O doce travo da sura

O dow atravessa as águas ondeando sobre um espelho líquido. O barquinho é um narcisista. De ascendência árabe, a embarcação à vela contempla-se com o vagar de um tempo que já não há. A baía é a de Inhambane e tem a vocação de todas as baías: as águas em arrependimento de serem mar, deixando-se embalar no abraço da terra. Esse recato redondo é cruzado por pescadores, mercadores e viajantes que fazem ligação entre Inhambane e Maxixe. Gente que tem ainda o mesmo sentimento do tempo que aquele que marcou a criação do lugar. Um dos lugares mais belos de Moçambique.

Os geólogos — que sabem ler paisagens — olham para a configuração da baía com alguma suspeita. Em momento longínquo, a baía de Inhambane poderá ter sido uma outra coisa. Por exemplo, uma lagoa fecha da tal como a lagoa Quissico e a lagoa Poelela. A lagoa cansou de existir sozinha. E abriu um braço para o Oriente. Hoje os dows vão penteando as tranquilas águas da baía, mas sabem que devem obedecer ao intrincado desenho dos canais. Alguns destes vales submarinos são fundos e atingem mais de vinte metros de profundidade.

Coqueiros e mangais contornam a linha costeira. É como que uma moldura pintada a verde sobre azul. O limite meridional da baía é formado por uma grande península sustentada por dunas que ondeiam como um gigantesco dow, em imitação do mar. As dunas que sobem alto (como a de Condjane com sessenta metros de altura) são entremeadas por baixios onde frequentemente se acumulam águas pluviais. Sobre estas dunas sobrevivem ainda florestas dunares, algumas delas tidas como territórios sagrados onde repousam os velhos fundadores do lugar. As lagoas das zonas baixas convocam uma multidão de pássaros, entre os quais o célebre «cabeça de martelo» sobre o qual reinam lendas de ligação à feitiçaria. Nas árvores próximas pode-se encontrar o não menos célebre ninho deste pássaro. Infeliz daquele que, mesmo inadvertidamente, destruir um destes desajeitados e enormes ninhos. A punição é a loucura definitiva.

A baía de Inhambane dá guarida a golfinhos, baleias e tartarugas gigantes. O mamífero raro e em vias de extinção, o dugongo, ocorre na enseada de Linga-Linga. Acredita-se que aqui ainda sobrevive uma das maiores populações deste mamífero em toda a costa moçambicana. Há ainda mamíferos terrestres como o furtivo e raro manguço de água (vungué, na língua local). Ocorrem ainda esses pequenos gálagos (bwanga) e macacos de cara preta (nzoko).

Um extenso mangal margina grande parte da baía. A floresta pantanosa é atravessada por canais profundos que são usados para a pesca. Um dos estabelecimentos turísticos teve a feliz ideia de construir uma passadeira que se estende pelo mangal adentro. Os turistas que se aventuram por este simpático caminho descobrem a inigualável beleza deste ecossistema. Durante a maré baixa milhões de pequenos caranguejos atapetam o chão, criando a ideia de que a areia entrou em efervescência.

Um mundo de tranças

Mas o melhor da baía de Inhambane são as pessoas, a sua inesgotável hospitalidade e a sua infinita vontade de trocar tempo e alma. Uma das muitas vezes em que, como biólogo, trabalhei naquela região fiz amizade com alguém que muito me marcou. Foi um velho pescador que me apontou um lugar onde chegavam flamingos e acabou, sem o saber, sugerindo-me um título para um romance meu. Encontrei Afonso Nhalane num desses canais dos mangais que são inundados com as marés. Ele tinha acabado de conferir as gamboas, essas armadilhas para captura do peixe. Abanou a cabeça: o peixe que apanhara só dava para uma refeição. Não mais do que isso. Com passo arrastado, como se ele próprio tivesse sido capturado numa invisível armadilha, o homem subiu a duna para se sentar à sombra de uma palmeira.

O destino de Nhalane está ligado às palmeirinhas. Logo pelo nome: Nhala é o nome de uma das palmeiras de onde se extrai sura. Afonso Nhalane lembra-se de que, nos antigamentes, havia mais peixe, mais flamingos. Nostalgia da adolescência, esse tempo em que, segundo ele, havia mais tudo? Mas o pescador insiste: a pesca com gamboas, venda de sura (o célebre vinho de palmeira), o comércio de cocos, tudo isso era bastante. Agora, a vida é como a baía pedindo sempre mais e mais riachos. Mas ele não se queixa, resignado a vender umas galinhas que vai criando no seu amplo quintal. Agora o que sou, pergunta, um pescador de galinhas? É isso que sou, repete, um pescador de galinhas.

Convida-me para beber um copo de sura em sua casa. A venda dessa bebida já foi parte importante do orçamento da família. Agora a bebida destina-se apenas a abençoar visitantes como eu. No caminho, atravessamos o seu terreno. Ele conhece os seus coqueiros um a um. Quase o vejo cumprimentando-os, chamando cada um pelo seu nome.

Depois, já com o copo de sura a meio, deixamo-nos a apanhar a brisa que, à tarde, sopra do mar. Estamos encostados a uma paliçada feita de folhas entrançadas de coqueiro. O pescador nota que me fascina a delicadeza do rendilhado da paliçada. É ele que proclama:

— Não há outro lado onde se façam estas tranças. Só aqui em Inhambane.

A palavra enche-me como a brisa: «as tranças». É isso que eu e o pescador estamos fazendo com o tempo: entrelaçando as horas, entre conversa e o pretexto de mais um copo. Na despedida, cruzo-me com moças que se agrupam para, à vez, entrançarem os seus cabelos. E afasto-me de encontro ao Sol que, mais ao fundo, vai fazendo tranças ao entardecer.

(Outubro de 2003)