II.
OS DIREITOS HUMANOS NA HISTÓRIA
1. Direitos humanos: faz sentido o estudo das fases precursoras?
Não há um ponto exato que delimite o nascimento de uma disciplina jurídica. Pelo contrário, há um processo que desemboca na consagração de diplomas normativos, com princípios e regras que dimensionam o novo ramo do Direito. No caso dos direitos humanos, o seu cerne é a luta contra a opressão e busca do bem-estar do indivíduo; consequentemente, suas “ideias-âncoras” são referentes à justiça, igualdade e liberdade, cujo conteúdo impregna a vida social desde o surgimento das primeiras comunidades humanas. Nesse sentido amplo, de impregnação de valores, podemos dizer que a evolução histórica dos direitos humanos passou por fases que, ao longo dos séculos, auxiliaram a sedimentar o conceito e o regime jurídico desses direitos essenciais. A contar dos primeiros escritos das comunidades humanas ainda no século VIII a.C. até o século XX d.C., são mais de vinte e oito séculos rumo à afirmação universal dos direitos humanos, que tem como marco a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948.
Assim, para melhor compreender a atualidade da “era dos direitos”, incursionamos pelo passado, mostrando a contribuição das mais diversas culturas à formação do atual quadro normativo referente aos direitos humanos.
Porém, não se pode medir épocas distantes da história da humanidade com a régua do presente. Essas diversas fases conviveram, em sua época respectiva, com institutos ou posicionamentos que hoje são repudiados, como a escravidão, a perseguição religiosa, a exclusão das minorias, a submissão da mulher, a discriminação contra as pessoas com deficiências de todos os tipos, a autocracia e outras formas de organização do poder e da sociedade ofensivas ao entendimento atual da proteção de direitos humanos.
Por isso, devemos ser cautelosos no estudo de códigos ou diplomas normativos do início da fase escrita da humanidade, ou de considerações de renomados filósofos da Antiguidade, bem como na análise das tradições religiosas, que fizeram remissão ao papel do indivíduo na sociedade, mesmo que parte da doutrina se esforce em tentar convencer que a proteção de direitos humanos sempre existiu.
Na realidade, a universalização dos direitos humanos é uma obra ainda inacabada, mas que tem como marco a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, não fazendo sentido transpor para eras longínquas o entendimento atual sobre os direitos humanos e seu regime jurídico.
Contudo, o estudo do passado – mesmo as raízes mais longínquas – é indispensável para detectar as regras que já existiram em diversos sistemas jurídicos e que expressaram o respeito a valores relacionados à concepção atual dos direitos humanos.
Para sistematizar o estudo das fases anteriores rumo à consagração dos direitos humanos, usamos a própria Declaração Universal de 1948, para estabelecer os seguintes parâmetros de análise das contribuições do passado à atual teoria geral dos direitos humanos: 1) o indicativo do respeito à dignidade humana e igualdade entre os seres humanos; 2) o reconhecimento de direitos fundado na própria existência humana; 3) o reconhecimento da superioridade normativa mesmo em face do Poder do Estado e, finalmente, 4) o reconhecimento de direitos voltados ao mínimo existencial.
2. A fase pré-Estado Constitucional
2.1. A ANTIGUIDADE ORIENTAL E O ESBOÇO DA CONSTRUÇÃO DE DIREITOS
O primeiro passo rumo à afirmação dos direitos humanos inicia-se já na Antiguidade1, no período compreendido entre os séculos VIII e II a.C. Para Comparato, vários filósofos trataram de direitos dos indivíduos, influenciando-nos até os dias de hoje: Zaratustra na Pérsia, Buda na Índia, Confúcio na China e o Dêutero-Isaías em Israel. O ponto em comum entre eles é a adoção de códigos de comportamento baseados no amor e respeito ao outro2.
Do ponto de vista normativo, há tenuamente o reconhecimento de direitos de indivíduos na codificação de Menes (3100-2850 a.C.), no Antigo Egito. Na Suméria antiga, o Rei Hammurabi da Babilônia editou o Código de Hammurabi, que é considerado o primeiro código de normas de condutas, preceituando esboços de direitos dos indivíduos (1792-1750 a.C.), em especial o direito à vida, propriedade, honra, consolidando os costumes e estendendo a lei a todos os súditos do Império. Chama a atenção nesse Código a Lei do Talião, que impunha a reciprocidade no trato de ofensas (o ofensor deveria receber a mesma ofensa proferida). Ainda na região da Suméria e Pérsia, Ciro II editou, no século VI a.C., uma declaração de boa governança, hoje exibida no Museu Britânico (o “Cilindro de Ciro”), que seguia uma tradição mesopotâmica de auto-elogio dos governantes ao seu modo de reger a vida social. Na China, no século VI e V a.C., Confúncio lançou as bases para sua filosofia, com ênfase na defesa do amor aos indivíduos. Já o budismo introduziu um código de conduta pelo qual se prega o bem comum e uma sociedade pacífica, sem prejuízo a qualquer ser humano3.
2.2. A VISÃO GREGA E A DEMOCRACIA ATENIENSE
A herança grega na consolidação dos direitos humanos é expressiva. A começar pelos direitos políticos, a democracia ateniense adotou a participação política dos cidadãos (com diversas exclusões, é claro) que seria, após, aprofundada pela proteção de direitos humanos. O chamado “Século de Péricles” (século V a.C.) testou a democracia direta em Atenas, com a participação dos cidadãos homens da pólis grega nas principais escolhas da comunidade. Platão, em sua obra A República (400 a.C.), defendeu a igualdade e a noção do bem comum. Aristóteles, na Ética a Nicômaco4, salientou a importância do agir com justiça, para o bem de todos da pólis, mesmo em face de leis injustas5.
A Antiguidade grega também estimulou a reflexão sobre a superioridade de determinadas normas, mesmo em face da vontade contrária do poder. Nesse sentido, a peça de Sófocles, Antígona (421 a.C., parte da chamada Trilogia Tebana), retrata Antígona, a protagonista, e sua luta para enterrar seu irmão Polinice, mesmo contra ordem do tirano da cidade, Creonte, que havia promulgado uma lei proibindo que aqueles que atentassem contra a lei da cidade fossem enterrados. Para Antígona, não se pode cumprir as leis humanas que se chocarem com as leis divinas. O confronto de visões entre Antígona e Creonte é um dos pontos altos da peça. Uma das ideias centrais dos direitos humanos, que já é encontrada nessa obra de Sófocles, é a superioridade de determinadas regras de conduta, em especial contra a tirania e injustiça.
