Outras formas de voar

Pouco do mundo teremos visto se não tivermos olhado os pássaros. Nem o imenso céu parece ter razão de ser se não for para albergar o voo das aves. Moçambique tem nesses seres alados um património precioso. Nem sempre conhecemos essa riqueza e quase nunca conhecemos as fascinantes histórias que eles escrevem com as suas próprias vidas.

Os pássaros não são apenas criaturas biológicas. Sobre eles se produzem lendas e mitos. Eles mesmos produziram comportamentos fascinantes e constituem-se em apuradas lições de zelo e dedicação. Foram as aves que, há milhões de anos, inventaram a infância. Antes delas, na história da evolução, ninguém tomava conta da criançada (com excepção gloriosa dos actuais crocodilos). Ao dedicar parte das suas vidas às pequenas novas vidas que geraram, os pássaros criaram mais que um ninho no sentido físico: inventaram o tempo mágico da infância em que somos o centro do universo. Moçambique possui uma ampla diversidade: entre 600 e 700 espécies diferentes de aves. Algumas são muito raras e de elevado valor de conservação. Outras apenas existem em regiões muito localizadas como, por exemplo, o oriolo-de-cabeça-verde que ocorre apenas na montanha da Gorongosa. O passarito é lindíssimo, mas de reduzidas dimensões. A sua raridade e as cores vistosas (os brasileiros ficariam orgulhosos pelo verde e amarelo da sua plumagem) atraem curiosos de todo o mundo, que organizam expedições às florestas da Gorongosa. Uma outra avezita que pode ficar vaidosa pela seu poder de sedução é o apalis das montanhas do Chimanimani, em Manica. A perdiz-de-swyn nerton é um outro habitante das belas cordilheiras do Chimanimani que atrai os chamados bird lovers de todo o mundo.

Um amor a toda a prova

Mais que o seu valor biológico, os pássaros inspiram histórias exemplares pela diversidade do seu comportamento natural. Existem espécies cuja conduta pode ser lida, aos nossos olhos, como muito inspiradora. O caso do tucano é uma bela história de amor e dedicação que faz inveja aos mais fiéis amantes da casta humana. A fêmea esconde-se num recanto e nele faz, com ajuda do macho, um ninho completamente fechado, construindo uma parede de lama sobre o vão de um tronco de árvore. Literalmente, a fêmea se empareda. Apenas um pequeno buraco a ligará, durante semanas, ao resto do mundo. Por esse orifício o seu companheiro lhe fará chegar alimento e consolo. Ali, naquele canto escuro, a fêmea se despojará de toda a plumagem e com essas penas arrancadas ao corpo fará um ninho onde chocará os ovos e assistirá ao nascer dos seus bebés. Se o macho morrer, nesse intervalo, ela morrerá também. Sem penas, e por isso desprovida de voo, a tucana estará condenada. Numa anónima cavidade de árvore se sepultará o seu estóico sacrifício.

Namoradeiras compulsivas

A jacana é um pássaro que desafia o milagre de Cristo passeando sobre as águas. A ave castanha e branca desloca-se por cima das folhas flutuantes (como as dos nenúfares) e para isso usa as suas patas desproporcionadamente compridas. A fêmea é bem maior que o macho e essa diferença de tamanho é já indicadora do inusitado caso das jacanas: há, nesta espécie, como que uma inversão daquilo que é habitual. A fêmea é poliândrica, isto é, tem vários maridos. E são estes que tratam sozinhos dos ovos e das crias. Os pequenotes, em perigo, abrigam-se por baixo das asas do pai e, a não ser pelas patinhas que emergem da plumagem, ninguém dá pela sua camuflada presença. Num ambiente hostil e cheio de predadores, como é o da margem das lagoas, há machos dedicados exclusivamente aos cuidados «maternos» libertando as fêmeas para se dedicarem aos namoros e à reprodução. E as jacanas são implacáveis namoradeiras. Não apenas namoram com vários ao mesmo tempo como chegam a agredir os machos que estão ocupados na protecção dos filhotes. Afastando os filhos da vizinhança do pai, a fêmea tem esperança que ele, por um instante, se esqueça de obrigações e as troque por súbitas e impensadas paixões.

Os abelheiros

Imaginem uma população de trezentos indivíduos vi vendo em colectivo e convivendo em absoluta harmonia. Nos momentos de fome, repartem o alimento e nas situações difíceis sacrificam-se todos na defesa contra predadores. Os casais, monogâmicos, permanecem fiéis a vida toda, e grande parte dos filhos, quando crescidos, em vez de abandonarem os lares e iniciarem famílias separadas, conservam-se junto aos pais para ajudarem a cuidar dos irmãos mais novos. Seria um belo exemplo para um argumento de uma novela televisiva composta apenas por gente comportada, exemplos acabados de uma certa moralidade. Mas não se trata de seres humanos. Para além disso, a ética dos bichos não pode ser transferida para o nosso universo social, a não ser em texto de fábula.

Quem são estes generosos pássaros? São os abelheiros. Eles praticam este tipo de vivência comunitária não porque sejam «bons rapazes», mas porque, na natureza, os sistemas de entreajuda são muitas vezes mais eficientes que a competição individual. Do ponto de vista da evolução biológica, a simbiose e a solidariedade são, quase sempre, mais eficientes que os confrontos à velha maneira de Darwin, com os mais fortes esmagando os mais fracos.

Os abelheiros (em inglês, são chamados de comedores de abelhas) são dos pássaros mais vistosos que cruzam os nossos céus e cada uma das várias espécies que ocorre no nosso país é um capricho de combinação de cores. A artística plumagem não parece, contudo, combinar bem com a sua «profissão» de engenheiros de túneis.

Todas essas espécies, como o nome bem indica, se alimentam de abe lhas e outros insectos voadores. Para não ficar contaminado com o veneno, o abelheiro esfrega vigorosamente o abdómen da abelha de encontro a um tronco de modo a retirar-lhe o ferrão. Os ninhos são escavados em escarpas arenosas das margens dos rios e cada casal arregaça as mangas e mete-se a escavar um túnel que pode ter até um metro de profundidade. É uma obra olímpica para um pássaro que não tem mais de vinte centímetros de comprimento. Cada túnel possui uma câmara de desova no fundo e, à saída, é retocado com uma barreira para evitar que os ovos escapem.

Falei destes exemplos, mas a vida das aves está cheia de histórias curiosas. Seremos mais pobres se não soubermos nada sobre elas. Sempre olhamos os seres alados com alguma inveja. Falta-nos a arte do voo. Desconhecemos, porém, que existem outros métodos para voar. E um deles, o mais simples e acessível, é deixarmo-nos encantar pelas suas histórias secretas.

(Janeiro de 2009)