V.
O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL E OS DIREITOS HUMANOS
1. Os Tribunais precursores: de Nuremberg a Ruanda
A implementação direta do Direito Internacional Penal por tribunais internacionais remonta ao artigo 227 do Tratado de Versailles, que previa um “tribunal especial” com juízes das potências vencedoras para julgar o Kaiser Guilherme da Alemanha vencida. A pena seria determinada pelo próprio Tribunal. A Holanda jamais extraditou o Kaiser, que lá obtivera asilo após a Guerra e tal julgamento nunca ocorreu. Contudo, houve uma ruptura de paradigma no Direito Internacional: até então o julgamento penal dos indivíduos era de atribuição exclusiva dos Estados. A responsabilidade internacional penal do indivíduo despontava.
Em 1937, a Liga das Nações elaborou convenção sobre a prevenção e repressão do terrorismo, que contemplava a criação de um Tribunal Penal Internacional, porém com apenas uma ratificação o tratado nunca entrou em vigor. Esse tratado foi feito em reação ao terrorismo após os assassinatos do Ministro das Relações Exteriores da França, Louis Barthou, e do Rei da Iugoslávia, Alexandre I, em Marseille, por terroristas croatas em 1934.
Em 1945, finalmente um tribunal internacional penal foi criado. Pelo Acordo celebrado em Londres em 8 de agosto de 1945 foi estabelecido o Tribunal Internacional Militar, tendo como partes originais o Reino Unido, Estados Unidos, União Soviética e França, bem como 19 Estados aderentes. Seu Anexo 2 continha o Estatuto do Tribunal Internacional Militar (TIM), que possuía sede em Berlim, realizando os julgamentos em Nuremberg (por isso, passou para a história como “Tribunal de Nuremberg”).
Cada Estado celebrante indicou um nome para compor o colegiado de juízes (sem possibilidade para a defesa arguir impedimento ou suspeição), bem como uma parte acusadora (cada Estado celebrante indicou um nome) e defesa. No julgamento principal e que deu notoriedade ao Tribunal, os acusados foram 24 personalidades do regime nazista, bem como organizações criminosas: SS, Gestapo, Partido Nazista, Estado-Maior das Forças Armadas e SA (único caso de tribunal internacional que julgou pessoas jurídicas).
O libelo acusatório contou com quatro crimes:
• conspiracy (figura do direito anglo-saxão, sem correspondência exata no direito brasileiro, mas que, por aproximação, se enquadraria na figura da reunião de agentes voltada para a prática de crime);
• crimes contra a paz (punição da guerra de agressão e conquista);
• crimes contra as leis e os costumes da guerra;
• crimes contra a humanidade, desde que conexos com os demais (war nexum).
Após três meses, com dezenas de oitivas e amplo material documental, as sentenças foram prolatadas entre 30 de setembro e 1º de outubro de 1946, com várias condenações à morte (enforcamento).
O fundamento da jurisdição do TIM, apesar das controvérsias, é fundado no direito internacional consuetudinário de punição àqueles que cometeram crimes contra os valores essenciais da comunidade internacional. Discute-se, obviamente, a falta de tipificação clara de determinadas condutas e ainda a natureza ex post facto do tribunal.
Em 1947, a Comissão de Direito Internacional da ONU foi incumbida de codificar os princípios utilizados em Nuremberg, para consolidar o avanço do Direito Internacional Penal. Em 1950, a Comissão aprovou os seguintes sete princípios, também chamados de “princípios de Nuremberg”:
1º) todo aquele que comete ato que consiste em crime internacional é passível de punição;
2º) lei nacional que não considera o ato crime é irrelevante;
3º) as imunidades locais são irrelevantes;
4º) a obediência às ordens superiores não são eximentes;
5º) todos os acusados têm direito ao devido processo legal;
6º) são crimes internacionais os julgados em Nuremberg;
7º) conluio para cometer tais atos é crime.
O segundo Tribunal internacional da história do século XX foi o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, com sede em Tóquio, criado em 1946 por ato unilateral dos Estados Unidos, potência ocupante, por intermédio do Chefe da Ocupação, General MacArthur, que editou suas regras de funcionamento. MacArthur nomeou 11 juízes, nacionais dos Aliados e os componentes da Promotoria. Coube ainda à potência ocupante determinar a lista de acusados e a imunidade ao Imperador Hiroíto e sua família. Julgou componentes do núcleo militar e civil do governo japonês por crimes contra a paz, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, sendo exigida conexão com os crimes contra a paz. Determinou sete penas de morte, por enforcamento, realizadas em 1948, bem como diversas penas de caráter perpétuo. No bojo da guerra fria e com o Japão como aliado contra os soviéticos, houve concessão de liberdade condicional aos presos a partir de 1952, por ordem do Presidente Truman (Estados Unidos). Em comparação, o último preso do julgamento de Nuremberg, Rudolf Hess, condenado a prisão perpétua em 1946, morreu na prisão de Spandau (Alemanha) em 1987.
A mesma guerra fria impediu que novos tribunais internacionais fossem estabelecidos: a Convenção pela Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948) previu a instalação de um tribunal internacional para julgar esse crime (artigo VII), mas não houve continuidade. No seio das Nações Unidas, o projeto pelo estabelecimento de um código de crimes internacionais e de um tribunal internacional penal na Comissão de Direito Internacional ficou décadas (desde os anos 50) sem conseguir o consenso dos Estados.
Foi necessário esperar o fim da Guerra Fria, com a queda do Muro de Berlim e o desmantelamento do comunismo soviético (1989-1990) para que o Conselho de Segurança (CS) da ONU determinasse a criação de dois tribunais internacionais penais ad hoc e temporários.
