Ninguém, em verdade, viaja para uma ilha. As ilhas existem dentro de nós, como um território sonhado, como um pedaço do nosso passa do que se soltou do tempo. Esse fantasma insular, em mim, estreou-se quando Jonito morreu e meus pais disseram que ele tinha ido para uma ilha no meio do Chiveve. Eu era menino, Jonito era um cágado e o Chiveve não era sequer um rio verdadeiro. Como podia aquele riacho ter água suficiente para anichar uma ilha? Mas nada nesse tempo era verdade. Sobretudo, a morte não era verdadeira. E Jonito passeou, durante toda a minha infância, a sua cautelosa lentidão nesse pedaço de terra rodeado pelas escuras águas do Chiveve.
É por isso que, agora, me soa estranho o contrato que estabeleço com Mamudo para que, no dia seguinte, ele me conduza às ilhas. Escrevo assim, no plural, «as ilhas». Terei muita sorte se o barquinho à vela, um dow, chegar a uma única ilha.
A negociação, devo confessar, não foi fácil. Para que corram bem as negociações não podem ser fáceis. Pelo menos aqui, na costa de Cabo Delgado. Os vendedores aproximam-se leves como sombras, como se a areia fosse uma alcatifa amortecendo a sua chegada. No Sul de Moçambique, de onde venho, ter-me-iam abordado de outra maneira:
— Estou a vender.
E a relação comercial seria logo ali definida, uma relação não simétrica entre quem tem produto e quem tem dinheiro. O preço está à mão de semear. O que vier a mais é gorjeta. Aqui, não. A aproximação é, desde logo, mais profissional. O vendedor anuncia-se do seguinte modo:
— Tenho um negócio.
E estamos ambos do mesmo lado da mesa, sabendo de antemão que há um jogo de palavreação que se irá prolongar. Foi assim que Mamudo me abordou. A visita às «ilhas» (ele sempre as nomeou no plural) era um pacote completo. Ele dava o barco, ele seria o marinheiro e o assistente de bordo (servindo uma refeição que ele mesmo prepararia). Após acordar o preço havia ainda a necessidade de um adiantamento para ele comprar a comida. Tudo à confiança porque, segundo ele, todos nas redondezas conheciam o seu bom-nome.
O «negócio» ficou fechado e um casal de turistas que assistia à conversa pediu para se atrelar à excursão. E Mamudo fez uma adenda ao contrato já firmado comigo.
Deitei-me cedo porque a partida, na manhã seguinte, aconteceria a uma hora em que, de acordo com Mamudo, os próprios peixes esta riam ainda dormindo. Sonhei que era um ser marinho balouçando naquelas águas transparentes, roçando os recifes de corais e as barrigas escuras das almadias. No meio da noite, porém, fui acordado pelo ruído de uma janela batendo. Levantava-se um temporal. A areia fina e branca se lançava de encontro às paredes de madeira do meu rondável. Aos poucos a praia se transferia para o soalho do meu quarto.
De manhã, era evidente que a excursão teria que ser adiada. Quando cheguei ao local combinado, os turistas reclamavam com Mamudo e exigiam-lhe o dinheiro de volta. Mas o marinheiro já tinha gasto o adiantamento no dia anterior. Levantava-se ali uma segunda tempestade: os turistas subiam de tom na sua reivindicação. Que eles já regressavam a Maputo no final do dia e não podiam ficar a perder. Resolvi intervir, amenizando a exaltação dos estrangeiros. E resultou: ao fim da manhã, sob um céu plúmbeo, estávamos todos sentados na varanda de Mamudo a comer a galinha que ele tinha grelhado. E ali nos deixámos ficar, escutando histórias que Mamudo desfiava como contas de um infinito rosário. Cada história era um remo sulcando águas que nos afastavam do mundo. No final, o marinheiro trouxe a bacia de água morna para lavarmos as mãos. E ele disse:
— A vida é um negócio.
Imagem pouco poética, mas aquele era o seu modo maior de romantizar o milagre de celebrarmos o nosso encontro. Quando os turistas se despediram havia neles um sorriso de quem, afinal, tinha visitado uma ilha e os seus paraísos. Ao fim e ao cabo, o marinheiro cumprira o prometi do: sem sair da praia, ele nos conduzira por uma viagem para a outra margem do mar.
(Julho de 2009)