1. Aspectos gerais

Esta parte deste livro visa abordar os principais aspectos discutidos na doutrina e na jurisprudência sobre determinados direitos e garantias fundamentais, focando, em especial, na Constituição de 1988.

Nesse sentido, cabe recordar que, grosso modo, os direitos são dispositivos normativos que atribuem a alguém a titularidade de um bem jurídico qualquer. Já as garantias fundamentais constituem-se também em direitos, mas que são voltados a assegurar a fruição dos bens jurídicos.

Há as garantias fundamentais gerais ou genéricas, que acompanham a redação dos direitos, proibindo abusos e outras formas de vulneração, como, por exemplo, a proibição da censura que assegura a liberdade de expressão. Há ainda as garantias específicas, que consistem em instrumentos processuais que tutelam os direitos e liberdades fundamentais, como o habeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habeas data, ação popular e ação civil pública. Essas garantias também são chamadas de garantias fundamentais instrumentais.

As garantias institucionais consistem em estruturas institucionais públicas (por exemplo, o Ministério Público e a Defensoria Pública) e privadas (por exemplo, liberdade de imprensa) imprescindíveis à plena efetividade dos direitos humanos. Já as garantias limite são direitos que exigem abstenção ou um não fazer do Estado, como, por exemplo, o direito de não sofrer tratamento desumano ou degradante, não sofrer embaraço à liberdade de exercício profissional sem lei adequada que assim o diga etc.

2. Destinatários da proteção e sujeitos passivos

Os direitos humanos, por definição, são direitos de todos os indivíduos, não importando origem, religião, grupo social ou político, orientação sexual e qualquer outro fator. Esse é o sentido do art. 5º da CF/88, que prevê que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.

Apesar dessa afirmação geral, que consagra a igualdade entre todos os seres humanos, destinatários da proteção de direitos humanos, há ainda direitos referentes a determinada faceta da vida social que são titularizados somente por determinadas categorias de pessoas. Por exemplo, a Constituição de 1988 elenca direitos referentes às mulheres, aos idosos, aos povos indígenas, aos presos, aos condenados, aos cidadãos, aposentados, aos necessitados, entre outros. A igualdade é respeitada, pois esses direitos específicos visam atender situações especiais voltadas a tais categorias, consagrando a máxima de “tratar desigualmente os desiguais” como forma de se obter a igualdade material de todos.

Na jurisprudência brasileira, foi controvertida a extensão dos direitos previstos na Constituição a estrangeiros não residentes. A origem da polêmica está na redação do art. 5º, caput, da CF/88, que garante “aos brasileiros e estrangeiros residentes” os direitos elencados no rol desse artigo. A redação da Constituição reproduz a tradição constitucional brasileira desde a Constituição de 1891, com apego ao termo “estrangeiro residente”.

Porém, os direitos previstos na Constituição são estendidos aos estrangeiros não residentes, uma vez que ela própria defende a dignidade humana (art. 1º, III) e ainda prevê os direitos decorrentes dos tratados celebrados pelo Brasil (art. 5º, §§ 2º e 3º). Nesse sentido, decidiu o STF que “ao estrangeiro, residente no exterior, também é assegurado o direito de impetrar mandado de segurança, como decorre da interpretação sistemática dos arts. 153, caput, da Emenda Constitucional de 1969 e do 5º, LXIX, da Constituição atual” (RE 215.267, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 24-4-2001, Primeira Turma, DJ de 25-5-2001). No mesmo sentido, decidiu o STF que “a condição jurídica de não nacional do Brasil e a circunstância de o réu estrangeiro não possuir domicílio em nosso País não legitimam a adoção, contra tal acusado, de qualquer tratamento arbitrário ou discriminatório. Precedentes” (HC 94.016, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-9-2008, Segunda Turma, DJE de 27-2-2009).

Entendemos, nessa linha, que não pode o estrangeiro não residente sofrer discriminação na matrícula na educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade (art. 208, I) ou na prestação de saúde pública, que, conforme o texto constitucional, é universal e gratuita (art. 196), bem como na assistência jurídica integral gratuita.

A segunda polêmica referente aos destinatários da proteção está na possibilidade de pessoa jurídica de direito privado ser titular de direitos fundamentais. A resposta da jurisprudência é positiva, desde que o direito invocado tenha pertinência temática com a natureza da pessoa jurídica. Por exemplo, as pessoas jurídicas têm direito à imagem e a honra objetiva, acesso à justiça e até mesmo assistência jurídica gratuita. Nesse último caso, contudo, cabe à pessoa jurídica provar e não somente alegar a insuficiência de recursos. Nesse sentido decidiu o STF que “ao contrário do que ocorre relativamente às pessoas naturais, não basta a pessoa jurídica asseverar a insuficiência de recursos, devendo comprovar, isto sim, o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo” (Rcl 1.905-ED-AgR, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 15-8-2002, Plenário, DJ de 20-9-2002). No campo tributário, as pessoas jurídicas têm direito ao tratamento tributário constitucional, inclusive quanto à anterioridade tributária que o STF considerou parte integrante dos direitos e garantias individuais, ou ainda ao sigilo fiscal (que, na visão do STF, decorre do direito à intimidade). Há ainda direitos que são titularizados especificamente pelas pessoas jurídicas de direito privado, como as associações, que são mencionadas nos incisos XVII a XXI do art. 5º, ou os sindicatos no disposto do art. 8º e os partidos políticos no art. 17.

Também a pessoa jurídica de direito público pode utilizar as garantias fundamentais para sua proteção. Nesse sentido, decidiu o STF: “Não se deve negar aos Municípios, peremptoriamente, a titularidade de direitos fundamentais e a eventual possibilidade de impetração das ações constitucionais cabíveis para sua proteção. Se considerarmos o entendimento amplamente adotado de que as pessoas jurídicas de direito público podem, sim, ser titulares de direitos fundamentais, como, por exemplo, o direito à tutela judicial efetiva, parece bastante razoável vislumbrar a hipótese em que o Município, diante de omissão legislativa do exercício desse direito, se veja compelido a impetrar mandado de injunção. A titularidade de direitos fundamentais tem como consectário lógico a legitimação ativa para propor ações constitucionais destinadas à proteção efetiva desses direitos” (MI 725, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 10-5-2007, Plenário, DJ de 21-9-2007).

São ainda destinatários da proteção de direitos humanos os entes despersonalizados, que podem invocar determinados direitos pertinentes com sua situação (por exemplo, acesso à justiça) como as sociedades de fato, condomínio, espólio, massa falida e o nascituro.

Quanto aos sujeitos passivos, o Estado é, em geral, o responsável pelo cumprimento dos direitos humanos, de todas as gerações ou dimensões. Entretanto, há ainda a invocação dos direitos humanos em face de particulares (como já estudado, também denominado drittwirkung) e ainda em face da sociedade. A Constituição de 1988 expressamente menciona a família no polo passivo do direito à educação (art. 205), além do Estado, a sociedade no polo passivo do direito à seguridade (art. 195) e a coletividade, no polo passivo do direito ao meio ambiente equilibrado (art. 225).

3. Direito à vida

Dispõe a Constituição de 1988:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

3.1. ASPECTOS GERAIS

Dispõe o art. 5º, caput, que é garantida a “inviolabilidade do direito à vida”. Vida é o estado em que se encontra determinado ser animado. Seu oposto, a morte, consiste no fim das funções vitais de um organismo.

O direito à vida engloba diferentes facetas, que vão desde o direito de nascer, de permanecer vivo e de defender a própria vida e, com discussões cada vez mais agudas em virtude do avanço da medicina, sobre o ato de obstar o nascimento do feto, decidir sobre embriões congelados e ainda optar sobre a própria morte. Tais discussões envolvem aborto, pesquisas científicas, suicídio assistido e eutanásia, suscitando a necessidade de dividir a proteção à vida em dois planos: a dimensão vertical e a dimensão horizontal.

A dimensão vertical envolve a proteção da vida nas diferentes fases do desenvolvimento humano (da fecundação à morte). Algumas definições sobre o direito à vida refletem esta dimensão, pois este direito consistiria no “direito a não interrupção dos processos vitais do titular mediante intervenção de terceiros e, principalmente, das autoridades estatais”1.

A dimensão horizontal engloba a qualidade da vida fruída. Esta dimensão horizontal resulta na proteção do direito à saúde, educação, prestações de seguridade social e até mesmo meio ambiente equilibrado, para assegurar o direito à vida digna.

Para o Estado, a “inviolabilidade do direito à vida” resulta em três obrigações: (i) a obrigação de respeito; (ii) a obrigação de garantia; e (iii) a obrigação de tutela:

A obrigação de respeito consiste no dever dos agentes estatais em não violar, arbitrariamente, a vida de outrem.

A obrigação de garantia consiste no dever de prevenção da violação da vida por parte de terceiros e eventual punição àqueles que arbitrariamente violam a vida de outrem.

A obrigação de tutela implica o dever do Estado de assegurar uma vida digna, garantindo condições materiais mínimas de sobrevivência.

3.2. INÍCIO: A CONCEPÇÃO, O EMBRIÃO IN VITRO E A PROTEÇÃO DO DIREITO À VIDA

A Constitição de 1988 não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Porém, a mera menção ao direito à vida implica proteção aos que ainda não nasceram (embriões e fetos), visto que, sem tal proteção, a vida sequer poderia existir. Já a Convenção Americana de Direitos Humanos é mais detalhada, determinando que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Assim, o direito à vida estabelecido na Constituição e nos tratados exige que o Estado proteja, por lei, os embriões ainda não implantados no útero (gerados in vitro) e a vida intrauterina. Para o STF, a “potencialidade de algo para se tornar pessoa humana já é meritória o bastante para acobertá-la, infraconstitucionalmente, contra tentativas levianas ou frívolas de obstar sua natural continuidade fisiológica (...) O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum” (Voto do Min. Ayres Britto, ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010).

Pelo que consta do artigo 4.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a regra é a proteção da vida desde a concepção (“em geral”). Logo, a lei nacional que quebrar essa proteção deve sofrer o crivo da proporcionalidade, verificando-se o equilíbrio entre o custo (vulneração da vida) e o benefício dos valores constitucionais eventualmente protegidos. Porém, abre-se espaço para que seja exercitada, pela lei, a ponderação, entre vários bens que podem estar em colisão com o direito à vida, que levaram, por exemplo, a permissão do aborto em algumas hipóteses pelo Código Penal brasileiro (lei ordinária).

O aborto é a interrupção da gravidez antes do seu termo normal, com ou sem a expulsão do feto, podendo ser espontâneo ou provocado. Há intensa discussão sobre o início da proteção do direito à vida. Podemos identificar as seguintes correntes a respeito do início da proteção jurídica da vida: a) desde a concepção; b) desde a nidação, com ligação do feto à parede do útero; c) desde a formação das características individuais do feto, em especial o tubo neural; d) desde a viabilidade da vida extrauterina; e) desde o nascimento.

No campo cível, a partir da concepção, o Código Civil preserva os direitos do nascituro. O art. 2º do Código Civil determina que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Além disso, o nascituro pode receber doações (art. 542 do CC), constar de testamento (art. 1.799 do CC), ser adotado (art. 1.621 do CC). Pode, inclusive, acionar o Poder Judiciário, sendo titular do direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV).

No campo penal, a tutela infraconstitucional atual indica que o momento aceito para o início da proteção penal da vida é o da nidação; a partir da nidação, o aborto passa a ser regido pelos arts. 124 a 127 do CP. No tocante à utilização do medicamento anticoncepção de emergência, a popular “pílula do dia seguinte”, as Normas Técnicas de Planejamento Familiar do Ministério da Saúde, que o recomendam desde 1996, esclarecem que seu uso é tido como “não abortivo”, pois seus componentes atuam impedindo a fecundação e sempre antes da implantação na parede do útero. De acordo com o Ministério da Saúde, a pílula não atua após a fecundação e não provoca a perda do embrião caso ele já tenha aderido à parede do útero.