Essa “herança dos gregos” foi lembrada no voto da Ministra Cármen Lúcia, na ADPF 187, julgada em 15 de julho de 2011: “A Ágora – símbolo maior da democracia grega – era a praça em que os cidadãos atenienses se reuniam para deliberarem sobre os assuntos da pólis. A liberdade dos antigos, para usar a conhecida expressão de Benjamin Constant, era justamente a liberdade de ‘deliberar em praça pública’ sobre os mais diversos assuntos: a guerra e a paz, os tratados com os estrangeiros, votar as leis, pronunciar as sentenças, examinar as contas, os atos, as gestões dos magistrados e tudo o mais que interessava ao povo. A democracia nasceu, portanto, dentro de uma praça” (voto da Ministra Cármen Lúcia, ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-6-2011, Plenário, Informativo 631).
Uma contribuição do direito romano à proteção de direitos humanos foi a sedimentação do princípio da legalidade. A Lei das Doze Tábuas, ao estipular a lex scripta como regente das condutas, deu um passo na direção da vedação ao arbítrio. Além disso, o direito romano consagrou vários direitos, como o da propriedade, liberdade, personalidade jurídica, entre outros. Um passo foi dado também na direção do reconhecimento da igualdade pela aceitação do jus gentium, o direito aplicado a todos, romanos ou não. No plano das ideias, Marco Túlio Cícero retoma a defesa da razão reta (recta ratio), salientando, na República, que a verdadeira lei é a lei da razão, inviolável mesmo em face da vontade do poder. No seu De legibus (Sobre as leis, 52 a.C.), Cícero sustentou que, apesar das diferenças (raças, religiões e opiniões), os homens podem permanecer unidos caso adotem o “viver reto”, que evitaria causar o mal a outros.
2.4. O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO E AS INFLUÊNCIAS DO CRISTIANISMO E DA IDADE MÉDIA
Entre os hebreus, os cinco livros de Moisés (Torah) apregoam solidariedade e preocupação com o bem-estar de todos (1800-1500 a.C.). No Antigo Testamento, a passagem do Êxodo é clara quanto à necessidade de respeito a todos, em especial aos vulneráveis: “Não afligirás o estrangeiro nem o oprimirás, pois vós mesmos fostes estrangeiros no país do Egito. Não afligireis a nenhuma viúva ou órfão. Se o afligires e ele clamar a mim escutarei o seu clamor; minha ira se ascenderá e vos farei perecer pela espada: vossas mulheres ficarão viúvas e vossos filhos, órfãos” (Êxodo, 22: 20-26). No Livro dos Provérbios (25: 21-22) do Antigo Testamento, está disposto que “Se teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber: assim amontoas brasas sobre sua cabeça, e Javé te recompensará”.
O cristianismo também contribuiu para a disciplina: há vários trechos da Bíblia (Novo Testamento) que pregam a igualdade e solidariedade com o semelhante. A sempre citada passagem de Paulo, na Epístola aos Gálatas, conclama que “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (III, 28). Os filósofos católicos também merecem ser citados, em especial São Tomás de Aquino, que, no seu capítulo sobre o Direito na sua obra Suma Teológica (1273), defendeu a igualdade dos seres humanos e aplicação justa da lei. Para a escolástica aquiniana, aquilo que é justo (id quod justum est) é aquilo que corresponde a cada ser humano na ordem social, o que reverberará no futuro, em especial na busca da justiça social constante dos diplomas de direitos humanos.
Ao mesmo tempo em que defendeu a igualdade espiritual, o cristianismo conviveu, no passado, com desigualdades jurídicas inconcebíveis para a proteção de direitos humanos, como a escravidão e a servidão de milhões. Novamente, essa análise histórica limita-se a apontar valores que, tênues em seu tempo, contribuíram, ao longo dos séculos, para a afirmação histórica dos direitos humanos.
2.5. RESUMO DA IDEIA DOS DIREITOS HUMANOS NA ANTIGUIDADE: A LIBERDADE DOS ANTIGOS E A LIBERDADE DOS MODERNOS
A síntese mais conhecida da concepção da Antiguidade sobre o indivíduo foi feita por Benjamin Constant, no seu clássico artigo sobre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”. Para Constant, os antigos viam a liberdade composta pela possibilidade de participar da vida social na cidade; já os modernos (ele se referia aos iluministas do século XVIII e pensadores posteriores do século XIX) entendiam a liberdade como sendo a possibilidade de atuar sem amarras na vida privada. Essa visão de liberdade na Antiguidade resultou na ausência de discussão sobre a limitação do poder do Estado, um dos papéis tradicionais do regime jurídico dos direitos humanos.
As normas que organizam o Estado pré-constitucional não asseguravam ao indivíduo direitos de contenção ao poder estatal. Por isso, na visão de parte da doutrina, não há efetivamente regras de direitos humanos na época pré-Estado Constitucional. Porém, essa importante crítica doutrinária – que deve ser realçada – não elimina a valiosa influência de culturas antigas na afirmação dos direitos humanos. Como já mencionado acima, há costumes e instituições sociais das inúmeras civilizações da Antiguidade que enfatizam o respeito a valores que estão contidos em normas de direitos humanos, como a justiça e igualdade.