Foi criado pela Resolução n. 827 do Conselho de Segurança de 1993, o Tribunal Penal Internacional para os crimes contra o Direito Humanitário cometidos na ex-Iugoslávia, com o objetivo de processar os responsáveis pelas sérias violações ao direito internacional humanitário cometidas no território da antiga Iugoslávia desde 1991. O Estatuto do Tribunal Internacional Penal para a ex-Iugoslávia (TPII, com sede em Haia) fixou sua competência para julgar quatro categorias de crimes, a saber: graves violações às Convenções de Genebra de 1949; violações às leis e costumes da guerra; crimes contra a humanidade e genocídio.
Em 1994, com a Resolução n. 955, o Conselho de Segurança (CS) determinou a criação de um segundo tribunal internacional penal ad hoc, com o objetivo de julgar as graves violações de direitos humanos, em especial genocídio, ocorridas em Ruanda e países vizinhos durante o ano de 1994 (Tribunal Penal Internacional para os crimes ocorridos em Ruanda – TPIR). Os dois tribunais têm estruturas vinculadas, pois o Procurador do TPII também atua como órgão acusatório no TPIR; os juízes que compõem a Câmara de Apelação do TPII são também do órgão de apelação do TPIR, que possui sede em Arusha (Tanzânia).
Esses tribunais são importantes porque codificaram os elementos de crimes internacionais (como genocídio, crime contra a humanidade e crimes de guerra) associados ao devido processo legal, com direitos da defesa. Também adotaram o princípio da primazia da jurisdição internacional em detrimento da jurisdição nacional, dado o momento de desconfiança contra as instituições locais (da ex-Iugoslávia e de Ruanda). Assim, ficou determinado que cada um desses tribunais teria primazia sobre as jurisdições nacionais, podendo, em qualquer fase do processo, exigir oficialmente às jurisdições nacionais que abdicassem de exercer jurisdição em favor da Corte internacional. A pena máxima é a pena de caráter perpétuo, que, inclusive, já foi fixada em ambos os Tribunais nesses anos de funcionamento.
Com os dois tribunais ad hoc, aceleraram-se os esforços das Nações Unidas para a constituição de um Tribunal Internacional Penal permanente, para julgar os indivíduos acusados de cometer crimes de jus cogens posteriores à data de instalação do tribunal (evitando-se o estigma do tribunal ad hoc e as críticas aos “tribunais de exceção”), sob o pálio do devido processo legal, como veremos abaixo.
Após anos de negociação no seio das Nações Unidas, em 1998, durante Conferência Intergovernamental em Roma (Itália), foi adotado o texto do tratado internacional que cria o Tribunal Penal Internacional (TPI), também chamado de “Estatuto de Roma”. Esse marco no Direito Internacional dos Direitos Humanos ocorreu justamente no ano da comemoração do 50º aniversário da Declaração Universal de Direitos Humanos (1948-1998).
O texto do Estatuto foi adotado em Roma por 120 votos a favor, 7 votos contrários (Estados Unidos, China, Índia, Líbia, Iêmen, Israel e Catar) e 21 abstenções. Havia expectativa pessimista sobre a entrada em vigor do tratado, pois não cabia reservas (art. 120, impedindo exclusões ou modificações de dispositivos mais polêmicos) e exigiu-se o número mínimo de 60 ratificações para tanto (art. 126). Em 2002, contudo, o número foi atingido e, atualmente, 122 Estados são partes do Tribunal Penal Internacional (dados de 2013). Até hoje, notam-se ausências expressivas, como as da China, Estados Unidos, Israel, Irã e Rússia.
O Estatuto de Roma foi aberto à assinatura dos Estados em 17 de julho de 1998 e entrou em vigor internacional em 1º de julho de 2002. No Brasil, foi aprovado pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002, e entrou em vigor em 1º de setembro de 2002. Finalmente, foi promulgado pelo Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.
É composto de um preâmbulo e treze capítulos, com 128 artigos que englobam as regras referentes aos crimes, à investigação e processo, à cooperação e execução da pena, bem como ao financiamento das atividades.
O preâmbulo do Estatuto de Roma realça o vínculo entre o direito penal e a proteção de direitos humanos por meio do combate à impunidade e, consequentemente, evitando novas violações. No preâmbulo, estabeleceu-se que é dever de cada Estado exercer a respectiva jurisdição penal sobre os responsáveis por crimes internacionais, pois crimes de tal gravidade constituem uma ameaça à paz, à segurança e ao bem-estar da humanidade. O Tribunal tem personalidade jurídica internacional, com sede em Haia (Holanda), possuindo igualmente capacidade jurídica necessária ao desempenho das suas funções e cumprimento dos seus objetivos.
É um tribunal independente da ONU (diferente dos tribunais ad hoc da ex-Iugoslávia e Ruanda, criados pelo Conselho de Segurança da ONU), com personalidade jurídica própria, mas que, em face de seus objetivos, possui uma relação de cooperação com essa organização, enviando (i) relatos anuais à Assembleia Geral e ainda sendo (ii) obediente a determinadas ordens do Conselho de Segurança quanto ao início de um caso e suspensão de trâmite (vide abaixo).
O Tribunal é composto de quatro órgãos, a saber: Presidência, Divisão Judicial, Procuradoria (Ministério Público) e Secretariado (Registry).
São 18 juízes que compõem o tribunal, eleitos pelos Estados Partes para um mandato de nove anos (não podem ser reeleitos). A escolha deve recair sobre pessoas de elevada idoneidade moral, imparcialidade e integridade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus respectivos países. No caso do Brasil, serão exigidos dos candidatos os requisitos para a nomeação ao posto de Ministro do Supremo Tribunal Federal, ou seja: notório saber jurídico, reputação ilibada e com mais de 35 anos e menos de 65 anos. Além disso, o Estatuto prevê que os juízes devem ser eleitos de modo a preencher, isonomicamente, duas categorias: a primeira categoria (“lista A”) é composta por pessoas com experiência em Direito Penal e Processo Penal; a segunda categoria (“lista B”) é composta por pessoas com competência em matérias relevantes de Direito Internacional, tais como o direito internacional humanitário e os direitos humanos.
