executados, e a maioria dos demais recebeu penas leves. Nos Países Baixos, houve quarenta execuções e 585 sentenças de reclusão mais longas para 44 mil indiciamentos (muitos deles por transgressões banais). No entanto, servidores públicos e policiais profundamente envolvidos em episódios de coerção de trabalhos forçados, deportações de judeus e represálias contra a resistência safaram-se com facilidade. Já na França, o expurgo foi comparativamente severo. Houve 300 mil indiciamentos, que resultaram em 125 mil processos e quase 7 mil sentenças de morte, a maioria in absentia. Ainda assim, os tribunais determinaram cerca de 1500 execuções e 39 mil sentenças de prisão (em geral breves). A maioria das condenações foi objeto de anistia em 1947. Somente cerca de 1500 dos piores criminosos de guerra ainda estavam presos em 1951.
Na Áustria, cerca de meio milhão de pessoas, 14% da população adulta do país, tinham sido membros do Partido Nazista, e alguns dos piores criminosos de guerra nazistas eram austríacos. Ainda assim, o país conseguiu se apresentar como a primeira vítima da guerra de agressão alemã. A Áustria, como já foi corretamente observado, foi um dos lugares mais seguros na Europa para colaboracionistas. Somente trinta sentenças de morte por crimes de guerra foram cumpridas. Nos territórios tchecos vizinhos, esse número chegou a 686. Na Áustria, muitos membros da polícia e do Judiciário foram denunciados. Dos 270 mil nazistas empregados no país, a metade foi dispensada em meados de 1946, mas muitos outros foram logo anistiados e reempregados. Os tribunais decretaram 13600 sentenças de prisão, em geral leves. Em 1948, uma anistia reintegrou 90% dos condenados a penas leves, e em meados da década de 1950 os condenados a penas mais severas foram anistiados. De modo geral, os tribunais se mostravam mais lenientes à medida que o tempo passava. Em todos os países, a normalização do funcionamento do Estado teve prioridade sobre a punição e retaliação por comportamento durante a guerra, a não ser nos casos mais gritantes.
Em todos os países da Europa ocupada houve colaboracionistas ferrenhos, mas raramente, ou nunca, houve o apoio da maioria da população, e quase todos eram odiados em seus países. Na Alemanha, contudo, durante muito tempo fora enorme a popularidade de Hitler, como também o apoio ao nacionalismo militarista de seu regime, que pisoteara a paz na Europa. Milhões de alemães tinham sido membros do Partido Nazista e de suas organizações. Muitos tinham apoiado a perseguição aos judeus e outras medidas desumanas no país, enquanto os integrantes das forças de ocupação — frequentemente com o apoio tácito dos que estavam na Alemanha — muitas vezes foram cúmplices em atos de barbárie na Europa ocupada. Ao regressar à sua terra natal, Alfred Döblin teve a sensação de que os próprios alemães mostravam “uma relação estranhamente distante com os acontecimentos de sua própria época” e eram incapazes de compreender a catástrofe que se abatera sobre eles, concentrando-se tão somente em sua rotina cotidiana. Se — e como — a Alemanha poderia voltar algum dia a desempenhar um papel positivo na Europa eram questões a que poucos saberiam dar respostas seguras em 1945. Expurgar o país de seus ex-nazistas era o primeiro passo, e o mais óbvio, no processo de reconstruir a Alemanha como uma democracia, como os Aliados tinham estipulado na Conferência de Potsdam, em meados de 1945. Mas dizer isso era fácil; fazer nem tanto.
Alguns membros da cúpula nazista tinham escapado a seu destino mediante o suicídio, quando o Terceiro Reich se desintegrava ou logo depois, já presos pelos Aliados. Entre estes estavam Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda; Martin Bormann, o braço direito de Hitler (cujos restos mortais foram encontrados décadas depois, a pouca distância do bunker de Hitler); Robert Ley, o fanático chefe da Frente Alemã para o Trabalho; e Heinrich Himmler, o temido chefe da ss e da polícia alemã. Alguns, como Rudolf Höss, o ex-comandante de Auschwitz, ou Arthur Greiser, o cruel senhor do território chamado de “Warthegau”, no oeste da Polônia, foram entregues aos poloneses, que eles haviam perseguido de forma tão bárbara, e executados. Outros, como o famigerado Adolf Eichmann, o “gerente” da “solução final para a questão judaica”, foram levados em segredo, através da Espanha, para a América do Sul (muitas vezes, e espantosamente, isso aconteceu com a ajuda de canais do Vaticano). No entanto, os Aliados conseguiram capturar 21 figurões do regime nazista. Entre eles estavam Hermann Göring, designado sucessor de Hitler; Joachim von Ribbentrop, antigo ministro do Exterior; Ernst Kaltenbrunner, chefe da polícia política; Hans Frank, governador-geral da Polônia; e Rudolf Hess, vice-líder do Partido Nazista até sua bizarra fuga para a Escócia em 1941. Alguns líderes militares — Wilhelm Keitel (chefe do alto-comando da Wehrmacht), Alfred Jodl (chefe do Estado-Maior de Operações), Erich Raeder (comandante em chefe da Marinha até 1943) e Karl Dönitz (que lhe sucedeu como comandante da Marinha e, depois do suicídio de Hitler, foi presidente do Reich durante alguns dias) — também foram incluídos entre os grandes criminosos de guerra a serem julgados.
Levar dirigentes nazistas a julgamento por seus crimes foi a parte mais fácil. Difícil foi percorrer o campo minado do Judiciário, pois não havia nem precedente nem jurisprudência consagrados para o Tribunal Militar Internacional (com um corpo de juízes e promotores das quatro potências de ocupação) instalado em Nuremberg para funcionar durante um ano (entre 1945 e 1946). Churchill propusera que os grandes criminosos fossem fuzilados assim que detidos, mas Stálin preferiu que fossem julgados antes da execução. A opinião pública na Europa defendia a justiça sumária, porém levou a melhor a pressão americana para a abertura de um processo legal formalizado contra aqueles que fossem chamados a juízo, a fim de demonstrar sua culpa, sobretudo para a população alemã, em vez de simplesmente presumi-la. Doze dos indiciados, entre os quais Göring, Ribbentrop, Frank, Bormann (in absentia), Keitel e Jodl, foram sentenciados à morte por enforcamento. (Göring suicidou-se antes que sua pena fosse cumprida.) A maioria dos demais, inclusive Albert Speer, que teve a sorte de se livrar do cadafalso, receberam longas sentenças de prisão. O Partido Nazista, a ss e a Gestapo foram declarados organizações criminosas. Seguiram-se em Nuremberg doze julgamentos adicionais, realizados somente pelos americanos, entre 1946 e 1949. Figuras de destaque, ao todo 185, de ministérios do governo, das Forças Armadas, da indústria, da medicina e do Judiciário, como também das forças-tarefas (Einsatzgruppen) da polícia política foram indiciadas por cumplicidade em crimes atrozes durante a guerra. Os julgamentos terminaram com 24 sentenças de prisão perpétua e 98 de penas de prisão mais leves.
Na época, como até hoje, muitas pessoas criticaram os Julgamentos de Nuremberg como “justiça de vencedores”. Alegaram que foram pouco mais que uma farsa, pois os próprios soviéticos tinham perpetrado imensos crimes de guerra, e os bombardeios de Dresden, Hamburgo e outras cidades pelos Aliados também eram exemplos disso. De fato, considerando os padrões judiciais do Ocidente, os julgamentos passaram longe da perfeição. Entretanto, não levar os criminosos de guerra nazistas a julgamento teria sido uma omissão grotesca aos olhos do mundo civilizado. Na própria Alemanha da época, pesquisas de opinião mostraram uma ampla aceitação da lisura dos julgamentos e dos veredictos. Maiorias esmagadoras aprovaram o indiciamento de organizações inteiras, como a sa, a ss e a Gestapo. Cerca de metade das respostas julgavam que a culpa por crimes de guerra se estendia além daqueles que estavam no banco dos réus em Nuremberg. Muita gente acreditava que outros membros do Partido Nazista e subordinados em posições de poder também deviam ser acusados. Aí, porém, começavam os problemas. Quem eram essas pessoas, qual era a extensão de sua culpa, como deveriam ser indiciadas? Como deveriam as potências ocupantes fazer distinção não só entre culpados e inocentes, a seus olhos, como também entre diferentes níveis de culpa, quando mais de 8 milhões de alemães — cerca de 10% da população — tinham sido membros do Partido Nazista e outras dezenas de milhões haviam se filiado a outras organizações ligadas ao Partido?
Não tardou para que se reconhecesse que a tarefa de desnazificar a sociedade alemã não era apenas hercúlea, mas absolutamente impraticável. Nas três zonas ocidentais, das quatro em que a Alemanha estava dividida, os americanos eram, pelo menos nos estágios iniciais do processo, os mais determinados em levá-la a cabo. Os Aliados ocidentais logo se deram conta de que era administrativamente impossível para o reduzido contingente de pessoal sem treinamento das forças de ocupação lidar com os milhões de questionários a respeito de seu envolvimento com as organizações nazistas durante o Terceiro Reich que os alemães foram obrigados a preencher. Com frequência, os questionários mal valiam o papel em que eram impressos; não chega a ser surpresa, mas nem todos contavam a verdade em suas declarações. No fim de 1945, os campos de internação estavam abarrotados, milhares de servidores públicos tinham sido demitidos, mas a desnazificação rigorosa da Alemanha se mostrava inexequível. Só na zona americana, apenas 1,6 milhão de questionários tinham sido processados, enquanto 3,5 milhões de nazistas conhecidos ainda aguardavam classificação — e os americanos pretendiam retirar-se da Alemanha em 1947.
Os britânicos e franceses não estavam se saindo muito melhor. Os primeiros tinham julgado e executado alguns dos responsáveis pelas horripilantes atrocidades em Bergen-Belsen, que tanto haviam chocado o público quando o campo foi libertado por tropas britânicas em 1945. Também foram demitidos cerca de 200 mil alemães — muitos do serviço público (principalmente professores), da polícia e de altos cargos na indústria, mas também gente que trabalhava na produção de alimentos, nas estradas de ferro e nos correios. Entretanto, o custo da ocupação era exorbitante para uma Inglaterra falida. A desnazificação começou a ocupar um distante segundo lugar na lista de prioridades, pois era urgente reconstruir a Alemanha. E isso teria de ser feito por alemães. Muitos tinham um passado extremamente obscuro. Contudo, caberia aos alemães administrar seu próprio país. Os franceses, como os britânicos, foram logo compelidos a uma atitude pragmática. Os expurgos retaliatórios teriam de ceder lugar a necessidades práticas. Três quartos dos professores alemães na zona francesa foram demitidos nas primeiras semanas da ocupação. Mas, quando as escolas reabriram, em setembro de 1945, todos foram recontratados. Os franceses só conseguiram processar cerca de meio milhão de questionários. E sua leniência foi das mais surpreendentes. Só 18 mil pessoas incorreram em penalidades automáticas; na zona francesa, os autores de “grandes delitos” foram treze; na zona americana, 1654.
No começo de 1946, admitindo o fracasso, os Aliados ocidentais repassaram aos alemães a responsabilidade por sua própria desnazificação. Criaram-se centenas de tribunais de comarca, sob controle dos Aliados. Mantiveram-se os questionários, mas com modificações. O mesmo aconteceu com várias categorias de culpa, que variavam de grandes transgressões até completa isenção. Quase todos os que foram levados a juízo pareciam capazes de apresentar pessoas com referências aparentemente impecáveis dispostas a atestar seu bom comportamento durante a era nazista. Não foi à toa que os depoimentos receberam o apelido de “atestados Persil” — lavavam “mais branco”, como diziam os anúncios publicitários do conhecido sabão.
Pouco a pouco, todo o processo de desnazificação descambou para quase uma farsa. Mais de 6 milhões de causas foram nominalmente ouvidas, sendo dois terços delas prontamente anistiadas. Entre os levados a juízo, pelo menos nove décimos foram considerados culpados de transgressões banais. A maioria foi classificada como “simpatizante” ou inocentada por completo. Os tribunais, apelidados de “fábricas de simpatizantes”, já tinham perdido a credibilidade e eram odiados pela população muito antes de serem finalmente extintos, em 1951, por leis aprovadas pelo governo da Alemanha Ocidental, que anistiou centenas de milhares de pessoas, apenas excetuados os piores criminosos. Nesse ínterim, a maioria dos servidores públicos demitidos foram reintegrados. O fracasso da desnazificação refletiu não só a crescente impopularidade dos procedimentos processuais, a rejeição generalizada de culpa coletiva por crimes nazistas e os ajustes pragmáticos a necessidades administrativas numa situação política em rápida transformação. Espelhou também o sentimento popular em relação ao nacional-socialismo, registrado em numerosas pesquisas de opinião: tinha sido uma boa ideia, mal executada, mas, em todo caso, preferível ao comunismo.