QUADRO SINÓTICO
A fase pré-Estado Constitucional |
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A Antiguidade Oriental e o esboço da construção de direitos |
Antiguidade (no período compreendido entre os séculos VIII e II a.C.): primeiro passo rumo à afirmação dos direitos humanos, com a emergência de vários filósofos de influência até os dias de hoje (Zaratustra, Buda, Confúcio, Dêutero-Isaías), cujo ponto em comum foi a adoção de códigos de comportamento baseados no amor e respeito ao outro. • Antigo Egito: reconhecimento de direitos de indivíduos na codificação de Menes (3100-2850 a.C.). • Suméria antiga: edição do Código de Hammurabi, na Babilônia (1792-1750 a.C.) – primeiro código de normas de condutas, preceituando esboços de direitos dos indivíduos, consolidando os costumes e estendendo a lei a todos os súditos do Império. • Suméria e Pérsia: edição, por Ciro II, no século VI a.C., de uma declaração de boa governança. • China: no século VI e V a.C., Confúncio lançou as bases para sua filosofia, com ênfase na defesa do amor aos indivíduos. • Budismo: introduziu um código de conduta pelo qual se prega o bem comum e uma sociedade pacífica, sem prejuízo a qualquer ser humano. • Islamismo: prescrição da fraternidade e solidariedade aos vulneráveis. |
Herança grega na consolidação dos direitos humanos |
• Consolidação dos direitos políticos, com a participação política dos cidadãos (com diversas exclusões). • Platão, em sua obra A República (400 a.C.), defendeu a igualdade e a noção do bem comum. • Aristóteles, na Ética a Nicômaco, salientou a importância do agir com justiça, para o bem de todos da pólis, mesmo em face de leis injustas. • Reflexão sobre a superioridade normativa de determinadas normas, mesmo em face da vontade do poder. |
A República Romana |
• Contribuição na sedimentação do princípio da legalidade. • Consagração de vários direitos, como propriedade, liberdade, personalidade jurídica, entre outros. • Reconhecimento da igualdade entre todos os seres humanos, em especial pela aceitação do jus gentium, o direito aplicado a todos, romanos ou não. • Marco Túlio Cícero retoma a defesa da razão reta (recta ratio), salientando, na República, que a verdadeira lei é a lei da razão, inviolável mesmo em face da vontade do poder. |
O Antigo e o Novo Testamento e as influências do cristianismo e da Idade Média |
• Cinco livros de Moisés (Torah): apregoam solidariedade e preocupação com o bem-estar de todos (1800-1500 a.C.). • Antigo Testamento: faz menção à necessidade de respeito a todos, em especial aos vulneráveis. • Cristianismo contribuiu para a disciplina: há vários trechos da Bíblia (Novo Testamento) que pregam a igualdade e solidariedade com o semelhante. • Filósofos católicos também merecem ser citados, em especial São Tomás de Aquino. |
3. A crise da Idade Média, início da Idade Moderna e os primeiros diplomas de direitos humanos
Na Idade Média europeia, o poder dos governantes era ilimitado, pois era fundado na vontade divina. Contudo, mesmo nessa época de autocracia, surgem os primeiros movimentos de reivindicação de liberdades a determinados estamentos, como a Declaração das Cortes de Leão adotada na Península Ibérica em 1188 e ainda a Magna Carta inglesa de 1215. A Declaração de Leão consistiu em manifestação que consagrou a luta dos senhores feudais contra a centralização e o nascimento futuro do Estado Nacional. Por sua vez, a Magna Carta consistiu em um diploma que continha um ingrediente – ainda faltante – essencial ao futuro regime jurídico dos direitos humanos: o catálogo de direitos dos indivíduos contra o Estado. Redigida em latim, em 1215, – o que explicita o seu caráter elitista – a Magna Charta Libertatum consistia em disposições de proteção ao Baronato inglês, contra os abusos do monarca João Sem Terra (João da Inglaterra). Depois do reinado de João Sem Terra, a Carta Magna foi confirmada várias vezes pelos monarcas posteriores. Apesar de seu foco nos direitos da elite fundiária da Inglaterra, a Magna Carta traz em seu bojo a ideia de governo representativo e ainda direitos que, séculos depois, seriam universalizados, atingindo todos os indivíduos, entre eles o direito de ir e vir em situação de paz, direito de ser julgado pelos seus pares (vide Parte IV, item 23.4 sobre o Tribunal do Júri), acesso à justiça e proporcionalidade entre o crime e a pena.
Com o Renascimento e a Reforma Protestante, a crise da Idade Média deu lugar ao surgimento dos Estados Nacionais absolutistas europeus. A sociedade estamental medieval foi substituída pela forte centralização do poder na figura do rei. Paradoxalmente, com a erosão da importância dos estamentos (Igreja e senhores feudais), surge à igualdade de todos submetidos ao poder absoluto do rei. Só que essa igualdade não protegeu os súditos da opressão e violência. O exemplo maior dessa época de violência e desrespeito aos direitos humanos foi o extermínio de milhões de indígenas nas Américas, apenas algumas décadas após a chegada de Colombo na ilha de São Domingo (1492). Não que não houvesse reação contrária ao massacre. Houve célebre polêmica na metade do século XVI (1550-1551) na Espanha (então grande senhora dos domínios no Novo Mundo) entre o Frei Bartolomeu de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda, então teólogo e jurista do próprio rei espanhol. Las Casas merece ser citado como um dos notáveis defensores da dignidade de todos os povos indígenas, contrariando a posição de Sepúlveda, que os via como inferiores e desprovidos de direitos. Na sua réplica final nesse debate doutrinário da época, Las Casas condenou duramente o genocídio indígena afirmando que “Os índios são nossos irmãos, pelos quais Cristo deu sua vida. Por que os perseguimos sem que tenham merecido tal coisa, com desumana crueldade? O passado, e o que deixou de ser feito, não tem remédio; seja atribuído à nossa fraqueza sempre que for feita a restituição dos bens impiamente arrebatados”6.
No século XVII, o Estado Absolutista foi questionado, em especial na Inglaterra. A busca pela limitação do poder, já incipiente na Magna Carta, é consagrada na Petition of Right de 1628, pela qual novamente o baronato inglês, representado pelo Parlamento, estabelece o dever do Rei de não cobrar impostos sem a autorização do Parlamento (no taxation without representation), bem como se reafirma que “nenhum homem livre podia ser detido ou preso ou privado dos seus bens, das suas liberdades e franquias, ou posto fora da lei e exilado ou de qualquer modo molestado, a não ser por virtude de sentença legal dos seus pares ou da lei do país”. Essa exigência – lei da terra – consiste em parte importante do devido processo legal a ser implementado posteriormente.
