I.
DIREITOS HUMANOS: CONCEITO, ESTRUTURA E SOCIEDADE INCLUSIVA
1. Conceito e estrutura dos direitos humanos
Os direitos humanos consistem em um conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. Os direitos humanos são os direitos essenciais e indispensáveis à vida digna.
Não há um rol predeterminado desse conjunto mínimo de direitos essenciais a uma vida digna. As necessidades humanas variam e, de acordo com o contexto histórico de uma época, novas demandas sociais são traduzidas juridicamente e inseridas na lista dos direitos humanos.
Em geral, todo direito exprime a faculdade de exigir de terceiro, que pode ser o Estado ou mesmo um particular, determinada obrigação. Por isso, os direitos humanos têm estrutura variada, podendo ser: direito-pretensão, direito-liberdade, direito-poder e, finalmente, direito-imunidade, que acarretam obrigações do Estado ou de particulares revestidas, respectivamente, na forma de: (i) dever, (ii) ausência de direito, (iii) sujeição e (iv) incompetência, como segue.
O direito-pretensão consiste na busca de algo, gerando a contrapartida de outrem do dever de prestar. Nesse sentido, determinada pessoa tem direito a algo, se outrem (Estado ou mesmo outro particular) tem o dever de realizar uma conduta que não viole esse direito. Assim, nasce o “direito-pretensão”, como, por exemplo, o direito à educação fundamental, que gera o dever do Estado de prestá-la gratuitamente (art. 208, I, da CF/88).
O direito-liberdade consiste na faculdade de agir que gera a ausência de direito de qualquer outro ente ou pessoa. Assim, uma pessoa tem a liberdade de credo (art. 5º, VI, da CF/88), não possuindo o Estado (ou terceiros) nenhum direito (ausência de direito) de exigir que essa pessoa tenha determinada religião.
Por sua vez, o direito-poder implica uma relação de poder de uma pessoa de exigir determinada sujeição do Estado ou de outra pessoa. Assim, uma pessoa tem o poder de, ao ser presa, requerer a assistência da família e de advogado, o que sujeita a autoridade pública a providenciar tais contatos (art. 5º, LXIII, da CF/88).
Finalmente, o direito-imunidade consiste na autorização dada por uma norma a uma determinada pessoa, impedindo que outra interfira de qualquer modo. Assim, uma pessoa é imune à prisão, a não ser em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar (art. 5º, LVI, da CF/88), o que impede que outros agentes públicos (como, por exemplo, agentes policiais) possam alterar a posição da pessoa em relação à prisão.
2. Conteúdo e cumprimento dos direitos humanos: rumo a uma sociedade inclusiva
Os direitos humanos representam valores essenciais, que são explicitamente ou implicitamente retratados nas Constituições ou nos tratados internacionais. A fundamentalidade dos direitos humanos pode ser formal, por meio da inscrição desses direitos no rol de direitos protegidos nas Constituições e tratados, ou pode ser material, sendo considerado parte integrante dos direitos humanos aquele que – mesmo não expresso – é indispensável para a promoção da dignidade humana.
Apesar das diferenças em relação ao conteúdo, os direitos humanos têm em comum quatro ideias-chaves ou marcas distintivas: universalidade, essencialidade, superioridade normativa (preferenciabilidade) e reciprocidade.
A universalidade consiste no reconhecimento de que os direitos humanos são direitos de todos, combatendo a visão estamental de privilégios de uma casta de seres superiores. Por sua vez, a essencialidade implica que os direitos humanos apresentam valores indispensáveis e que todos devem protegê-los. Além disso, os direitos humanos são superiores a demais normas, não se admitindo o sacrifício de um direito essencial para atender as “razões de Estado”; logo, os direitos humanos representam preferências preestabelecidas que, diante de outras normas, devem prevalecer. Finalmente, a reciprocidade é fruto da teia de direitos que une toda a comunidade humana, tanto na titularidade (são direitos de todos) quanto na sujeição passiva: não há só o estabelecimento de deveres de proteção de direitos ao Estado e seus agentes públicos, mas também à coletividade como um todo. Essas quatro ideias tornam os direitos humanos como vetores de uma sociedade humana pautada na igualdade e na ponderação dos interesses de todos (e não somente de alguns).