Na seleção dos juízes, os Estados Partes devem ponderar a necessidade de assegurar que a composição do Tribunal inclua representação dos principais sistemas jurídicos do mundo, uma representação geográfica equitativa e uma representação justa de juízes do sexo feminino e do sexo masculino. No caso brasileiro, o Brasil indicou Sylvia Steiner, ex-Procuradora da República (Ministério Público Federal) e ex-Desembargadora Federal (Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na vaga do quinto constitucional do Ministério Público), eleita para a primeira composição do TPI.
Os juízes são divididos em três grandes Seções: o Juízo de Instrução (Pre-Trial Chamber), o Juízo de Julgamento em 1ª Instância (Trial Chamber) e ainda o Juízo de Apelação (Appeal Chamber).
O Ministério Público do TPI é capitaneado pelo Procurador, que atua com independência funcional, como órgão autônomo do Tribunal. Cabe ao Procurador receber comunicações e qualquer outro tipo de informação, devidamente fundamentada, sobre crimes da competência do Tribunal, a fim de os examinar e investigar e de exercer a ação penal junto ao Tribunal. É eleito pela Assembleia dos Estados Partes para mandato de nove anos, não renovável. O primeiro Procurador eleito foi o argentino Luiz Moreno-Ocampo, escolhido em 2003. A partir de 2012, foi escolhida a gambiana Fatu Bensouda para ser Procuradora do TPI.
3. A fixação da jurisdição do TPI
A jurisdição do TPI de acordo com a matéria (ratione materiae) restringe-se aos crimes de jus cogens, que consistem em crimes que ofendem valores da comunidade internacional.
Os crimes que compete ao TPI julgar são:
• o genocídio;
• os crimes contra a humanidade;
• os crimes de guerra; e
• o crime de agressão, cujo tipo penal só foi acordado em 2010, na Conferência de Kampala, Uganda.
Porém, há a possibilidade de os Estados emendarem o Estatuto e ampliarem o rol desses crimes (hoje restritos às quatro espécies), permitindo que o TPI seja instrumento do incremento do número de crimes internacionais em sentido estrito.
No âmbito espacial, a jurisdição do TPI só pode ser exercida em quatro hipóteses, ou seja, quando o crime de jus cogens sujeito à jurisdição do Tribunal for:
i) cometido no território de um Estado Parte;
ii) ou por um nacional do Estado Parte;
iii) ou por meio de declaração específica do Estado não contratante (caso o crime tiver ocorrido em seu território ou for cometido por seu nacional);
iv) ou, na ausência de quaisquer hipóteses anteriores, ter o Conselho de Segurança adotado resolução vinculante adjudicando o caso ao Tribunal Penal Internacional. Foi o Caso de Darfur (Sudão), o primeiro no qual o Conselho de Segurança determinou o início das investigações, mesmo sem a ratificação, pelo Sudão, do Estatuto do TPI. Em 2011, houve mais uma resolução vinculante do CS, agora em relação aos crimes contra a humanidade realizados pelo Ditador Kadafi para abafar revolta popular contra sua longeva tirania (1969-2011).
No âmbito temporal, a jurisdição do TPI só pode ser invocada para os crimes cometidos após a entrada em vigor do Estatuto, ou seja, após 1º de julho de 2002.
4. O princípio da complementaridade e o regime jurídico: imprescritível e sem imunidades
O preâmbulo do Estatuto de Roma dispõe que “é dever de cada Estado exercer a respectiva jurisdição penal sobre os responsáveis por crimes internacionais”. Logo, estabeleceu-se mais um exemplo da subsidiariedade da jurisdição internacional, tal qual ocorre com os tribunais internacionais de direitos humanos. O princípio que espelha essa subsidiariedade é o princípio da complementaridade. Por esse princípio, o TPI não exercerá sua jurisdição caso o Estado com jurisdição já houver iniciado ou terminado investigação ou processo penal, salvo se este não tiver “capacidade” ou “vontade” de realizar justiça. Nesse ponto, o próprio Estado Parte pode solicitar a intervenção do TPI ou ainda o próprio TPI pode iniciar as investigações e persecuções criminais. Assim, a jurisdição internacional penal é complementar à jurisdição nacional e só poderá ser acionada se o Estado não possuir vontade ou capacidade para realizar justiça e impedir a impunidade.
Além disso, o caso é também inadmissível se a pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, salvo se o julgamento for um simulacro para obter a impunidade e, finalmente, se o caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal.
A fim de determinar se há ou não vontade ou capacidade de um Estado em agir em um determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo Direito Internacional, deve verificar a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias:
a) intenção evidente do Estado de usar o processo nacional para subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal, gerando impunidade;
b) delonga injustificada no processo;
c) condução tendenciosa e parcial, ou seja, incompatível com a intenção de fazer justiça;
d) eventual colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça, que, assim, não está em condições de realizar ou concluir o processo.
O art. 20, § 3º, do Estatuto chega ao ponto de esclarecer que o TPI não julgará de novo o criminoso, salvo se o processo criminal nacional tiver sido feito para obtenção da impunidade. Quem decide se o julgamento nacional, mesmo que chancelado pela Suprema Corte local, foi um simulacro para a obtenção da impunidade? O próprio TPI.
Assim, o princípio da complementaridade é complexo, pois, a um primeiro olhar, evita conflito com as jurisdições locais ao remeter a jurisdição do TPI a um papel secundário, “complementar”, bem diferente do princípio da primazia assumido pelos tribunais ad hoc penais para a ex-Iugoslávia e Ruanda.