Contudo, a lei permite que não seja punido o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante (aborto necessário), bem como é lícito o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, desde que haja consentimento da gestante ou, se incapaz, do seu representante legal (aborto sentimental). Essas exceções são aplicadas cotidianamente na jurisprudência brasileira, não tendo repercussão qualquer tese de eventual não recepção desses dispositivos em face da proteção constitucional da vida. Fica demonstrado, conforme o voto da Min. Cármen Lúcia, na ADI 3.510, que há limites à proteção jurídica da vida, ponderando-a em face de outros valores (a vida da mãe ou sua liberdade sexual). Nas palavras da Ministra: “Todo princípio de direito haverá de ser interpretado e aplicado de forma ponderada segundo os termos postos no sistema. (...) Mesmo o direito à vida haverá de ser interpretado e aplicado com a observação da sua ponderação em relação a outros que igualmente se põem para a perfeita sincronia e dinâmica do sistema constitucional. Tanto é assim que o ordenamento jurídico brasileiro comporta, desde 1940, a figura lícita do aborto nos casos em que seja necessário o procedimento para garantir a sobrevivência da gestante e quando decorrer de estupro (art. 128, incs. I e II, do Código Penal)” (Voto da Ministra Cármen Lúcia, ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010, grifo nosso).

Em 2004, foi proposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, que requereu, ao STF, a interpretação conforme a Constituição do Código Penal para excluir a incidência de crime no caso de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, que foi denominada como antecipação terapêutica do parto. A dignidade humana e a proteção da integridade psíquica da mãe, bem como a proteção à maternidade e o direito à saúde foram os fundamentos da Arguição. O STF, oito anos depois, em 2012, decidiu que a antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencéfalo, desde que com diagnóstico médico, não é caso de aborto (cujas hipóteses de licitude são excepcionais), pois não haverá vida extrauterina. Assim, a gestante, caso queira, pode solicitar a antecipação terapêutica do parto, sem permissão específica do Estado (alvará judicial de juiz criminal, por exemplo) (ADPF 54, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 11-4-12).

Ponto importante para o debate é se seria possível a despenalização completa do aborto no Brasil, ponderando-se o direito à vida do feto com os direitos reprodutivos da mulher. Esse debate divide a doutrina, pois poderia existir violação do dever de proteção à vida, e, consequentemente, violação da cláusula pétrea no Brasil. Na ADI 3.510, o voto do Min. Carlos Britto sustentando que a vida intrauterina depende da proteção infraconstitucional (o que permitiria a alteração da lei penal) foi contrastado pela manifestação de outros Ministros de que o caso da pesquisa de célula-tronco não teria nenhuma relação com o aborto.

Isso demonstra que o STF deixou a questão em aberto, para apreciar no futuro caso algum dia o Congresso Nacional venha a adotar lei que descriminalize o aborto, imitando outros países do mundo.

3.3. TÉRMINO DA VIDA: A EUTANÁSIA, ORTOTANÁSIA, DIASTANÁSIA E O SUICÍDIO

Da mesma maneira que o início da vida, o término da vida não possui previsão constitucional. Coube ao Código Civil estabelecer, sucintamente, que a existência da pessoa natural termina com a morte (art. 6º). Além disso, a Lei n. 9.434/97 (Lei dos Transplantes) optou pelo critério da “morte encefálica” para que seja atestado o término das funções vitais do organismo humano e, com isso, autorizada a retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento (art. 3º).

O dever do Estado de proteger a vida levou várias legislações no mundo a combaterem a eutanásia e a assistência ao suicídio, o que implica a negação de um direito à própria morte. Consequentemente, impedir um suicídio não seria um ato ilícito. Contudo, como esclarece Rey Martinez, há já casos de descriminalização (sob certas condições) da eutanásia na Holanda e Bélgica, bem como de suicídio assistido lícito no Oregon (Estados Unidos), mostrando que não há consenso nos Estados constitucionais sobre o tema2.

A eutanásia consiste em ato de término da vida de doente terminal para abreviar a agonia e os sofrimentos prolongados. No Brasil, a prática da eutanásia consiste em crime previsto no art. 121, § 1º (homicídio privilegiado, em face do relevante valor moral na conduta do agente, morte doce, homicídio por piedade). O consentimento do paciente é juridicamente irrelevante. A depender do caso e da conduta da própria vítima, pode configurar auxílio ao suicídio.

A ortotanásia (morte justa ou morte digna) consiste, com anuência do paciente terminal, na ausência de prolongamento artificial da vida pela desistência médica do uso de aparelhos ou outras terapias, evitando sofrimento desnecessário. Há aqueles que denominam a ortotanásia de eutanásia passiva ou indireta, mas não há proximidade com a eutanásia. A ortotanásia consiste na desistência, pelo médico, do uso de medicamentos e terapias, pois não há esperança de reversão do quadro clínico nos pacientes terminais. Ocorre a suspensão de aplicação de processos artificiais médicos, que resultariam apenas em uma morte mais lenta e mais sofrida, mas o que mata o paciente é a doença e não o médico. Diferentemente da eutanásia, a ortotanásia deixa de manter a vida por modo artificial, para evitar prolongar a dor em um quadro clínico irreversível. O oposto da ortotanásia é a distanásia, que consiste na prática de prorrogar, por quaisquer meios, a vida de um paciente incurável, mesmo em quadro de agonia e dor, o que é denominado também “obstinação terapêutica”.

A ortotanásia é regulada pelo Conselho Federal de Medicina, por meio da Resolução n. 1.805/2006, que dispõe que, sendo o quadro irreversível, e caso assim o paciente o deseje, o médico está autorizado a não lançar mão de cuidados terapêuticos que apenas terão o condão de causar dor adicional ao paciente. O Ministério Público Federal do Distrito Federal, em 2006, ajuizou ação civil pública impugnando a Resolução n. 1.805, alegando sua inconstitucionalidade e ilegalidade. Em 2010, com base na manifestação de nova Procuradora da República responsável pelo caso, o MPF reavaliou o caso e entendeu que a ortotanásia não é vedada pelo ordenamento jurídico. A sentença foi de improcedência, utilizando, em sua fundamentação, a nova posição do Parquet atuante no caso (Ação Civil Pública, Autos n. 2007.34.00.014809-3, Distrito Federal). O Senado Federal aprovou o Projeto de Lei n. 6.715/2009, que exclui do tipo penal do homicídio a ortotanásia , eliminando qualquer dúvida. O projeto encontra-se em trâmite perante a Câmara dos Deputados.

Quanto ao suicídio assistido, o Código Penal considera crime induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça, desde que o suicídio se consume ou da tentativa resultar lesão corporal (CP, art. 122).

3.4. PENA DE MORTE

3.4.1. As fases rumo ao banimento da pena de morte

A pena de morte é expressamente vedada pela Constituição de 1988, salvo em caso de guerra declarada (“art. 5º, XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada”). É necessário que o Código Penal Militar (CPM) prescreva tal pena, existente hoje em vários crimes a partir do art. 356 (entre outros, os crimes de deserção, traição à pátria, dano especial, inobservância do dever militar, motim, espionagem, entre outros). A pena de morte no Brasil é executada por fuzilamento (art. 56 do CPM). Caso a pena seja imposta em zona de operações de guerra, pode ser imediatamente executada, quando o exigir o interesse da ordem e da disciplina militares (art. 57). Mesmo emenda constitucional não poderia tornar possível a pena de morte em outros casos fora do contexto de guerra declarada, pois o direito à vida é cláusula pétrea.

No mundo, a pena de morte caminha para seu completo desaparecimento. De acordo com a Organização das Nações Unidas, há poucos países que preveem a pena capital para crimes comuns em situação regular. Há alguns Estados, como o Brasil, que a admitem em caso de guerra declarada, mas essa excepcionalidade reafirma a proibição da pena de morte em geral. Mesmo para crimes bárbaros a pena de morte não é prevista nos últimos tratados internacionais penais, como se vê no Estatuto do Tribunal Penal Internacional (Estatuto de Roma), cuja pena máxima é a de prisão perpétua. Esta tendência é fruto dos inegáveis malefícios da pena de morte, uma vez que não admite a reparação do erro judiciário, como é óbvio, além de outras mazelas, como a assunção da impossibilidade de ressocialização, a banalização da vida em um “assassinato oficial”, entre outras.

Há três fases da regulação jurídica da pena de morte. A primeira fase é a da convivência tutelada, na qual a pena de morte era tolerada, porém com estrito regramento. A imposição ordinária da pena de morte em vários países e, em especial, em alguns considerados berços da proteção aos direitos humanos, como a Inglaterra e Estados Unidos, não permitiu que fosse incluída nos textos iniciais de proteção internacional dos direitos humanos a completa proibição de tal pena.

Apesar disso, a proteção à vida exigiu, ao menos, que constasse dos textos dos primeiros tratados de direitos humanos explícita regulação restritiva da pena de morte. O art. 6º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos possui 5 parágrafos que tratam exclusivamente da restrição à imposição da pena de morte. No mesmo sentido, devem ser mencionadas as Convenções Europeia e Americana de Direitos Humanos, que também possuem regulação impondo limites ao uso da pena capital pelos Estados.

Esses limites são os seguintes:

1) Natureza do crime. Só crimes graves e comuns podem prever pena de morte, impedindo-se sua banalização e aplicação a crime político ou comuns conexos a delito político.

2) Vedação da ampliação. Os países contratantes não podem ampliar a aplicação da pena a outros delitos após a ratificação desses tratados.

3) Devido processo legal penal. Exige-se rigoroso crivo judiciário para sua aplicação, devendo o Estado prever o direito à solicitação de anistia, indulto ou comutação da pena, vedando-se a aplicação da pena enquanto pendente recurso ou solicitação de indulto, anistia ou comutação da pena.

4) Vedações circunstanciais. As citadas normas vedam a aplicação da pena de morte a pessoas que, no momento da comissão do delito, tiverem menos de 18 anos de idade ou mais de 70, ou ainda às mulheres grávidas.

A segunda fase do regramento da pena de morte é a do banimento com exceções, relacionadas a crimes militares (distantes, então, do cotidiano). O Segundo Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos é reflexo desta segunda fase, pois vedou a pena de morte estabelecendo em seu art. 1º: “1. Nenhum indivíduo sujeito à jurisdição de um Estado Parte no presente Protocolo será executado. 2. Os Estados Partes devem tomar as medidas adequadas para abolir a pena de morte no âmbito da sua jurisdição”. Porém, o art. 2º deste Protocolo admite que o Estado faça reserva formulada no momento da ratificação ou adesão prevendo a aplicação da pena de morte em tempo de guerra em virtude de condenação por infração penal de natureza militar de gravidade extrema cometida em tempo de guerra3. No plano americano, cite-se o Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos relativo à Abolição da Pena de Morte que foi adotado em 1990, que também permite, excepcionalmente, a aplicação da pena de morte caso o Estado, no momento de ratificação ou adesão, declare que se reserva o direito de aplicar a pena de morte em tempo de guerra, por delitos sumamente graves de caráter militar.

A terceira – e tão esperada – fase no regramento jurídico da pena de morte no plano internacional é a do banimento em qualquer circunstância. Contudo, o banimento – sem qualquer exceção – da pena de morte, abarcando inclusive os crimes militares, foi somente obtido no plano europeu após a entrada em vigor do Protocolo n. 13 à Convenção Europeia de Direitos Humanos. Esse protocolo veda sumariamente a imposição da pena de morte, sem exceções e sem permitir qualquer reserva ao seu texto4. O Conselho da Europa, organização internacional que gere a prática da Convenção Europeia de Direitos Humanos, instituiu o dia 10 de outubro como o “Dia Europeu contra a Pena de Morte”. No plano europeu, há ainda os esforços da União Europeia, cuja Carta de Direitos Fundamentais estabelece, em seu art. 2º, que “todas as pessoas têm direito à vida. 2. Ninguém pode ser condenado à pena de morte, nem executado”, vedando a pena de morte em qualquer circunstância.

No atual momento, as organizações não governamentais de direitos humanos assinalam que 25 países utilizaram a pena de morte regularmente nos últimos anos. Em 2007, a Anistia Internacional apontou que aproximadamente 3.350 prisioneiros estavam condenados à morte, sendo que as execuções estão concentradas (90%) nos seguintes Estados: China, Estados Unidos, Irã, Iraque, Paquistão e Sudão. Nas Américas, desde 1990 houve progressos e Canadá, México e Paraguai aboliram a pena de morte em situações ordinárias.

