No dia da Independência eu tinha 19 anos. Toda a minha adolescência fizera crescer o sonho de um dia ver subir num mastro uma bandeira para o meu país. Eu acreditava, assim, que um sonho se poderia traduzir numa bandeira. Há coisas que fazemos por acreditarmos. Outras coisas passamos a fazer por deixarmos de ter crença. Em 75 eu era um jornalista movido a crença. O mundo era a minha igreja, os homens a minha religião. E tudo era ainda possível.
Não tenho boa memória, mas disso me recordo com nitidez. Na noite de 25 de Junho eu tinha sido escalado para trabalhar na sede da Rádio. Para mim, era um castigo estar afastado da grande festa que decorria no Estádio da Machava. Mas era-nos pedido disciplina e havia que aceitar que alguns se sacrificavam em nome dos outros. Fazia parte da crença.
Um quarto de hora antes da meia-noite decidimos, eu e mais três jornalistas, desobedecer. Havia um carro enferrujado na oficina, havia alguém que acreditava saber conduzir. Assim, escapámos da redacção e lá fomos, rumo ao estádio, como insecto atraído pela sedução da luz. No caminho, eu saboreava esse gostinho de transgredir e de me juntar à celebração colectiva.
Apesar de não haver trânsito, o nosso velho carro progredia devagar. Assim nunca chegaremos a tempo, comentou alguém. Foi quando, de repente, escutámos sirenes e, num instante, ficámos envolvidos por uma fila interminável de carros. Numa dessas viaturas seguia — para nosso indizível espanto — o presidente Samora Machel. Era a comitiva presidencial que rumava com ligeiro atraso para o lugar da cerimónia. Por feliz acidente o nosso pobre calhambeque acabou ficando integrado na comitiva. Foi assim que, infiltrados entre altas individualidades, demos entrada em pleno Estádio, esmagados pelo clamor da multidão.
Não esqueço nunca os rostos iluminados por um mágico encantamento, não esqueço o olhar dos que construíam aquele momento. Havia festa, a celebração de sermos gente, termos chão e merecer mos céu. Mais que um país celebrávamos um outro destino para nossas vidas. Era uma espécie de redenção, de reencontro com nosso próprio futuro.
Vinte e cinco anos depois esse olhar é o mesmo no rosto do comum moçambicano? Não é. Nem podia ser. Porque no primeiro dos vinte e cinco se cristalizava a esperança total e absoluta. Aquela era uma esperança legítima, mas ingénua, de que era possível, no tempo de uma geração, mudarmos o mundo e redistribuirmos felicidade. Entre o optimismo demagógico e o pessimismo derrotista que balanço fazer deste percurso? Foram, sobretudo, anos de aprendizagem do que é (e do que pode ser) a soberania e a dignidade. Estamos ainda gatinhando esse chão de sermos uma nação, partilhando iguais sonhos e desilusões. Já não acorreríamos com a mesma alegria ingénua para um estádio a celebrar uma nova anunciação. Mas isso não quer dizer que somos menos disponíveis para a crença. Estaremos mais despertos para saber que tudo pede um caminho e um tempo. Tomamos o pulso a um mundo que, ao mesmo tempo, nos pede e nos nega cidadania.
Um quarto de século é muito na história de um indivíduo. Mas é quase nada na História de um país. Sabemos hoje que estamos ainda longe de realizar esse sonho que nos fez cantar e dançar na noite de vinte e cinco de Junho, no Estádio da Machava. Grande parte dessa aspiração ficou por cumprir. Poderemos recorrer a explicações, apontar dedos acusadores. Tudo isso será pouco produtivo. Necessitaremos de inventar dentro de nós razões para agir. Com mais ou menos crença. Mas construindo. Não o melhor dos futuros. Mas um futuro para todos. Um futuro que vá começando já hoje. Moçambique não é mais que essa construção, esse compromisso para com os nossos filhos.
(Outubro de 2000)