Ainda no século XVII, há a edição do Habeas Corpus Act (1679), que formalizou o mandado de proteção judicial aos que haviam sido injustamente presos, existente até então somente no direito consuetudinário inglês (common law). No seu texto, havia ainda a previsão do dever de entrega do “mandado de captura” ao preso ou seu representante, representando mais um passo para banir as detenções arbitrárias (ainda um dos grandes problemas mundiais de direitos humanos no século XXI).
Ainda na Inglaterra, em 1689, após a chamada Revolução Gloriosa, com a abdicação do Rei autocrático Jaime II e com a coroação do Príncipe de Orange, Guilherme III, é editada a “Declaração Inglesa de Direitos”, a “Bill of Rights” (1689), pela qual o poder autocrático dos reis ingleses é reduzido de forma definitiva. Não é uma declaração de direitos extensa, pois dela consta, basicamente, a afirmação da vontade da lei sobre a vontade absolutista do rei. Entre seus pontos, estabelece-se “que é ilegal o pretendido poder de suspender leis, ou a execução de leis, pela autoridade real, sem o consentimento do Parlamento”; “que devem ser livres as eleições dos membros do Parlamento” e que “a liberdade de expressão, e debates ou procedimentos no Parlamento, não devem ser impedidos ou questionados por qualquer tribunal ou local fora do Parlamento”.
Em continuidade ao já decidido na Revolução Gloriosa, foi aprovado em 1701 o Act of Settlement, que serviu tanto para fixar de vez a linha de sucessão da coroa inglesa (banindo os católicos romanos da linha do trono e exigindo dos reis britânicos o vínculo com a Igreja Anglicana), quanto para reafirmar o poder do Parlamento e a necessidade do respeito da vontade da lei, resguardando-se os direitos dos súditos contra a volta da tirania dos monarcas.
QUADRO SINÓTICO
a crise da idade média, início da Idade Moderna e os primeiros diplomas de direitos humanos |
• Idade Média: poder dos governantes era ilimitado, pois era fundado na vontade divina. • Surgimento dos primeiros movimentos de reivindicação de liberdades a determinados estamentos, como a Declaração das Cortes de Leão adotada na Península Ibérica em 1188 e a Magna Carta inglesa de 1215. • Renascimento e Reforma Protestante: crise da Idade Média deu lugar ao surgimento dos Estados Nacionais absolutistas e a sociedade estamental medieval foi substituída pela forte centralização do poder na figura do rei. • Com a erosão da importância dos estamentos (Igreja e senhores feudais), surge a ideia de igualdade de todos submetidos ao poder absoluto do rei, o que não excluiu a opressão e a violência, como o extermínio perpetrado contra os indígenas na América. • Século XVII: o Estado Absolutista foi questionado, em especial na Inglaterra. A busca pela limitação do poder é consagrada na Petition of Rights de 1628. A edição do Habeas Corpus Act (1679) formaliza o mandado de proteção judicial aos que haviam sido injustamente presos, existente tão somente no direito consuetudinário inglês (common law). • 1689 (após a Revolução Gloriosa): edição da “Declaração Inglesa de Direitos”, a “Bill of Rights” (1689), pela qual o poder autocrático dos reis ingleses é reduzido de forma definitiva. • 1701: aprovação do Act of Settlement, que enfim fixou a linha de sucessão da coroa inglesa, reafirmou o poder do Parlamento e da vontade da lei, resguardando-se os direitos dos súditos contra a volta da tirania dos monarcas. |
4. O debate das ideias: Hobbes, Grócio, Locke, Rousseau e os iluministas
No campo das ideias políticas, Thomas Hobbes defendeu, em sua obra Leviatã (1651), em especial no Capítulo XIV, que o primeiro direito do ser humano consistia no direito de usar seu próprio poder livremente, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida. É um dos primeiros textos que trata claramente do direito do ser humano, pleno somente no estado da natureza. Nesse estado, o homem é livre de quaisquer restrições e não se submete a qualquer poder. Contudo, Hobbes conduz sua análise para a seguinte conclusão: para sobreviver ao estado da natureza, no qual todos estão em confronto (o homem seria o lobo do próprio homem), o ser humano abdica dessa liberdade inicial e se submete ao poder do Estado (o Leviatã). A razão para a existência do Estado consiste na necessidade de se dar segurança ao indivíduo, diante das ameaças de seus semelhantes. Com base nessa espécie de contrato entre o homem e o Estado, justifica-se a antítese dos direitos humanos, que é a existência do Estado que tudo pode. Hobbes admite, ainda, que eventualmente o Soberano (identificado como o Estado) pode outorgar parcelas de liberdade aos indivíduos, desde que queira. Em síntese, os indivíduos não possuiriam qualquer proteção contra o poder do Estado. É claro que essa visão de Hobbes, em que pese a proclamação de um direito pleno no estado da natureza, o distancia da proteção atual de direitos humanos.
No mesmo século XVII, outros autores defenderam a existência de direitos para além do estado da natureza de Hobbes. Em primeiro lugar, Hugo Grócio, considerado um dos pais fundadores do Direito Internacional, fez interessante debate sobre o direito natural e os direitos de todos os seres humanos. No seu livro O direito da guerra e da paz (1625), Grócio defendeu a existência do direito natural, de cunho racionalista – mesmo sem Deus, ousou dizer em pleno século XVII –, reconhecendo, assim, que suas normas decorrem de princípios inerentes ao ser humano. Assim, é dada mais uma contribuição – de marca jusnaturalista – ao arcabouço dos direitos humanos, em especial no que tange ao reconhecimento de normas inerentes à condição humana.