3.4.2. O tratamento desumano: o “corredor da morte”

Apesar da não adesão de países como China e Estados Unidos, há crescente zelo internacional sobre a forma de aplicação da pena de morte nos derradeiros Estados que a aplicam. Há repúdio, por exemplo, quanto ao excessivo prazo para que a pena de morte seja aplicada, quanto ao devido processo legal e quanto à exigência de sua imposição.

No tocante à delonga na execução da pena capital, vê-se que os condenados nos Estados Unidos passam anos a fio no chamado “corredor da morte”. Esta espera foi considerada, pela Corte Europeia de Direitos Humanos, verdadeiro tratamento desumano, o que impede a extradição para os Estados Unidos (sem que este país prometa comutar a pena) de foragidos detidos nos países europeus, constrangendo todo o sistema de justiça estadunidense. O caso célebre desta proibição de extradição para os Estados Unidos daqueles que poderiam ser submetidos ao “fenômeno do corredor da morte” foi o caso Söering5, no qual o Reino Unido foi proibido de extraditar o Sr. Söering (assassino fugitivo dos Estados Unidos, que fora preso na Inglaterra) por decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH6), sem que houvesse promessa de comutar sua pena capital. O Brasil não extradita também caso não haja expressa promessa do Estado Requerente de não aplicar a pena de morte.

No tocante ao devido processo legal em casos de estrangeiros submetidos à pena capital, há vários questionamentos sobre a ausência da notificação do direito à assistência consular aos estrangeiros presos submetidos à pena de morte. Os Estados Unidos foram seguidamente processados e condenados na Corte Internacional de Justiça, por não cumprir o básico comando do art. 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, que prevê justamente o direito do estrangeiro detido de ser informado do seu direito à assistência do Consulado de seu país (Caso dos Irmãos LaGrand – Alemanha vs. Estados Unidos, 2001 e Caso Avena e outros – México vs. Estados Unidos, 2004). Tal auxílio consular é essencial, pois sua defesa pode ser prejudicada pelas diferenças de idioma e mesmo jurídicas. Para a Corte Internacional de Justiça, ofende o devido processo legal penal, impedindo a aplicação da pena de morte, a ausência de notificação do direito à assistência consular.

No mesmo sentido, manifestou-se a Corte IDH em sua Opinião Consultiva n. 16/2003. Neste feito, o México solicitou opinião consultiva da Corte IDH sobre eventual impacto jurídico do descumprimento da notificação do direito à assistência consular. Como na solicitação da Opinião Consultiva o México havia feito menção a vários casos de mexicanos condenados à pena de morte nos Estados Unidos sem a observância do citado direito à informação sobre a assistência consular, a Corte determinou que, nestes casos, há ainda a violação do art. 4º do Pacto de San José da Costa Rica, que se refere ao direito de não ser privado da vida de modo arbitrário.

Por fim, há o repúdio à aplicação obrigatória da pena de morte sem possibilidade de indulto, graça ou anistia. No Caso Hilaire, a Corte IDH condenou Trinidad e Tobago, cuja legislação interna previa a pena de morte para todo caso de homicídio doloso. No caso, a lei, de 1925, impedia o juiz de considerar circunstâncias específicas do caso na determinação do grau de culpabilidade e individualização da pena (condições pessoais do réu, por exemplo), pois deveria impor a mesma sanção para condutas diversas.

4. O direito à igualdade

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;

4.1. LIVRES E IGUAIS: A IGUALDADE NA ERA DA UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

A igualdade consiste em um atributo de comparação do tratamento dado a todos os seres humanos, visando assegurar uma vida digna a todos, sem privilégios odiosos. Consequentemente, o direito à igualdade consiste na exigência de um tratamento sem discriminação odiosa, que assegure a fruição adequada de uma vida digna.

A busca da igualdade foi o grande marco das Declarações de Direitos das revoluções liberais do século XVIII, que precederam as primeiras Constituições. Nessas Declarações e primeiras Constituições, a igualdade almejada era a igualdade perante a lei, que exigia um tratamento idêntico para todas as pessoas, submetidas, então, à lei. Essa forma de entender a igualdade não levava a busca da igualdade de condições materiais nem criticava eventuais lacunas da lei (por exemplo, ao permitir a escravidão).

Essa fase foi marcada pela igualdade jurídica parcial, que buscava eliminar os privilégios de nascimento (nobreza) e das castas religiosas, mas não afetava outros fatores de tratamento desigual, como, por exemplo, o tratamento dado aos escravos, às mulheres ou aos pobres em geral.

A primeira Declaração de Direitos dessa época, a Declaração de Virgínia, de 12 de junho de 1776, reconheceu que todos os homens são, pela sua natureza, iguais e todos possuem direitos inatos. A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, aprovada no Congresso Continental de 4 de julho de 1776 (data da comemoração da independência dos Estados Unidos), enfatizou que “todos os homens são criados iguais”. A Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, foi na mesma direção, proclamando que “os homens nascem e são livres e iguais em direitos” (art. 1º). A Constituição americana de 1787 não contava com um rol de direitos (entendendo-os como de competência dos Estados da Federação), e a igualdade não constou da lista de direitos incluídos nas emendas de 1791. A escravidão nos Estados Unidos só foi completamente abolida após a Guerra de Secessão (1861-1865), conflito no qual morreram quase 620 mil soldados. Em 1868, foi incluído o direito de “igual proteção da lei” a todos (Emenda XIV).

Nessa primeira fase do constitucionalismo, a igualdade perante a lei (isonomia) era considerada já uma ruptura com o passado de absolutismo. Foi necessário, porém, a ascensão do Estado Social de Direito para que a igualdade efetiva entre as pessoas fosse também considerada como uma meta do Estado. Essa igualdade efetiva ou material busca ir além do reconhecimento da igualdade perante a lei: busca ainda a erradicação da pobreza e de outros fatores de inferiorização que impedem a plena realização das potencialidades do indivíduo. A igualdade, nessa fase, vincula-se à vida digna.

As duas facetas da igualdade (igualdade formal ou perante a lei e igualdade material ou efetiva) são complementares e convivem em diversos diplomas normativos no mundo.

Atualmente, o fundamento do direito à igualdade é a universalidade dos direitos humanos. A universalidade determina que todos os seres humanos são titulares desses direitos; consequentemente, todos os seres humanos são iguais e devem usufruir das condições que possibilitem a fruição desses direitos. Nessa linha, a igualdade consta do artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que dispõe que “todas pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direito”.

A universalidade dos direitos humanos é concretizada pela igualdade. Por exemplo, de que adianta reconhecer que todos têm o mesmo direito ao trabalho e de acesso aos cargos públicos, se as pessoas com deficiência sofrem com as mais diversas barreiras de acesso, ficando alijadas desses mercados? Como reconhecer o direito de acesso à justiça se os mais pobres não têm condições de pagar um advogado?

Na Constituição de 1988, a igualdade tem, inicialmente, a forma de valor ou princípio maior assumido pelo Estado brasileiro desde o seu Preâmbulo, o qual prega que a igualdade é um dos valores supremos da sociedade fraterna que se pretende a sociedade brasileira. Em seguida, o art. 3º estabelece os diversos objetivos do Estado brasileiro voltados à erradicação dos fatores de desigualdades materiais, como a pobreza, marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais. Em síntese, traz o artigo 3º o dever do Estado brasileiro de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No plano das relações internacionais, o Brasil deve, de acordo com o art. 4º, VIII, pautar sua conduta pelo princípio do “repúdio ao terrorismo e ao racismo”.

Conforme esses dispositivos, a defesa da igualdade é um valor que incumbe ao Estado e também à sociedade. Nesse sentido, decidiu a Min. Cármen Lúcia (STF): “Não apenas o Estado haverá de ser convocado para formular as políticas públicas que podem conduzir ao bem-estar, à igualdade e à justiça, mas a sociedade haverá de se organizar segundo aqueles valores, a fim de que se firme como uma comunidade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)” (ADI 2.649, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008).

Por outro lado, a Constituição de 1988 dispõe que a igualdade é também um direito fundamental. O art. 5º, caput, prevê que “todos são iguais perante a lei”, garantindo-se a inviolabilidade do direito à igualdade. Além do caput, o art. 5º ainda prevê outros incisos relacionados diretamente com a igualdade, que preveem que: “ homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (inciso I); “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (inciso XLI) e “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (inciso XLII).

Como veremos abaixo, a caracterização de uma conduta como sendo de “racismo” acarretará um estatuto punitivo diferenciado, composto pela (i) inafiançabilidade, (ii) imprescritibilidade e (iii) cominação de pena de reclusão.

Também no que tange aos direitos sociais, prevê o art. 7º a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (inciso XXX) e a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência (inciso XXXI).

O direito à igualdade gera o dever de proteção por parte do Estado de promover a igualdade, não se conformando com as desigualdades fáticas existentes na sociedade, como veremos abaixo.

4.2. AS DIMENSÕES DA IGUALDADE

Há duas dimensões da igualdade. A primeira dimensão consiste na proibição de discriminação indevida e, por isso, é denominada vedação da discriminação negativa. A segunda dimensão trata do dever de impor uma determinada discriminação para a obtenção da igualdade efetiva, e por isso é denominada “discriminação positiva” (ou “ação afirmativa”).

Na primeira dimensão, concretiza-se a igualdade exigindo-se que as normas jurídicas sejam aplicadas a todos indistintamente, evitando discriminações odiosas. A discriminação odiosa consiste em qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, sexo ou orientação sexual, religião, convicção política, nacionalidade, pertença a grupo social ou outro traço social que objetiva ou gera o efeito de impedir ou prejudicar a plena fruição, em igualdade de condições, dos direitos humanos7.

Na segunda dimensão, concretiza-se a igualdade por meio de normas que favoreçam aqueles que estejam em situações de indevida desvantagem social (os vulneráveis) ou imponham um ônus maior aos que estejam numa situação de exagerada vantagem social. No primeiro caso, atende-se a igualdade com a previsão de existência de reserva de vagas em concursos públicos para as pessoas com deficiência, que possuem imensas desvantagens sociais em relação aos demais (art. 37, VIII da CF/88). Na mesma linha, foi coerente a Constituição de 1988 ao tratar diferentemente as mulheres, favorecendo-as em relação aos homens, como se vê no tempo necessário para aposentadoria (menor para as mulheres, art. 40, § 1º, III, e art. 201, § 7º, I). No segundo caso, atende-se a igualdade com a previsão de existência de “imposto sobre grandes fortunas”, que exige dos que tem exagerada vantagem uma contribuição adicional para o Estado (art. 153, VII, da CF/88, que curiosamente até hoje não foi instituído por lei)8.

Essas duas dimensões são fruto da máxima de Aristóteles, para quem devemos tratar os iguais igualmente e os desiguais, desigualmente. Ou seja, tratar igualmente os que estão em situação desigual (no exemplo acima, as pessoas com deficiência) seria manter a situação de inferioridade, não concretizando nenhuma igualdade9.

4.3. AS DIVERSAS CATEGORIAS E CLASSIFICAÇÕES DOUTRINÁRIAS

Há várias categorias doutrinárias, de uso inclusive na jurisprudência brasileira, sobre igualdade que valem ser mencionadas10.

Em primeiro lugar, há a distinção entre igualdade liberal e igualdade social ou ainda os termos “igualdade formal” e “igualdade material”. A igualdade liberal ou formal representa a igualdade perante a lei, exigindo a submissão de todos à lei; já a igualdade social ou material representa a busca de igualdade material, com distribuição adequada dos bens em toda sociedade.

Recentemente, a igualdade material deixou de ser apenas uma igualdade socioeconômica, para ser também uma igualdade de reconhecimento de identidades próprias, distintas dos agrupamentos hegemônicos. Ficam consagradas, então, as lutas pelo reconhecimento da igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia, entre outros critérios. A lógica do reconhecimento da identidade é a constatação de que, mesmo em condições materiais dignas, há grupos cujo fator de identidade os leva a situações de vulnerabilidade, como, no caso do gênero, a situação de violência doméstica que atinge também as mulheres de classes abastadas.

Também é comum a diferenciação entre igualdade perante a lei, que consiste na igualdade de aplicação da lei, dirigida aos Poderes Executivo e Judiciário, e a igualdade na lei, que obriga o legislador a formular uma lei que atenda à igualdade.