Na zona soviética, a desnazificação tomou um caminho diferente, mais inflexível. Dezenas de milhares de pessoas pereceram em campos (inclusive antigos campos de concentração nazistas) e em prisões administrados pela polícia secreta soviética, enquanto um número bem maior foi mandado para campos de trabalhos forçados. Na zona oriental, mais de meio milhão de alemães foram demitidos no fim de 1945, ao mesmo tempo que se realizavam enormes expurgos de juízes e advogados, servidores públicos e professores universitários e secundários. Mais de 40 mil novos professores já tinham assumido seus postos em fins de 1946. Dois terços dos juízes e três quartos dos professores de escolas primárias foram substituídos entre 1945 e 1950. Os novos professores e burocratas receberam treinamento mínimo, com consequências previsíveis para a qualidade da educação.
Mesmo na zona soviética, porém, considerações práticas não podiam ser postas de lado. Em geral, os médicos, mesmo com credenciais nazistas, foram deixados em seus empregos — não podiam ser substituídos com a mesma facilidade que professores e burocratas. Até a ideologia podia ser objeto de vista grossa quando era conveniente. Os americanos tiraram do país centenas de cientistas nazistas para trabalhar em seu programa espacial. Os russos fizeram o mesmo em sua zona. De mais a mais, a zona soviética não podia ser simplesmente destruída, ainda que os soviéticos parecessem estar fazendo todo o possível para isso ao desmantelar de forma drástica a indústria alemã. Por fim, nazistas de menor importância foram encorajados a provar que reconheciam seus erros, convertendo-se interiormente às doutrinas do marxismo-leninismo e aceitando o caminho que levaria a uma sociedade reconstruída de forma radical e governada pelos princípios do socialismo de Estado. O vermelho comunista era o novo pardo dos nazistas.
Seria possível realizar os expurgos de forma diferente? Não é fácil apontar caminhos alternativos que pudessem ter sido seguidos na Europa Ocidental ou no Leste Europeu. No bloco soviético emergente, os expurgos foram inegavelmente impiedosos, além de representar um instrumento bastante ineficiente para impor submissão política. Os expurgos drásticos e rápidos, que visavam a erradicar a “reação”, os “elementos subversivos” e as “tendências antissoviéticas”, assim como autênticos criminosos de guerra e colaboracionistas, transmitiram sua mensagem. A maior parte da população não era comunista, que dirá pró-soviética, e era improvável que votassem em comunistas em eleições livres. No entanto, os expurgos mostravam claramente o que estava por trás da atitude implacável dos novos governantes. O povo era levado à aquiescência mediante intimidação. Por mais brutal que fosse, o rompimento radical com o passado funcionava.
Na Europa Ocidental, os expurgos satisfizeram a poucos. Para uns, eram demasiado lenientes; para outros, rigorosos demais. Todavia, reconstruir sociedades num clima de consenso requeria integração, e não o divisionismo de recriminações e vinganças intermináveis. A compreensível ânsia de punição dos responsáveis precisava ser inibida, para que não envenenasse os esforços de longo prazo de reconstrução social e política. Era necessário conter as paixões exacerbadas. A justiça natural precisava subordinar-se à política. Lançar a vista para o futuro tinha de ter precedência sobre uma retificação mais completa do passado. A amnésia coletiva era o caminho para avançar.
Muita gente de passado mais que duvidoso pôde chegar à idade avançada e morrer de morte natural graças a uma leniência que nunca mostraram por suas vítimas. A relativa complacência do Ocidente para com ex-simpatizantes do fascismo e a rapidez com que foram reintegrados à sociedade alimentaram a propaganda soviética. Contudo, a própria União Soviética apoiou muitos elementos do Exército Vermelho que haviam cometido graves atrocidades, partindo do princípio, naturalmente, de que tinham agido por uma causa justa. Com o surgimento da Guerra Fria, considerações políticas de um lado e de outro determinaram que a época dos expurgos chegasse ao fim, que o passado fosse riscado em favor da unidade socialista no leste e de um anticomunismo cada vez mais estridente no Ocidente.
As vítimas da desumanidade nem remotamente podiam concordar com a ideia de que os culpados tinham sido punidos, de que o pus houvesse sido plenamente drenado. Nada seria capaz de compensá-los pelo que sofreram; não havia como imaginar uma catarse completa. Várias décadas depois, como indício da prestação de contas inevitavelmente falha, criminosos de guerra culpados de crimes hediondos ainda eram procurados, expostos e levados a julgamento. Durante o resto do século XX, a Europa nunca se livraria inteiramente do fedor da absurda desumanidade dos anos de guerra.
REDESPERTA A POLÍTICA: DIVISÕES E INCERTEZAS
Novas formas de política pluralista se reafirmaram com notável rapidez depois da guerra. A conquista alemã rompera a continuidade em quase todos os países, e a política precisou assumir novas formas. No entanto, as bases do pluralismo político não desapareceram. Tinham sido suprimidas por muito tempo, mas puderam ser reativadas com extraordinária celeridade. Sob a superfície da proibição e da perseguição, os partidos de esquerda, em especial, tinham não só mantido como ampliado grande parte de seu antigo eleitorado, em virtude de sua demonstração de resistência. No caso dos partidos liberais e conservadores, as descontinuidades foram maiores. Mesmo com relação a eles, porém, o que causa admiração é a rapidez com que as antigas bases políticas, ainda que por trás de partidos com novos nomes, puderam ser reconstruídas.
Ainda assim, o futuro panorama político apresentava contornos inteiramente indefinidos. O fascismo fora pulverizado, a enorme custo, e o retorno a um autoritarismo em estilo fascista podia ser descartado (embora os temores quanto a uma revivescência do nazismo na Alemanha não se extinguissem de imediato, enquanto Espanha e Portugal permaneciam naquilo que a ficção científica chama de deformação temporal). Por outro lado, com o triunfo militar da União Soviética, crescera o prestígio do comunismo soviético, que passou a desfrutar de muito apoio numa esquerda revitalizada e unida na luta contra o fascismo. Eram muitos os que olhavam para Moscou ainda, ou novamente, em busca de inspiração e esperança. No entanto, a maioria na esquerda ou desejava expressamente um sistema político pluralista ou pelo menos aceitava que a democracia inclusiva fosse por enquanto necessária. E para além da esquerda havia, em toda parte, e principalmente fora das maiores concentrações urbanas, grandes setores da sociedade que permaneciam conservadores, antissocialistas e, com frequência, sob forte influência das Igrejas. Em cada país, a natureza exata do sistema político e a constelação de sua base popular só se resolveram gradualmente.
Logo depois da guerra, foi como se a hora da esquerda — desalentada, dividida e derrotada durante a Depressão — tivesse finalmente chegado. As Frentes Populares da década de 1930, apesar de efêmeras, obtiveram sua unidade por meio da oposição comum ao fascismo. Em 1945, insuflado com a vitória depois de esmagado o inimigo mortal, o antifascismo tornou-se mais uma vez o cimento que deu coesão à esquerda. Os comunistas, sobretudo, beneficiaram-se de sua demonstração de resistência resoluta. A esquerda — comunista e socialista — parecia navegar de vento em popa.
Renasce a política pluralista na Europa Ocidental
Nas primeiras eleições do pós-guerra, na maioria dos países, os partidos comunistas mais que dobraram sua força, em comparação com os níveis de votação antes do conflito. Os melhores resultados dos comunistas em 1945-6 ocorreram na França (mais de 26%), Finlândia (23,5%), Islândia (19,5%) e Itália (quase 19%). Uma votação de 10% a 13% foi obtida em Bélgica, Dinamarca, Luxemburgo, Países Baixos, Noruega e Suécia. Em algumas eleições regionais alemãs (só em 1949 ocorreram eleições nacionais na Alemanha), a votação chegou a 14%. Entretanto, os comunistas receberam apenas de 5% a 6% dos votos em eleições na Áustria e na Suíça, e nada mais que 0,4% na Inglaterra. A votação dos candidatos de partidos socialistas em geral superou bastante a dos comunistas, chegando a mais de 40% nas primeiras eleições do pós-guerra na Áustria, Suécia, Noruega e algumas eleições regionais na Alemanha Ocidental, a mais de 30% na Bélgica e na Dinamarca e pouco menos que isso nos Países Baixos. Na França e na Itália, a votação total na esquerda foi considerável — 47% na França e 39% na Itália —, mas dividida de forma bastante igualitária entre comunistas e socialistas.
Ao desprezo pelo fascismo e à obstinada rejeição pelo eleitorado dos grupos conservadores, que no passado haviam se consorciado com a extrema direita, somava-se o desejo de amplas reformas sociais e econômicas da espécie que, acreditava-se, só a esquerda poderia proporcionar. Nos países escandinavos, onde a guerra fora menos destrutiva (embora a Noruega tivesse perdido 20% de sua infraestrutura econômica), a esquerda social-democrata pôde consolidar a base de poder constituída antes do conflito e introduzir reformas importantes e duradouras na previdência social. Na Dinamarca, os sociais-democratas, de início um pouco prejudicados por sua participação no governo colaboracionista durante a guerra, logo recuperaram as perdas sofridas para os comunistas. A social-democracia fortaleceu-se na Noruega, favorecida por seu envolvimento na resistência, e se manteve forte na Suécia. Na pequena Islândia, um dos raros países europeus que prosperaram na guerra e que se tornara independente da Dinamarca em 1944, os sociais-democratas continuaram a perder para o Partido Comunista de Unidade Popular. Ambos, porém, se uniram ao Partido da Independência, conservador, numa coalizão que, extraordinariamente, enfrentou poucas discórdias para modernizar o país e melhorar o padrão de vida, mediante o apoio à frota pesqueira. Na Escandinávia, a guerra interrompeu, mas não destruiu as estruturas políticas ou os programas de reforma econômica e social.
A social-democracia também mostrou sua força na Finlândia, embora isso não estivesse óbvio em 1945. Na época, parecia muito mais provável que a Finlândia acabasse fazendo parte do bloco soviético. Em 1945, pela primeira vez desde 1929, os comunistas finlandeses (os “democratas populares”) puderam disputar as eleições, recebendo 23,5% dos votos, um pouco abaixo dos 25% dos sociais-democratas (muito menos do que antes da guerra). Esses dois partidos, juntamente com o Partido Ruralista (21%), formaram um governo de coalizão cujo programa esquerdista incluía nacionalização, reformas fiscais e previdenciárias e um amplo controle estatal da economia, com medidas cuidadosas para preservar a independência e ao mesmo tempo manter boas relações com os vizinhos soviéticos. Coube aos comunistas o Ministério do Interior e quatro outras pastas. Um comunista, Mauno Pekkala, se tornou primeiro-ministro em 1946.
Tudo indicava que a infiltração comunista nas redes de poder, como estava ocorrendo nos países da Europa Oriental sob controle soviético, poderia vir a acontecer também na Finlândia. No entanto, os comunistas finlandeses, já divididos, defrontaram-se com forte oposição dos sociais-democratas e dos ruralistas, perdendo terreno para ambos nas eleições de 1948. Nesse meio-tempo, o anticomunismo tinha ganhado força, e a tomada do poder pelos comunistas na Tchecoslováquia, em 1948, ligou a sirene de alerta na Finlândia. Apenas um mês depois, os políticos finlandeses se houveram com habilidade em negociações sobre uma aliança militar com a União Soviética que resultou num acordo menos coercitivo, o tratado defensivo de “amizade, cooperação e assistência mútua”. O mais importante, porém, foi que, por suas próprias razões pragmáticas, Stálin se dispôs — é possível que a reação negativa da comunidade internacional ao golpe tcheco tenha exercido seu papel — a deixar a Finlândia como um vizinho independente e não obrigá-la a aceitar a situação de satélite, como outros países na esfera de influência soviética. Os sociais-democratas, embora muito criticados em Moscou, conseguiram desempenhar, depois de 1948, um papel substancial na política e na economia da Finlândia durante alguns anos.
O Partido Trabalhista Britânico também triunfou no fim da guerra. Defendia uma versão da social-democracia, embora tivesse se desenvolvido, desde a fundação, de maneira muito diferente dos partidos social-democratas do continente. E, o mais importante, nunca enfrentara qualquer ameaça séria por parte do comunismo. Assim, não havia na esquerda britânica nenhuma cisão, nenhuma rixa interna. E, naturalmente, ela não tivera de se confrontar com um regime, perseguição ou ocupação nazistas. No período do Governo Nacional, durante a guerra, a política partidária convencional fora suspensa, mas ao ser retomada, em 1945, as velhas estruturas ainda estavam no lugar. O Partido Conservador, que só estivera fora do governo num total de três dos trinta anos anteriores, foi forçado a um papel de oposição e a repensar seu programa político e sua organização interna. No entanto, era visivelmente o mesmo partido e tinha em Churchill um líder de renome mundial.