Por sua vez, a contribuição de John Locke é essencial, pois defendeu o direito dos indivíduos mesmo contra o Estado, um dos pilares do contemporâneo regime dos direitos humanos. Para Locke, em sua obra Segundo tratado sobre o governo civil (16897), o objetivo do governo em uma sociedade humana é salvaguardar os direitos naturais do homem, existentes desde o estado da natureza. Os homens, então, decidem livremente deixar o estado da natureza justamente para que o Estado preserve os seus direitos existentes. Diferentemente de Hobbes, não é necessário que o governo seja autocrático. Pelo contrário, para Locke, o grande e principal objetivo das sociedades políticas sob a tutela de um determinado governo é a preservação dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Logo, o governo não pode ser arbitrário e deve seu poder ser limitado pela supremacia do bem público. Nesse sentido, os governados teriam o direito de se insurgir contra o governante que deixasse de proteger esses direitos. Além disso, Locke foi um dos pioneiros na defesa da divisão das funções do Poder, tendo escrito que “como pode ser muito grande para a fragilidade humana a tentação de ascender ao poder, não convém que as mesmas pessoas que detêm o poder de legislar tenham também em suas mãos o poder de executar as leis, pois elas poderiam se isentar da obediência às leis que fizeram, e adequar a lei a sua vontade, tanto no momento de fazê-la quanto no ato de sua execução, e ela teria interesses distintos daqueles do resto da comunidade, contrários à finalidade da sociedade e do governo”8. Locke sustentou a existência do Poder Legislativo (na sua visão, o mais importante, por representar a sociedade), Executivo e Federativo, este último vinculado às atividades de guerra e paz (política externa). Quanto ao Judiciário, Locke considerou-o parte do Poder Executivo, na sua função de executar as leis. Em síntese, Locke é um expoente do liberalismo emergente, tendo suas ideias influenciado o movimento de implantação do Estado Constitucional (com separação das funções do poder e direitos dos indivíduos) em vários países.
As ideias de Locke reverberaram especialmente no século XVIII, com a consolidação da burguesia em vários países europeus. O Estado Absolutista, que havia comandado as grandes navegações e o auge do capitalismo comercial, era, naquele momento, um entrave para o desenvolvimento futuro do capitalismo europeu, que ansiava por segurança jurídica e limites à ação autocrática (e com isso imprevisível) do poder.
Na França, o reformista Abbé Charles de Saint-Pierre defendeu, em seu livro Projeto de paz perpétua (1713), o fim das guerras europeias e o estabelecimento de mecanismos pacíficos para superar as controvérsias entre os Estados em uma percursora ideia de federação mundial.
Surgiu, então, o Do contrato social (1762) de Jean-Jacques Rousseau, que defendeu uma vida em sociedade baseada em um contrato (o pacto social) entre homens livres e iguais, que estruturam o Estado para zelar pelo bem-estar da maioria. A igualdade e a liberdade são inerentes ao seres humanos, que, com isso, são aptos a expressar sua vontade e exercer o poder. A pretensa renúncia à liberdade e igualdade pelos homens nos Estados autocráticos (base do pensamento de Hobbes) é inadmissível para Rousseau, uma vez que tal renúncia seria incompatível com a natureza humana.
Para Rousseau, portanto, um governo arbitrário e liberticida não poderia sequer alegar que teria sido aceito pela população, pois a renúncia à liberdade seria o mesmo que renunciar à natureza humana. A inalienabilidade dos direitos humanos encontra já eco em Rousseau, que, consequentemente, combate a escravidão (aceita por Grócio e Locke, por exemplo). Quanto à organização do Estado, Rousseau sustentou que os governos devem representar a vontade da maioria, respeitando ainda os valores da vontade geral, contribuindo para a consolidação tanto da democracia representativa quanto da possibilidade de supremacia da vontade geral em face de violações de direitos oriundas de paixões de momento da maioria. As ideias de Rousseau estão inseridas no movimento denominado Iluminismo (tradução da palavra alemã Aufklärung; o século XVIII seria o “século das luzes”), no qual autores como Voltaire, Diderot e D´Alembert, entre outros, defendiam o uso da razão para dirigir a sociedade em todos os aspectos9, questionando o absolutismo e o viés religioso do poder (o rei como filho de Deus) tidos como irracionais.
Por sua vez, Cesare Beccaria defendeu ideias essenciais para os direitos humanos em uma área crítica: o Direito Penal. Em sua obra Dos delitos e das penas (1766), Beccaria sustentou a existência de limites para a ação do Estado na repressão penal, balizando o jus puniendi com influência até os dias de hoje.
Kant, no final do século XVII (178510), defendeu a existência da dignidade intrínseca a todo ser racional, que não tem preço ou equivalente. Justamente em virtude dessa dignidade, não se pode tratar o ser humano como um meio, mas sim como um fim em si mesmo. Esse conceito kantiano do valor superior e sem equivalente da dignidade humana será, depois, retomado no regime jurídico dos direitos humanos contemporâneos, em especial no que tange à indisponibilidade e à proibição de tratamento do homem como objeto.
QUADRO SINÓTICO
O debate das ideias: Hobbes, Grócio, Locke, Rousseau e os iluministas |
• Thomas Hobbes (Leviatã – 1651): é um dos primeiros textos que versa claramente sobre o direito do ser humano, que é ainda tratado como sendo pleno no estado da natureza. Mas Hobbes conclui que o ser humano abdica de sua liberdade inicial e se submete ao poder do Estado (o Leviatã), cuja existência justifica-se pela necessidade de se dar segurança ao indivíduo, diante das ameaças de seus semelhantes. Entretanto, os indivíduos não possuiriam qualquer proteção contra o poder do Estado. • Hugo Grócio (Da guerra e da paz – 1625): defendeu a existência do direito natural, de cunho racionalista, reconhecendo, assim, que suas normas decorrem de “princípios inerentes ao ser humano”. • John Locke (Tratado sobre o governo civil – 1689): defendeu o direito dos indivíduos mesmo contra o Estado, um dos pilares do contemporâneo regime dos direitos humanos. O grande e principal objetivo das sociedades políticas sob a tutela de um determinado governo é a preservação dos direitos à vida, à liberdade e à propriedade. Logo, o governo não pode ser arbitrário e deve seu poder ser limitado pela supremacia do bem público. • Abbé Charles de Saint-Pierre (Projeto de paz perpétua – 1713): defendeu o fim das guerras europeias e o estabelecimento de mecanismos pacíficos para superar as controvérsias entre os Estados em uma precursora ideia de federação mundial. • Jean-Jacques Rousseau (Do contrato social – 1762): prega que a vida em sociedade é baseada em um contrato (o pacto social) entre homens livres e iguais (qualidades inerentes aos seres humanos), que estruturam o Estado para zelar pelo bem-estar da maioria. Um governo arbitrário e liberticida não poderia sequer alegar que teria sido aceito pela população, pois a renúncia à liberdade seria o mesmo que renunciar à natureza humana, sendo inadmissível. • Cesare Beccaria (Dos delitos e das penas – 1766): sustentou a existência de limites para a ação do Estado na repressão penal, balizando os limites do jus puniendi que reverberam até hoje. • Kant (Fundamentação da metafísica dos costumes – 1785): defendeu a existência da dignidade intrínseca a todo ser racional, que não tem preço ou equivalente. Justamente em virtude dessa dignidade, não se pode tratar o ser humano como um meio, mas sim como um fim em si mesmo. |
5. A fase do constitucionalismo liberal e das declarações de direitos
As revoluções liberais, inglesa, americana e francesa, e suas respectivas Declarações de Direitos marcaram a primeira clara afirmação histórica dos direitos humanos.