Também há aqueles que usam os termos “igualdade geral” e “igualdade específica”. A igualdade geral seria a igualdade formal; já a igualdade específica seria a igualdade material. Ainda, há o uso da expressão “igualdade de direito ou de jure”, que seria a igualdade formal, em contraposição à expressão “igualdade de fato”, que seria a igualdade material.

Por fim, a doutrina destaca a separação dos tratamentos discriminatórios entre os que seriam fruto da “discrimination against” e os que seriam oriundos da “discrimination between”. A “discrimination against” é aquela que almeja diferenciar com finalidade preconceituosa ou estigmatizante; a “discrimination between” é aquela que visa diferenciar para igualar.

Finalmente, John Rawls sustenta a necessidade de implementação da igualdade por meio da justiça distributiva, que consiste na atividade de superação das desigualdades fáticas entre os indivíduos, por meio de uma intervenção estatal de realocação dos bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade11.

4.4. O DEVER DE INCLUSÃO E A DISCRIMINAÇÃO DIRETA E INDIRETA

Em diversas passagens, a Constituição de 1988 demonstra o apego à igualdade, na perspectiva formal e material. O direito à igualdade implica dever de promoção da igualdade, o que traz como consequência um dever de inclusão, não se aceitando a continuidade de situações fáticas desiguais.

Esse dever de inclusão leva a tratamentos desiguais aos desiguais. A própria Constituição lista hipóteses de tratamento diferenciado para que se obtenha a igualdade material, como, por exemplo:reserva de vagas às pessoas com deficiência nos concursos públicos (art. 37, VIII da CF/88);

i) no tratamento previdenciário privilegiado às mulheres (art. 40, § 1º, III, e art. 201, § 7º, I);

ii) na isenção das mulheres e eclesiásticos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir (art. 143, § 2º);

iii) na garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (art. 203, V);

iv) na previsão de que a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais (art. 215, § 2º), entre outras.

Esse tratamento diferenciado explícito não elimina a possibilidade de outros tratamentos diferenciados implícitos aceitos pela Constituição de 1988, a serem impostos futuramente por lei. Pelo contrário, o objetivo de construção de uma sociedade justa e solidária exige que o Estado indague se há uma razão suficiente para impor um tratamento desigual. Caso exista, esse tratamento desigual deve ser aplicado.

Porém, esse tratamento diferenciado implicitamente aceito pela Constituição deve levar em consideração determinados requisitos para ser legítimo.

Podemos resumir esses requisitos, baseados na lição de Bandeira de Mello12, aos seguintes:

1) existência de vínculo de pertinência lógica entre o elemento de diferenciação (discrímen) escolhido pela lei e a situação objetiva analisada;

2) a diferenciação atende aos objetivos do Estado Democrático de Direito; e

3) a diferenciação realizada pela lei atende ao princípio da proporcionalidade (descrito na Parte I, Capítulo III, item 7.4).

Quanto ao elemento ou critério de discriminação (discrímen), a escolha do legislador é ampla, desde que haja pertinência lógica com a situação objetiva analisada. Os critérios usualmente utilizados para impor preconceitos e situações inferiorizantes, descritos no art. 3º, IV, da CF/88, tais como raça, sexo, cor, idade, origem, entre outros, podem ser utilizados para promover o direito à igualdade, veiculando vantagens aos que foram alvo de discriminação negativa.

Em síntese, a igualdade exige que sejam evitadas discriminações injustificáveis, proibindo-se o tratamento desigual aos que estejam na mesma situação e, simultaneamente, exige que sejam promovidas distinções justificáveis que resultem em um tratamento mais favorável aos que estão em situação desigual injusta. Com isso, há dois requisitos para comprovarmos a existência de uma discriminação injusta: (i) a existência de uma conduta (ativa ou omissiva) de discriminação e (ii) a ausência de uma justificativa adequada para tanto.

Por sua vez, a discriminação injusta que é combatida pode ser direta ou indireta (também chamada de invisível). A discriminação direta consiste na adoção de prática intencional e consciente que adote critério injustificável, discriminando determinado grupo e resultando em prejuízo ou desvantagem.

A discriminação indireta é mais sutil: consiste na adoção de critério aparentemente neutro (e, então, justificável), mas que, na situação analisada, possui impacto negativo desproporcional em relação a determinado segmento vulnerável. Na discussão sobre a Emenda Constitucional n. 20/98, que limitou os benefícios previdenciários a R$ 1.200,00, discutiu-se a quem caberia pagar a licença-maternidade no caso da mulher trabalhadora receber salário superior a tal valor. Caso a interpretação concluísse que o excedente seria pago pelo empregador, a regra aparentemente neutra (limite a todos os benefícios) teria um efeito discriminatório no mercado de trabalho e um impacto desproporcional sobre a empregabilidade da mulher, pois aumentariam os custos para o patrão. Com isso, a regra teria um efeito de discriminação indireta, contrariando a regra constitucional proibitiva da discriminação, em matéria de emprego, por motivo de sexo. Nesse sentido, o STF decidiu que “Na verdade, se se entender que a Previdência Social, doravante, responderá apenas por R$ 1.200,00 (hum mil e duzentos reais) por mês, durante a licença da gestante, e que o empregador responderá, sozinho, pelo restante, ficará sobremaneira facilitada e estimulada a opção deste pelo trabalhador masculino, ao invés da mulher trabalhadora. Estará, então, propiciada a discriminação que a Constituição buscou combater, quando proibiu diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de admissão, por motivo de sexo (art. 7º, XXX, da CF/1988), proibição que, em substância, é um desdobramento do princípio da igualdade de direitos entre homens e mulheres, previsto no inciso I do art. 5º da CF. (...) Ação direta de inconstitucionalidade é julgada procedente, em parte, para se dar ao art. 14 da EC 20, de 15-12-1998, interpretação conforme à Constituição, excluindo-se sua aplicação ao salário da licença gestante, a que se refere o art. 7º, XVIII, da CF” (ADI 1.946, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 3-4-2003, Plenário, DJ de 16-5-2003).

4.4.1. Para obter a igualdade: as medidas repressivas, promocionais e as ações afirmativas

A discriminação injusta (e inconstitucional) é constatada na ocorrência de tratamento igualitário para situações diferenciadas e, também, na ocorrência de tratamento diferenciado para situações idênticas.

O Estado possui dois instrumentos para promover a igualdade e eliminar a discriminação injusta: o instrumento repressivo e o instrumento promocional (voltado ao fomento da igualdade).

O primeiro instrumento é o repressivo. Como prevê a Constituição de 1988, a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) e ainda a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei (art. 5º, XLII).

Consequentemente, o legislador pode constituir em tipos penais outros comportamentos discriminatórios, como, por exemplo, a discriminação por orientação sexual ou por procedência nacional. Nessa linha, a Lei n. 7.716/89 (alterada por leis posteriores) determinou a punição dos crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (ver abaixo o crime de racismo).

O segundo instrumento é o promocional, uma vez que a proibição da discriminação não assegura, de pronto, a inclusão do segmento social submetido a determinada situação inferiorizante. A opção da Constituição de 1988 foi de também utilizar políticas compensatórias que acelerem a igualdade e a consequente inclusão dos grupos vulneráveis.

Entre outras, o art. 7º, XX, determina a proteção do mercado de trabalho da mulher mediante incentivos específicos, bem como o art. 37, VIII, que determina que a lei reservará percentual de cargos e empregos públicos para as pessoas com deficiência. Assim, a Constituição abriu a porta para a implementação de outras ações afirmativas ou políticas de discriminação positiva.

As ações afirmativas consistem em um conjunto de diversas medidas, adotadas temporariamente e com foco determinado, que visa compensar a existência de uma situação de discriminação que políticas generalistas não conseguem eliminar, e objetivam a concretização do acesso a bens e direitos diversos (como trabalho, educação, participação política etc.).

Tais ações tutelam os interesses de grupos sociais vulneráveis e objetivam, no futuro, a realização da igualdade substantiva ou material. No STF, o Min. Nelson Jobim destacou que “a discriminação positiva introduz tratamento desigual para produzir, no futuro e em concreto, a igualdade. É constitucionalmente legítima, porque se constitui em instrumento para obter a igualdade real” (Voto do Min. Nelson Jobim, na ADI 1.946-MC/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 3-4-2003, Plenário, DJ de 16-5-2003).

No Direito Comparado, destacam-se as discussões sobre as ações afirmativas na Índia (origem da temática, com “Government of India Act”, de 1935, para ações afirmativas às castas subalternas) e nos Estados Unidos. A Suprema Corte americana foi protagonista na aceitação da teoria do “treatment as equal”, a partir de meados dos anos 50 do século XX, pela qual foram aceitas as políticas públicas ou condutas privadas que tratam desigualmente os desiguais, para efetivamente combater situações de inferioridade e discriminação.

As medidas de ações afirmativas (também chamadas de políticas ou ações compensatórias) são diversas: desde o encorajamento de órgãos públicos e privados para que ajam em prol da inclusão de grupos vulneráveis, passando por estímulos diferenciados aos grupos vulneráveis (por exemplo, cursinhos preparatórios para o ingresso em Faculdades para afrodescendentes), benefícios fiscais e preferências (por exemplo, pontuação adicional em licitações) até a imposição de percentual de vagas para grupos vulneráveis em determinados temas (as cotas).

No Brasil, além da reserva de vagas para as pessoas com deficiência, há a cota de candidaturas por sexo (30% no mínimo e 70% no máximo, para cada sexo – Lei n. 12.034/2009). Não são cotas para as mulheres, mas têm especial impacto nas candidaturas femininas, pois tradicionalmente a política partidária é dominada pelo sexo masculino.

Além disso, o PNDH-3 incentiva a adoção de políticas compensatórias, defendendo o aumento das ações afirmativas em favor de grupos vulneráveis. No plano federal, há o Programa de Ações Afirmativas na Administração Pública Federal (Decreto n. 4.228, de 13-5-2002), que determina a observância, pelos órgãos da Administração Pública Federal, de requisito que garanta a realização de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência no preenchimento de cargos em comissão e ainda a observância, nas licitações promovidas por órgãos da Administração Pública Federal, de critério adicional de pontuação, a ser utilizado para beneficiar fornecedores que comprovem a adoção de políticas compatíveis com os objetivos do Programa.

Quanto à base normativa específica, o Brasil ratificou e incorporou internamente dois tratados que contam com a previsão de ações afirmativas:

a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial dispõe, no art. 1º, parágrafo 4º, que são legítimas as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.

a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher permite que os Estados imponham medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre o homem e a mulher (art. 4.1). São medidas de compensação à situação histórica de desigualdade entre os gêneros, em prejuízo da mulher.

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência dispõe, no seu art. 5º, item 4, que as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias. No art. 27, alínea h, prevê o dever do Estado de promover o emprego de pessoas com deficiência no setor privado, mediante políticas e medidas apropriadas, que poderão incluir programas de ação afirmativa, incentivos e outras medidas.

Em 2010, foi editada a Lei n. 12.228, que instituiu o Estatuto da Igualdade Racial. Foi criado o Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Sinapir) que busca a implementação do conjunto de políticas e serviços destinados a superar as desigualdades étnicas existentes no País, prestados pelo Poder Público federal.

São objetivos do Sinapir: I – promover a igualdade étnica e o combate às desigualdades sociais resultantes do racismo, inclusive mediante adoção de ações afirmativas; II – formular políticas destinadas a combater os fatores de marginalização e a promover a integração social da população negra; III – descentralizar a implementação de ações afirmativas pelos governos estaduais, distrital e municipais; IV – articular planos, ações e mecanismos voltados à promoção da igualdade étnica; V – garantir a eficácia dos meios e dos instrumentos criados para a implementação das ações afirmativas e o cumprimento das metas a serem estabelecidas.