Na eleição de 1945, foram decisivas as lembranças da Depressão, que tinham deixado marcas fundas na consciência pública da Inglaterra. Não podia haver uma volta àqueles anos funestos. A exigência de uma ampla reforma social e econômica que impedisse a repetição de tamanha desgraça derrubou Winston Churchill e levou os trabalhistas ao poder nas eleições de julho de 1945, com mais de 60% das cadeiras parlamentares. O novo governo, chefiado por Clement Attlee, um primeiro-ministro nada carismático mas eficientíssimo, tomou para si a tarefa de construir Jerusalém aqui e agora “na verde e amena terra da Inglaterra” (como dissera William Blake num poema, no começo do século XIX). Attlee teve a ajuda de vários ministros muito experientes e competentes. Entre os mais destacados estava Ernest Bevin, que no entreguerras fora o principal líder sindical da Inglaterra. Bevin foi uma presença gigantesca no Ministério do Trabalho no governo da guerra e, num dos golpes de mestre de Attlee, foi nomeado secretário do Exterior. Outra figura-chave foi seu quase xará, Aneurin Bevan. Ex-mineiro e orador eficaz, era um homem profundamente marcado pelas privações e dificuldades reinantes nas comunidades mineradoras do País de Gales, e no governo de Attlee foi nomeado ministro da Saúde. O ascético Sir Stafford Cripps, um ex-rebelde de esquerda que durante a temporada que passou em Moscou como embaixador britânico viu seu entusiasmo por Stálin se desvanecer e dar lugar ao interesse por gestão, eficiência e planejamento no estilo do New Deal numa economia mista, exerceu forte influência no direcionamento da economia britânica no pós-guerra.
O objetivo do novo governo trabalhista era nada menos que uma revolução social e econômica por meios democráticos. A mineração do carvão, as ferrovias, o gás e a eletricidade, bem como o Banco da Inglaterra, foram estatizados. A Lei da Educação, adotada pelo governo de coalizão durante a guerra, em 1944, ampliou o acesso ao ensino secundário. Aumentaram os direitos dos trabalhadores e empreendeu-se um extenso programa habitacional. E, acima de tudo, foi criado o “estado de bem-estar social”, designação já classificada, com acerto, como “o talismã para uma Inglaterra melhor no pós-guerra”, realização que coroou o governo Attlee. O salário-família, pago diretamente às mães, tornou-se universal, e uma série de leis de assistência social (que concretizava grande parte do plano de seguridade social proposto por Lord Beveridge em 1942) começou a reduzir os piores aspectos da privação do período anterior à guerra. Para a maior parte das pessoas, o principal feito, na época e em décadas posteriores, foi a fundação do Serviço Nacional de Saúde (com a oposição ferrenha dos médicos) em 1948, graças, sobretudo, ao esforço de Aneurin Bevan, proporcionando assim tratamento sem que o paciente tivesse de pagar por ele diretamente (além, é claro, da contribuição por meio de impostos). O resultado foi uma melhora substancial na assistência médica para os setores mais pobres da sociedade e uma redução das mortes por pneumonia, difteria e tuberculose. Todos esses foram avanços importantes e duradouros.
Entretanto, para aqueles que viveram os primeiros anos do pós-guerra na Inglaterra, havia o outro lado da moeda: a austeridade. O país fora vitorioso na guerra, mas estava pobre e tinha dívidas enormes a pagar. Seus custos de defesa ainda eram os de uma grande potência imperial, e as reformas sociais, muito necessárias e bem-vindas, significavam maiores despesas para o governo. A Inglaterra precisava exportar mais e reduzir de forma drástica as importações. O resultado foi um longo prosseguimento das restrições ao consumo que tinham vigorado durante a guerra.
As reformas sociais eliminaram as piores privações. Mesmo assim, para a massa da população, a vida era difícil, insípida e carente de prazeres materiais. A maioria dos gêneros de primeira necessidade ainda era racionada. A guerra foi travada e vencida sem que o pão fosse controlado, mas o racionamento veio em 1946 e durou dois anos. “Às vezes me pergunto quem foi que ganhou essa guerra”, comentou uma dona de casa do norte da Inglaterra em 1946, traduzindo, provavelmente, um sentimento geral. Muitos produtos não eram encontrados. Quando corria a notícia de que isto ou aquilo tinha chegado, formavam-se filas. As mulheres, principalmente, tinham de encontrar tempo para isso, esperando às vezes durante horas, nem sempre com sucesso.*
O racionamento de comida terminou em 1954, muito depois de seu fim em outras partes da Europa Ocidental. Só então as crianças puderam comprar doces sem cupons. E só quando chegou ao fim o racionamento de gasolina os carros puderam ser abastecidos para percorrer grandes distâncias. A paciência, grande no começo, aos poucos se esgotou. Em 1950, alguns eleitores se mostravam dispostos a abandonar os trabalhistas. Os conservadores estavam prestes a reconquistar o poder.
Entretanto, quaisquer que fossem as divisões político-partidárias, as reformas sociais adotadas pelo Partido Trabalhista tiveram amplo apoio de todos os partidos (em contraste com as mudanças econômicas, a estatização de indústrias e outras políticas). Os conservadores reconheciam que não podia haver um retrocesso às políticas da década de 1930. Aceitavam a necessidade de mudança e se adaptavam bem a ela, introduzindo com isso um período de notável consenso quanto às feições essenciais de uma política social que duraria mais de dois decênios. Depois de 1948, decaiu o ímpeto reformador dos trabalhistas, que não tiveram as rédeas do governo mais que cinco anos. Nesse período, contudo, o partido mudou o país para sempre. Durante o período trabalhista, a rota da Inglaterra continuara a divergir do caminho seguido pela Europa continental. A pronunciada sensação britânica de distanciamento de uma Europa que por duas vezes na memória viva fora arrastada a guerras mundiais e sua identificação de interesses com a Comunidade Britânica de Nações e com seu aliado na guerra, os Estados Unidos, continuariam a exercer uma forte influência na cultura política nacional nos anos seguintes.
Na maior parte da Europa Ocidental, a hora da esquerda passou depressa. Uma das razões para isso foi o fato de suas próprias divisões serem logo expostas. Não bastava o antifascismo para manter a esquerda coesa. Era inevitável que as antigas fissuras acabassem se abrindo de novo — por um lado, havia partidos socialistas empenhados em fazer mudanças dentro de uma estrutura democrática pluralista (e dispostos a operar em um capitalismo reformado e controlado); e, por outro, partidos comunistas ligados a Moscou, que trabalhavam pela destruição total do capitalismo e pelo controle exclusivo do poder do Estado.
Uma segunda razão foi o surgimento da mais importante força política depois da guerra: a democracia cristã, um conservadorismo revitalizado que apoiava plenamente a democracia pluralista. A democracia cristã mostrou-se capaz de ampliar o eleitorado dos velhos partidos confessionais, integrando interesses sociais e políticos fragmentados, não só de forma negativa, por meio do anticomunismo, mas positivamente, com seu apoio a reformas sociais substanciais. De modo geral, antes da guerra, as elites conservadoras tinham tentado bloquear as mudanças e com frequência obstruíam a democracia, que viam como uma ameaça a seus interesses. Terminado o conflito, uma nova elite política, livre de máculas fascistas, adotou um enfoque diferente, percebendo a necessidade de incorporar as mudanças sociais e acolher a democracia parlamentar, que procurou moldar segundo seus próprios interesses. Em consequência, largas faixas de cada país em que o socialismo e o comunismo tinham penetrado pouco ou nada ficaram abertas ao apelo de uma política conservadora, mas reformista, que abraçasse a mudança social dentro do quadro dos princípios e valores cristãos.
A terceira razão, a preponderante, que estava na origem do enfraquecimento do comunismo e da crescente fragmentação da esquerda, assim como do crescimento da democracia cristã (e de outras formas de conservadorismo), foi a cisão cada vez mais profunda entre o Leste Europeu e a Europa Ocidental, que logo se consolidou na Guerra Fria. Esse fator se mostrou o mais importante de todos. Quanto mais visíveis se tornavam os aspectos impalatáveis do poder comunista difundido na Europa Oriental, mais fácil se tornava para os partidos conservadores europeus jogar com a arraigada aversão à União Soviética e com os temores do comunismo.
Em grande parte da Europa Ocidental, o eleitorado se dividiu rapidamente em três caminhos: o socialismo, o comunismo e a democracia cristã. Com a exacerbação do antagonismo entre os Aliados ocidentais e a União Soviética, as divisões na esquerda se endureceram, o apoio ao comunismo declinou e os democratas cristãos ganharam terreno. A esquerda viu-se cada vez mais impossibilitada de moldar a agenda política. Essa, com variações, foi a tendência em vários países, como Bélgica, Luxemburgo, Áustria, Itália, França e Alemanha Ocidental. Nos Países Baixos, o Partido Popular Católico conservou um eleitorado religioso menor do que o dos novos democratas cristãos em outros países. Os “pilares” políticos e culturais peculiares que haviam caracterizado a sociedade holandesa antes da guerra — o socialismo, o catolicismo e o protestantismo (com um grupamento liberal-conservador mais frouxo) — de modo geral se reconstituíram quase que da mesma forma de antes. Também na Bélgica o quadro político foi um caso de restauração com modificações. As forças dominantes eram conservadoras, pois a classe média e a população rural foram os principais beneficiários da reforma de uma economia capitalista, enquanto a esquerda radical perdeu espaço entre o operariado industrial. Na Áustria, sob ocupação das quatro potências, mas tratada como um país libertado, o partido comunista sempre foi, desde o início, uma força insignificante, embora lhe tenham permitido participar de um governo de ampla coalizão, dominada pelo Partido Popular Austríaco Democrata Cristão e pelos sociais-democratas. A prioridade era criar unidade nacional, e não renovar as divisões de antes da guerra.
Na Itália, parecia provável, em 1945, que o futuro do país viesse a ser definido pela esquerda revolucionária. No entanto, em meio a graves problemas econômicos, antes do fim do ano a democracia cristã, liderada por Alcide de Gasperi, ex-membro destacado do Partido Popular Católico, despontou como a mais importante nova força na política italiana. Na democracia cristã italiana, havia uma ala altamente conservadora e setores de esquerda que incluíam sindicalistas católicos. No entanto, De Gasperi mostrou-se mestre em manipular as duas alas do partido para manter seu controle. Nos primeiros tempos, foi ajudado pelo líder comunista Palmiro Togliatti, que passara em Moscou os anos da guerra e se dispunha a incluir os comunistas no governo. O gabinete de De Gasperi — uma coalizão aparentemente improvável de democratas cristãos, comunistas e socialistas — tomou medidas eficazes: encerrar os expurgos, substituir muitos dos recém-nomeados chefes de polícia e prefeitos regionais por autoridades com longa experiência, tirar as grandes empresas das mãos dos “comissários” que as vinham administrando e devolvê-las a mãos privadas, e dar início à restauração da ordem pública. Nas eleições de 2 de junho de 1946, o eleitorado confirmou o governo de coalizão e rejeitou a deslustrada monarquia, transformando a Itália numa república.
Era provável que prosseguisse a cisão tríplice na política italiana. Juntos, os socialistas e comunistas formavam o maior setor de apoio popular. Contudo, estavam divididos, tanto no tocante a objetivos de política como em relação à base eleitoral. Além do mais, os eleitores da esquerda se agrupavam majoritariamente nas regiões industrializadas do norte do país. As áreas mais rurais da Itália votavam em peso nos democratas cristãos, que ganhavam as eleições com mais de um terço do total de votos. Em maio de 1947, a incipiente Guerra Fria provocou tensões no governo que levaram à expulsão dos comunistas. Nas eleições parlamentares de abril de 1948, realizadas à sombra da “Ameaça Vermelha”, a votação conjunta dos socialistas e comunistas caiu de 40% em 1946 para 31%. O papa Pio XII declarou aos italianos que quem votasse num partido contrário ao cristianismo era um traidor. A propaganda anticomunista americana também se mostrou bastante eficiente. Os democratas cristãos conseguiram aumentar sua votação de 35% para 48,5%, e com isso obter a maioria na Câmara dos Deputados. A mudança, da violência revolucionária dos partigiani para uma maioria governista da democracia cristã conservadora, era notável. A cisão na esquerda permitiu que os democratas cristãos conseguissem, apesar de suas próprias divisões internas, manter durante muitos anos o controle de um sistema político instável.