Porém, em um olhar mais atento, cabe ao próprio TPI definir se a jurisdição nacional agiu a contento, podendo inclusive desconsiderar a coisa julgada local que, na sua visão, serviu para camuflar a impunidade, o que implica manter, sempre nas mãos internacionais, o poder de instaurar ou não os processos contra esses criminosos no TPI.
Quanto ao regime jurídico dos crimes sujeitos à jurisdição do TPI, cabe notar que:
i) Os crimes são imprescritíveis (art. 29).
ii) Nenhuma imunidade é admitida (art. 27). Não é imunidade a regra prevista no art. 98 do Estatuto, pelo qual um Estado Parte no TPI pode deixar de colaborar com o Tribunal e não entregar uma pessoa procurada, caso tenha acordo com outro país. Se o TPI lograr cumprir o mandado de captura, a pessoa não poderá alegar imunidade.
Como visto acima, o genocídio é termo que foi cunhado por Lemkin em livro de 1944 ao se referir às técnicas nazistas de ocupação de território na Europa, tendo se inspirado nas partículas genos (raça, tribo) e cídio (assassinato)1.
A Convenção pela Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio (1948) foi a primeira a tipificar o crime internacional de genocídio (uma vez que o Tribunal de Nuremberg não o julgou).
O art. 6º do Estatuto de Roma define o genocídio como sendo o ato ou atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Assim, exige-se dolo específico de “destruir, no todo ou em parte”.
O objeto tutelado é a própria existência do grupo, que é constituído pelos “quatro vínculos”:
i) O primeiro vínculo é o da nacionalidade, que forma o grupo composto por pessoas que se reconhecem como membros de uma nação, mesmo que na luta pela independência (caso dos palestinos e curdos).
ii) O segundo vínculo é o étnico, que forma o grupo que compartilha uma identidade histórica e cultural.
iii) O terceiro vínculo é o “racial”, que aponta para grupo formado pela percepção social de traços fenotípicos distintivos. Apesar da inexistência da distinção biológica entre humanos, este item persiste como fenômeno social.
iv) O quarto vínculo é o religioso, que agrega os indivíduos unidos pela mesma fé espiritual. Fica evidente a falta de menção da destruição de grupo político e ainda de grupo social (por exemplo, grupo determinado por sua orientação sexual), que podem ser tipificados na categoria de crimes contra a humanidade (ver abaixo).
Esses atos de destruição podem ser: homicídios; atentados graves à integridade física ou mental dos membros do grupo; sujeição intencional do grupo a condições de vida voltadas a provocar a sua destruição física, total ou parcial; imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo e transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo. A lista dos atos é meramente exemplificativa.
No Brasil, o combate ao genocídio deu-se pela ratificação da Convenção de 1948 e ainda pela edição da Lei n. 2.889, de 1956. O bem jurídico tutelado é transindividual – a existência do grupo – e as penas variam de acordo com o ato da prática do genocídio. Em 2006, o STF reconheceu que a competência para julgar o crime de genocídio é da justiça federal, do juiz monocrático, salvo se os atos de destruição forem crimes dolosos contra a vida, quando será do Tribunal do Júri federal. Como o STF entende que há concurso formal entre o crime de genocídio e os atos também tipificados de sua realização (homicídio, lesão corporal etc.), no caso da prática de crime doloso contra a vida para praticar genocídio, o julgamento cabe a Tribunal do Júri federal (RE 351.487, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 3-8-2006, Plenário, DJ de 10-11-2006).
5.2. CRIMES CONTRA A HUMANIDADE
Os crimes contra a humanidade foram introduzidos no Direito Internacional pelo Estatuto de Londres de 1945 (que criou o conhecido “Tribunal de Nuremberg”, ver acima).
Foi o art. 6º, “c”, do Estatuto do Tribunal que definiu serem “crimes contra a humanidade” o assassinato, o extermínio, a escravização, deportação e outros atos inumanos cometidos contra a população civil antes da guerra ou durante esta, a perseguição de natureza política, racial ou religiosa na execução daqueles crimes que sejam de competência do Tribunal ou em conexão com eles, constituam ou não uma violação do direito interno do país do cometimento do crime. Foi feita a menção a “antes” e “durante” a guerra e ainda à “conexão” com os crimes julgados pelo Tribunal (crimes contra a paz e crimes de guerra). Logo, os abusos bárbaros nazistas anteriores a 1939 (ano do início da guerra) não foram apreciados em Nuremberg.
A evolução do conceito de crime contra a humanidade fez com que esse vínculo (conhecido pela expressão em inglês war nexus) com a situação de guerra fosse eliminado. A prática dos Estados reconheceu a existência de crimes contra a humanidade praticados internamente por agentes de ditaduras militares, sem situação de guerra2.
O Estatuto de Roma confirmou essa autonomia do “crime contra a humanidade” em seu art. 7º, que define ser o crime contra a humanidade um determinado ato de violação grave de direitos humanos, realizado em um quadro de ataque generalizado ou sistemático contra a população civil, havendo conhecimento desse ataque. Busca-se, então, punir aqueles que, em regimes ditatoriais ou totalitários, usam a máquina do Estado ou de uma organização privada para promover violações graves de direitos humanos em uma situação de banalização de ataques a população civil.
São vários os atos de violação grave de direitos humanos que foram mencionados como exemplos de crime contra a humanidade no Estatuto de Roma, a saber:
i) atos de violação do direito à vida, por meio do homicídio e do extermínio;
ii) a escravidão, deportação ou transferência forçada de população, prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
iii) tortura;
iv) crimes sexuais e agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
v) perseguição de um grupo ou coletividade por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional (é o caso da perseguição aos homossexuais);
vi) desaparecimento forçado de pessoas e crime de apartheid;
vii) uma cláusula aberta que permite que sejam um “crime contra a humanidade” quaisquer atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.