Em 2012, o STF reconheceu a constitucionalidade da adoção de cotas para afrodescendentes em universidades, ao julgar improcedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 186 (Rel. Min. Ricardo Lewandowski). Nessa ADPF, as seguintes balizas foram consagradas no tocante às políticas de cotas para afrodescendentes e povos indígenas nas Universidades:

a) Objetivo: ficou evidenciado que o objetivo da cota étnica-racial nas universidades têm objetivo constitucionalmente adequado: estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando a pouca diversidade racial do ensino superior público e, com isso, eliminando distorções sociais historicamente consolidadas.

b) Critério: é importante que o critério a ser utilizado seja também adequado. No caso da cota para afrodescendentes há dois critérios utilizados comumente: a autoidentificação e a heteroidentificação (identificação feita por terceiros). No caso da ADPF 186, ambos os critérios foram considerados constitucionais, mesmo a polêmica heteroidentificação. Nesse último critério, exigiu-se o respeito à dignidade pessoal dos candidatos, com a formação de comitê composto de modo plural e com mandatos curtos, que julgue por fenótipo e não por ascendência, na linha do sugerido por Daniela Ikawa13.

c) Proporcionalidade: a cota deve ser proporcional e razoável, reservando-se as vagas em número adequado, apto a não excluir em demasia os demais membros da comunidade não abrangidos no critério de seleção. Assim, para o Relator Min. Lewandowski, no caso da Universidade de Brasília, a reserva de 20% de suas vagas para estudantes afrodescendentes e de um pequeno número delas para “índios de todos os Estados brasileiros”, pelo prazo de 10 anos, constitui providência adequada e proporcional ao atingimento da igualdade material.

d) Transitoriedade – o caráter temporário da discriminação positiva (compatível com a produção de efeitos no futuro) foi realçado pelo voto do Min. Marco Aurélio na ADPF 186, para quem tal sistema há de ser utilizado na correção de desigualdades e afastado tão logo eliminadas essas diferenças.

Ainda na busca por igualdade material no ensino superior, a Medida Provisória n. 213 instituiu o ProUni – Programa Universidade para Todos, hoje regido pela Lei n. 11.096/2005. O Programa destina bolsa de estudos para alunos carentes, determinando cotas para alunos egressos da rede pública, da rede privada (desde que tenham cursado com bolsa integral), pessoa com deficiência e professor da rede pública, para determinados cursos.

Também em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou improcedente o pedido feito na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.330, considerando constitucional a Lei n. 11.096/2005, que instituiu o Programa Universidade para Todos (ProUni).

4.5. A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A LEI MARIA DA PENHA

4.5.1. Aspectos gerais da Lei Maria da Penha

Há diversos tratados incorporados no ordenamento brasileiro que combatem a discriminação e violência contra a mulher. Esses tratados exigem a implementação de regras de discriminação positiva, que consistem em medidas especiais de caráter temporário destinadas a acelerar a igualdade de fato entre homem e mulher.

Nesse sentido, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher das Nações Unidas (CEDAW, na sigla em inglês) determina que os Estados Partes devem tomar as medidas apropriadas para combater as diversas formas de exploração, violência e discriminação contra a mulher. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (também chamada de Convenção de Belém do Pará) foi explícita em estabelecer mandados de criminalização de condutas de violência contra a mulher14.

De acordo com o art. 7º, d e e, da citada Convenção, os Estados Partes devem “adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas e prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em (...) incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”.

O combate penal à violência contra a mulher foi reforçado pelo importante precedente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso brasileiro “Maria da Penha Maia Fernandes”. Os fatos relativos a esse caso remontam a 1983, quando a Sra. Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de tentativa de homicídio por parte de seu marido à época, deixando-a paraplégica. Houve, depois, outro ataque do marido, mas, apesar da denúncia criminal do Ministério Público ter sido proposta em 1984, a lentidão da Justiça Penal brasileira quase gerou a prescrição do crime. Somente em 2002 (19 anos depois dos fatos), o agressor foi preso, após o trânsito em julgado dos mais variados recursos. Para impedir a repetição de tais condutas, a Comissão recomendou que o Brasil adotasse medidas legislativas que protegessem, efetivamente, a mulher contra a violência.

Em 2006, foi adotada a Lei n. 11.340, conhecida como Lei Maria da Penha, que foi o resultado dos tratados internacionais já citados e também da recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, cumprindo ainda o disposto no § 8º do art. 226 da CF/88 (“O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”). De maneira clara, a Lei Maria da Penha trata a violência doméstica e familiar contra a mulher como uma das formas de violação dos direitos humanos (art. 6º).

A lei objetiva coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, nem toda violência contra a mulher faz incidir a Lei Maria da Penha: é necessário que haja (i) uma questão de gênero em um (ii) contexto familiar e doméstico. A violência tratada na Lei Maria da Penha consiste em ato ou omissão que viole os direitos da mulher oriundos de uma relação de afeto ou de convivência.

Por isso, configura “violência doméstica e familiar contra a mulher” qualquer ação ou omissão baseada no gênero15 que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, (i) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; (ii) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; (iii) em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (art. 5º da Lei), como, por exemplo, relacionamentos entre amantes, namorados etc.

Essas relações pessoais (domésticas, familiares e de afetividade) independem de orientação sexual e a coabitação, o que inclui o namoro e as relações entre amantes. O art. 7º da Lei n. 11.340/2006 lista, de modo não exaustivo, as espécies de violência doméstica e familiar: violência física, sexual, psicológica, patrimonial e moral. Ou seja, a violência física não é a única que faz incidir a Lei Maria da Penha: a agressão verbal, perseguição contumaz, vigilância constante são tipos de violência previstos pela lei.

A lei visa combater toda e qualquer violência realizada no local de residência da vítima ou, ainda, em qualquer lugar, desde que a violência seja resultado de relação de afeto ou de convivência.

Prevê o art. 22 da Lei Maria da Penha que o juiz poderá aplicar, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência contra o agressor: I – suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente; II – afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; III – proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; IV – restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; V – prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Tais medidas não são exaustivas, podendo ainda o juiz usar, analogicamente, o disposto no Código de Processo Civil para o cumprimento da tutela específica de obrigação de fazer (art. 461) para assegurar os direitos da vítima.

Há ainda medidas protetivas a favor da mulher, que podem ser adotadas pelo juiz, como, por exemplo: 1) o encaminhamento da ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento; 2) a determinação de recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; 3) a determinação do afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; 4) e a separação de corpos. São também previstas medidas protetivas da integralidade dos bens da sociedade conjugal ou de propriedade particular da mulher.

Como tais medidas são apenas exemplificadas na lei, admite-se o uso de medidas previstas na Lei n. 12.403/2011 (lei sobre a prisão e outras medidas cautelares), como, por exemplo, o monitoramento eletrônico.

Finalmente, a violência contra a mulher exige complexa política pública de prevenção e repressão que envolve o Poder Executivo (autoridade policial e assistência de todos os tipos), Defensoria Pública, Ministério Público e Poder Judiciário. No que tange ao Poder Judiciário, a Lei dispõe que poderão ser criados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, para o processo, julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher.

4.5.2. Aspectos penais e processuais penais da Lei Maria da Penha e a ADI 4.424

Além de buscar prevenir e evitar novos casos de violência de gênero contra a mulher, a Lei Maria da Penha também possui preceitos penais e processuais penais. O STF, na ADI 4.424, proposta pelo Procurador-Geral da República, combateu o entendimento de vários Tribunais e do Superior Tribunal de Justiça, decidindo que a ação penal por crime de lesão corporal leve, em caso de violência doméstica ou familiar contra a mulher, é pública e incondicionada, sendo constitucional a regra da Lei Maria da Penha, proibindo, nos casos de sua incidência, a aplicação da Lei n. 9.099/95 (sobre crimes de menor potencial ofensivo e Juizados Especiais Criminais). Assim, os institutos despenalizadores daquela lei não são aplicados aos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena.

O Poder Legislativo e o STF consideraram o instrumento penal essencial para a promoção dos direitos da mulher, tendo sido estabelecidos os seguintes marcos:

1) nos crimes de ação penal pública condicionada (ameaça, por exemplo), cabe a autoridade policial ouvir a ofendida, lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo, se apresentada;

2) essa representação é retratável, se: a) for feita perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade; b) a retratação ocorrer antes do recebimento da denúncia; e c) ouvido o Ministério Público (art. 16);

3) a Lei Maria da Penha afasta a aplicação das regras envolvendo os crimes de menor potencial ofensivo e ainda as referentes aos Juizados Especiais Criminais, nos casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher (art. 41), não cabendo, por exemplo, transação e suspensão condicional do processo (ADI 4.424);

4) consequência direta do item “3”, o crime de lesão corporal leve praticado contra a mulher no ambiente doméstico e familiar é de ação penal pública incondicionada (ADI 4.424 – não se aplica o art. 88 da Lei n. 9.099/9516);

5) a Lei Maria da Penha não admite: a) a pena de oferta de cesta básica; b) a pena de prestação pecuniária; e c) a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa (art. 17).

4.5.3. A igualdade material e a ADC 19

Em 2007, o Presidente da República interpôs Ação Direta de Constitucionalidade (ADC 19) visando declarar constitucional os arts. 1º, 33 e 41 da Lei Maria da Penha, após divergências judiciais sobre a constitucionalidade da lei17. No campo dos direitos humanos, interessa o argumento (contrário à constitucionalidade da lei) de eventual tratamento discriminatório promovido pela Lei, uma vez que o homem agredido em um contexto familiar ou doméstico não pode beneficiar-se do seu manto protetor.

Esse trato diferenciado não é proibido pela igualdade entre homens e mulheres prevista na Constituição de 1988 (art. 5º, I), uma vez que o objetivo é justamente promover a igualdade material entre homens e mulheres.

A violência doméstica e familiar sofrida pela mulher é parte de um contexto de dominação do homem e submissão da mulher, no qual a mulher tem dificuldade de toda sorte para obter os mesmos papéis reservados aos homens.

No âmbito da violência doméstica e familiar, a mulher enfrenta preconceitos arraigados (“briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”), sem contar as dificuldades de perder o suporte material e de sobrevivência muitas vezes assegurado pelo agressor (que aproveita tal situação para externar seu poder e violência).

Para superar as desigualdades fáticas, é cabível a intervenção do legislador, aumentando as garantias da mulher e ainda restringe os direitos do agressor. Nas palavras da Min. Cármen Lúcia, em voto histórico na ADC 19, é necessário que a sociedade conte com tais leis, mesmo que temporariamente, para “superar a indiferença às diferenças”18.

Quanto ao homem eventualmente agredido pela mulher, além de não enfrentar esse contexto histórico e social de preconceito e subordinação, este pode ser amparado pelas medidas cautelares penais previstas na Lei n. 12.403/2011.

4.5.4. A igualdade na orientação sexual e o direito à busca da felicidade

O direito fundamental à livre orientação sexual consiste no direito ao respeito, por parte do Estado e de terceiros, da preferência sexual e afetiva de cada um, não podendo dela ser extraída nenhuma consequência negativa ou restrição de direitos.

Apesar de não expresso na Constituição de 1988, esse direito é extraído da previsão do art. 5º, § 2º (os direitos expressos não excluem outros decorrentes do regime, dos princípios e dos tratados de direitos humanos), bem como do princípio da dignidade humana (art. 1º, III) e da proibição de toda forma de discriminação (objetivo fundamental da República). Além disso, a orientação sexual advém da liberdade de cada um e faz parte das decisões abarcadas pela privacidade, não podendo o Estado abrigar preconceitos e punir com base nessa opção íntima, negando direitos que somente outra orientação sexual pode exercer.

Para o Ministro Celso de Mello, há um direito constitucional implícito à “busca da felicidade”, que decorre da dignidade da pessoa humana, devendo ser eliminados os entraves odiosos à sua consecução. Por isso, no campo da orientação sexual, a união homoafetiva é tida como equiparada à entidade familiar, devendo ser adotadas, a favor de parceiros homossexuais, as mesmas regras incidentes sobre as uniões heterossexuais, em especial no Direito Previdenciário e no campo das relações sociais e familiares (RE 477.554-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-8-2011, Segunda Turma, DJE de 26-8-2011.) Esse direito à homoafetividade não pode gerar prejuízos ao seu titular.

Nesse sentido, o STF deu ao art. 1.723 do Código Civil19 interpretação conforme a Constituição para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como “entidade familiar”, entendida esta como sinônimo perfeito de “família”. Para o Relator, Min. Carlos Britto, esse reconhecimento deve ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4.277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 5-5-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011).