A França foi o único país na Europa Ocidental em que os comunistas, com 26% dos votos, tiveram uma votação maior que a dos socialistas (24%) nas primeiras eleições do pós-guerra. A nova força política, porém, era o Mouvement Républicain Populaire (mrp), a variante francesa da democracia cristã, que teve 25% dos votos nas eleições legislativas de 21 de outubro de 1945. Depois das eleições, o mrp, junto com os socialistas e os comunistas (as principais forças da Resistência), integrou uma aliança tripartite, um governo provisório incumbido de redigir uma constituição para a Quarta República. Charles de Gaulle, que já tinha encabeçado um governo provisório por ocasião da libertação, em 25 de agosto de 1944, continuou na chefia do governo. O mrp podia se beneficiar do papel desempenhado na Resistência por alguns de seus líderes, como Georges Bidault. Tal como outros partidos democratas cristãos, o mrp agradava a uma esquerda com raízes num pensamento social católico e também a um eleitorado conservador mais tradicional. O mrp participou da maioria dos governos da Quarta República, entre 1946 e 1958. Entretanto, ao contrário da democracia cristã em grande parte da Europa Ocidental, em poucos anos seu eleitorado minguou, em vez de crescer. A influência da Igreja católica na política francesa era bastante menor do que, por exemplo, na Itália ou na Alemanha Ocidental. Entretanto, o declínio gradual do mrp se deveu, principalmente, ao fato de que, à diferença de outros partidos democratas cristãos, havia uma grave ameaça vinda da direita conservadora — uma ameaça que, materializada em 1947, tinha como ponta de lança ninguém menos que o herói de guerra francês, Charles de Gaulle.
O mrp se dispusera, de início, a cooperar com os socialistas e comunistas para fazer uma reforma social de vulto e apoiou a promoção de boas relações com a União Soviética. Os três grupos defendiam a ampliação dos benefícios sociais e um ambicioso programa de estatização, que incluía bancos, companhias de seguros, minas de carvão, geração de eletricidade e gás, empresas aéreas e a montadora automobilística Renault. Apesar de seu ardente conservadorismo, De Gaulle aceitou a iniciativa no sentido da propriedade estatal e da economia planificada (proposta pelo experiente economista Jean Monnet, incumbido de indicar as medidas necessárias para modernizar a economia francesa e restaurar a produção). O “New Deal” francês começou a ganhar forma com vigoroso apoio político. Os sindicatos (muitos deles dominados por comunistas), o próprio Partido Comunista, os socialistas e o mpr fizeram seu papel, garantindo altos níveis de produtividade industrial, incentivando os agricultores a aumentar depressa as remessas de alimentos às cidades e aprimorando a seguridade social, com pensões, benefícios para gestantes e mães e outras melhorias na vida da população em geral. No entanto, era preciso tempo para que as mudanças fizessem efeito. O padrão de vida, minado pela inflação alta e pela escassez de alimentos e diversos outros produtos básicos, permaneceu baixo durante pelo menos dois anos depois da libertação. Não foi surpresa que o conflito político crescesse. E o impacto adverso sobre a popularidade do governo também era previsível.
As dificuldades persistentes, a insatisfação política cada vez maior e o retorno às habituais divisões e disputas da política partidária num sistema pluralista não se coadunavam com a imagem excelsa que De Gaulle tinha de si mesmo no pináculo de uma França unificada. Em janeiro de 1946, de uma hora para a outra, ele renunciou à chefia do governo provisório. Voltou à cena em junho para defender com veemência a instituição de um presidente eleito com poderes executivos. (Não havia prêmio para quem adivinhasse o nome desse presidente.) Contudo, o eleitorado discordou e aprovou — ainda que sem entusiasmo, com um terço dos eleitores abstendo-se de ir às urnas — uma Quarta República em que os poderes do Parlamento superavam os do Executivo. O resultado foi um sistema que repetiria muitos dos defeitos da Terceira República do pré-guerra. Ao fortalecer os poderes do Legislativo (eleito por voto proporcional) para derrubar o governo, que invariavelmente representava uma incômoda coalizão de interesses políticos conflitantes, a nova constituição garantia a continuidade da instabilidade política.
Desdenhando as novas disposições constitucionais, De Gaulle anunciou, em abril de 1947, que pretendia formar e liderar um novo movimento político, a que deu o nome de Rassemblement du Peuple Français (rpf). Menos de um ano depois, seu partido, que pretendia estar acima da política partidária convencional e alicerçar-se numa plataforma de união nacionalista, anticomunismo e um forte poder executivo centrado na pessoa do presidente, já conquistava apoio na direita. Reuniu meio milhão de membros (sobretudo da classe média e do campesinato) e até 35% dos votos em várias eleições municipais no norte do país, embora sem conquistar muito terreno no plano nacional.
A coalizão governista tripartite, por sua vez, fazia água. Em abril de 1947, o primeiro-ministro socialista, Paul Ramadier, demitiu os ministros comunistas, tirando proveito de uma onda de greves por parte dos sindicatos, dominados pelos comunistas, e de sua oposição à manutenção do domínio imperialista francês em Madagascar e na Indochina. Três décadas se passariam antes que os comunistas voltassem a participar de um governo. O mrp, os socialistas, os radicais e partidos menores formaram uma série de governos instáveis, denominados com certa pretensão de “Terceira Força”, mas unidos por pouco mais além da hostilidade à oposição comunista e gaullista. No começo dos anos 1950, a votação no mrp se reduzia a pó, pois a direita conservadora não conseguia superar suas divisões. Governos fracos se tornariam a norma durante o restante da Quarta República.
As zonas ocidentais da Alemanha ocupada se tornaram a arena central do renascimento político da Europa. Foi notável que a reconstrução da paisagem política começasse logo depois da capitulação nazista. Já em sua mensagem de fundação em Berlim, em junho de 1945, a União Democrática Cristã (Christlich Demokratische Union Deutschlands, cdu) conclamava os alemães a unir todos os seus esforços para refazer o país. Os sociais-democratas (spd) e até os comunistas, ainda que de diferentes formas, também faziam da união nacional o ponto central de suas tentativas imediatas de acumular apoio para começar a recuperação. Tanto a esquerda como a direita percebiam a necessidade de ampliar seu eleitorado e superar as divisões paralisantes que envenenaram a política durante a República de Weimar e prepararam o caminho para o triunfo de Hitler em 1933. Em sua escalada rumo ao poder, o Partido Nazista havia destruído, em grande parte, os velhos partidos liberais e conservadores “burgueses”, com exceção do Partido do Centro Alemão, de orientação católica, enquanto os socialistas e comunistas mantinham seu desastroso conflito que remontava à revolução de 1918 e suas sequelas. Seguiram-se os doze anos, longos e amargos, de ditadura e brutal perseguição de adversários. O que chamou a atenção em relação ao pós-guerra imediato, porém, não foi tanto a rapidez com que se retomou a política pluralista, mas a reiteração dos resultados eleitorais do período da República de Weimar nos pleitos recentes e o fato de serem determinados não só por classe social, mas por filiação religiosa.
Os democratas cristãos logo conquistaram eleitores na direita conservadora, o que contribuiu em muito para a superação das divisões debilitantes da era de Weimar. Eles se viam como um partido acima de classes e credos, incorporando o espírito da renovação cristã para superar a criminalidade do passado nazista e combater “as forças ímpias do mundo” ainda existentes. Queriam uma sociedade que combinasse a democracia com um capitalismo reformado em suas bases e edificado sobre princípios cristãos. Já em 1946-7, o spd aparecia como o maior partido em eleições regionais e municipais nas zonas ocidentais da Alemanha, recebendo mais de 50% dos votos em áreas do sul, e em geral acima de 30% mais ao norte.
Konrad Adenauer, nessa época já com quase setenta anos, se tornaria, durante quase dois decênios, o primeiro líder do partido e a figura exponencial na democracia cristã alemã. Antes de Hitler chegar ao poder, Adenauer fora prefeito de Colônia, sendo depois disso preso em duas ocasiões durante o Terceiro Reich. Era uma pessoa com fortes raízes no catolicismo renano, ardoroso anticomunista e defensor da reconciliação com o Ocidente. Quando, a partir de 1947, a Guerra Fria se tornou uma realidade inelutável, Adenauer afastou a cdu de seus pendores iniciais em favor de uma substancial reforma do capitalismo e preferiu partir para uma economia liberal de mercado. O partido passou a ver com mais simpatia as grandes empresas, uma postura promovida em especial por seu guru em economia, Ludwig Erhard, embora o programa partidário continuasse a reduzir, por meio de medidas de bem-estar social, os efeitos das piores desigualdades do capitalismo de livre mercado. A guinada para a direita permitiu à cdu encontrar em certa medida pontos comuns com o incipiente Partido Democrático Livre (fdp), uma agremiação menor, constituída com base em princípios de liberdade econômica e individual, decididamente favorável às grandes empresas e avessa a toda e qualquer ideia de estatização. Nas primeiras eleições nacionais, em 1949, o fdp recebeu 12% dos votos; o spd, 29%; e a cdu ficou um pouco à frente, com 31%. Os 12% do fdp foram cruciais para que a cdu (e seu congênere bávaro, a União Social Cristã, mais conservadora e fervorosamente católica em seus valores) passassem a ser o principal sustentáculo do governo de coalizão, que tinha Adenauer como chanceler federal.
Enquanto a direita conservadora descobria uma nova união, a esquerda voltava à divisão. Os sociais-democratas e os comunistas tinham se unido nos Antifas — comitês antifascistas — surgidos em 1945 nas cidades industriais e nas grandes fábricas para participar da luta comum contra o moribundo regime nazista. No entanto, mal a guerra acabou, os Aliados ocidentais vitoriosos dissolveram os Antifas, vendo-os mais como uma ameaça à ordem e uma porta de entrada para o comunismo do que como componentes construtivos de uma nova sociedade. Essa foi uma das primeiras indicações de que os Aliados estavam determinados a bloquear qualquer caminho radical para uma volta à democracia liberal-conservadora. Na verdade, parece improvável que os Antifas pudessem ser uma base duradoura para a reconstrução política, mas não tiveram nenhuma oportunidade para tanto. Isso condizia com o estado de espírito da grande maioria da população alemã, que desejava mudanças, mas tinha pouco apetite para experiências revolucionárias. O Partido Comunista não conseguia ir além de seus redutos anteriores no operariado industrial. Mesmo antes que a Guerra Fria se instalasse e erodisse quase completamente seu eleitorado, a votação média dos comunistas nas regiões ocidentais ficava abaixo de 10%, um terço do nível médio de votação do spd.
O spd também estava empenhado em mudanças sociais e econômicas. Seu líder, Kurt Schumacher, cuja autoridade moral decorria dos dez anos que passara em campos de concentração nazistas, defendia uma rápida restauração da união nacional alemã, construída firmemente sobre princípios democráticos e numa nova ordem econômica. Desejava a estatização das principais indústrias e a redistribuição de terras agrícolas a serem expropriadas de grandes latifúndios. Entretanto, Schumacher era um anticomunista ferrenho. Culpava os comunistas, bem como a classe média, que apoiara o nazismo, pelo desastre de 1933. E receava que o Partido Comunista abrisse as portas para um domínio da Alemanha pelos soviéticos. Contudo, sua retórica de luta de classes, previsivelmente, não era capaz de conquistar os grandes setores da Alemanha conservadora.
A eleição de 1949 para o Parlamento Federal (Bundestag) foi disputada por um amplo leque de partidos. O panorama político ainda estava ganhando forma, mas seus contornos principais já se tornavam claros: uma divisão tríplice entre cristãos, democratas livres e sociais-democratas.
No Leste Europeu, que incluía a porção oriental da Alemanha, o panorama político ganhara uma forma fundamentalmente diferente desde o início, muito antes que a Guerra Fria se consolidasse. Os Aliados ocidentais decerto exerceram controle na reconstrução da política em suas áreas (com frequência favorecendo os conservadores e não os sociais-democratas, por exemplo), mas seu nível de intervenção foi mínimo em comparação com o dos soviéticos em áreas da Europa sob seu domínio.
O sufocamento da política pluralista na Europa Oriental
De início, os soviéticos tinham se mostrado mais indecisos do que de fato pareciam estar em relação ao desenvolvimento estratégico da zona oriental da Alemanha, mas pouco a pouco passaram a defender a democracia pluralista só da boca para fora. No começo houve um simulacro de pluralismo, com a criação de partidos liberais e conservadores, ao lado do socialista e comunista, mas a pressão em favor do Partido Comunista era escancarada e incessante. Walter Ulbricht e outros dirigentes comunistas, que tinham passado a era nazista exilados em Moscou, puseram mãos à obra para criar uma base firme de poder, assumindo rapidamente cargos administrativos cruciais. Como era previsível, a estatização da indústria, a redistribuição de terras expropriadas e os expurgos nas elites econômicas, administrativas e profissionais foram bem-vistos por quem era desprovido de propriedades ou riqueza. Entretanto, em eleições municipais no inverno de 1945-6, ficou claro que, apesar de suas vantagens, os comunistas tinham muito menos votos do que os sociais-democratas e não conseguiriam maioria democrática nas urnas.