Os crimes de guerra consistem em violações graves do Direito Internacional Humanitário, que compreende os tratados e os costumes sobre os meios ou condutas na guerra.
Nessa linha, o art. 8º do Estatuto de Roma apontou ser crime de guerra uma violação grave das Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, bem como outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional.
A lista de atos é meramente exemplificativa, seguindo a lógica anterior aplicada no crime de genocídio e nos crimes contra a humanidade.
Em síntese, o Direito Internacional Humanitário proíbe os meios ou instrumentos de guerra que não sejam estritamente necessários para superar o oponente, bem como veda a conduta que não seja proporcional e dirigida ao combatente adversário.
O crime de agressão foi apenas previsto no Estatuto de Roma em 1998, com sua implementação condicionada à aprovação do seu conteúdo final em uma conferência intergovernamental de revisão (art. 5º, § 2º, do Estatuto). Em junho de 2010, foi realizada em Kampala, Uganda, a primeira Conferência de Revisão do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. A Conferência ocorreu em virtude do disposto no art. 123, § 1º, do Estatuto de Roma, que previu, sete anos após a entrada em vigor do Estatuto, uma Conferência de Revisão para examinar qualquer alteração ao Estatuto. A revisão deveria incidir especialmente, mas não exclusivamente, sobre a lista de crimes que figura no art. 5º.
Na Conferência de Revisão foi aprovada a Resolução n. 6, de 11 de junho de 2010, que definiu o crime de agressão como sendo “o planejamento, início ou execução, por uma pessoa em posição de efetivo controle ou direção da ação política ou militar de um Estado, de um ato de agressão que, por suas características, gravidade e escala, constitua uma violação manifesta da Carta das Nações Unidas”. Essa definição foi adotada por consenso, seguindo a linha da Resolução n. 3.314 da Assembleia Geral da ONU de 1974.
A entrada em vigor dessa alteração será lenta. Em primeiro lugar, o crime de agressão só será plenamente ativo no Estatuto a partir de 2017, por decisão de dois terços dos Estados Partes. Adicionalmente, o TPI só poderá adjudicar esses casos em relação a crimes de agressão ocorridos um ano após a ratificação da emenda por trinta Estados Partes.
A mecânica da ação criminal contra os líderes agressores levará em conta ainda a missão do Conselho de Segurança (CS) da ONU na preservação da paz. O Procurador deverá acionar o CS, que pode concordar com a existência de um cenário de agressão (essa conclusão política não vinculará o Tribunal no julgamento de cada indivíduo acusado). Caso o Conselho não determine a existência de agressão em seis meses, o Procurador poderá conduzir as investigações com autorização do Juízo de Instrução (Pre-Trial Chamber) do TPI. Claro que o CS pode usar seu poder geral de suspender o processo, invocando o art. 16 do Estatuto, que permite suspensão dos procedimentos do TPI por 12 meses, renováveis indefinidamente, por decisão do CS.
Dentro dos limites da jurisdição do Tribunal (limites materiais, espaciais e temporais), o início da investigação pode ocorrer por:
1) iniciativa (motu proprio) do Procurador (em 2012, Fatu Bensouda, primeira mulher a ocupar esse posto);
2) por remessa de um Estado Parte ou por declaração específica de Estado não Parte e, finalmente;
3) por decisão do Conselho de Segurança (que atingirá inclusive os crimes ocorridos em Estados não contratantes).
Até o momento (2013), quatro Estados Partes já remeteram casos ao TPI: Uganda, Congo, Mali e República Centro-africana. O Procurador já iniciou ação envolvendo crimes internacionais no Quênia e o Conselho de Segurança já remeteu o caso do Sudão (Darfur) e da Líbia.
A remessa da informação pelo Estado não vincula o Procurador. Caso entenda procedente essa notícia do Estado Parte e ainda nos casos de investigação aberta motu proprio, o Procurador deverá notificar todos os Estados Partes e os Estados que, de acordo com a informação disponível, teriam jurisdição sobre esses crimes. Essa notificação pode ser feita confidencialmente, e sempre que seja necessário para proteger pessoas, impedir a destruição de provas ou a fuga, poderá ser limitada.
No prazo de um mês após a recepção da referida notificação, qualquer Estado poderá informar o Tribunal de que está procedendo, ou já procedeu, a um inquérito sobre nacionais seus ou outras pessoas sob a sua jurisdição.
A pedido desse Estado, o Procurador transferirá o inquérito sobre essas pessoas, a menos que, a pedido do Procurador, o TPI (por meio de sua Pre-Trial Chamber, ou Juízo de Instrução) decida autorizar o inquérito. A transferência do inquérito poderá ser reexaminada pelo Procurador seis meses após a data em que tiver sido decidida ou, a todo o momento, quando tenha ocorrido uma alteração significativa de circunstâncias, decorrente da falta de vontade ou da incapacidade efetiva do Estado de levar a cabo o inquérito.
No caso da abertura de investigação ex officio, o Procurador deve inicialmente pedir autorização ao Juízo de Instrução. Se, após examinar o pedido e a documentação que o acompanha, o Juízo de Instrução considerar que há fundamento suficiente para abrir um Inquérito e que o caso parece caber na jurisdição do Tribunal, autorizará a abertura do inquérito, sem prejuízo das decisões que o Tribunal vier a tomar posteriormente em matéria de competência e de admissibilidade. Se, depois da análise preliminar o Procurador concluir que a informação apresentada não constitui fundamento suficiente para um inquérito, o Procurador informará quem a tiver apresentado de tal entendimento. Tal não impede que o Procurador examine, à luz de novos fatos ou provas, qualquer outra informação que lhe venha a ser comunicada sobre o mesmo caso.