4.6. DECISÕES DO STF SOBRE IGUALDADE

Igualdade e altura mínima em cargo público. Necessidade de pertinência com o cargo. “Razoabilidade da exigência de altura mínima para ingresso na carreira de delegado de polícia, dada a natureza do cargo a ser exercido. Violação ao princípio da isonomia. Inexistência” (RE 140.889, Rel. p/ o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 30-5-2000, Segunda Turma, DJ de 15-12-2000).

Igualdade e Princípio da Congeneridade. Necessidade da transferência de vaga em instituição de ensino do mesmo sistema: público para público, privado para privado. “(...) é consentânea com a Carta da República previsão normativa asseguradora, ao militar e ao dependente estudante, do acesso a instituição de ensino na localidade para onde é removido. Todavia, a transferência do local do serviço não pode se mostrar verdadeiro mecanismo para lograr-se a transposição da seara particular para a pública, sob pena de se colocar em plano secundário a isonomia – art. 5º, cabeça e inciso I –, a impessoalidade, a moralidade na administração pública, a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola superior, prevista no inciso I do art. 206, bem como a viabilidade de chegar-se a níveis mais elevados do ensino, no que o inciso V do art. 208 vincula o fenômeno à capacidade de cada qual” (ADI 3.324, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-12-2004, Plenário, DJ de 5-8-2005).

Igualdade e prova de títulos em concurso público. Mera função pública não pode servir para título. Concurso público. (...) Prova de títulos: exercício de funções públicas. Viola o princípio constitucional da isonomia norma que estabelece como título o mero exercício de função pública” (ADI 3.443, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 8-9-2005, Plenário, DJ de 23-9-2005).

Igualdade e teste de esforço diferente por faixa etária. Inconstitucional. Concurso público da Polícia Militar. Teste de esforço físico por faixa etária: exigência desarrazoada, no caso. Ofensa aos princípios da igualdade e legalidade. O STF entende que a restrição da admissão a cargos públicos a partir da idade somente se justifica se previsto em lei e quando situações concretas exigem um limite razoável, tendo em conta o grau de esforço a ser desenvolvido pelo ocupante do cargo ou função. No caso, se mostra desarrazoada a exigência de teste de esforço físico com critérios diferenciados em razão da faixa etária” (RE 523.737-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-6-2010, Segunda Turma, DJE de 6-8-2010).

Igualdade e licitação. Exigência que não seja indispensável a garantia de cumprimento da obrigação. Violação. “A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio. A Constituição do Brasil exclui quaisquer exigências de qualificação técnica e econômica que não sejam indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. A discriminação, no julgamento da concorrência, que exceda essa limitação é inadmissível” (ADI 2.716, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-11-2007, Plenário, DJE de 7-3-2008).

Igualdade e acesso a cargo público. Tratamento diferenciado àquele que já integram o Ministério Público. Possibilidade. “A igualdade, desde Platão e Aristóteles, consiste em tratar-se de modo desigual os desiguais. Prestigia-se a igualdade, no sentido mencionado, quando, no exame de prévia atividade jurídica em concurso público para ingresso no MPF, dá-se tratamento distinto àqueles que já integram o Ministério Público. Segurança concedida” (MS 26.690, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 3-9-2008, Plenário, DJE de 19-12-2008).

Igualdade e estrangeiro. Impossibilidade de discriminar por nacionalidade e impedir a progressão da pena. “O fato de o condenado por tráfico de droga ser estrangeiro, estar preso, não ter domicílio no país e ser objeto de processo de expulsão, não constitui óbice à progressão de regime de cumprimento da pena” (HC 97.147, Rel. p/ o ac. Min. Cezar Peluso, julgamento em 4-8-2009, Segunda Turma, DJE de 12-2-2010).

Igualdade e liberdade de religião. Impossibilidade de participar de exame em data alternativa, para respeito de dia sagrado. “Agravo Regimental em Suspensão de Tutela Antecipada. Pedido de restabelecimento dos efeitos da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat. Alegação de inobservância ao direito fundamental de liberdade religiosa e ao direito à educação. Medida acautelatória que configura grave lesão à ordem jurídico-administrativa. Em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso. Decisão da Presidência, proferida em sede de contracautela, sob a ótica dos riscos que a tutela antecipada é capaz de acarretar à ordem pública. Pendência de julgamento da ADI 391 e da ADI 3.714, nas quais esta Corte poderá analisar o tema com maior profundidade” (STA 389-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2009, Plenário, DJE de 14-5-2010).

Igualdade e Teste de Esforço para admissão em cargo público. Desarrazoada a exigência de teste de esforço físico com critérios diferenciados em razão da faixa etária. “O STF entende que a restrição da admissão a cargos públicos a partir da idade somente se justifica se previsto em lei e quando situações concretas exigem um limite razoável, tendo em conta o grau de esforço a ser desenvolvido pelo ocupante do cargo ou função. No caso, se mostra desarrazoada a exigência de teste de esforço físico com critérios diferenciados em razão da faixa etária” (RE 523.737-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 22-6-2010, Segunda Turma, DJE de 6-8-2010).

Igualdade e lei estadual instituindo piso regional. “A lei impugnada realiza materialmente o princípio constitucional da isonomia, uma vez que o tratamento diferenciado aos trabalhadores agraciados com a instituição do piso salarial regional visa reduzir as desigualdades sociais. A LC federal 103/2000 teve por objetivo maior assegurar àquelas classes de trabalhadores menos mobilizadas e, portanto, com menor capacidade de organização sindical, um patamar mínimo de salário” (ADI 4.364, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 2- 3-2011, Plenário, DJE de 16-5-2011).

Igualdade e Tributação. “A isenção tributária que a União Federal concedeu, em matéria de IPI, sobre o açúcar de cana (Lei 8.393/1991, art. 2º) objetiva conferir efetividade ao art. 3º, II e III, da CF. Essa pessoa política, ao assim proceder, pôs em relevo a função extra fiscal desse tributo, utilizando-o como instrumento de promoção do desenvolvimento nacional e de superação das desigualdades sociais e regionais” (AI 360.461-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6-12-2005, Segunda Turma, DJE de 28-3-2008).

Igualdade e prerrogativa de foro a ex-titular de cargos públicos. Privilégio pessoal inaceitável. “O reconhecimento da prerrogativa de foro, perante o STF, nos ilícitos penais comuns, em favor de ex-ocupantes de cargos públicos ou de ex-titulares de mandatos eletivos transgride valor fundamental à própria configuração da ideia republicana, que se orienta pelo vetor axiológico da igualdade. A prerrogativa de foro é outorgada, constitucionalmente, ratione muneris, a significar, portanto, que é deferida em razão de cargo ou de mandato ainda titularizado por aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado, sob pena de tal prerrogativa – descaracterizando-se em sua essência mesma – degradar-se à condição de inaceitável privilégio de caráter pessoal. Precedentes” (Inq 1.376-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-2-2007, Plenário, DJ de 16-3-2007).

Igualdade. Passe livre às pessoas com deficiência carentes no transporte interestadual. “Constitucionalidade da Lei n. 8.899, de 29 de junho de 1994, que concedeu passe livre às pessoas portadoras de deficiência, comprovadamente carentes, no sistema de transporte coletivo interestadual. Incabível a alegação de afronta aos princípios da ordem econômica, da isonomia, da livre-iniciativa e do direito de propriedade, além de ausência de indicação de fonte de custeio. (...) Em 30-3-2007, o Brasil assinou, na sede da ONU, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, bem como seu Protocolo Facultativo, comprometendo-se a implementar medidas para dar efetividade ao que foi ajustado. A Lei 8.899/1994 é parte das políticas públicas para inserir os portadores de necessidades especiais na sociedade e objetiva a igualdade de oportunidades e a humanização das relações sociais, em cumprimento aos fundamentos da República de cidadania e dignidade da pessoa humana, o que se concretiza pela definição de meios para que eles sejam alcançados” (ADI 2.649, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 8-5-2008, Plenário, DJE de 17-10-2008).

Idade e Concurso Público. “O limite de idade para a inscrição em concurso público só se legitima em face do art. 7º, XXX, da Constituição, quando possa ser justificado pela natureza das atribuições do cargo a ser preenchido” (Súmula 683 do STF).

Idade e Concurso Público. “Candidata funcionária pública: indeferimento de inscrição fundada em Constituição e imposição legal de limite de idade, não reclamado pelas atribuições do cargo, que configura discriminação inconstitucional (CF, arts. 5º e 7º, XXX): (...).” (RE 141.357, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-9-2004, Primeira Turma, DJ de 8-10-2004).

Idade e Concurso Público. “A vedação constitucional de diferença de critério de admissão por motivo de idade (CF, art. 7º, XXX) é corolário, na esfera das relações de Trabalho, do princípio fundamental de igualdade (CF, art. 5º, caput), que se estende, à falta de exclusão constitucional inequívoca (como ocorre em relação aos militares – CF, art. 42, § 11), a todo o sistema do pessoal civil. É ponderável, não obstante, a ressalva das hipóteses em que a limitação de idade se possa legitimar como imposição da natureza e das atribuições do cargo a preencher. Esse não é o caso, porém, quando, como se dá na espécie, a lei dispensa do limite os que já sejam servidores públicos, a evidenciar que não se cuida de discriminação ditada por exigências etárias das funções do cargo considerado” (RMS 21.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 14-12-1990, Plenário, DJ de 14-11-1991). No mesmo sentido: AI 722.490-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 3-2-2009, Primeira Turma, DJE de 6-3-2009.

Igualdade nas Relações Privadas. Discriminação contra Brasileiro por parte de Empresa Multinacional. “Estabelece a Constituição em vigor, reproduzindo nossa tradição constitucional, no art. 5º, caput (...). (...) De outra parte, no que concerne aos direitos sociais, nosso sistema veda, no inciso XXX do art. 7º da Constituição Federal, qualquer discriminação decorrente – além, evidentemente, da nacionalidade – de sexo, idade, cor ou estado civil. Dessa maneira, nosso sistema constitucional é contrário a tratamento discriminatório entre pessoas que prestam serviços iguais a um empregador. No que concerne ao estrangeiro, quando a Constituição quis limitar-lhe o acesso a algum direito, expressamente estipulou. (...) Mas o princípio do nosso sistema é o da igualdade de tratamento. Em consequência, não pode uma empresa, no Brasil, seja nacional ou estrangeira, desde que funcione, opere em território nacional, estabelecer discriminação decorrente de nacionalidade para seus empregados, em regulamento de empresa, a tanto correspondendo o estatuto dos servidores da empresa, tão só pela circunstância de não ser um nacional francês. (...) Nosso sistema não admite esta forma de discriminação, quer em relação à empresa brasileira, quer em relação à empresa estrangeira” (RE 161.243, Rel. Min. Carlos Velloso, voto do Min. Néri da Silveira, julgamento em 29-10-1996, Segunda Turma, DJ de 19-12-1997).

Igualdade e competência da União para legislar sobre direito do trabalho. Lei estadual estipulando sanções a empresas que discriminem mulheres. Inconstitucionalidade. “Lei 11.562/2000 do Estado de Santa Catarina. Mercado de trabalho. Discriminação contra a mulher. Competência da União para legislar sobre direito do trabalho. (...) A Lei 11.562/2000, não obstante o louvável conteúdo material de combate à discriminação contra a mulher no mercado de trabalho, incide em inconstitucionalidade formal, por invadir a competência da União para legislar sobre direito do trabalho” (ADI 2.487, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 30-8-2007, Plenário, DJE de 28-3-2008).

Igualdade e direito do marido de ser dependente automático da esposa quando a lei só prevê o oposto. Impossibilidade. “A extensão automática da pensão ao viúvo, em obséquio ao princípio da igualdade, em decorrência do falecimento da esposa-segurada, assim considerado aquele como dependente desta, exige lei específica, tendo em vista as disposições constitucionais inscritas no art. 195, caput, e seu § 5º, e art. 201, V, da CF” (RE 204.193, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 30-5-2001, Plenário, DJ de 31-10-2002 – ver abaixo possível superação deste precedente).