Em fevereiro de 1946, os comunistas começaram a fazer pressão para fundir os dois partidos. Schumacher liderava, com ardor, a oposição do spd. Ruth Andreas-Friedrich, ex-jornalista que por muito tempo tomara parte ativa na resistência ao regime de Hitler e agora defendia com unhas e dentes o spd, via com lucidez o perigo. “Faz nove meses”, ela anotou em seu diário, em 14 de janeiro, “que o comunismo alemão vem recebendo ordens de Moscou […]. Se metermos a cabeça nesse laço, estaremos perdidos, não só nós, como também Berlim e o resto da zona de ocupação soviética da Alemanha. Perdidos para a democracia, conquistados para a reivindicação nacional-bolchevique de poder mundial.” A esquerda rachou. “Pessoas que há um ano tinham ajudado umas às outras contra o terror da Gestapo, que tinham arriscado a vida pela vida de alguém, hoje se atacam como se fossem as mais ferozes inimigas”, comentou Ruth. Em março, foi realizado nos setores ocidentais de Berlim um referendo (proibido no setor oriental), e 80% dos membros do spd rejeitaram a fusão. “Contra a violência, as ameaças e a propaganda, a vontade de autodeterminação triunfou”, escreveu ela.
Não obstante, em abril de 1946, ocorreu na zona soviética uma fusão forçada dos dois partidos principais da esquerda, com a criação do Partido Socialista Unificado da Alemanha (Sozialistische Einheitspartei Deutschlands, sed). Desde o momento de sua criação, o novo partido foi dominado pelos comunistas e passou a ser visto como o principal instrumento para impor a versão marxista-leninista do “centralismo democrático” na zona oriental. Mesmo com toda a pressão que podia exercer, o sed não conseguiu maioria absoluta dos votos em nenhuma das eleições regionais em outubro de 1946. A essa altura, no entanto, as artérias políticas estavam se esclerosando, e os vestígios de um pluralismo genuíno eram eliminados de modo gradual, mas sistemático. Os que se opunham à criação de uma “democracia popular” eram demitidos, e muitos foram presos. O processo de separação política (e social) das zonas ocidentais prosseguiu, agora de maneira irreversível. Em janeiro de 1949, proclamou-se oficialmente que o sed era um partido marxista-leninista, e com isso foi criada uma variante alemã da ditadura stalinista.
O que aconteceu na zona oriental da Alemanha repetiu a maneira como o domínio soviético foi imposto na maior parte da Europa Oriental nos primeiros anos do pós-guerra. O poder soviético não foi o único fator a determinar a constelação política nesses países. O descrédito das elites anteriores à guerra devido à colaboração com os nazistas, o apoio a partidos comunistas nativos, as expectativas de benefícios advindos de uma redistribuição de renda, a desconfiança dirigida aos Aliados ocidentais, tudo isso desempenhou seu papel. Entretanto, em todos esses países, o poder soviético era a constante na equação, o fator comum e determinante. E, tal como na Alemanha Oriental, quando ficou óbvio que o pluralismo democrático não reuniria o necessário apoio para o domínio comunista, o padrão adotado foi a intensificação da pressão para garantir o controle soviético.
A Hungria foi o mais claro exemplo disso. Um governo provisório multipartidário ganhara popularidade ao redistribuir terras tomadas de grandes propriedades, o que fez com que o Partido dos Pequenos Proprietários recebesse nada menos que 57% dos votos nas eleições de novembro de 1945, enquanto apenas 17% dos eleitores votaram nos comunistas. Contudo, isso não impediu a gradual destruição do Partido dos Pequenos Proprietários e de outras formas de oposição política por meio de brutais táticas intimidatórias, até que, em 1949, o Partido Comunista, apoiado por Moscou, concentrasse em suas mãos todo o poder.
Na Polônia, já no fim de 1944, o Comitê Lublin, apoiado por Moscou, recebera reconhecimento soviético oficial como governo provisório da Polônia, enquanto os comunistas assumiam o controle da polícia e do aparato de segurança. O Governo Nacional, exilado em Londres desde o começo da guerra, embora reconhecido pelos Aliados ocidentais como o legítimo governo polonês, não tinha poder algum. Contudo, os Aliados estavam ansiosos por resolver o problema da Polônia. No fim de junho de 1945, autoridades ocidentais convenceram alguns membros do Governo Nacional, entre os quais Stanisław Mikołajczyk, que ocupara o cargo de primeiro-ministro, a se unir ao Governo Provisório de Unidade Nacional, de base mais ampla, com a perspectiva de realização de eleições. Com isso, já antes da Conferência de Potsdam, no mês seguinte, os Aliados se curvaram ao fato consumado na Polônia e retiraram formalmente seu reconhecimento do governo no exílio em Londres.
Em Yalta, em fevereiro de 1945, Stálin prometera eleições democráticas, mas seu entendimento de democracia não era o mesmo das potências ocidentais. Quando as eleições enfim ocorreram na Polônia, em janeiro de 1947, foi num contexto de repressão e intimidação intensas por parte dos soviéticos. Mais de cem adversários dos comunistas foram assassinados, dezenas de milhares acabaram presos, ao mesmo tempo que a candidatura de muitos representantes da oposição foi impugnada. Oficialmente, o bloco comunista recebeu 80% dos votos. É impossível saber qual teria sido o resultado real em eleições genuinamente livres. As potências ocidentais assistiram a isso sem nada poder fazer para impedir o avanço do controle soviético. Não sem razão, os próprios poloneses se perguntavam para que servira a guerra, pois antes achavam que tinha sido para preservar a independência da Polônia. Também na Romênia e na Bulgária, a tomada do poder pelos comunistas seguiu um modelo análogo de infiltração pelos comunistas da máquina de governo, de intimidação, detenção e prisão de adversários políticos, além de manipulação de resultados eleitorais, com o apoio por forças militares e de segurança soviéticas.
O caso da Tchecoslováquia foi diferente e provocou ondas de choque em todo o Ocidente (embora estrategistas políticos em Washington afirmassem ter previsto tudo o que aconteceu). Em eleições inquestionavelmente livres, em maio de 1946 — as tropas soviéticas e americanas tinham sido retiradas de antemão —, os comunistas receberam a maior proporção de votos, 38,6%, o que lhes deu um grau de legitimidade democrática. Seu êxito eleitoral não surpreendeu. Havia uma enorme agonia social, altíssimos níveis de pobreza, um elevado déficit habitacional e total desordem econômica. Os anos de ocupação alemã haviam gerado, como em outros lugares, muita recriminação e ressentimento. Entre as razões por que a população se voltou para os comunistas estavam, sem dúvida, sobretudo nas faixas mais instruídas, uma grande dose de idealismo — uma fé ardente no comunismo como “o ideal eterno da humanidade” e um “caminho nacional para o socialismo”, o que subordinava o interesse individual “ao bem de toda a sociedade”. Pelo menos foi assim que mais tarde se expressou Heda Marolius Kovály, judia que sofrera cruelmente em campos de concentração nazistas e era casada com um ministro comunista no governo tcheco (que seria executado em 1952 com base em acusações fraudulentas de “conspiração contra o Estado”).
Não obstante, embora fossem o maior grupo político, os comunistas ainda não tinham maioria eleitoral (e nas áreas eslovacas menos ainda do que nas tchecas). O novo primeiro-ministro, Klement Gottwald, stalinista histórico recém-chegado do exílio em Moscou durante a guerra, enfrentava ampla oposição, embora por parte de um leque de partidos adversários entre si. A popularidade do governo dominado pelos comunistas caiu ainda mais em 1947, com o crescimento das dificuldades econômicas, a falta de solução para o problema de relativa autonomia para os eslovacos e a pressão de Stálin para que o país rejeitasse a ajuda econômica americana, o que o empurrava para o bloco soviético no Leste Europeu. Com relutância, os comunistas admitiram novas eleições, a realizar-se em maio de 1948. Suas perspectivas de melhores resultados não eram nada boas. Mas vários ministros de outros partidos cometeram a tolice de renunciar a seus cargos no governo de coalizão em fevereiro, como protesto contra medidas dos comunistas para aumentar seu controle sobre a polícia, e o episódio provocou uma crise política em grande escala. Os comunistas organizaram manifestações de massa em apoio a suas demandas. Cresceu a pressão sobre todos os indecisos. O ministro do Exterior, Jan Masaryk, filho do primeiro presidente da Tchecoslováquia, foi achado morto sob a janela de seu gabinete; segundo a versão oficial, teria sido suicídio, mas em geral acreditava-se que fora assassinado por agentes do regime. O que estava em curso era nada menos que um golpe comunista. As eleições de maio foram controladas inteiramente pelos comunistas, que passaram a dominar o novo Parlamento. O desafortunado presidente, Edvard Beneš, foi obrigado a nomear um novo gabinete, ainda liderado por Gottwald, mas agora dominado de alto a baixo por comunistas.
Em junho de 1948, Gottwald substituiu Beneš na presidência. As primeiras manifestações de entusiasmo, quando existiram, logo evaporaram. Em questão de meses, como comentou Heda Marolius Kovály, “a União Soviética tinha se tornado nosso modelo”, e o império da lei mostrava-se precário. Seguiu-se uma vigorosa repressão de adversários, enquanto milhares de pessoas desapareciam em prisões e campos de concentração. Um sistema ao estilo soviético estava em vigor no único país da Europa Central em que a democracia pluralista sobrevivera antes da guerra até ser minada pela política de apaziguamento das potências ocidentais e depois devorada por Hitler. Era a confirmação cabal de que o stalinismo era incompatível com a criação de uma democracia ao estilo ocidental em qualquer lugar da esfera de influência soviética.
Só na Iugoslávia as tentativas de impor a influência soviética fracassaram. Lá, porém, prevaleceram circunstâncias muito especiais. Partidários de Tito já controlavam a maior parte do país quando o Exército Vermelho chegou, perto do fim de 1944. As tropas soviéticas retiraram-se no fim da guerra, deixando a Tito a glória de ter sido o libertador da Iugoslávia. Além do mais, os comunistas iugoslavos, liderados por ele, tinham chegado ao poder sem ajuda de Moscou — na Europa, só os partidos comunistas da Iugoslávia e da Albânia conseguiram isso. Embora antes houvesse sido um leal agente da União Soviética, Tito tinha estatura para uma base firme de poder autônomo, o que lhe possibilitou desafiar a pressão de Stálin para se alinhar com as exigências de Moscou quando a Guerra Fria começou a criar problemas. A intimidação do ditador soviético não agradou a Tito, que, seguro em seu reduto nos Bálcãs, desfrutava de amplo apoio popular num país onde sua figura simbolizava uma nova união que transcendia as tradicionais divisões étnicas. A não ser que invadisse o país, o que teria sido arriscado, Stálin nada podia fazer. Em junho de 1948, a cisão entre Moscou e Belgrado tornou-se oficial, com a expulsão da Iugoslávia do Cominform, a organização criada para substituir o Comintern. E Stálin não disfarçava sua hostilidade. Na tentativa de levar a Iugoslávia à submissão pela fome, os soviéticos e seus satélites lhe impuseram um boicote econômico. De nada adiantou. Apesar da constante e pesada campanha difamatória de Moscou, Tito continuou por um caminho independente.
Na própria União Soviética, as pessoas julgavam que os imensos sacrifícios não podiam ser em vão, mas a alegria universal com que o triunfo fora saudado em 1945 logo deu lugar a uma colossal desilusão. A esperança de que a vitória na “grande guerra patriótica” traria um clima político mais benigno dissipou-se rapidamente. Em vez disso, o sistema stalinista intensificou seu controle, e o aparelho repressor se tornou mais ativo. Os dirigentes da União Soviética, e Stálin mais que todos, viam graves perigos à frente. Muitos soviéticos tinham colaborado com os ocupantes nazistas; milhões de novos cidadãos precisavam ser convertidos em fiéis comunistas; extensos territórios recém-obtidos deveriam ser incorporados; e a ameaça do capitalismo imperialista ainda se agigantava. Além disso, o país tinha de ser reconstruído. Superar as descomunais perdas materiais exigia a renovação de programas intensivos para produzir um rápido crescimento industrial.
O progresso foi expressivo. Em 1947, segundo o governo, a indústria soviética voltou a igualar a produção de antes da guerra. O preço a pagar por isso foi uma nova queda no padrão de vida, já aflitivo. Grandes greves e manifestações ocorreram em fábricas de material bélico nos Urais e na Sibéria no último trimestre de 1945. A polícia secreta registrou mais de 1 milhão de cartas de protesto contra as condições de vida. As safras ruins de 1945 e 1946 agravaram os problemas da produção agrícola, que ficou bem abaixo dos níveis do pré-guerra durante anos e anos. A fome, que ceifou a vida de 2 milhões de pessoas, assolou a Ucrânia e outras regiões da União Soviética. Cerca de 100 milhões de soviéticos foram atingidos pela desnutrição. Para Stálin e os demais dirigentes, as privações tinham de ser suportadas para que o Estado soviético sobrevivesse, se recuperasse e reconstruísse suas defesas. Todo potencial de descontentamento e cada sinal concebível de oposição precisavam ser reprimidos com dureza. Uma nova onda de prisões, expurgos e julgamentos teatrais, lembrando o terror da década de 1930, varreu a União Soviética e seus satélites no Leste Europeu. Ex-prisioneiros de guerra, suspeitos de dissidência, intelectuais e grupos étnicos minoritários, principalmente judeus, eram alvos especiais. Não tardou para que os campos e colônias penais voltassem a abrigar nada menos que 5 milhões de prisioneiros. Longe de criar uma nova sociedade na União Soviética, a guerra fortalecera a antiga. A mão pesada da repressão não podia ser aliviada nem de leve. Em todo o seu horror, o stalinismo prosseguiu com força total nos anos que se seguiram à guerra.