Já no caso da investigação ser determinada por resolução do Conselho de Segurança (por exemplo, nos casos de Darfur e da Líbia), o Procurador é obrigado a iniciar as investigações.
As regras de direito processual constam das Partes V e VI do Estatuto e determinam o modo de investigação e processamento dos acusados perante a Corte. Os direitos das pessoas investigadas foram mencionados no art. 55 do Estatuto, bem como o conteúdo e limites da atividade de investigação do promotor. Ainda em relação à atividade pré-processual, o Estatuto do Tribunal estipula as regras relativas à prisão processual e os direitos do preso.
Quanto ao processamento propriamente dito do feito criminal, o Estatuto do Tribunal dispõe sobre o juiz natural, os direitos do acusado no processo, afirmando em especial a sua presunção de inocência (art. 66) e também sobre a coleta de provas, com dispositivos específicos para a oitiva de testemunhas e das vítimas (art. 68).
As regras relativas ao direito ao duplo grau de jurisdição encontram-se mencionadas na Parte VII do Estatuto, determinando-se as regras de processamento da apelação e da revisão criminal.
Em linhas gerais, a sentença é recorrível, fundada em vício processual, erro de fato, erro de direito, ou qualquer outro motivo suscetível de afetar a equidade ou a regularidade do processo ou da sentença (esse só em benefício do condenado). O Procurador ou o condenado poderão, em conformidade com o Regulamento Processual, interpor recurso da pena invocando a desproporcionalidade da pena.
Foi criado um Fundo de Reparação em benefício das vítimas. De acordo com o art. 79 do Estatuto, a Corte pode determinar que os valores e os bens recebidos a título de multa sejam transferidos a tal Fundo para posterior reparação às vítimas.
7. Penas e ordens de prisão processual
Não há previsão de intervalo específico de pena por tipo de crime: o Tribunal pode impor à pessoa condenada pena de prisão por um número determinado de anos, até o limite máximo de 30 anos; ou ainda a pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem. Além da pena de prisão, o Tribunal poderá aplicar multa e ainda a perda de produtos, bens e haveres provenientes, direta ou indiretamente, do crime, sem prejuízo dos direitos de terceiros que tenham agido de boa-fé.
As penas podem passar por revisão a favor do sentenciado após 2/3 do seu cumprimento. Nas penas de caráter perpétuo, poderá existir revisão após 25 anos de cumprimento.
Também pode o Tribunal impor medidas de detenção preventiva, solicitando que os Estados cumpram o pedido de entrega (surrender).
Para efetivar suas ordens de prisão, o TPI conta com 12 celas nas instalações holandesas de Scheveningen.
O Brasil, apesar de ter votado a favor da aprovação do texto do Estatuto do Tribunal Penal Internacional na Conferência de Roma de 1998, manifestou, por meio de declaração de voto, sua preocupação com o fato de a Constituição brasileira proibir a extradição de nacionais e também proibir penas de caráter perpétuo, que foram aceitas pelo Estatuto.
Apesar dessa preocupação, o Brasil assinou o Estatuto de Roma em 7 de dezembro de 2000. O Congresso Nacional, à luz do art. 49, I, da Constituição, aprovou o texto do futuro tratado pelo Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002, vindo o Brasil a depositar o ato de ratificação em 20 de junho de 2002. O ato final do ciclo de incorporação interna deu-se com o Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002.
Para suprir eventuais lacunas do ordenamento jurídico nacional e levando em consideração o art. 88 do Estatuto de Roma, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional, por meio da Mensagem n. 700, de 17 de setembro de 2008, projeto de lei que recebeu o n. 4.638/2008, que “dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências”.
Além de tipificar vários crimes na linha do estabelecido pelo Estatuto de Roma, o projeto também busca cumprir os deveres impostos ao Brasil em relação aos atos de cooperação com o Tribunal Penal Internacional. Esses atos de cooperação foram divididos por este autor em três espécies: os atos de entrega de pessoas à jurisdição do Tribunal, os atos instrutórios diversos e por último os atos de execução das penas.
Em 2004, em um claro movimento para abafar as críticas referentes a eventuais inconstitucionalidades do Estatuto de Roma, a Emenda Constitucional n. 45/2004 introduziu o novo § 4º do art. 5º, que dispõe que: “O Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.
Veremos abaixo as pretensas inconstitucionalidades, por ofensa a cláusula pétrea (“direitos e garantias individuais”, art. 60, § 4º, IV, da CF/88), com a superação defendida pela maior parte da doutrina:
i) Entrega de brasileiro nato
Crítica – a Constituição de 1988 impede que brasileiro nato seja extraditado, e o brasileiro naturalizado só pode ser extraditado em duas hipóteses: comprovado envolvimento com tráfico de entorpecentes ou crime anterior à naturalização. Logo, o Estatuto de Roma seria inconstitucional.
Superação – o Estatuto de Roma expressamente prevê o dever do Estado de entrega (surrender) das pessoas acusadas cujo julgamento foi considerado admissível pela Corte. O art. 102 do Estatuto expressamente diferencia a extradição do ato de entrega. A extradição é termo reservado ao ato de cooperação jurídica internacional penal entre Estados soberanos. Já o surrender é utilizado no caso específico de cumprimento de ordem de organização internacional de proteção de direitos humanos, como é o caso do Tribunal Penal Internacional. Logo, não haveria óbice constitucional ao cumprimento de ordem de detenção e entrega de acusado brasileiro ao Tribunal, já que a Constituição brasileira só proíbe a extradição de nacionais. Como o brasileiro não estaria sendo remetido a outro Estado, mas sim a uma organização internacional (o Tribunal Penal Internacional) que representa a comunidade dos Estados, não haveria impedimento algum.
ii) A coisa julgada pro reo
Crítica – o princípio da complementaridade não impede que o Tribunal Penal Internacional decida pela prevalência da jurisdição do Tribunal, mesmo que já exista coisa julgada absolutória nacional, caso o TPI entenda que essa absolvição foi forjada ou inapropriada, podendo julgar o indivíduo de novo. Porém, o princípio do non bis in idem tem base constitucional (art. 5º, XXXVI), podendo mesmo o acusado, quando processado no Brasil pela segunda vez em relação ao mesmo fato, utilizar o recurso da exceção de coisa julgada, de acordo com o art. 95, V, do CPP. Assim, entregar determinada pessoa para ser julgada pelo TPI, após ter sido absolvida internamente pelo mesmo fato, seria inconstitucional.
