Um outro final de tempo?

Nunca prestei grande atenção ao calendário, nunca comemorei datas.

Tenho para mim um relógio íntimo que marca outro compasso nisso que chamamos de tempo. Contudo, ao ler estas linhas já impressas na revista eu poderei dizer: «Escrevi este artigo no milénio passado.» E o tempo terá um sabor que nunca experimentei. Falamos muito do milénio porque temos medo. Inevitavelmente, o tema se associa ao advento de calamidade, ao final do mundo. A pergunta deve ser feita: porque nos ocupamos tanto desta celebração sabendo que ela não é senão o resultado de uma encenação? Porque se insiste em eleger este tema como preocupação universal sabendo que, para a maior parte da humanidade, o milénio não merece se quer referência? Para crentes de outras religiões que não a cristã, o milénio não é preocupação senão por empréstimo.

Há uns anos, um jornalista que me acompanhava nas minhas andanças de biólogo ficou espantado porque não encontrou, no interior de Moçambique, equivalente na língua local para o termo «futuro». As pessoas possuíam, evidentemente, noção da existência de um porvir. Mas não nomeavam esse tempo vindouro. Nessa cultura — como em tantas outras — domina uma concepção circular do tempo, bem distinta da concepção linear que se acredita universal.

Mas não são apenas as culturas da oralidade que rejeitam a ideia do tempo-flecha, como um ponteiro evoluindo num infinito cenário. A própria ciência coloca hoje em dúvida as concepções aristotélicas e newtonianas sobre as quais assenta a nossa intuição da passagem do tempo. Para os físicos que estudam a lógica das galáxias, a pergunta sobre o «depois» do universo não tem muito sentido. Simplesmente porque, para o universo, não houve nunca um antes. À pergunta fatal — e antes de haver universo o que é que havia? — alguns físicos respondem com a maior simplicidade: não existia nada. O tempo nasceu com o próprio universo.

Retomo a questão da relatividade do tema — o milénio — porque me surpreende a arrogância com que se proclamam certas preocupações como essenciais à nossa espécie. Afinal, para a grande maioria dos homens, o milénio não é sequer assunto. Não fosse um certo tipo de calendário se ter imposto como marcação hegemónica do tempo e não haveria razão para escrever este artigo.

O próprio numeral «mil» só tem este lugar central devido ao domínio de um tipo de numeração na base dez. Estamos comemorando a passagem do milénio porque uma certa cultura decimal triunfou sobre outros sistemas de numeração. Houvesse triunfado um sistema na base de um outro algarismo e já o número 1000 teria pouco significado simbólico. Não fossem alguns textos básicos da religião cristã que incluem prédicas milenaristas e a data perderia o seu carácter especial.

Acertemos, pois, que o assunto é relativo a uma dada cultura e que o seu alcance se foi alargando devido a razões históricas bem conheci das. A importância da data nasceu marcada pelo seu condão trágico e, desde cedo, os finais de milénio condensaram sentimentos de receio e, muitas vezes, de pânico colectivo. Presságios e hecatombes ameaçaram abater-se sobre a Terra sempre que se avizinhava o fim de século.

Nas vésperas do ano 1000, grande parte dos europeus foram tomados pelo pânico. Um batalhão de videntes, as trólogos e profetas, secundados por matemáticos e mon ges, anunciavam o catastrófico fim do universo. Gerações que viam avizinhar-se a viragem do século convertiam-se em piedosas criaturas redigindo generosos testamentos. Os ricos doavam as terras à Igreja e os seus bens aos mais pobres. Muitos viajaram para Jerusalém. Outros procuraram abrigo em mosteiros. Em Dezembro do ano de 999, os comerciantes fecharam as lojas e distribuíram o dinheiro pelos pobres. Perdoaram-se dívidas, soltaram-se condenados, ilibaram-se criminosos. Cito Hillel Schwartz: «Nos lares, as esposas perdoavam os maridos adúlteros e os maridos perdoavam as esposas infiéis. As crianças eram dispensadas dos bancos das escolas pelos seus mestres que não viam utilidade no ensino, tão perto se encontrava o fim do mundo.»

O dia 31 de Dezembro de 999 instituiu um verdadeiro caos. Cristãos encheram as igrejas, em preces desesperadas. À meia-noite daquele dia, o papa Silvestre II dirigiu-se em missa especial de Roma e viu, com espanto, que nada de especial acontecia enquanto proferia suas orações. O novo milénio despontava sem que o mundo se abatesse no vácuo. Um enorme suspiro de alívio uniu os crentes que imediatamente se dedicaram, com ânimo, a diversas obras de construção.

O ano 1000 foi um período admirável de reconstrução e esperança. Pudesse esse espírito regressar agora, nesta infância do século, e encorajar os homens para reconstruírem aquilo que tem sido degradado. E que, desta feita, a obra maior fosse o próprio homem.

(Janeiro de 2000)