A China já foi o país mais pequeno do mundo. E os chineses foram o mais pequeno grupo humano do planeta. Aconteceu quando eu era menino, o universo era um quintal de brincar e os chineses cabiam todos em poucas ruas da minha cidade natal. Naquele tempo, na cidade da Beira, os chineses não eram todos como os de hoje, de pele clara e cabelos lisos. Muitos eram mulatos, de cabelos crespos e pele castanha, frequentando as mesmas igrejas e escolas dos europeus da colónia.
Aconteceu no meu bairro de nascença, o Maquinino. Eu saía de casa rumo à Escola Primária António Enes e passava pela loja a que chamavam «a cantina do chinês», para comprar cadernos, lápis e as recém-aparecidas esferográficas Bic. Ali me juntava ao meu colega de turma, filho do dono da loja. Esse mesmo menino, de nome Ching, era reservado e sério como um adulto que já gastou todos os sonhos.
A infância era, para ele, um serviço a ser cumprido com profissional diligência. A zelosa discrição de Ching era para mim uma marca de raça mais forte que os olhos amendoados. Ser-se chinês era ser assim, votado e devotado ao silêncio. Ching sabia de aritmética, mas não sabia responder quando lhe perguntava onde e como era a China. Porque ele nascera nesse mesmo bairro africano e o mundo terminava ali, entre a Munhava, a Manga e o Macuti.
Em 1960, havia cerca de dois mil chineses registados em Moçambique. Mais de metade deles já tinha nascido em território moçambicano e o meu pequeno colega Ching era um desses descendentes de imigrantes. Quase todos os setecentos chineses que viviam na Beira tinham origem próxima ou distante em Cantão. Os pais falavam em cantonês entre eles, em português com os filhos e em chissena com os clientes. Uma alma assim distribuída só podia estar deitando sementes no futuro.
Algumas vezes, aos domingos, eu e Ching íamos de «burra» (era as sim que chamávamos às nossas bicicletas) pelas margens do Chiveve, para ver os pescadores de mussopo e as vendedoras de marora. O pequeno chinês olhava o poente sobre as águas barrentas e seus olhos estreitos pareciam ver paisagens para além do oceano. Certo dia, ele me convidou para assistir a um desafio de basquetebol. Jogava o seu clube do peito, o Atlético Chinês.
— Meu pai não me deixa dizer o nome do clube em português, confessou.
— E que outro nome tem o clube?
— É o Tung Hua Athletic Club.
Ao pronunciar aquelas palavras, de um jacto, pareceu-me, de repente, que ele se tornava um desconhecido. Mas
Ching simplesmente pretendia que eu testemunhasse as incomparáveis artes de uma jogadora que integrava a selecção nacional portuguesa nesse mesmo ano. Chamava-se Sui Mei.
— Meu pai não me deixa chamar assim essa jogadora, voltou a confessar.
— E como é que lhe chamam, então?
— Swi Mai, é assim que lhe devemos chamar.
Fosse Sui Mei ou Swi Mai, a basquetebolista era uma exímia jogadora. Mas não foi o desempenho desportivo que mais me impressionou. O que me marcou, para sempre, foi a graciosidade sorridente com que ela evoluía no campo como se o jogo fosse um bailado partilhado e não uma contenda entre lados opostos. A afabilidade de Sui Mei parecia estar curando a nossa cidade de uma ferida secular.
— Veja o cabelo dela, sugeria o meu amigo Ching. — O que tem?
— Veja como nem um fio se desamarra.
A multidão quase fazia o estádio vir abaixo. Os jogadores piruetavam pelo espaço, mas não havia desalinho nem no sorriso nem no cabelo da chinesa.
Certa vez, chegou à Beira um primo de Ching vindo de Inhaminga. Ele era mulato, filho de uma negra e de um militar chinês fugido de Cantão. O pai queria enviá-lo para estudar na China. A mãe «raptou» o menino e levou-o para as imediações de Inhaminga. O miúdo cresceu ali, nessa sombra longínqua, longe do austero pai. Crescera-lhe o corpo e acrescera a ânsia de conhecer as suas origens. Ele vinha agora à cidade para secretamente espreitar o progenitor. Levámo-lo ao mercado e Ching apontou entre a multidão:
— Ali, aquele é o seu pai!
O moço quedou-se, impassível, e demorou um indefinido olhar como se, em si mesmo, aquela visão não tivesse onde morar. Tentei perscrutar a alma do visitante: havia uma grande muralha ocultando a sua intimidade.
No regresso, adivinhava-se nele uma singela tristeza. Surpreendeu-me o crepitante convite de Ching:
— E se fôssemos assistir ao basquete? Hoje joga a Sui Mei, vamos lá!
No banco de pedra do pavilhão, enquanto se escutava a cadência da bola como se fosse o pulsar de um coração, o rosto tristonho do primo se desanuviou a pontos de um sorriso.
Amarelo que fosse, mas sorriso.
Quatro décadas mais tarde, na sala da minha casa, os familiares se posicionam em redor do televisor, como que à volta de um luminoso oráculo.
— Vejam: já são imagens de Pequim!
— Não é Pequim, é Beijing, emenda alguém.
Seja Pequim, seja Beijing, o momento é quase religioso. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Beijing corresponde a um encantamento que nos transporta à infância. Como ficou longe o tempo em que a China era uma nação pequena e os chineses cabiam num pequeno bairro de uma pequena cidade! A China, afinal, sempre foi enorme, uma potência ao longo de toda a História. Esta festa, contudo, parece feita para que eu viaje nas minhas próprias lembranças. No espectáculo, a China viaja para além da História, para além de si mesma. E já não é a cerimónia que eu vejo. São memórias que se acendem dentro de mim.
De súbito, recordo o rosto sério do pequeno Ching, percorrendo com passo de missionário os carreirinhos do Maquinino. O menino vem de longe, desse tempo em que os sino-africanos eram tidos como cidadãos de segunda e aprendiam a envergonhar-se da sua origem cultural e religiosa.
E agora, quando a bandeira moçambicana se vislumbra no estádio olímpico, eu relembro o menino vindo de Inhaminga para sarar o seu sentimento de orfandade. E ninguém mais é separado de seus familiares: a mensagem da festa olímpica é um lenço desfazendo tristeza no rosto de todo menino distante da sua própria infância.
Por fim, eis que a imagem de Lurdes Mutola se acende no televisor como se o seu semblante fosse já um confirmar de vitória. E nós festeja mos ruidosamente na sala, houvesse outras olimpíadas dentro daquela grande celebração.
Aos poucos, renascem em mim todos os sorrisos de Sui Mei, essa que curava as feridas das nossas vidas derrotadas. E, de novo, somos todos naturais desse território onde a pólvora foi inventada para fazer brilhar fogos-de-artifício.
(Outubro de 2008)