Superação – o Direito Internacional não admite que, com base em leis locais e em processos locais muitas vezes utilizados para dar um bill de imunidade aos acusados de atrocidades, haja a arguição da coisa julgada. Em face desses crimes internacionais, os Estados têm o dever de julgar ou entregar ao Tribunal Penal Internacional. Caso apenas simulem um julgamento, obviamente tal dever não foi cumprido a contento, podendo o Tribunal Penal Internacional ordenar a entrega do acusado para novo julgamento, desta vez sério e perante o Direito Internacional. No limite, não há desobediência ao princípio tradicional do Direito Penal do non bis in idem. De fato, a qualidade de coisa julgada da sentença penal local foi obtida para a obtenção da impunidade, em típico caso de simulação com fraude à lei. Esse vício insanável torna inoperante o seu efeito de imutabilidade do comando legal e permite o processo internacional. Por fim, não há identidade dos elementos da ação, entre a causa nacional e a causa internacional. De fato, o pedido e a causa de pedir, no plano internacional, são amparados em normas internacionais, o que não ocorre com a causa doméstica.
iii) Imunidades materiais e formais previstas na Constituição de 1988
Crítica – o Estatuto de Roma não reconhece qualquer imunidade (art. 27). Porém, a Constituição estabelece imunidades formais e materiais, por exemplo, aos congressistas.
Superação – não são aplicáveis os dispositivos internos que tratam das imunidades materiais e formais de determinadas autoridades públicas. A Constituição, que estabeleceu tais imunidades, não pode ser interpretada em tiras. Devemos, então, conciliar a existência de tais imunidades com a aceitação da jurisdição internacional penal, o que pode ser feito pela simples separação: as imunidades constitucionais são aplicadas nacionalmente tão somente. Por isso, é compatível com a Constituição a negação das imunidades pelo Estatuto de Roma.
QUADRO SINÓTICO
As normas do Estatuto do Tribunal Penal Internacional em face da Constituição de 1988 |
• Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), “Estatuto do TPI” ou “Estatuto de Roma”: • foi adotado em 1998, durante Conferência Intergovernamental em Roma (Itália), por 120 votos a favor, 7 votos contrários (Estados Unidos, China, Índia, Líbia, Iêmen, Israel e Catar) e 21 abstenções; • entrou em vigor em 2002; • possui 128 artigos com normas materiais e processuais penais referentes aos chamados crimes de jus cogens, que são o genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e o crime de agressão (cujo tipo penal só foi acordado em 2010, na Conferência de Kampala, Uganda). • Tribunal Penal Internacional: • tem personalidade jurídica internacional e capacidade jurídica necessária ao desempenho das suas funções e cumprimento dos seus objetivos; • tem sede em Haia (Holanda); • é tribunal independente da ONU, embora possua uma relação de cooperação com esta organização; • é composto de quatro órgãos: Presidência, Divisão Judicial, Procuradoria (Ministério Público) e Secretariado (Registry); • dezoito juízes compõem o tribunal, eleitos pelos Estados Partes para um mandato de nove anos (não podem ser reeleitos); |
• seleção dos juízes: devem ser escolhidos entre pessoas de elevada idoneidade moral, imparcialidade e integridade, que reúnam os requisitos para o exercício das mais altas funções judiciais nos seus respectivos países (no caso do Brasil, são os requisitos exidos para a nomeação ao posto de Ministro do STF: notório saber jurídico, reputação ilibada e com mais de 35 anos e menos de 65 anos); os Estados Partes devem ponderar ainda a necessidade de assegurar que a composição do Tribunal inclua representação dos principais sistemas jurídicos do mundo, uma representação geográfica equitativa e uma representação justa de juízes do sexo feminino e do sexo masculino; • juízes são divididos em três grandes Seções: Juízo de Instrução (Pre-Trial Chamber), Juízo de Julgamento em 1ª Instância (Trial Chamber) e Juízo de Apelação (Appeal Chamber). • Ministério Público do TPI: • capitaneado pelo Procurador, que atua com independência funcional, como órgão autônomo do TPI; • atribuições: receber comunicações e qualquer outro tipo de informação, devidamente fundamentada, sobre crimes da competência do Tribunal, a fim de os examinar, investigar e, eventualmente, propor a ação penal junto ao Tribunal; • eleição: pela Assembleia dos Estados Partes para mandato de nove anos, não renovável. |
As principais objeções e o novo § 4º do art. 5º da CF/88 |
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• Brasil: assinou (2000), ratificou (2002) e incorporou, pelo Decreto n. 4.388, de 25 de setembro de 2002, o Estatuto do TPI. • Emenda Constitucional n. 45/2004: introduziu o novo § 4º do art. 5º, que dispõe que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. • Brasil votou favoravelmente ao texto do projeto do Estatuto do TPI na Conferência de Roma em julho de 1998, participou ativamente das discussões promovidas pelo Tribunal e atuou com desenvoltura na Conferência de Revisão do Estatuto do TPI, de 2010. Entretanto, manifestou preocupação com o fato de a Constituição brasileira proibir a extradição de nacionais e vedar penas de caráter perpétuo. • STF, Petição 4.625, Caso Presidente Bashir, ditador do Sudão: discussão sobre se as pretensas inconstitucionalidades podem impedir que o Brasil cumpra seu dever de colaborar com o TPI: o governo brasileiro entendeu ser necessária a autorização do STF para que pudesse existir a prisão e entrega no caso eventual da vinda do Presidente do Sudão ao nosso território. Não há decisão final do STF. • Princípio da complementaridade: jurisdição internacional penal é subsidiária à jurisdição nacional; o TPI não exercerá sua jurisdição caso o Estado com jurisdição já houver iniciado ou terminado investigação ou processo penal, salvo se este não tiver “capacidade” ou “vontade” de realizar justiça; o caso é também inadmissível se a pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, salvo se o julgamento for um simulacro para obter a impunidade e, finalmente, se o caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal. O próprio TPI decide se o julgamento nacional é simulacro para obtenção da impunidade. |