Os direitos humanos têm distintas maneiras de implementação, do ponto de vista subjetivo e objetivo. Do ponto de vista subjetivo, a realização dos direitos humanos pode ser da incumbência do Estado ou de um particular (eficácia horizontal dos direitos humanos, como veremos) ou de ambos, como ocorre com o direito ao meio ambiente (art. 225 da CF/88, que prevê que a proteção ambiental incumbe ao Estado e à coletividade). Do ponto de vista objetivo, a conduta exigida para o cumprimento dos direitos humanos pode ser ativa (comissiva, realizar determinada ação) ou passiva (omissiva, abster-se de realizar). Há ainda a combinação das duas condutas: o direito à vida acarreta tanto a conduta omissiva quanto comissiva por parte dos agentes públicos: de um lado, devem se abster de matar (sem justa causa) e, de outro, tem o dever de proteção (de ação) para impedir que outrem viole a vida.
Uma sociedade pautada na defesa de direitos (sociedade inclusiva) tem várias consequências. A primeira é o reconhecimento de que o primeiro direito de todo indivíduo é o direito a ter direitos. Arendt e, no Brasil, Lafer sustentam que o primeiro direito humano, do qual derivam todos os demais, é o direito a ter direitos1. No Brasil, o STF adotou essa linha ao decidir que “direito a ter direitos: uma prerrogativa básica, que se qualifica como fator de viabilização dos demais direitos e liberdades” (ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-12-2005, Plenário, DJE de 19-9-2008).
Uma segunda consequência é o reconhecimento de que os direitos de um indivíduo convivem com os direitos de outros. O reconhecimento de um rol amplo e aberto (sempre é possível a descoberta de um novo direito humano) de direitos humanos exige ponderação e eventual sopesamento dos valores envolvidos. O mundo dos direitos humanos é o mundo dos conflitos entre direitos, com estabelecimento de limites, preferências e prevalências. Basta a menção a disputas envolvendo o direito à vida e os direitos reprodutivos da mulher (aborto), direito de propriedade e direito ao meio ambiente equilibrado, liberdade de informação jornalística e direito à vida privada, entre outras inúmeras colisões de direitos.
Por isso, não há automatismo no mundo da sociedade de direitos. Não basta anunciar um direito para que o dever de proteção incida mecanicamente. Pelo contrário, é possível o conflito e colisão entre direitos, a exigir sopesamento e preferência entre os valores envolvidos. Por isso, nasce a necessidade de compreendermos como é feita a convivência direitos humanos em uma sociedade de direitos, nos quais os direitos de diferentes conteúdos interagem. Essa atividade de ponderação é exercida cotidianamente pelos órgãos judiciais nacionais e internacionais de direitos humanos.
QUADRO SINÓTICO
Conceito e o novo “direito a ter direitos” |
|
Conceito de direitos humanos |
Conjunto de direitos considerado indispensável para uma vida humana pautada na liberdade, igualdade e dignidade. |
Estrutura dos direitos humanos |
• Direito-pretensão • direito-liberdade • direito-poder • direito-imunidade |
Maneiras de cumprimento dos direitos humanos |
• Ponto de vista subjetivo: • incumbência do Estado • incumbência de particular • incumbência de ambos • Ponto de vista objetivo: • conduta ativa • conduta passiva |
Conteúdo dos direitos humanos |
Representam valores essenciais, explícita ou implicitamente retratados nas Constituições ou tratados internacionais. |
Fundamentalidade |
• Formal (inscrição dos direitos nas Constituições ou tratados) • Material (direito considerado indispensável para a promoção da dignidade humana) |
Marcas distintivas dos direitos humanos |
• Universalidade (direitos de todos); • Essencialidade (valores indispensáveis que devem ser protegidos por todos); • Superioridade normativa ou preferenciabilidade (superioridade com relação às demais normas); • Reciprocidade (são direitos de todos e não sujeitam apenas o Estado e os agentes públicos, mas toda a coletividade). |
Consequências de uma sociedade pautada na defesa de direitos |
• Reconhecimento do direito a ter direitos; • Reconhecimento de que os direitos de um indivíduo convivem com os direitos de outros – o conflito e a colisão de direitos implicam a necessidade de estabelecimento de limites, preferências e prevalências. |
1 LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.