As ilhas são como pessoas: querem existir por si mesmas mas receiam a lonjura. As ilhas de Bazaruto existem em família, numa constelação que as credencia como arquipélago, mas que sugere uma desculpável falsidade: apenas há pouco tempo elas se converteram em ilhas. Não nasceram assim, rodeadas de mar. Antes foram parte de uma península, a chamada península de São Sebastião. Tudo isto aconteceu «recentemente», na escala geológica do tempo.
A cadeia de dunas da qual a península de São Sebastião faz parte possui menos de noventa mil anos. Idade pouca, como se vê, para quem mede o universo por via das rochas. Essa é apenas a idade do material que serviu de ventre materno. Porque o parto, o corte do cordão umbilical, ocorreu muito mais tarde. Esse golpe que roubou as ilhas ao continente tem apenas cinco mil anos. Na escala geológica, um simples piscar de olhos nos separa desse nascimento.
A última transgressão marinha actuou como esse mes mo destino que, sem darmos conta, nos leva os filhos para longe de casa: a península fragmentou-se e as águas sulcaram canais entre as diversas ilhas. O mesmo processo fez criar, mais a sul, a ilha da Inhaca, cortando, na mes ma altura, a península de Machangulo.
Esta é a origem de quatro dos cinco actuais territórios insulares do arquipélago: Bazaruto, Benguerra, Macarugue e Bangue. A ilha de Santa Carolina, digamos, tem «outro» pai. Ela nasceu por um processo diferente: é filha de recifes de corais instalados sobre plataformas rochosas. Por esta razão, ela é a mais velha e a mais estável da família. Se as ilhas arenosas possuem cinco mil anos, Santa Carolina possuirá mais de cento e vinte mil anos. A matriarca, portanto.
Santa Carolina não sofre dessa enfermidade congénita que é ser filha das areias movediças e ficar à mercê dos caprichos dos ventos. A ilha de Santa Carolina suporta mais e melhor os impactos das actividades humanas. Em linguagem do quotidiano, poder-se-ia dizer que a Santa que a ilha carrega no nome a vai protegendo das intempéries.
Este processo de formação das ilhas fez com que a fauna e a flora típicas do continente viajassem nessas jangadas de areia como tripulantes da Arca de Noé. Às ilhas de Bazaruto sucedeu o mesmo que a todos os adolescentes: viraram costas aos pais, bateram com a porta e fizeram-se ao mundo. Por mais que reivindiquem independência, no entanto, elas transportam consigo a mesma carga viva dos seus velhos pais. Por via desta herança se explica, por exemplo, que existam crocodilos na ilha de Bazaruto. Provavelmente, devido ao isolamento a que está sendo sujeita, esta pequena população de grandes répteis das lagoas de Bazaruto já apresente características genéticas próprias. Um dia destes, se o processo de divergência prosseguir, teremos uma nova subespécie de crocodilos na ilha de Bazaruto. É essa potencialidade de deriva genética que justifica a medida já adoptada de não deixar que ovos do continente sejam transportados para a ilha. As mães crocodilos de Bazaruto estão condenadas a, mesmo que o quisessem, não adoptarem bebés das suas primas do continente.
Quem visita estas lagoas interiores escutará histórias rocambolescas sobre os grandes sáurios. Que estes crocodilos, dizem, são exímios cantores! E que cantam para atrair cabritos que, distraidamente, pastem na região. Para dizer a verdade, estes cabritos não são objecto de grande simpatia por aqueles que zelam pela conservação biológica das ilhas. Insaciáveis comedores, os ruminantes acabam devorando a pouca vegetação que cumpre a religiosa função de proteger as dunas. Poucas vezes, de facto, nos ocorre que não é o chão que prende o arbusto mas o arbusto que inventa o chão.
Uma das vezes que trabalhei em Bazaruto tive que listar os pássaros. São mais de cento e quarenta espécies que ali ocorrem e um turista que não esteja apenas fascinado pelo mar e pela praia pode tirar partido deste património de plumas, asas e cantos. Num desses inventários, subi pela vertente interior da imensa duna que sustenta o farol. Do sopé dessa imensa barriga de areia, olhei a construção como bandeira hasteada no topo. Sabia que tinham sido prisioneiros quem tinha construído o farol, há mais de cem anos. À medida que escalava a duna ia imaginando o olímpico esforço desses construtores. Sem fôlego, fui parando para retomar ímpeto e, várias vezes, maldisse a ideia de empreender aquela caminhada.
Mas quando cheguei ao topo da duna, todo o cansaço se aplacou e, por momentos, esqueci corpo e fadigas. O meu olhar era uma asa pairando sobre uma paisagem de beleza indescritível. Os prisioneiros que ergueram o farol estão ainda hoje vingando-se: somos nós que nos con vertemos em cativos quando usufruímos daquela imensa tela feita de areia, mar e vento.
(Abril de 2008)