Igualdade e lei estadual que exige invalidez do viúvo para receber a pensão da segurada mulher, não exigindo isso da viúva. Inconstitucionalidade. “(...) a lei estadual mineira, violando o princípio da igualdade do art. 5º, I, da Constituição, exige do marido, para que perceba a pensão por morte da mulher, um requisito – o da invalidez – que, não se presume em relação à viúva, e que não foi objeto do acórdão do RE 204.193, 30-5-2001, Carlos Velloso, DJ de 31-10-2002. Nesse precedente, ficou evidenciado que o dado sociológico que se presume em favor da mulher é o da dependência econômica, e não a de invalidez, razão pela qual também não pode ela ser exigida do marido. Se a condição de invalidez revela, de modo inequívoco, a dependência econômica, a recíproca não é verdadeira; a condição de dependência econômica não implica declaração de invalidez” (RE 385.397-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-6-2007, Plenário, DJ de 6-9-2007). Possível indicativo da mudança de orientação e superação do precedente do RE 204.193 de 2001 visto acima (este que teria se apoiado no “dado sociológico da dependência da mulher em relação ao homem”). Vários dos Ministros que votaram em 2001 não mais se encontram no STF.

Tratamento privilegiado à magistratura federal em detrimento da estadual dado pela EC 41/2003. Subteto estadual inferior ao teto federal é ofensa à isonomia. Poder Judiciário é nacional. “Como se vê, é do próprio sistema constitucional que brota, nítido, o caráter nacional da estrutura judiciária. E uma das suas mais expressivas e textuais reafirmações está precisamente – e não, por acaso – na chamada regra de escalonamento vertical dos subsídios, de indiscutível alcance nacional, e objeto do art. 93, V, da Constituição da República, que, dispondo sobre a forma, a gradação e o limite para fixação dos subsídios dos magistrados não integrantes dos Tribunais Superiores, não lhes faz nem autoriza distinção entre órgãos dos níveis federal e estadual, senão que, antes, os reconhece a todos como categorias da estrutura judiciária nacional (...) ” (ADI 3.854-MC, voto do Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 28-2-2007, Plenário, DJ de 29-6-2007).

5. Legalidade

Art. 5º, II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

5.1. LEGALIDADE E RESERVA DE LEI

O direito à liberdade consiste na possibilidade de o ser humano atuar com livre-arbítrio, salvo se existir lei o obrigando a fazer ou deixar de fazer algo. Cabe-lhe uma liberdade de escolha até a edição de lei em sentido contrário. Com isso, uma conduta que interfira com a liberdade e bens de uma pessoa exige lei prévia que a autorize. Essa sintonia entre liberdade e legalidade é fruto da consagração do Estado de Direito. Fica superada a antiga submissão de todos à vontade do monarca, substituída pela vontade da lei. Nesse sentido, entre o governo dos homens ou o governo das leis, o Estado de Direito optou pelo segundo.

A liberdade tem seus contornos definidos pela vontade da lei, que expressa o desejo social. O art. 5º, II, trata do princípio da legalidade que engloba a lei em sentido amplo, abrangendo todas as espécies normativas do art. 59 da Constituição, a saber: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções.

Atualmente, o Estado Democrático de Direito no Brasil admite várias dimensões do princípio da legalidade, o que reflete os novos papéis do Poder Executivo, chamado a participar da atividade legislativa direta e indiretamente. Nesse sentido, são consagrados na doutrina e jurisprudência os seguintes princípios decorrentes da legalidade: 1) princípio da reserva absoluta de lei; 2) princípio da reserva relativa de lei; 3) princípio da reserva de lei formal; 4) princípio da reserva de lei material.

O princípio da reserva absoluta de lei consiste na exigência de que o tratamento de determinada matéria seja, em sua integralidade, regido pela lei. Não há espaço para a atuação regulamentar discricionária dos agentes públicos executores da lei. Por sua vez, o princípio da reserva relativa de lei admite que determinada matéria seja regrada pela lei com espaço para a atuação discricionária do agente.

Por outro lado, o princípio da reserva de lei formal consiste na exigência de regência de matéria por ato emanado do Poder Legislativo, fruto do processo legislativo tradicional (iniciativa, deliberação, sanção/veto e promulgação e publicação). A definição do que está incluído nas matérias de reserva de lei formal tem de ser obtida do próprio texto constitucional (HC 85.060, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 23-9-2008, Primeira Turma, DJE de 13-2-2009).

No Brasil, o Direito Penal é submetido ao princípio da reserva de lei formal (também denominado simplesmente “reserva legal”), para dar sentido ao disposto no art. 5º, XXXIX (“Não haverá crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”). Essa interpretação impede eventual redundância deste inciso com o disposto no art. 5º, II. Há, assim, uma faceta negativa e uma faceta positiva do princípio da reserva de lei formal. A faceta negativa implica vedar, “nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não legislativos”. A faceta positiva “impõe à administração e à jurisdição a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador”. A violação dessas facetas resulta “transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes” (passagens do voto do Relator. ADI 2.075-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 7-2-2001, Plenário, DJ de 27-6-2003).

Já o princípio da reserva de lei material consiste na exigência de matéria regrada por atos normativos equiparados à lei, mesmo que não oriundos do Poder Legislativo. Trata-se do reconhecimento de atos normativos com força de lei oriundos do Poder Executivo. A Constituição de 1988 admite uma intensa participação do Poder Executivo na função de legislar, em especial no que tange: 1) à edição de Medida Provisória (art. 62), que tem força de lei sem autorização prévia do Congresso Nacional; 2) à edição de lei delegada (art. 68); e por fim 3) pela edição de decretos mesmo sem lei anterior, sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos ou ainda sobre extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos (art. 84, VI).

A própria Constituição limita as matérias que podem ser tratadas sem apoio em lei aprovada pelo Congresso Nacional. No caso das medidas provisórias, estas não podem abarcar regras sobre: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; b) direito penal, processual penal e processual civil; c) organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; d) planos plurianuais, diretrizes orçamentárias, orçamento e créditos adicionais e suplementares, ressalvado o previsto no art. 167, § 3º; e) que visem a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro; f) reservadas a lei complementar; g) já disciplinadas em projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção ou veto do Presidente da República. Quanto à lei delegada, a Constituição dispõe que não serão objeto de delegação os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional, os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, a matéria reservada à lei complementar, nem a legislação sobre organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a carreira e a garantia de seus membros; nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleitorais; planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

Diferentemente dos particulares, o Poder Público é regido pelo princípio da legalidade estrita, exposto no art. 37ºcaput, da CF/88, que exige que o Poder Público possa fazer ou deixar de fazer o que está previsto na lei. Logo, o particular pode fazer aquilo que a lei não proíbe e o Poder Público só pode fazer o que é autorizado pela lei.

5.2. OS DECRETOS E REGULAMENTOS AUTÔNOMOS (CF, ART. 84, IV)

O princípio da legalidade, consagrado pela Constituição de 1988, exige que os decretos e regulamentos administrativos explicitem meramente os comandos previamente estabelecidos pela lei. Assim, proibiu-se o chamado “decreto ou regulamento autônomo” que seria aquele ato administrativo que, sem apoio na lei, inova o ordenamento jurídico, criando direitos ou obrigações.

Dois dispositivos da Constituição sustentam essa vedação do “decreto autônomo”: o art. 84, IV (“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) V – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”) e o art. 25 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“Art. 25. Ficam revogados, a partir de cento e oitenta dias da promulgação da Constituição, sujeito este prazo a prorrogação por lei, todos os dispositivos legais que atribuam ou deleguem a órgão do Poder Executivo competência assinalada pela Constituição ao Congresso Nacional, especialmente no que tange a: I – ação normativa”).

Nesse sentido, decidiu o STF que os “Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF/1988) (...). Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige” (ADI 1.435-MC, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 27-11-1996, Plenário, DJ de 6-8-1999).

Assim, o poder regulamentar é cabível na existência de lei ou mesmo norma constitucional que já possua todos os atributos para sua fiel execução (ADI 1.590-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-6-1997, Plenário, DJ de 15-8-1997). Com isso, nenhum ato administrativo fruto do poder regulamentar pode criar ou restringir direitos, violando a separação de poderes e a reserva de lei em sentido formal.

Caso isso ocorra, constata-se o chamado “abuso de poder regulamentar”, que pode ser atacado pela via judicial e ainda autoriza o Congresso Nacional a sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar (art. 49, V). (Entre outros precedentes do STF, ver AC 1.033-AgR-QO, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 25-5-2006, Plenário, DJ de 16-6-2006.)

5.3. RESERVA DE LEI E RESERVA DE PARLAMENTO

Tema correlato ao do “decreto autônomo” é o da lei que autoriza a edição de decreto regulamentador que inove a ordem jurídica, desde que obedecendo a parâmetros genéricos constitucionais e legais. O debate gira em torno da eventual delegação inválida de poderes do Legislativo para o Executivo. A delegação de poder legislativo, salvo hipóteses autorizadas na própria Constituição (como, por exemplo, na lei delegada) ofende a separação de poderes, uma vez que tal delegação desnaturaria a divisão de poderes estabelecida pelo Poder Constituinte.

Esse tema é discutido em face do poder normativo das agências reguladoras, que inova a ordem jurídica, autorizado por disposições genéricas das leis instituidoras e também em face de determinadas leis que autorizam atos administrativos de criação de direitos por parte de entes da Administração Pública Direita e Indireta.

Um dos casos ainda em trâmite no STF é o do art. 67 da Lei n. 9.478/97 que dispõe que os contratos celebrados pela Petrobras, para aquisição de bens e serviços, serão precedidos de procedimento licitatório simplificado, a ser definido em decreto do Presidente da República. O Decreto n. 2.745/98 estabeleceu esse procedimento licitatório simplificado, que foi impugnado pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que declarou a inconstitucionalidade do art. 67 da Lei n. 9.478/97 e do Decreto n. 2.745/98, determinando que a Petrobras observasse os ditames da Lei n. 8.666/93 (Lei das Licitações).

No Mandado de Segurança interposto pela Petrobras (ainda em trâmite), o Min. Gilmar Mendes suspendeu, em liminar, a decisão do TCU, decidindo que o art. 177, § 2º, II, da CF/88 permite que a lei estabeleça as condições gerais de contração da Petrobras tendo em vista o novo regime de concorrência a que ela se submete após a Emenda Constitucional n. 09/95 (MS 25.888 MC/DF, Relator Min. Gilmar Mendes, decisão liminar de 22-3-2006). A celeuma está se esse regime especial de contratação não deveria ser detalhado na lei e não em mero decreto. Nem mesmo os critérios e princípios vetores desse procedimento diferenciado (que a Petrobras merece, é claro, pois concorre com empresas privadas que não se submetem à lei das licitações) foram elencados no conciso art. 67 ora em comento.

Ainda nessa temática, em 2011, o STF julgou improcedente (por 8 votos a 2) a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.568 (Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 3-11-2011), em que partidos políticos da oposição impugnaram dispositivos da Lei n. 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, nos quais a fixação do valor do salário mínimo até 2015 ficou por conta de decreto do Presidente da República de acordo com critérios predefinidos pelo legislador.

Para o STF, a lei em questão é constitucional, pois não ofendeu a reserva de lei estabelecida no art. 7º, IV (“salário mínimo, fixado em lei ...”), uma vez que o decreto previsto para apuração e divulgação do novo quantum salarial é norma administrativa meramente declaratória de valor cujos parâmetros (índice de reajuste) foram fixados legalmente. Assim, no caso, a lei em questão fixou os critérios que, após, os decretos presidenciais que fixarem o valor do salário mínimo deverão obedecer.

O voto do Min. Gilmar Mendes, apesar de ter anuído com a maioria, foi extremamente crítico, pois considerou que a Constituição, ao tratar da reserva de lei formal (nos casos em que a Constituição exige lei formal para reger uma matéria), estabelece, em última análise, uma “exigência de Reserva de Parlamento”, o que implicaria exigir dos temas um debate mais amplo, com maior visibilidade e participação da sociedade. Por isso, concluiu o Ministro que a referida lei “transita no limite da constitucionalidade” e só votou a favor de sua constitucionalidade uma vez que há ante a evidente reversibilidade do regime criado pela Lei n. 12.382/2011 por uma lei ordinária posterior (Voto do Min. Gilmar Mendes, ADI 4.568, Relatora Min. Carmen Lúcia, julgamento em 3-11-2011).