O ato de entrega de brasileiro nato |
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Dever do Brasil |
Estatuto de Roma expressamente prevê o dever do Estado de entrega de indivíduos, caso exista uma ordem de detenção e entrega determinada pelo TPI. |
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Objeção |
Só é possível a entrega do brasileiro naturalizado na hipótese de ocorrência de crime praticado antes da naturalização. |
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Superação |
Não há equiparação possível entre extradição a um Estado estrangeiro e entrega ao TPI. A nacionalidade é óbice somente à extradição, podendo o Brasil promover a entrega de todo indivíduo ao TPI. |
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A imprescritibilidade dos crimes do TPI e o Brasil |
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Dever do Brasil |
De acordo com o Estatuto de Roma, os crimes sujeitos a sua jurisdição são imprescritíveis. |
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Objeção |
O Brasil não poderia entregar nenhum indivíduo ao TPI caso o crime do qual ele seja acusado já tenha prescrito, de acordo com a lei brasileira. |
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Superação |
Na relação entre o Estado e o TPI deve vigorar o princípio da confiança, sendo dispensável a dupla tipicidade e punibilidade. |
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A pena de prisão perpétua |
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Dever do Brasil |
O Estatuto de Roma prevê que as penas podem ser: 1) de prisão até o limite máximo de 30 anos; ou 2) prisão perpétua. |
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Objeção |
O Brasil não poderia colaborar com o TPI e entregar um indivíduo, pois há sempre o risco de imposição da pena de “caráter perpétuo” ao final do processo internacional. |
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Superação |
Não se aplica à entrega a vedação da pena de caráter perpétuo existente internamente e nos processos extradicionais à entrega de um indivíduo ao TPI. |
A coisa julgada |
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Dever do Brasil |
Caso o TPI decida pela prevalência da jurisdição do Tribunal, deve o Estado brasileiro efetuar a entrega do acusado, mesmo que já exista coisa julgada absolutória local. |
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Objeção |
No caso da existência de coisa julgada absolutória nacional, há impedimento constitucional brasileiro para a entrega de um indivíduo ordenada pelo TPI. |
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Superação |
O Direito Internacional não admite que, com base em leis locais e em processos locais muitas vezes utilizados para dar um bill de imunidade aos acusados de atrocidades, haja a arguição da coisa julgada. Se a qualidade de coisa julgada da sentença penal local foi obtida para a obtenção da impunidade, em típico caso de simulação com fraude à lei, o vício insanável torna inoperante o seu efeito de imutabilidade do comando legal e permite o processo internacional. Além disso, não cabe alegar coisa julgada como justificativa para a não implementação de decisão internacional, já que seria necessária a identidade de partes, pedido e causa de pedir, o que não ocorre entre a causa local e a causa internacional. |
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A impossibilidade de alegação de qualquer imunidade |
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Dever do Brasil |
Não há nenhuma imunidade material ou processual que impeça o TPI de realizar justiça, devendo o Brasil entregar toda e qualquer pessoa ao Tribunal, não importando o cargo oficial exercido no próprio país ou fora dele. |
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Objeção |
A Constituição de 1988 estabelece uma longa lista de imunidades materiais e processuais a altas autoridades. |
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Superação |
As imunidades materiais e processuais, bem como as prerrogativas de foro estabelecidas na Constituição são de exclusivo alcance interno, não podendo ser interpretadas de modo a imunizar quem quer que seja do alcance da jurisdição internacional. |
Os demais atos de cooperação com o TPI |
• Consistem em atos de instrução processual e mesmo de execução da pena porventura fixada pelo Tribunal. • Atos de instrução: Estados contratantes obrigam-se a cooperar com o Tribunal na obtenção de documentos, oitiva de testemunhas; facilitar o comparecimento voluntário de peritos e testemunhas perante o Tribunal; realizar perícias diversas, inclusive a exumação; proteger testemunhas e preservar provas; conceder e implementar medidas cautelares. |
A ausência de competência constitucional do STF e do STJ para apreciar decisões do TPI |
• As decisões do TPI não necessitam de exequatur nem de homologação de sentença estrangeira perante o STJ, uma vez que a Constituição exige esse crivo somente a decisões oriundas de Estados estrangeiros, nada exigindo quanto a decisões internacionais. • Quanto ao pedido de prisão e posterior entrega, o governo brasileiro solicitou autorização do STF para a prisão e entrega do Presidente do Sudão ao TPI (Petição 4.625, ainda não julgada). |
1 LEMKIN, Raphael. Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation – Analysis of Government – Proposals for Redress. Washington: Carnegie Endowment for International Peace, 1944, em especial p. 79-95 (Capítulo IX – “Genocide”).
2 CARVALHO RAMOS, André de. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.