Em 1947, a Guerra Fria já começava a produzir sua glaciação. As divisões se consolidavam: um bloco soviético quase monolítico em confronto com um bloco ocidental cada vez mais apreensivo, porém resoluto, dominado pelos Estados Unidos. No ano seguinte, tais divisões estavam plenamente determinadas. Poderia essa situação ter sido evitada? Poderia a revitalização da política na Europa Ocidental, se não na Oriental, ter tomado um rumo diferente? Em ambos os casos, parece improvável. Em última análise, a desconfiança mútua — de um lado, o medo do avanço comunista; de outro, o medo do agressivo capitalismo imperialista — era grande demais para impedir que a Europa se partisse em duas metades.
No começo, a política stalinista na Europa Oriental foi, sem dúvida, menos uniforme e predeterminada do que com frequência se afigura em retrospecto. Ainda assim, o que ficou patente desde a primeira hora foi que não seria permitida alternativa alguma ao domínio dos comunistas, que não podiam se arriscar aos caprichos da política pluralista à maneira ocidental. Tão logo ficou claro que os partidos comunistas não chegariam ao poder mediante eleições genuinamente livres, tornaram-se inevitáveis a intimidação, a infiltração e a pressão de modo a garantir a dominação por outros meios. No entanto, isso só podia aprofundar a separação em relação aos países do continente que não tinham caído sob a influência soviética.
Um ponto crucial foi que em nenhum país da Europa Ocidental os partidos comunistas ganharam popularidade suficiente para chegar perto de conquistar maioria parlamentar em eleições livres. E quando os métodos comunistas para conquistar o poder no Leste Europeu, observados com horror pela maior parte da população da Europa Ocidental, se tornaram alvos fáceis para condenação por partidos políticos anticomunistas e pelos Aliados ocidentais, o apoio ao comunismo na maior parte da porção oeste do continente passou a cair ainda mais. A divisão, que se alargava celeremente, era inevitável. Já estava presente desde o começo de 1945, provocada em primeira instância pela necessidade soviética de uma zona protetora, formada por satélites sob regime comunista, e só podia crescer à medida que ganhava forma final o antagonismo internacional entre as grandes potências. Essa divisão foi cimentada em 1947, quando Stálin virou as costas à oferta de ajuda americana para reconstruir a Europa, insistindo que o Leste Europeu seguisse seu próprio caminho — sob domínio soviético.
Na Europa Ocidental, o espaço para políticas econômicas radicais tornou-se mais limitado ainda com a Guerra Fria. O temor de que o comunismo fincasse um pé no Ocidente, sobretudo na Alemanha, país de importância fundamental, acrescentou um ingrediente valioso e significativo ao apoio que os Aliados ocidentais ocupantes, em especial os Estados Unidos, davam à política conservadora e à economia liberal. Por conseguinte, desde o começo eram mínimas as chances de que a rota política na Europa Ocidental divergisse daquela que de fato foi seguida. O redespertar político da Europa depois de 1945 é inseparável do contexto internacional que o moldou. Por isso, é quase inútil a busca de culpados pela Guerra Fria, que não poderia ter sido evitada. A divisão do continente foi um resultado inelutável da Segunda Guerra Mundial e da conquista da Europa pelas novas superpotências, ideológica e politicamente antagônicas: os Estados Unidos e a União Soviética.
A CORTINA DE FERRO
Atribui-se em geral a Winston Churchill a criação da vívida metáfora de uma “cortina de ferro” que dividia a Europa, por ele usada num famoso discurso no Westminster College, em Fulton, no estado americano do Missouri, em março de 1946. Na realidade, já um ano antes, Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, tinha se referido em público e em privado a uma “cortina de ferro” ao falar da ocupação soviética da Romênia. Nos últimos meses da guerra, Hitler e Goebbels previram repetidas vezes o rompimento da coalizão de forças anglo-americanas e soviéticas. Ambos se recusavam a ver que era precisamente o objetivo de destruir a Alemanha nazista o que mantinha coesa a aliança de guerra. Uma vez cumprida a meta, a dissolução da aliança entre elementos inerentemente antagônicos era quase inevitável. A ruptura não se deu de imediato, de um só golpe, mas de maneira gradual, no decorrer de um período de três anos, pouco mais ou pouco menos, e em vários estágios, decisivos e cumulativos. Entretanto, a partir de junho de 1945, ocorreu numa única direção — rumo à divisão da Europa.
Terminada a Primeira Guerra Mundial, o presidente americano, Woodrow Wilson, e os governantes da Inglaterra e da França se reuniram para determinar a nova ordem do pós-guerra. Convulsionada pela revolução e pela guerra civil, e vista com antipatia cada vez maior pelas potências ocidentais, a Rússia não participou dessa iniciativa. Logo depois, os Estados Unidos decidiram não se filiar à Liga das Nações e optaram por não se envolver diretamente nos assuntos europeus. O contraste com 1945 era gritante. Depois da Segunda Guerra, as grandes potências europeias, antes poderosas, estavam fragilizadas demais, militar e politicamente, para criar uma nova ordem. A França estava atolada em problemas internos: economia arruinada pela inflação alta, fuga de capitais e baixos índices de produção. Os apuros financeiros da Inglaterra só foram resolvidos com um substancial empréstimo feito em 1946 pelos Estados Unidos e pelo Canadá. Um sinal da debilidade britânica foi o começo do fim de seu império. A Índia, aclamada como a “joia da coroa” do império, tornou-se independente em 1947. Em outra iniciativa de vastas consequências, a Inglaterra abriu mão de seu problemático mandato na Palestina, o que levou à criação do Estado de Israel em 1948. A França, mais relutante a abrir mão de suas possessões de ultramar, achava-se envolvida numa guerra colonial na Indochina, cada vez mais sangrenta, com as forças de Ho Chi Minh, que já em 1945 declarava representar uma República Democrática do Vietnã. Também esse conflito teria, posteriormente, consequências momentosas. A Primeira Guerra Mundial havia preservado, e até ampliado, os impérios coloniais das grandes potências europeias. A Segunda começou a dar-lhes fim. A era da conquista imperial estava encerrada.
Os Estados Unidos e a União Soviética ocuparam o vácuo que o fim das grandes potências europeias — a destruição da Alemanha, o colossal enfraquecimento da Inglaterra e da França — criou na Europa. As duas potências mundiais restantes, por sua vez, tinham saído da guerra imensamente fortalecidas. O poder econômico dos Estados Unidos e seu complexo industrial-militar eram muitíssimo superiores aos de qualquer outro país. Em contraste, a União Soviética sofrera enormes perdas econômicas ao arcar com a parte mais difícil da guerra continental durante quatro anos, mas construíra uma máquina militar descomunal, que exultava com seu grande triunfo e agora ocupava quase toda a Europa Oriental. A força soviética sobrepujava em muito a dos Aliados ocidentais. Mesmo em 1947, depois que a força militar dos tempos de guerra tinha sido drasticamente desmobilizada, o Exército soviético ainda contava com cerca de 2,8 milhões de homens em prontidão para combate; menos de um ano depois do fim das hostilidades, as tropas americanas na Europa tinham caído para menos de 300 mil homens.
As conferências dos “Três Grandes” durante a guerra — ainda se permitia à Inglaterra a vaidade de pertencer a esse “clube” fechado — haviam exposto o domínio das novas superpotências. O mesmo se podia dizer da fundação da Organização das Nações Unidas (onu), em 24 de outubro de 1945, em San Francisco, nos Estados Unidos. Prevista como uma entidade mais dinâmica do que a extinta Liga das Nações, a onu compreendia, de início, os cinquenta países que haviam assinado sua carta em 26 de junho (menos de um terço deles eram europeus). Cinco países — Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra, França e China — seriam os membros permanentes do Conselho de Segurança, órgão com poder de veto sobre qualquer decisão. No entanto, a Inglaterra e a França haviam saído da guerra debilitadíssimas e enfrentavam problemas cada vez maiores em seus impérios coloniais, enquanto a China estava arruinada depois de oito anos de conflito com o Japão e a incessante guerra civil entre nacionalistas e comunistas. Na prática, as únicas potências dominantes eram os Estados Unidos e a União Soviética.
Os dois gigantes demarcaram a nova Europa à sua própria imagem. E cada qual interpretou seu papel no pós-guerra como parte de uma missão ideológica mais ampla. À liberalização e à democratização como extensões externas da filosofia política e econômica dos americanos contrapunham-se o controle monopolístico do Estado e a planificação da economia dos soviéticos. Um choque entre tais polos antípodas era questão de tempo, e o embate assumiria a forma de uma disputa pelo poder em todo o globo, e não apenas na Europa. Entretanto, havia um desequilíbrio. Para os Estados Unidos, a Europa, ainda que de importância vital, estava distante de suas praias. O comunismo era uma ameaça geograficamente distante, embora considerada cada vez mais presente. Para Stálin, a Europa estava à sua porta, e por duas vezes em uma geração pusera em perigo a existência de seu país. Além do mais, as forças do capitalismo internacional não tinham sido derrotadas e continuavam a ser um inimigo poderoso. A preocupação maior de Stálin não era a exportação da revolução, e sim a salvaguarda da segurança soviética. Assim sendo, a Europa seria, inevitavelmente, o principal campo de batalha da Guerra Fria. E a Alemanha, onde os antagonistas ideológicos se achavam lado a lado, seria, também de forma inevitável, o epicentro do conflito.
Já antes do fim da guerra, a perspectiva da expansão soviética na Europa era uma das preocupações da secretaria do Exterior britânica. Na época, os americanos mostravam mais boa vontade em relação a Stálin, mas logo a possibilidade de que o espectro do poder soviético viesse a assombrar a Europa e além começou a preocupar também o Departamento de Estado americano. Não tardou muito para que o conceito-chave se tornasse “contenção”, sobretudo depois que George F. Kennan, diplomata que servia na embaixada americana em Moscou, avisou, em tons sombrios, no famoso “telegrama longo” de fevereiro de 1946, sobre a necessidade de evitar a expansão soviética, que, segundo seu relato, estava sendo feita por meio de infiltração e pressão política, e não mediante intervenção militar direta.
Por mais exagerados que, em retrospecto, se mostrassem esses receios, em 1946 eram palpáveis. Naquela primavera, a União Soviética havia se retirado, tardia e relutantemente, do Irã (ocupado por forças soviéticas e britânicas desde 1941). Os americanos também viram motivos sérios de preocupação em 1946, quando os soviéticos pressionaram a Turquia para que cedesse o controle sobre os estreitos de Dardanelos e de Bósforo, os chamados estreitos turcos, embora Stálin recuasse no fim do ano. Mais preocupante ainda era a situação na Grécia. Stálin tinha se dado por satisfeito, em 1944-5, conforme acertado com Churchill, em manter a Grécia na esfera de influência britânica, e quando os comunistas gregos se sublevaram não lhes prestara ajuda alguma. Mas quando a insurreição recomeçou, em março de 1946, com apoio da Iugoslávia de Tito, embora ainda com pouca ajuda de Stálin, os avanços comunistas levaram à primeira aplicação da política de “contenção”.
O perigo de que a guerra civil na Grécia criasse oportunidades para expansão soviética parecia real aos americanos, mais ainda quando Ernest Bevin, secretário do Exterior britânico, comunicou, em fevereiro, que devido a seus problemas financeiros a Inglaterra não podia mais prestar ajuda militar ou econômica à Grécia e à Turquia. A partir de março de 1947, os Estados Unidos forneceram à direita grega assistência e treinamento militar, decisivos para a derrota da esquerda, ainda que as enormes perdas (cerca de 45 mil mortos e imensa destruição material), além da posterior repressão, infligissem danos duradouros à perspectiva de uma genuína união nacional na Grécia. Para os Estados Unidos, porém, a “contenção” fora um sucesso. O presidente Harry S. Truman chegou a chamá-la de uma “doutrina” — apoio a “povos livres” contra o “totalitarismo” para deter a propagação do comunismo. O conceito tornou-se o mantra da Guerra Fria.
Nesse ínterim, a Alemanha, em especial, passava a ser considerada um campo de provas decisivo. O atrito entre as potências de ocupação aumentara em 1946 por três motivos: os soviéticos se recusavam a cooperar com recursos financeiros, crescia a pressão para que os partidos comunistas tivessem domínio total no setor soviético e a zona oriental de ocupação seguia cada vez mais seu próprio caminho. De início, tinha sido previsto que as forças americanas deixariam a Europa em 1947. Entretanto, num discurso em setembro de 1946, o secretário de Estado americano, James F. Byrne, anunciou que as tropas ficariam. Byrne reconheceu o fracasso de um governo unificado da Alemanha, através do Conselho de Controle Aliado, conforme previsto em Potsdam, e deu a entender que a recuperação econômica da Alemanha, tida como vital para toda a Europa Ocidental, teria de ser realizada zona por zona. Byrne levantou a possibilidade da formação de uma unidade econômica entre a zona americana e as outras zonas ocidentais. Em janeiro de 1947, essa ideia se concretizou na Bizona, união das zonas americana e britânica. Com isso, a divisão formal da Alemanha em Estados separados tornou-se apenas questão de tempo.
