Um mar de trocas, um oceano de mitos

O Índico não é apenas da ordem da geografia: é um guardião de história de povos diversos. Viagens antigas não trocaram apenas genes, mercadorias, línguas e culturas. Forjaram identidades e uma história comum de povos que bem se poderiam hoje chamar de «indiânicos».

Os adeptos da «pureza» genética e/ou cultural que se desenganem: o que somos hoje é o resultado de mestiçagens antigas, tão velhas e complexas que nem sempre lhes seguimos o rasto. Essa mistura de misturas é, afinal, comum a toda a humanidade. Em redor do Índico, porém, onde uma ampla teia de trocas se foi estabelecendo desde há sete séculos, esse mosaico é bem singular.

A costa moçambicana testemunha a chegada desses navegadores. Em outros recantos guardam-se outras me mórias: a partida de escravos, a presença de comer cian tes, a permanência de militares. A este território foram chegando barcos e marinheiros num infindável desfile. Por aqui passaram chineses, indonésios, árabes, indianos, europeus. A costa de Moçambique foi a via de penetração para todo o continente do coqueiro e da bananeira que viriam a alterar a vida de comunidades inteiras. Por meio destas trocas, o Índico foi banhando afastadas terras que as suas águas nunca tocaram. Mais do que trazer produtos, os longínquos visitantes deixavam a habilidade de estabelecer trocas e negociar destinos. E não foram apenas roupas, barcos, sementes e frutos que os «outros» trouxeram e que hoje acre ditamos ingenuamente serem nossos de origem. O que nos ficou foi a capacidade de criar mestiçagens culturais, de nos construirmos identidades que funcionam como empresas de import-export. Essa desidentidade também a fomos cedendo aos outros que, assim, foram ficando menos outros.

Outras globalizações

O marinheiro que ajudou Vasco da Gama a navegar da ilha de Moçambique para a Índia não sabia quanto estava participando no que se chama hoje de «globalização». Também não fazia ideia quanto ele estava repetindo um feito que há quase um século já se havia cumprido.

Na realidade, em 1403, o almirante chinês Zeng He comandou uma esquadra de navios que escalou a costa oriental da África. Navegava no sentido inverso ao do português, mas também ele era auxiliado por um marinheiro muçulmano que conhecia as rotas do Índico. Zeng He converteu-se ele próprio ao islamismo e, por vezes, rumava a Meca para cumprir as suas religiosas obrigações. Os mares foram estradas para homens e deuses.

Entre 1403 e 1435 o almirante Zeng He repetiu sete vezes a proeza de atravessar o Índico. Nesse período, um total de 350 grandes juncos enviados pelo imperador Ming transportaram pessoas e mercadorias entre as diferentes regiões que marginam o Índico.

Os juncos chineses não eram barcos de pequena dimensão. Alguns deles disputavam grandeza com os modernos transatlânticos. Tinham capacidade para 1000 passageiros e podiam carregar centenas de toneladas de mercadoria. Navegavam ajudados por correntes e monções que insuflavam as velas presas em bambus. Ao contrário das naus lusitanas, que dispunham de três mastros, os navios chineses estavam apetrechados com nove mastros. Nem Vasco da Gama no final do século nem Zeng He inauguravam caminhos novos em águas do Índico. Ambos seguiam as pegadas senhor pela religião islâmica e pelo comércio árabe.

Ao contrário do Atlântico Sul que, no século XV, não testemunhara ainda viagens transcontinentais, as águas do Índico já tinham visto quilha de muito barco. As ilhas que os portugueses iam descobrindo ao longo da sua rota eram desabitadas. O mesmo não se passava nas costas orientais do continente.

Outros passageiros

Os navios trouxeram não apenas riquezas mas furtivos e clandestinos passageiros que davam pelo nome de ratos. Os ratos foram notáveis disseminadores de doenças e pragas. É difícil imaginar quantas trocas se faziam já no século XIV entre as mais longínquas paragens. Acreditamos que viagens tão difíceis exigem os actuais e sofisticados meios náuticos. Mas o desafio de cruzar os mares estimulou, desde há muito, o engenho e a arte do ser humano. Nunca nos conformámos com o destino e o lugar que nos coube. Sempre partilhámos com os deuses o milagre de caminhar sobre as águas.

As embarcações trouxeram também enganos e mal-entendidos. Quando Colombo desembarcou na costa da América baptizou os habitantes locais de «índios». Acreditava estar perante um povo das Índias, no oceano Índico. O nome, fruto de equívoco, não foi nunca rectificado. Ficou para sempre e para todos (incluindo para os mal baptizados «índios»). Outras marcas sobreviveram durante séculos. A história das navegações não é feita só de glórias. Os navegantes europeus trouxeram com eles doenças contras as quais as populações americanas não haviam adquirido resistências. Epidemias mataram milhões desses «índios». Acredita-se que, um século depois da chegada de Colombo, alguns destes povos tenham sido reduzidos a um décimo da sua população originária.

As viagens realizaram trocas de produtos alimentares. Muito do que incorporamos na nossa dieta quotidiana vem dessas Américas. Foram os navegadores portugueses os maiores responsáveis por esta disseminação. Muitos moçambicanos acreditam que produtos como a mandioca, a batata-doce, o caju, o amendoim, a goiaba e a papaia são genuinamente africanos. Todos eles foram importados e chegaram a África no porão de alguma pequena nau lusitana.

Um pano de muitas linhas

Mais que obstáculo, o oceano Índico foi um caminho, um cruzamento de culturas. Por suas águas chegaram navegantes de outros continentes, de outras raças, de outras religiões. Na costa moçambicana os navios eram a agulha que costurava esse imenso pano onde ainda hoje se estampam diversidades. Durante séculos não se procedeu apenas ao comércio de mercadorias, de línguas, de culturas e de genes. Construíram-se nações. Moçambique foi tecido do mar para o interior. A linha que costurou o nosso país veio da água, da viagem, do desejo de ser outro. A bandeira que nos cobre é um pano de muitos e variegados fios.

(Janeiro de 2001)