O salto da baleia

A baleia saltou à nossa frente e o mundo ficou suspenso perante a grandeza do mamífero que emergia sem peso. Sobretudo, o meu barco ficou mais pequeno. E eu, que não sei nadar, deixei temporariamente de ter corpo, emigrando para um suspiro contido entre o êxtase e o medo. Aceitei sair para o mar porque não havia nem onda no horizonte nem nuvem no ar. Água é lugar de peixe e eu me libertei das guelras ainda em desenvolvimento fetal. Todos me espicaçam para que eu saia do provincianismo terrestre. E os argumentos são enfáticos:

Mergulha connosco! Nunca irás esquecer!

Vem pescar e verás o que tens perdido na vida.

Andar à vela é atravessar o silêncio, entre água e céu.

Dizem-me. Mas sou difícil de arrastar. Se eu mergulhar nunca mais regresso. Se entrar num barco transitarei de viajante para a própria viagem sem retorno. É por isso que, enquanto os meus companheiros no barco celebram a aparição da baleia e rezam por um novo salto, eu peço a todos os deuses que o bicho se comporte e regresse às profundezas.

Sou um homem que ama o mar, mas visto de terra. Essa distância me preserva de não me dissolver no próprio objecto amado. O mar é como fogo: demasiado longe morre-se de frio; demasiado perto, somos consumidos pelas suas líquidas chamas.

Mas eu vergo-me perante o fascínio dos grandes mamíferos aquáticos. E deixo-me enlear nas lendas e histórias desses parentes que preferiram morar em aguada residência. Todos viemos de lá, do oceano. Quem sabe, a baleia tenha segredos que gostaríamos de decifrar? Talvez por isso eu, certa vez, tenha trazido uma baleia para um conto. Eu visitava Quissico e os pescadores falaram-me de extraordinários casos da mística generosidade dos cetáceos.

É só encomendar, dizia-me alguém.

Na berma das ondas, frente ao infinito, bastava enunciar, em reza, as minhas indizíveis carências. No dia seguinte a baleia lá viria, como um pai natal nadador, a distribuir as desejadas benesses. Já na praia, o bicho escancarava as goelas e de lá, das entranhas, emergiam as mais inusitadas aparições.

Até azeite de oliveira!, assegurou-me um pescador. E foi como sempre: vozes empurravam-me para o que, sendo impossível, já me surgia apenas como improvável. — Não se acanhe, vá à praia e peça agora, enquanto elas andam por cá.

As baleias sobem a costa de Moçambique de Abril a Setembro. Eu teria que saber tirar proveito do tempo. Acabei por fingir que cedia e lá fui, certa noite estrelada. Deixei que a água me esfriasse os pés e fiquei especado com todo o mar do mundo à minha frente. E ganhei conforto para que me visse a mim mesmo em representação. Abri os braços e fiz com que a voz vencesse o rumor das ondas:

Só quero que não venhas, só quero que fiques longe, nos caminhos onde o mar é espesso efundo.

Tantos anos depois, este é o pedido que renovo, comprimido no barquinho frágil onde, contra a minha vontade, me fizeram entrar. Que a baleia não faça nenhum distúrbio, que se deixe contida e sossegada no ventre do oceano. Essa era a minha silenciosa prece. A baleia ter-me-á escutado. Porque ela só voltou a saltar mais longe, a cauda emersa como se nos dedicasse um adeus feito de água e silêncio.

Me ocorreu, então, que a baleia, em lugar de brincar, nos queria enviar uma mensagem de desespero, de quem receia morrer eterna mente prisioneira das águas. E então, para estranheza dos que me acompanhavam no barco, eu pedi:

Cheguemo-nos mais perto, aproximemo-nos da baleia.

E, em lugar de viajar no barco, vi-me montado no dorso de uma baleia que me levava de regresso à primeira morada.

(Março de 2009)