O momento decisivo na divisão da Europa se deu em junho de 1947, quando o secretário de Estado americano, George C. Marshall, anunciou o abrangente Plano de Recuperação Europeia. O Plano Marshall, como em geral é chamado, foi uma iniciativa de grande significado simbólico — profundamente político em intenção, ainda que econômico em método — e de imensa importância psicológica para trazer nova esperança às populações da Europa Ocidental. Apesar do que comumente se diz e da mitologia a seu respeito, não foi o plano que criou a prosperidade da Europa no pós-guerra. Sua escala era limitada demais para isso. Ainda assim, porém, foi uma iniciativa de enorme importância.
O crescimento econômico antecedia o Plano Marshall e remontava a 1945. Todos os países da Europa Ocidental, salvo a Alemanha, já registravam maior formação de capital em 1948 (ano em que começaram os ingressos da ajuda do Plano Marshall) do que em 1938. E o produto nacional bruto permanecia inferior ao de uma década antes apenas na Alemanha (bastante) e na Itália (ligeiramente). Entretanto, não resta dúvida de que o Plano Marshall acelerou a recuperação. Considerando que o índice do produto interno bruto na Europa Ocidental em 1938 fosse 100, ele aumentou de 87 em 1948 para 102 em 1950, o começo de um crescimento prolongado e robusto. O volume das exportações também cresceu sensivelmente, e o renascimento dos mercados de capital londrinos fomentou o comércio dentro da Europa e além do continente. Além disso, o Plano Marshall beneficiou também a reconstrução das redes de transporte e a modernização da infraestrutura.
Nos dois lados do Atlântico, os defensores do programa de auxílio afirmaram na época que o Plano Marshall pretendia “salvar a Europa” do colapso econômico. Foi também um exagero, ainda que a Europa realmente enfrentasse sérios problemas econômicos em 1947. A produção agrícola era um terço inferior à do pré-guerra. A produção industrial tampouco havia retornado ao nível anterior à guerra. A escassez de moradias e alimentos era crítica. Essa situação não era particularmente desastrosa só na Alemanha, onde a produção industrial ainda se arrastava. Como os Aliados ocidentais percebiam com clareza cada vez maior, sem a recuperação econômica da Alemanha o resto do continente tampouco deslancharia. A inflação atrapalhava as perspectivas de recuperação, uma vez que a oferta de moeda excedia a de mercadorias para igualar a procura reprimida. Na Hungria, Romênia e Grécia, a moeda perdeu todo o valor. Na França, os preços estavam quatro vezes maiores que antes da guerra. Na Alemanha, o montante de moeda em circulação era sete vezes maior do que em 1938; na Itália, vinte vezes maior. Em muitos casos, cigarros e outros produtos substituíam a moeda sem valor numa economia de escambo. A inflação só veio a ser controlada, pouco a pouco, com medidas de austeridade e reforma monetária, mediante desvalorização.
Entretanto, o maior obstáculo para a recuperação econômica europeia em 1947 era o “dollar gap” — a carência de dólares para pagar as importações, absolutamente necessárias, de matérias-primas e bens de capital para investimento. Esse desequilíbrio torpedeava os entendimentos definidos com todo o cuidado na Conferência de Bretton Woods, apenas três anos antes, para a liberalização do comércio com base em moedas vinculadas ao dólar. Era exatamente esse obstáculo à recuperação econômica sustentável que o Plano Marshall pretendia transpor. Os países europeus receberam 12 bilhões de dólares — 2% do produto nacional bruto americano — em quatro anos. A Inglaterra foi a maior beneficiária, com mais do dobro do montante destinado à Alemanha Ocidental, e quase todo o dinheiro foi usado para pagar dívidas britânicas. Entretanto, foi na Alemanha Ocidental, na Itália e na Áustria, ex-inimigos dos americanos, que o Plano teve maior impacto. Isso teve seu valor simbólico, bem como econômico. Esses países foram levados a sentir que não eram mais adversários, e sim parte de um projeto, patrocinado pelos Estados Unidos, que oferecia perspectivas de recuperação no longo prazo e estabilidade política.
O Plano Marshall nada teve de altruísta. Beneficiou a economia americana tanto quanto a europeia, uma vez que os Estados Unidos forneceram a maior parte dos bens adquiridos nos termos do Plano. No entanto, afora considerações econômicas, ele foi claramente político. Desde sua concepção, era visto como uma arma na incipiente Guerra Fria. A ajuda para tornar a Europa economicamente forte — e, na Europa, revitalizar a Alemanha, o prostrado gigante econômico — vincularia a metade ocidental do continente a interesses americanos e erigiria uma barreira sólida ao expansionismo soviético.
A todos os países europeus, inclusive a União Soviética, foi oferecido o auxílio. Contudo, como o próprio Marshall havia previsto (e desejado), a União Soviética o rejeitou, forçando os países de sua esfera de influência a fazerem o mesmo (a Polônia e a Tchecoslováquia assim procederam, ainda que com grande relutância). A Finlândia, preocupada em evitar possíveis retaliações da União Soviética, também declinou. Num gesto decisivo, Stálin recusou a assistência do Plano Marshall. Terá sido um erro gigantesco? A rejeição negava à Europa Oriental quaisquer possíveis benefícios que o estímulo do Plano Marshall pudesse oferecer. E, aos olhos de milhões de europeus, proporcionava superioridade moral e política aos americanos. Todavia, da perspectiva de Stálin, com seu temor de que a segurança da União Soviética e de seus satélites ficasse vulnerável ao poderio econômico superior dos Estados Unidos, a recusa da ajuda impedia qualquer interferência ocidental na consolidação do poder soviético no Leste Europeu. Seu receio, provavelmente justificado, era que o auxílio econômico oriundo dos Estados Unidos fosse um veículo de corrosão da ascendência política soviética em seus Estados-satélites. Sua decisão acarretou a divisão definitiva da Europa em duas metades.
Os dezesseis países europeus (mais os representantes das zonas ocidentais da Alemanha) fora do bloco soviético foram adiante e, em abril de 1948, formaram a Organização Europeia de Cooperação Econômica (oece) para coordenar a execução do Plano. A iniciativa pressagiou o que viria a ser uma divisão duradoura não só com a Cortina de Ferro, como também entre os próprios países da Europa Ocidental. Os americanos pretendiam a integração econômica e também política da porção ocidental do continente. O Plano Marshall baseava-se nessa presunção, de início no sentido de uma união alfandegária europeia, embora envolvendo uma organização supranacional. Eles imaginavam construir uma nova Europa Ocidental à imagem dos Estados Unidos, mas os países europeus eram motivados por seus interesses nacionais, o que logo frustrou e depois destroçou as ideias americanas de integração europeia. Nas palavras contundentes do diplomata americano George Kennan, os europeus não tiveram nem força política nem “clareza de visão” para criar um novo “projeto” para a Europa. Os escandinavos mostravam “uma apreensão patológica em relação aos russos”, os britânicos estavam “gravemente debilitados” e as demais nações sofriam de uma falta de convicção semelhante àquela de que padeciam os britânicos.
Para os governantes da França, o que mais interessava ao país era evitar a perspectiva de uma Alemanha reconstruída e militarmente poderosa que pudesse mais uma vez se valer do poderio econômico da indústria pesada do Ruhr. O tipo de integração econômica com base no livre-comércio defendido pelos Estados Unidos não seria a melhor forma de promover esse interesse prioritário. Os planos franceses de reconstrução no pós-guerra previam a internacionalização do Ruhr, de modo a garantir acesso ao carvão e ao coque alemão, e com isso enfraquecendo a Alemanha de modo permanente. Mas quando, em junho de 1948, os Aliados ocidentais decidiram criar um novo Estado unitário, a Alemanha Ocidental, a França se viu obrigada a alterar sua política, que passou a ser a defesa de uma cooperação na alocação dos recursos da Alemanha em termos de combustíveis e produção de aço. Essa foi a gênese do crucial entendimento franco-alemão que seria a base da posterior Comunidade Econômica Europeia.
Os interesses nacionais da Inglaterra eram bem diferentes. As autoridades em Londres só viam desvantagens na união alfandegária europeia recomendada pelo Plano Marshall — um ponto de partida óbvio para uma futura integração. Afirmavam que “não há atrativos para nós numa cooperação econômica de longo prazo com a Europa”. Temiam que essa situação submetesse a Inglaterra a uma concorrência econômica prejudicial, impedisse o governo de tomar medidas independentes no sentido de uma recuperação interna, agravasse a saída de dólares e com isso aumentasse a dependência da ajuda americana. Ademais, os interesses britânicos estavam vinculados à Comunidade Britânica de Nações e à restauração do comércio mundial. O diplomata americano William L. Clayton, uma das figuras-chave na criação do Plano Marshall, chegou bem perto da verdade em sua avaliação: “O problema dos britânicos é que eles se agarram a um fio de esperança de que, de uma forma ou de outra, com ajuda nossa, serão capazes de preservar e controlar seu império”. Como sintetizou o próprio George Marshall, a Inglaterra queria “beneficiar-se de um programa europeu em sua plenitude […] e ao mesmo tempo conservar a ideia de que não é exatamente um país europeu”. Algumas nações menores assumiam uma atitude semelhante. O objetivo americano de integração econômica, portanto, foi uma ideia natimorta. Quando voltou à baila, gradualmente, a integração econômica europeia não viria do Plano Marshall, e sim da posterior reaproximação franco-alemã em relação ao carvão e ao aço do Ruhr. E a Inglaterra não quis saber de participar disso.
Nos últimos meses de 1948, a divisão econômica da Europa estava se igualando à cisão política. Em outubro, a União Soviética criou o Cominform (Bureau Comunista de Informação), sucessor do Comintern, com o objetivo de bloquear o que chamou de “plano americano para a escravização da Europa”. Segundo o Cominform, o mundo estava dividido num bloco imperialista (dominado pelos Estados Unidos) e um bloco democrático (influenciado pelos soviéticos). Em janeiro de 1949, o bloco soviético criou sua própria organização econômica, o Comecon (Conselho de Assistência Econômica Mútua), como contrapartida do Plano Marshall, patrocinado pelos Estados Unidos.
O Plano Marshall confirmou a divisão da Europa em dois blocos hostis. As medidas tomadas para criar o Estado alemão ocidental cimentaram a divisão. Em junho de 1948, os Aliados ocidentais acordaram a fundação da Alemanha Ocidental. Fizeram uma reforma monetária que instaurou a base financeira para a recuperação econômica e que, mais tarde, muitos alemães viram como o verdadeiro fim da Segunda Guerra Mundial para seu país. A adoção do marco alemão e a suspensão, pouco depois, dos controles de preços de muitos produtos determinaram o rápido fim do mercado negro e o começo da normalização da economia. Os soviéticos responderam com uma nova moeda na zona oriental. Muito mais ameaçadora foi a imposição de um bloqueio das ligações terrestres entre as três zonas ocidentais e a capital, Berlim (a própria cidade estava dividida entre as quatro potências, mas se localizava, incomodamente, no interior da zona soviética, a 150 quilômetros de sua divisa).
O objetivo soviético era forçar os Aliados ocidentais a sair de Berlim. Os americanos viam a capital como seu grande campo de afirmação. Não se esqueciam do golpe comunista na Tchecoslováquia e temiam que uma saída de Berlim fosse o prelúdio para que os soviéticos estendessem as garras sobre a Europa Ocidental. O bloqueio foi quebrado por uma improvisada ponte aérea dos Aliados, que, a partir de 26 de junho, forneceu 2,3 milhões de toneladas de suprimentos à população das zonas ocidentais bloqueadas de Berlim. Foram 278 mil voos realizados num período de 321 dias, antes que Stálin enfim admitisse a derrota e suspendesse o bloqueio, em 12 de maio de 1949. Para as potências ocidentais, a ponte aérea constituiu, naturalmente, um triunfo de propaganda e assinalou a disposição e a determinação dos americanos de se manter na Europa como salvaguarda contra a propagação do poder comunista.
Ainda em maio, representantes alemães-ocidentais redigiram uma Lei Básica — uma constituição — para o futuro Estado, que, fundado em 20 de setembro de 1949, se chamaria oficialmente República Federal da Alemanha. Nessa época, os soviéticos já tinham se resignado a criar um Estado separado em sua zona. Em 7 de outubro, selou-se a divisão da Alemanha até um momento futuro indefinido — muitos presumiram que seria para sempre — com a criação da República Democrática Alemã na antiga zona oriental.