A chamada “Revolução Inglesa” foi a mais precoce (ver acima), pois tem como marcos a Petition of Right, de 1628 e o Bill of Rights, de 1689, que consagraram a supremacia do Parlamento e o império da lei.
Por sua vez, a “Revolução Americana” retrata o processo de independência das colônias britânicas na América do Norte, culminado em 1776, e a criação da primeira Constituição do mundo, a Constituição norte-americana de 1787. Várias causas concorreram para a independência norte-americana, sendo a defesa das liberdades públicas contra o absolutismo do rei uma das mais importantes, o que legitimou a emancipação.
Nesse sentido, foi editada a “Declaração do Bom Povo de Virgínia” em 12 de junho de 1776 (pouco menos de um mês da declaração de independência, em 4 de julho): composta por 18 artigos, que contém afirmações típicas da promoção de direitos humanos com viés jusnaturalista, como, por exemplo, “todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes” (artigo I) e ainda “todo poder é inerente ao povo e, consequentemente, dele procede; que os magistrados são seus mandatários e seus servidores e, em qualquer momento, perante ele responsáveis” (artigo II). A Declaração de Independência dos Estados Unidos de 4 de julho de 1776 (escrita em grande parte por Thomas Jefferson) estipulou, já no seu início, que “todos os homens são criados iguais, sendo-lhes conferidos pelo seu Criador certos Direitos inalienáveis, entre os quais se contam a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade. Que para garantir estes Direitos, são instituídos Governos entre os Homens, derivando os seus justos poderes do consentimento dos governados”, marcando o direito político de autodeterminação dos seres humanos, governados a partir de sua livre escolha.
Curiosamente, a Constituição norte-americana de 1787 não possuía um rol de direitos, uma vez que vários representantes na Convenção de Filadélfia (que editou a Constituição) temiam introduzir direitos humanos em uma Constituição que organizaria a esfera federal, o que permitiria a consequente federalização de várias facetas da vida social. Somente em 1791, esse receio foi afastado e foram aprovadas 10 Emendas que, finalmente, introduziram um rol de direitos na Constituição norte-americana.
Já a “Revolução Francesa” gerou um marco para a proteção de direitos humanos no plano nacional: a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, adotada pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 27 de agosto de 1789. A Declaração Francesa é fruto de um giro copernicano nas relações sociais na França e, logo depois, em vários países. O Estado francês pré-Revolução era ineficiente, caro e incapaz de organizar minimamente a economia de modo a atender as necessidades de uma população cada vez maior. As elites religiosas e da nobreza também se mostraram insensíveis a qualquer alteração do status quo capitaneada pela monarquia. Esse impasse político na cúpula dirigente associado à crescente insatisfação popular foi o caldo de cultura para a ruptura, que se iniciou na autoproclamação de uma “Assembleia Nacional Constituinte”, em junho de 1789, pelos representantes dos Estados Gerais (instituição representativa dos três estamentos da França pré-revolução: nobreza, clero e um “terceiro estado” que aglomerava a grande e pequena burguesia, bem como a camada urbana sem posses). Em 12 de julho de 1789, iniciaram-se os motins populares em Paris (capital da França), que culminaram, em 14 de julho de 1789, na tomada da Bastilha (prisão quase desativada), cuja queda é, até hoje, o símbolo maior da Revolução Francesa.
Em 27 de agosto de 1789, a Assembleia Nacional Constituinte adotou a “Declaração Francesa dos Direitos do Homem e dos Povos”, que consagrou a igualdade e liberdade como direitos inatos a todos os indivíduos. O impacto na época foi imenso: aboliram-se os privilégios, direitos feudais e imunidades de várias castas, em especial da aristocracia de terras. O lema dos agora revolucionários era de clareza evidente: “liberdade, igualdade e fraternidade” (“liberté, egalité et fraternité”).
A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão proclamou os direitos humanos a partir de uma premissa que permeará os diplomas futuros: todos os homens nascem livres e com direitos iguais. Há uma clara influência jusnaturalista, pois, já no seu início, a Declaração menciona “os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem”. São apenas dezessete artigos, que acabaram sendo adotados como preâmbulo da Constituição francesa de 1791 e que condensam várias ideias depois esmiuçadas pelas Constituições e tratados de direitos humanos posteriores, como, por exemplo: soberania popular, sistema de governo representativo, igualdade de todos perante a lei, presunção de inocência, direito à propriedade, à segurança, liberdade de consciência, de opinião, de pensamento, bem como o dever do Estado Constitucional de garantir os direitos humanos. Esse dever de garantia ficou expresso no sempre lembrado artigo 16 da Declaração, que dispõe: “Toda sociedade onde a garantia dos direitos não está assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem Constituição”.
Também é importante marco para o desenvolvimento futuro dos direitos humanos o projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de 1791, proposto por Olympe de Gouges, que reivindicou a igualdade de direitos de gênero. Ainda em 1791 foi editada a primeira Constituição da França revolucionária, que consagrou a perda dos direitos absolutos do monarca francês, implantando-se uma monarquia constitucional, mas, ao mesmo tempo, reconheceu o voto censitário. Em 1791, o Rei Luís XVI tentou fugir para reunir-se a monarquias absolutistas que já ensaiavam intervir no processo revolucionário francês. Após a invasão da França e derrota dos exércitos austro-prussianos, os revolucionários franceses decidem executar o Rei Luís XVI e sua mulher, a Rainha Maria Antonieta (1793).
