Terras de água e de chuva

Um dos meus irmãos, quando menino e em estado de birra, ameaçava:

Vou fugir para Inhaminga.

O que ele queria dizer era que ia para além do mundo, para onde já não havia estrada nem distância. Ele ultrapassava o limite do regressável e, assim, o nosso amor por ele era posto à prova. Jogo sem risco: o amor era maior que toda a distância.

Inhaminga situava-se numa inatingível bruma, era o lugar mais longínquo que nós, nascidos e vividos na Beira, podíamos imaginar. Nessa altura, o distrito de Inhaminga, na província de Sofala, era realmente distante. Não apenas pelo tempo que consumíamos para lá chegar, mas pelos cenários de diferença, pelos mundos extraordinários que se desenhavam à nossa passagem. Ali estavam, ainda pujantes, as florestas de biombo atravessadas por mil riachos que engordavam ao mais pequeno chuvisco. Ali deambulavam leões, búfalos, leopardos, habitantes de um universo mistificado. Ali se dizia que, para sobreviver, era necessário comer cobras e matar bichos bravios e ferozes. Quarenta anos depois, regresso a esse percurso de encantamento. A primeira impressão quando fazemos essas incursões no passado é sempre de que o mundo ficou mais pequeno. Aquilo que eu retinha como grandes estradas de areia sempre foram, afinal, estreitas picadas. Os olhos de menino agigantam o mundo. Saio a perder do segundo confronto: a floresta foi empurrada da paisagem. Restam manchas em regiões de acesso mais difícil. Não podia ser de outro modo: afinal, as tais picadas que cruzam a savana foram abertas por madeireiros e donos de serrações. Foram eles que, há mais de cinquenta anos, desenharam caminhos para os camiões. Com os madeireiros vieram os caçadores. E os agricultores expandiram a sua presença, obrigando a árvore a uma retirada quase irreversível.

A noroeste, o famoso Parque da Gorongosa é ainda um refúgio para essa cobertura de verde e de mistério.

O meu coração avançava, assim, com algum constrangimento. A estrada entre o Dondo e Inhaminga é, no tempo seco, de fácil circulação. A minha viatura, contudo, parava ao mais pequeno pretexto. As barracas ao lado do caminho, as aldeias camponesas, os centros de carvoeiros, os cruzamentos com a reconstruída linha ferroviária de Sena, tudo isso era motivo para me fazer saltar do carro e falar com a gente da região. Recordava-me, ao início ainda vagamente, do chissena, a língua local. Mas quase todos falavam português. Como estes pescadores que usam um arpão pontiagudo para pentear o fundo lamacento das lagoas secas. É lá que está um saboroso peixe que, em tempo seco, espera, enterrado, pela chegada das chuvas. Mais além, as cegonhas de bico de lacre rivalizam com os pescadores. A sua técnica é, afinal, semelhante: flechar, com a força da surpresa, o distraído peixe.

Vou conduzindo entre centenas de bicicletas carregadas de sacos de carvão e mulheres carregando à cabeça armadilhas de pesca. A zona é muito pobre, talvez das mais pobres de Sofala. O peixe, o carvão e as bebidas artesanais são os negócios que permitem uma escassa sobrevivência. Existe, porém, uma jovialidade no trato como se todo o futuro do mundo estivesse disponível e a esperança estivesse à mão de semear. Esqueço-me da sensação inicial de que algo se perdeu entre memória e presente.

Evaristo Faife é o régulo da região. É ele que me reabre portas para um mundo que não necessita de mistificação. Junto dele estão os camponeses Sindique e Valicho. Passaram pelas guerras diversas e não querem sequer recordar esse tempo crispado. Os homens aceitam conduzir-me e apoiar-me no meu trabalho de levantamento da fauna que sobrevive junto às margens do rio Sangussi.

No dia seguinte, deparo com um grupo de turistas que se deslocaram da África do Sul para fazer observação de pássaros. Apresentam-se na qualidade de birdwatchers como se se reclamassem de uma rara e orgulhosa etnia. Ali estão, alojados em tendas, com pouco conforto mas com total harmonia com as gentes e o lugar. Procuram pássaros raros e aves endémicas como o abutre-das-palmeiras, a codorniz-azul e o oriolo-de-cabeça-verde. Não é uma surpresa tão grande encontrar este grupo. A região a norte do Dondo é, na realidade, um importante centro de atracção internacional dos tais birdwatchers. A avifauna ali presente é famosa pela sua raridade e pelo seu grau de endemismo. Convidam-me para jantar, partilho com eles uns enlatados acompanhando um arroz do tipo «juntos venceremos». Estão felizes porque, nessa tarde, observaram grupos de grous carunculados, uma ave protegida que apenas ocorre naquelas pradarias inundáveis, os chamados «tandos».

Adormecemos sob o doce mas monótono coaxar das rãs. Os musicais batráquios lembravam-nos que o lugar em volta era uma disputa de água e terra. Entre os grandes rios do Savane e do Sangussi, ocorrem dezenas de pequenos cursos de água que fluem dos tandos em direcção ao mar. Não longe, outros turistas tiram partido da praia do Savane, a norte da cidade da Beira.

À noite, conto ao régulo a história do meu irmão, usando Inhaminga como chantagem emocional. O homem ri-se. Depois, uma certa melancolia invade o seu rosto magro. Então, Evaristo Faife diz:

Seu irmão tinha razão: isto aqui é mais longe que o estrangeiro.

— Não é verdade. Então não estamos aqui, juntos? Sim, mas quanto tempo demorou para que o senhor voltasse aqui?

Permaneço calado. Perto, um noitibó canta. Não quero responder sobre o tempo que demorou entre uma e outra visita. Naquele sossego, a única coisa que apetece é fazer demorar o tempo.

(Julho de 2004)