Vovó Abida encosta a cabeça no vidro do machimbombo, vergada por um cansaço de séculos. A velha senhora se apoia com delicadeza de pás saro. O vidro da janela é uma almofada de luz em que ela se refaz de mágoas mais antigas que a terra. Como se naquela transparência se resumisse toda a sua vida. Sem peso, sem mancha: um simples vitral separando-a da cidade.
Adormece enquanto, de olhos fechados, vai adivinhando o caminho. O autocarro segue a sinuosa linha do tempo. O sonho, contudo, transporta-a na direcção inversa, rumo ao passado. Vovó Abida vê passar a antiquíssima carrinha dos anos 50, vencendo a lama da picada que cruzava os pântanos junto ao mangal da Costa do Sol.
O sonho transporta-a para um mundo em que a paisagem tinha a sua idade. Quem a olhasse, neste instante, surpreenderia um riso no rosto adormecido de Abida. Porque ela a si mesma se vê menina, brincando no riacho Quenhenguanine. Não havia estrada asfaltada, não havia casas de cimento, estava no subúrbio do subúrbio. Tinha sido naquela região, na Baixa de Matibanine, que ela nascera. Seu pai, pescador, lhe ensinara muito sobre a vida e seus meandros. A lição maior, porém, tinha sido a despedida, com seus modos secos, sem lágrimas nem palavra. Abida ficava a olhar a embarcação do pai a afastar-se, engolida pela neblina. Lá à frente, a ilha da Xefina parecia um esquecimento de Deus, uma pegada de um outro errante continente. E ela regressava à casa de madeira e zinco, escolhendo entre lamas e as raízes das nkandayas, que era como se chamavam as árvores do mangal. Faltava muito para ali haver uma ponte. Atravessava-se a pé, nos períodos de maré baixa.
Um solavanco do machimbombo a faz estremecer, mas a avó não desperta. Aconchega melhor a sua trouxa e ajeita-se melhor no banco. E regressa ao sonho. Como se fossem ondas, chegam-me os tempos em que apanhava caranguejos nos fios de água que atravessavam o mangal. Já ninguém se lembra que, onde hoje está o novo casario, era a maré que comandava, exclusiva e soberana. Abida sabia o nome de cada um desses riachinhos como hoje se sabe o nome das ruas: o Xamane, o Macube, o Maquena, o Chadana. Todos estes riachos nasciam por mando das chuvas. Ainda hoje deveriam fazer escoar as águas da região alta da cidade. Dizem que esses carreirinhos de água esperam por vingança, em secreta aliança com chuvadas torrenciais.
A ténue linha do sonho separa a avó do mundo presente. Esse tempo, esse que ela chama de «seu», está muito longe. A estrada da marginal não cruzava, nesse seu tempo, este emaranhado de construções que hoje vai balizando a duna. São residências, escolas, mercados, hotéis, restaurantes. O ritmo de construção é estonteante. A cidade de Maputo cresce sem ordem e com pressa. Como todos os jovens: colocando a vida à frente do sonho.
Tudo isso está longe da adormecida Vovó. De repente, o autocarro pára. Uma multidão rodeia a viatura. O barulho traz Abida à realidade.
«Vovó Abida! Vovó Abida!»
A senhora espanta-se ao ouvir chamar pelo seu nome. Seus olhos piscam, vencendo a luz. Até que o seu rosto se abre, em espantada alegria. É o neto, na berma da estrada. O miúdo está de fato-de-banho, com uma toalha vermelha, um pedaço de isómero para servir de bóia.
— O que fazes aqui, Tonico? Esta praia não é para... não é para nós...
Não se chega a explicar. Porque, em redor, estão dezenas de miúdos como Tonico, meninos negros e pobres a atapetar a praia. O olhar de Abida espreguiça-se por entre as centenas de crianças, em sementeira de folguedos. E ela a si se pergunta: o que é isto, o caniço está a apanhar onda?
E, de novo, encosta a cabeça no vidro. Um sorriso mais largo lhe desenruga o rosto. E o autocarro retoma a viagem, enquanto Abida retoma o sonho.
(Janeiro de 2003)