Num período brevíssimo, a Alemanha deixara de ser, para o Ocidente, uma ameaça à segurança futura para se transformar em baluarte contra a expansão soviética. Reunidos em Dunquerque, em março de 1947, franceses e britânicos haviam assinado um tratado defensivo ainda voltado para a possibilidade de uma futura agressão alemã. Um ano depois, esse documento foi ampliado no Pacto de Bruxelas, também assinado por Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo. Agora, porém, era a União Soviética, e não mais a Alemanha, que passava a ser vista como a principal ameaça. O medo crescente do poderio soviético, além do compromisso americano de manter indefinidamente suas tropas no continente europeu, tornava essencial incorporar de modo formal os Estados Unidos aos aparatos de segurança para a defesa da Europa Ocidental. A crise de Berlim, que revelara claramente o quanto essa porção do continente ficaria exposta sem a proteção do poder militar americano, incentivou a criação de uma aliança atlântica como barreira a um potencial expansionismo soviético.
Em 4 de abril de 1949, os signatários do Pacto de Bruxelas firmaram com Estados Unidos, Canadá, Itália, Portugal, Dinamarca, Noruega e Islândia o Tratado de Washington, que criou a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), comprometendo-se a prestar ajuda mútua no caso de um ataque a qualquer um de seus membros. Ela deu à Europa Ocidental uma sensação de segurança que suas defesas extenuadas não proporcionavam. Seu valor era sobretudo simbólico, uma expressão de união no compromisso de defesa da Europa Ocidental. Na realidade, era um disfarce para uma fragilidade visível — as forças terrestres soviéticas superavam as dos Aliados ocidentais numa razão de 12 para 1. E só duas das catorze divisões dos Aliados estacionadas na Europa eram americanas.
Fosse como fosse, logo a segurança europeia teve de ser repensada. Em 29 de agosto de 1949, a União Soviética detonou sua primeira bomba atômica num campo de provas onde fica hoje o Cazaquistão. O Ocidente ficou chocado. Os americanos imaginavam que sua superioridade nuclear duraria muito mais tempo. Em vez disso, as duas superpotências militares passaram a lançar olhares hostis, cada qual de seu lado da Cortina de Ferro, que agora constituía a grande barreira divisória da Europa. Com um arsenal nuclear em rápida expansão de cada lado, a Guerra Fria logo congelou, com a formação de dois grandes blocos antagônicos de poder. E essa situação perduraria por quatro décadas.
Em 1949 começava a ficar claro que, de formas bem diferentes, tanto o Leste Europeu como a Europa Ocidental estavam a caminho de uma estabilidade e de um crescimento econômico impossíveis de prever quatro anos antes. Era nítido o contraste com a prolongada turbulência que se seguira à Primeira Guerra Mundial. Como explicar isso?
Cinco elementos cruciais interagiram para lançar os alicerces da transformação imprevisível que só se materializou de fato na década de 1950: o fim da ambição da Alemanha à condição de grande potência; o impacto do expurgo de colaboracionistas e criminosos de guerra; a cristalização da divisão duradoura da Europa; o crescimento econômico que começava a decolar no fim da década de 1940; e a nova ameaça de guerra atômica (e em breve termonuclear).
As ambições da Alemanha de se tornar uma potência mundial (e até mesmo a potência mundial dominante) eram um traço crucial e pernicioso que marcou a história europeia desde o período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial até 1945. Essas ambições foram parte do pano de fundo que levou à eclosão de 1914; depois declinaram, sem se extinguir, durante a malfadada democracia pós-1918, só para retornar, com agressividade muito maior, a partir de 1933, levando diretamente à Segunda Guerra Mundial em 1939. Com a derrota total de 1945, tinham sido esmagadas de uma vez por todas. A eliminação dessa fortíssima turbulência no coração da Europa deu ao continente, mesmo na divisão da Guerra Fria, uma nova oportunidade.
Por mais precários e insuficientes que tenham sido os expurgos dos colaboracionistas e dos culpados dos piores crimes de guerra, foram medidas que proporcionaram certa dose de catarse às vítimas do nazismo e do colaboracionismo, além de mostrar que os métodos violentos da extrema direita não teriam mais como envenenar as sociedades como acontecera depois de 1918. Um elemento crucial da instabilidade política do entreguerras havia praticamente desaparecido. As mudanças de fronteiras e as transferências de populações na Europa Oriental, embora realizadas à custa de muito sangue, geraram uma homogeneidade étnica muito maior à que tinha se registrado no entreguerras, o que também contribuiu para a pacificação da metade oriental do continente, muito embora sob a mão pesada da repressão soviética.
Por mais perverso que isso possa parecer, a Cortina de Ferro que dividiu a Europa acabou sendo uma fonte de estabilidade, ainda que a um altíssimo preço para os povos do Leste Europeu, condenados a décadas de domínio soviético. Quanto mais a União Soviética afirmava seu controle monolítico sobre a Europa Oriental, mais determinados se tornavam os americanos a confrontá-lo com o exercício de sua influência sobre a Europa Ocidental. Berlim, que em breve se tornaria a única abertura na Cortina de Ferro, pela qual passavam milhões de refugiados numa corrente unilateral, tornou-se o símbolo da defesa americana do Ocidente após a ponte aérea de suprimentos em 1948. Sem a presença dos Estados Unidos e a sensação de proteção que oferecia, é difícil imaginar algo que se aproximasse da estabilidade que o cobertor ideológico do anticomunismo ajudou a criar no Ocidente.
Não que os soviéticos tivessem planos militares para ocupar a Europa Ocidental (ainda que tal ocupação fosse com certeza temida na época). Mas sem o apoio americano para reconstruir as economias ocidentais, sustentar sistemas políticos frágeis, proporcionar um guarda-chuva defensivo e liderar um ataque de propaganda à ameaça do comunismo, os partidos comunistas europeus poderiam ter conquistado mais eleitores e diminuído as chances de criação de democracias pluralistas estáveis. Se os americanos tivessem de fato saído da Europa em 1947, como pretendiam fazer de início, é de duvidar que as ex-grandes potências europeias, a França e a Inglaterra, gravemente debilitadas, tivessem sido capazes de liderar a bem-sucedida reconstrução da Europa Ocidental. A presença americana na Europa garantiu o triunfo do capitalismo. Com certeza, ela não foi recebida com aclamação unânime. A esquerda em especial a detestava. Tampouco a crescente “americanização” da Europa, que muitos apontaram, foi acolhida com alegria em toda parte. Tal como antes da guerra, foi criticada em alguns círculos como sinal de declínio cultural. Entretanto, quaisquer que tenham sido as desvantagens causadas pela longa presença americana, as vantagens as excederam com folga. Sob a égide dos Estados Unidos, a Europa Ocidental teve a oportunidade de encontrar suas próprias formas de união e de começar a superar os perigos nacionalistas do passado recente.
Seja como for, talvez isso não tivesse sido viável sem o crescimento econômico que preparou a base para a prosperidade sem precedentes que, apesar da austeridade do pós-guerra, logo começou a se fazer visível. Embora não tenha sido a causa do crescimento, o Plano Marshall simbolizou as novas esperanças para o futuro na Europa Ocidental. Em lugar do pagamento de reparações, que minou a estabilidade econômica na década de 1920, houve o incentivo dos empréstimos americanos. A ajuda do Plano Marshall deu às economias europeias um amparo importante e, nas palavras de um relatório de 1951, “força para operar sua própria recuperação”. Por trás do crescimento havia montantes gigantescos de mão de obra ociosa, capacidade produtiva, demanda represada e inovação técnica. Também desempenharam papéis relevantes as lições sobre a confiança nas forças do mercado para restaurar as condições vigentes antes da guerra, como as que tinham prevalecido depois da Primeira Guerra Mundial, e a aplicação de técnicas keynesianas de política monetária para estimular o crescimento. E, mais do que nunca, a Europa Ocidental se associou, do ponto de vista econômico, aos Estados Unidos, uma sociedade tecnologicamente avançada e próspera.
Com a rejeição do Plano Marshall, a Europa Oriental logo distanciou-se bastante da metade ocidental do continente. No entanto, apesar da incessante repressão soviética, também lá o crescimento econômico teve forte aceleração depois da guerra, e o avanço material foi expressivo. Sociedades empobrecidas e subdesenvolvidas, dilaceradas por conflitos étnicos e de classe nos anos do entreguerras, contavam agora uma base de prosperidade e estabilidade relativas, por mais forçado que tivesse sido o processo.
Por fim, as armas nucleares levaram as autoridades, nos dois lados da Cortina de Ferro, a ter mais cautela. A existência dessas armas de imenso poder de destruição, daí a algum tempo bem mais poderosas do que as que tinham destruído Hiroshima e Nagasaki, acenava com perspectivas tão aterradoras que reduziram as probabilidades de uma guerra quente, e não apenas fria, entre as novas superpotências. Com a invenção da bomba de hidrogênio, os Estados Unidos e a União Soviética haviam adquirido, em 1953, o potencial de “destruição mutuamente garantida” (conceito apropriadamente abreviado em inglês como “mad”, de “mutually assured destruction”). Dispor ou não dispor de armas nucleares logo se tornaria uma das questões de política nacional mais controversas na Europa, principalmente depois que a Inglaterra e a França — ansiosas para conservar seu lugar no elenco das grandes potências — produziram as suas. Mas, uma vez criadas (e duas vezes usadas pelos americanos em 1945), não se podia fazer com que desaparecessem pela força do desejo. Não surpreende que sua simples existência continue a ser encarada com temor, e que a possibilidade de que venham um dia a ser usadas seja terrível. Entretanto, parece altamente provável (embora não seja possível demonstrá-lo) que a possibilidade de um confronto nuclear entre as superpotências, que teria causado uma calamitosa terceira guerra mundial, foi fundamental para criar na Europa dividida, depois de 1945, uma estabilidade que era impossível ao fim da primeira grande conflagração europeia, em 1918.
O futuro da Europa em 1945, na medida do possível, apontava para um continente de Estados-nações independentes. E, quando a Europa se cristalizou em suas duas metades separadas, ainda era um continente de Estados-nações. Entretanto, isso começava a mudar. Na Europa Oriental, o poderio militar da União Soviética levou à rápida subordinação dos interesses das várias nações ao interesse do bloco. A soberania de cada uma deixou de existir. Os países da Europa Ocidental, embora sob crescente influência americana, eram mais sensíveis a esse tipo de intromissão — e nesse quesito destacavam-se a Inglaterra e a França.
Nos primeiros anos do pós-guerra, poucas pessoas falavam de entidades políticas supranacionais, e quando Winston Churchill imaginou os “Estados Unidos da Europa”, em 1946, não incluiu a Inglaterra em sua proposta, nem pensou num mundo que ainda não fosse dominado pelas grandes potências (categoria na qual estava decidido a manter a Inglaterra). No entanto, a incipiente Guerra Fria e a necessidade de garantir que os frutos do crescimento econômico não fossem destruídos por rivalidades nacionalistas combinaram-se para criar os primórdios da pressão em favor de maior coordenação e integração das economias e da defesa da Europa Ocidental. A criação da Organização Europeia de Cooperação Econômica em 1948 e, no ano seguinte, da Otan e do Conselho da Europa (dedicado à cooperação europeia em questões relacionadas ao estado de direito e à defesa dos direitos humanos fundamentais) eram passos ainda pequenos no sentido da conciliação de interesses nacionais com maior integração continental.
As cisões históricas eram profundas demais para permitir que os interesses nacionais fossem superados de forma rápida ou abrangente — e a Inglaterra, sobretudo, era refratária a qualquer possível diminuição de seu status ou soberania. Em 1950, os franceses apresentaram uma proposta — o Plano Schumann — de controle conjunto da produção de carvão e aço do Ruhr, mas as questões de segurança nacional, através do controle do potencial de rearmamento alemão após a fundação da República Federal da Alemanha, falaram mais alto que as noções idealistas de união europeia. O plano, porém, veio a se tornar o passo decisivo — o começo do caminho que levaria a um “mercado comum” e à criação da Comunidade Econômica Europeia, com suas próprias instituições governantes.
Contra todas as possibilidades, uma nova Europa — dividida, mas com cada parte arrimada em alicerces mais sólidos do que qualquer coisa que se pudesse vislumbrar ao fim da guerra — tinha nascido das cinzas e ganhado forma com notável rapidez. A perspectiva de futuro se abria. Em meio às persistentes cicatrizes, físicas e morais, da mais terrível guerra de todos os tempos, despontavam as probabilidades do surgimento de uma Europa mais estável e mais próspera do que teria sido possível imaginar nas décadas em que o continente chegara perto da autodestruição.
* Minha tia Gladys entrou numa longa fila, em Oldham, porque tinham lhe dito que ali estavam vendendo meias de náilon. Quando quase chegava a sua vez, soube que não havia meia nenhuma: a fila era para comprar bucho. “Bem, não perdi tanto tempo para nada. Vou levar um pouco então”, disse ela. (N. A.)