Esse contexto de constante luta dos revolucionários com os exércitos das monarquias absolutistas europeias impulsionou a Revolução Francesa para além das fronteiras daquele país, uma vez que os revolucionários temiam que as intervenções estrangeiras não cessariam até a derrota dos demais Estados autocráticos. Esse desejo de espalhar os ideais revolucionários distinguiu a Revolução Francesa das anteriores revoluções liberais (inglesa e americana, mais interessadas na organização da sociedade local), o que consagrou a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão como sendo a primeira com vocação universal.
Esse universalismo será o grande alicerce da futura afirmação dos direitos humanos no século XX, com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
QUADRO SINÓTICO
A fase do constitucionalismo liberal e das declarações de direitos |
• As revoluções liberais, inglesa, americana e francesa, e suas respectivas Declarações de Direitos marcaram a primeira afirmação histórica dos direitos humanos. • “Revolução Inglesa”: teve como marcos a Petition of Rights, de 1628, que buscou garantir determinadas liberdades individuais, e o Bill of Rights, de 1689, que consagrou a supremacia do Parlamento e o império da lei. • “Revolução Americana”: retrata o processo de independência das colônias britânicas na América do Norte, culminado em 1776, e ainda a criação da Constituição norte-americana de 1787. Somente em 1791 foram aprovadas 10 Emendas que, finalmente, introduziram um rol de direitos na Constituição norte-americana. • “Revolução Francesa”: adoção da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão pela Assembleia Nacional Constituinte francesa, em 27 de agosto de 1789, que consagra a igualdade e liberdade, que levou à abolição de privilégios, direitos feudais e imunidades de várias castas, em especial da aristocracia de terras. Lema dos revolucionários: “liberdade, igualdade e fraternidade” (“liberté, egalité et fraternité”). • Projeto de Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã: de 1791, proposto por Olympe de Gouges, reivindicou a igualdade de direitos de gênero. • 1791: edição da primeira Constituição da França revolucionária, que consagrou a perda dos direitos absolutos do monarca francês, implantando-se uma monarquia constitucional, mas, ao mesmo tempo, reconheceu o voto censitário. • Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão consagrada como sendo a primeira com vocação universal. Esse universalismo será o grande alicerce da futura afirmação dos direitos humanos no século XX, com a edição da Declaração Universal dos Direitos Humanos. |
6. A fase do socialismo e do constitucionalismo social
No final do século XVIII, os jacobinos franceses defendiam a ampliação do rol de direitos da Declaração Francesa para abarcar também os direitos sociais, como o direito à educação e assistência social. Em 1793, os revolucionários franceses editaram uma nova “Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão”, redigida com forte apelo à igualdade, com reconhecimento de direitos sociais como o direito à educação.
Essa percepção da necessidade de condições materiais mínimas de sobrevivência foi ampliada pela persistência da miséria, mesmo depois da implantação dos Estados Constitucionais liberais, como na Inglaterra e na França pós-revolucionária. Surgem, na Europa do século XIX, os movimentos socialistas que ganham apoio popular nos seus ataques ao modo de produção capitalista.
Proudhon, socialista francês, fez apelo inflamado à rejeição do direito de propriedade privada, que considerou um “roubo”, em seu livro de 1840, “O que é a propriedade”. Karl Marx, na obra A questão judaica (1843), questionou os fundamentos liberais da Declaração Francesa de 1789, defendendo que o homem não é um ser abstrato, isolado das engrenagens sociais. Para Marx, os direitos humanos até então defendidos eram focados no indivíduo voltado para si mesmo, para atender seu interesse particular egoístico dissociado da comunidade. Assim, não seria possível defender direitos individuais em uma realidade na qual os trabalhadores – em especial na indústria europeia – eram fortemente explorados. Em 1848, Marx e Engels publicam o Manifesto do Partido Comunista, no qual são defendidas novas formas de organização social, de modo a atingir o comunismo, forma de organização social na qual seria dado a cada um segundo a sua necessidade e exigido de cada um segundo a sua possibilidade. As teses socialistas atingiram também a igualdade de gênero: August Bebel defendeu, em 1883, que, na nova sociedade socialista, a mulher seria totalmente independente, tanto social quanto economicamente (“A mulher e o socialismo”, 188311).
São inúmeras as influências da ascensão das ideias socialistas no século XIX. No plano político, houve várias revoluções malsucedidas, até o êxito da Revolução Russa em 1917, que, pelo seu impacto (foi realizada no maior país do mundo em termos geográficos), estimulou novos avanços na defesa da igualdade e justiça social.
No plano do constitucionalismo, houve a introdução dos chamados direitos sociais – que pretendiam assegurar condições materiais mínimas de existência – em diversas Constituições, tendo sido pioneiras a Constituição do México (1917), da República da Alemanha (também chamada de República de Weimar, 1919) e, no Brasil, a Constituição de 1934.
No plano do Direito Internacional, consagrou-se, pela primeira vez, uma organização internacional voltada à melhoria das condições dos trabalhadores, que foi a Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919 pelo próprio Tratado de Versailles que pôs fim à Primeira Guerra Mundial.
QUADRO SINÓTICO
A fase do constitucionalismo social |
• Antecedentes: • Final do século XVIII: próprios jacobinos franceses defendiam a ampliação do rol de direitos da Declaração Francesa para abarcar também os direitos sociais, como o direito à educação e assistência social. • 1793: revolucionários franceses editaram uma nova “Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão”, redigida com forte apelo à igualdade, com reconhecimento de direitos sociais como o direito à educação. • Europa do século XIX: movimentos socialistas ganham apoio popular nos seus ataques ao modo de produção capitalista. Expoentes: Proudhon, Karl Marx, Engels, August Bebel. • Revolução Russa (1917): estimulou novos avanços na defesa da igualdade e justiça social. • Introdução dos chamados direitos sociais – que pretendiam assegurar condições materiais mínimas de existência – em várias Constituições, tendo sido pioneiras a Constituição do México (1917), da República da Alemanha (também chamada de República de Weimar, 1919) e, no Brasil, a Constituição de 1934. • Plano do Direito Internacional: consagrou-se, pela primeira vez, uma organização internacional voltada à melhoria das condições dos trabalhadores – a Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919 pelo próprio Tratado de Versailles que pôs fim à Primeira Guerra Mundial. |
7. A internacionalização dos direitos humanos
Até meados do século XX, o Direito Internacional possuía apenas normas internacionais esparsas referentes a certos direitos essenciais, como se vê na temática do combate à escravidão no século XIX, ou ainda na criação da OIT (Organização Internacional do Trabalho, 1919), que desempenha papel importante até hoje na proteção de direitos trabalhistas. Contudo, a criação do Direito Internacional dos Direitos Humanos está relacionada à nova organização da sociedade internacional no pós-Segunda Guerra Mundial12. Como marco dessa nova etapa do Direito Internacional, foi criada, na Conferência de São Francisco em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU). O tratado institutivo da ONU foi denominado “Carta de São Francisco”.
A reação à barbárie nazista gerou a inserção da temática de direitos humanos na Carta da ONU, que possui várias passagens que usam expressamente o termo “direitos humanos”, com destaque ao artigo 55, alínea “c”, que determina que a Organização deve favorecer “o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Já o artigo seguinte, o artigo 56, estabelece o compromisso de todos os Estados-membros de agir em cooperação com a Organização para a consecução dos propósitos enumerados no artigo anterior.
Porém, a Carta da ONU não listou o rol dos direitos que seriam considerados essenciais. Por isso, foi aprovada, sob a forma de Resolução da Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, em Paris, a Declaração Universal de Direitos Humanos (também chamada de “Declaração de Paris”), que contém 30 artigos e explicita o rol de direitos humanos aceitos internacionalmente. Embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos tenha sido aprovada por 48 votos a favor e sem voto em sentido contrário, houve oito abstenções (Bielorússia, Checoslováquia, Polônia, União Soviética, Ucrânia, Iugoslávia, Arábia Saudita e África do Sul). Honduras e Iêmen não participaram da votação.
Nos seus trinta artigos, são enumerados os chamados direitos políticos e liberdades civis (artigos I ao XXI), assim como direitos econômicos, sociais e culturais (artigos XXII–XXVII). Entre os direitos civis e políticos constam o direito à vida e à integridade física, o direito à igualdade, o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião. Entre os direitos sociais em sentido amplo constam o direito à segurança social, ao trabalho, o direito à livre escolha da profissão e o direito à educação, bem como o “direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis” (direito ao mínimo existencial – artigo XXV).
Quanto à ponderação e conflito dos direitos, a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) prevê, em seu artigo XXIX, que toda pessoa tem deveres para com a comunidade e estará sujeita às limitações de direitos, para assegurar os direitos dos outros e de satisfazer às justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma sociedade democrática. O artigo XXX determina que nenhuma disposição da Declaração pode ser interpretada para justificar ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades lá estabelecidos, o que demonstra que os direitos não são absolutos.
Em virtude de ser a DUDH uma declaração e não um tratado, há discussões na doutrina e na prática dos Estados sobre sua força vinculante. Em resumo, podemos identificar três vertentes possíveis: (i) aqueles que consideram que a DUDH possui força vinculante por se constituir em interpretação autêntica do termo “direitos humanos”, previsto na Carta das Nações Unidas (tratado, ou seja, tem força vinculante); (ii) há aqueles que sustentam que a DUDH possui força vinculante por representar o costume internacional sobre a matéria; (iii) há, finalmente, aqueles que defendem que a DUDH representa tão somente a soft law na matéria, que consiste em um conjunto de normas ainda não vinculantes, mas que buscam orientar a ação futura dos Estados para que, então, venha a ter força vinculante.
Do nosso ponto de vista, parte da DUDH é entendida como espelho do costume internacional de proteção de direitos humanos, em especial quanto aos direitos à integridade física, igualdade e devido processo legal13.
QUADRO SINÓTICO
A fase da internacionalização dos direitos humanos |
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Carta da Organização das Nações Unidas e a Declaração Universal de Direitos Humanos |
Nova organização da sociedade internacional no pós-Segunda Guerra Mundial; fatos anteriores levaram ao reconhecimento da vinculação entre a defesa da democracia e dos direitos humanos com os interesses dos Estados em manter um relacionamento pacífico na comunidade internacional. Conferência de São Francisco (abril a junho de 1945): Carta de São Francisco. Declaração Universal de Direitos Humanos (também chamada de “Declaração de Paris”), aprovada sob a forma de Resolução da Assembleia Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948 em Paris. |
1 Todos os textos aqui mencionados, salvo outra nota de rodapé específica, constam da Biblioteca Virtual de Direitos Humanos da USP, no precioso acervo de “Documentos Históricos”. Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br>.
2 COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
3 GORCZEVSKI, Clóvis. Direitos humanos dos primórdios da humanidade ao Brasil de hoje. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2005, p. 32.
4 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Introdução, tradução e notas de Antônio de Castro Caeiro. São Paulo: Atlas, 2009.
5 VILLEY, Michel. Direito e os direitos humanos. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
6 SUESS, Paulo (Org.). A conquista espiritual da América espanhola. Petrópolis: Vozes, 1992, p. 543.
7 LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil (1689). Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
8 Parágrafo 143. LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil (1689). Trad. Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa. Petrópolis, RJ : Vozes, 1994.
9 BINETTI, Saffo Testoni. Iluminismo. In: BOBBIO, Norberto; MATEUCCI, Nicola: PASQUINO, Gianfranco (Coords.). Dicionário de política. Trad. João Ferreira. 4. ed. Brasília: Unb, 1992. v. 1, p. 605-611.
10 KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes (1795). Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964.
11 Conferir em ISHAY, Micheline. Direitos humanos: uma antologia. Principais escritos políticos, ensaios, discursos e documentos desde a Bíblia até o presente. Trad. Fábio Joly. São Paulo: EDUSP, 2006, em especial p. 386.
12 CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
13 CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.