Nessa linha, a Constituição de 1988 traria implicitamente o conceito da “Reserva de Parlamento”, que consiste na exigência de necessária discussão de determinados temas no âmbito do Congresso Nacional, no qual a tensão entre a maioria e minoria enriquece o debate em prol da sociedade. Essa “Reserva de Parlamento” é ainda mais importante no Brasil pela histórica alta volatilidade da “maioria congressual”, que é obtida pelo Poder Executivo no início do mandato e depois tende a se desmanchar por interesses eleitorais.

Como exemplos de temas submetidos à “Reserva de Parlamento”, trouxe o voto do Min. Mendes o art. 231, § 5º (“É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”); o art. 49, XIV (“É competência exclusiva do Congresso Nacional: (…) XIV – aprovar iniciativas do Poder Executivo referentes a atividades nucleares”) e ainda o art. 225, § 6º (“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (…) § 6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas”).

5.4. REGIMENTO DE TRIBUNAIS E RESERVA DE LEI

Outro ponto sempre questionado no que tange ao princípio da legalidade é o papel que cabe ao regimento interno de um tribunal. A Constituição estabelece, em seu art. 22, I, que a competência para legislar sobre Direito Processual é da União; porém, o art. 96, I, a, da CF/88 dispõe que compete aos Tribunais “elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos”.

Assim, o regimento interno dos tribunais, por força de expressa disposição da Constituição, podem reger a organização judiciária, levando em consideração as normas processuais ditadas pela lei.

Há uma integração de critérios preestabelecidos na Constituição, nas leis e nos regimentos internos dos tribunais. Esse foi o caso da criação, por normas regimentais, de Varas Federais Especializadas em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e de Lavagem ou Ocultação de Bens, Direitos e Valores, que, por não terem sido criadas por lei, foram questionadas pela Defesa de diversos investigados e réus. Esse foi o caso da alegação de inconstitucionalidade da Resolução n. 10-A/2003, do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, que regulamentou a Resolução n. 314/2003, do Conselho da Justiça Federal – CJF, tendo especializado vara federal criminal para processar e julgar os crimes contra o sistema financeiro nacional e de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores. Entretanto, o STF decidiu que essa especialização é constitucional, pois a Constituição permite que os regimentos fixem normas de organização judiciária respeitando as normas processuais gerais (HC 88.660, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 15-5-2008, Plenário, Informativo 506).

No mesmo sentido, decidiu o STF que, “com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a). São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição” (ADI 2.970, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-4-2006, Plenário, DJ de 12-5-2006).

5.5. RESOLUÇÕES DO CNJ E DO CNMP

Outro tema recente envolvendo a eventual inconstitucionalidade de atos administrativos que inovam a ordem jurídica diz respeito às resoluções administrativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Os precedentes mais rumorosos dizem respeito às Resoluções do CNJ. Nesse caso, prevê laconicamente o inciso I do § 4º do art. 103-B da CF/88 que cabe ao CNJ “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências”.

Restam dúvidas sobre o que significaria “no âmbito de sua competência”, em especial porque a Constituição estabelece que compete a Lei Complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, dispor sobre o Estatuto da Magistratura (atualmente a Lei Complementar n. 35/79).

Assim, várias resoluções do CNJ foram questionadas perante o STF, alegando-se extrapolação de sua função administrativa, o que acarretaria violação das competências do Poder Legislativo. O caso mais rumoroso referente ao poder normativo do CNJ foi relativo à Resolução CNJ n. 07/2005, que proibiu práticas de nepotismo, como, por exemplo, o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada, no âmbito da jurisdição de cada Tribunal ou Juízo, por cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, dos respectivos membros ou juízes vinculados.

O STF, por maioria – vencido o Ministro Marco Aurélio –, decidiu ser constitucional a resolução, pois essas restrições contra nepotismo teriam sido impostas pela própria Constituição de 1988, por meio dos princípios da impessoalidade, da eficiência, da igualdade e da moralidade (ADC 12, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 20-8-2008, Plenário, DJE de 18-12-2009).

O STF foi coerente e considerou que outros atos administrativos contrários ao nepotismo não eram ilegais ou inconstitucionais. O fundamento foi o da vedação implícita na Constituição a essa prática de contratação de parentes. Nessa linha, decidiu o STF que “a vedação do nepotismo não exige a edição de lei formal para coibir a prática”, pois essa proibição “decorre diretamente dos princípios contidos no art. 37, caput, da CF” ( passagens do RE 579.951, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 20-8-2008, Plenário, DJE de 24-10-2008, com repercussão geral).

5.6. PRECEDENTES DIVERSOS DO STF

Inconstitucionalidade dos Decretos Autônomos. “Se a interpretação administrativa da lei, que vier a consubstanciar-se em decreto executivo, divergir do sentido e do conteúdo da norma legal que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha este se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade, a inviabilizar, em consequência, a utilização do mecanismo processual da fiscalização normativa abstrata. O eventual extravasamento, pelo ato regulamentar, dos limites a que materialmente deve estar adstrito poderá configurar insubordinação executiva aos comandos da lei” (ADI 996-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 11-3-1994, Plenário, DJ de 6-5-1994).

Inconstitucionalidade dos Decretos Autônomos. “Decretos existem para assegurar a fiel execução das leis (art. 84, IV, da CF/1988). A EC 8 de 1995 – que alterou o inciso XI e alínea a do inciso XII do art. 21 da CF – é expressa ao dizer que compete à União explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei. Não havendo lei anterior que possa ser regulamentada, qualquer disposição sobre o assunto tende a ser adotada em lei formal. O decreto seria nulo, não por ilegalidade, mas por inconstitucionalidade, já que supriu a lei onde a Constituição a exige. A Lei 9.295/1996 não sana a deficiência do ato impugnado, já que ela é posterior ao decreto” (ADI 1.435-MC, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 27-11-1996, Plenário, DJ de 6-8-1999).

Reserva legal. Instituição de emolumentos cartorários por resolução do Tribunal de Justiça. Impossibilidade. “A instituição dos emolumentos cartorários pelo Tribunal de Justiça afronta o princípio da reserva legal. Somente a lei pode criar, majorar ou reduzir os valores das taxas judiciárias. Precedentes. Inércia da União Federal em editar normas gerais sobre emolumentos. Vedação aos Estados para legislarem sobre a matéria com fundamento em sua competência suplementar. Inexistência” (ADI 1.709, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 10-2-2000, Plenário, DJ de 31-3-2000).

Nova redação do artigo 84, VI. Decreto Presidencial válido. “Pagamento de servidores públicos da administração federal. Liberação de recursos. Exigência de prévia autorização do Presidente da República. Os arts. 76 e 84, I, II e VI, a, todos da CF, atribuem ao Presidente da República a posição de chefe supremo da administração pública federal, ao qual estão subordinados os Ministros de Estado. Ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, diante da nova redação atribuída ao inciso VI do art. 84 pela EC 32/2001, que permite expressamente ao Presidente da República dispor, por decreto, sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando isso não implicar aumento de despesa ou criação de órgãos públicos, exceções que não se aplicam ao decreto atacado” (ADI 2.564, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 8-10-2003, Plenário, DJ de 6-2-2004).

Reserva legal. Aumento de servidores públicos por ato administrativo. Impossibilidade. “Em tema de remuneração dos servidores públicos, estabelece a Constituição o princípio da reserva de lei. É dizer, em tema de remuneração dos servidores públicos, nada será feito senão mediante lei, lei específica. CF, art. 37, X, art. 51, IV, art. 52, XIII. Inconstitucionalidade formal do Ato Conjunto 1, de 05-11-2004, das Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados” (ADI 3.369-MC, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-12-2004, Plenário, DJ de 18-2-2005.) No mesmo sentido: ADI 3.306, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-3-2011, Plenário, DJE de 7-6-2011.

Teto de remuneração de servidor público por decreto. Aplicabilidade imediata da Constituição. Possibilidade. “Servidor público: teto de remuneração (CF, art. 37, XI): autoaplicabilidade. Dada a eficácia plena e a aplicabilidade imediata, inclusive aos entes empresariais da administração indireta, do art. 37, XI, da Constituição, e do art. 17 do ADCT, a sua implementação – não dependendo de complementação normativa – não parece constituir matéria de reserva à lei formal e, no âmbito do Executivo, à primeira vista, podia ser determinada por decreto, que encontra no poder hierárquico do Governador a sua fonte de legitimação” (ADI 1.590-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 19-6-1997, Plenário, DJ de 15-8-1997).

Reserva legal e aumento da alíquota do Imposto de Importação por Decreto. Possibilidade. “É compatível com a Carta Magna a norma infraconstitucional que atribui a órgão integrante do Poder Executivo da União a faculdade de estabelecer as alíquotas do Imposto de Exportação. Competência que não é privativa do Presidente da República. Inocorrência de ofensa aos arts. 84, caput, IV, e parágrafo único, e 153, § 1º, da CF ou ao princípio de reserva legal. Precedentes. Faculdade discricionária atribuída à Câmara de Comércio Exterior – CAMEX, que se circunscreve ao disposto no Decreto-Lei 1.578/1977 e às demais normas regulamentares” (RE 570.680, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 28-10-2009, Plenário, DJE de 4-12-2009, com repercussão geral).

Reserva legal e crimes militares. “Os crimes militares situam-se no campo da exceção. As normas em que previstos são exaustivas. Jungidos ao princípio constitucional da reserva legal – inciso XXXIX do art. 5º da carta de 1988 – Hão de estar tipificados em dispositivo próprio, a merecer interpretação estrita. Competência – Homicídio – Agente: militar da reserva – Vítima: policial militar em serviço. Ainda que em serviço a vítima – policial militar, e não militar propriamente dito – a competência é da Justiça comum. Interpretação sistemática e teológica dos preceitos constitucionais e legais regedores da espécie” (HC 72.022, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 9-2-1995, Plenário, DJ de 28-4-1995).

Legalidade e cola eletrônica. Vazio legislativo penal até dezembro de 2011. “Não se pode pretender a aplicação da analogia para abarcar hipótese não mencionada no dispositivo legal (analogia in malam partem). Deve-se adotar o fundamento constitucional do princípio da legalidade na esfera penal. Por mais reprovável que seja a lamentável prática da ‘cola eletrônica’, a persecução penal não pode ser legitimamente instaurada sem o atendimento mínimo dos direitos e garantias constitucionais vigentes em nosso Estado Democrático de Direito. Denúncia rejeitada, por maioria, por reconhecimento da atipicidade da conduta descrita nos autos como ‘cola eletrônica’”(Inq 1.145, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 19-12-2006, Plenário, DJE de 4-4-2008.) Esse precedente motivou a edição da Lei n. 12.550, de 16 de dezembro de 2011, que criou o novo tipo penal do art. 311-A no CP, sobre “fraudes em certames de interesse público: Utilizar ou divulgar, indevidamente, com o fim de beneficiar a si ou a outrem, ou de comprometer a credibilidade do certame, conteúdo sigiloso de: I – concurso público; II – avaliação ou exame públicos; III – processo seletivo para ingresso no ensino superior; ou IV – exame ou processo seletivo previstos em lei: Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Crime de responsabilidade e reserva legal. Competência privativa da União. “Entenda-se que a definição de crimes de responsabilidade, imputáveis embora a autoridades estaduais, é matéria de Direito Penal, da competência privativa da União – como tem prevalecido no Tribunal – ou, ao contrário, que, sendo matéria de responsabilidade política de mandatários locais, sobre ela possa legislar o Estado-membro – como sustentam autores de tomo – o certo é que estão todos acordes em tratar-se de questão submetida à reserva de lei formal, não podendo ser versada em decreto legislativo da Assembleia Legislativa” (ADI 834, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-2-1999, Plenário, DJ de 9-4-1999).

6. Direito à integridade física e psíquica

Art. 5º, III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;

6.1. DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL

O direito à integridade física consiste na intangibilidade física do ser humano, que merece proteção contra tratamento degradante, desumano ou tortura. Já o direito à integridade psíquica ou moral implica a vedação do tratamento desonroso ou que cause sofrimento psíquico desnecessário ou odioso.

A Constituição de 1988 trata explicitamente da integridade física e moral no art. 5º, XLIX (é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral) e ainda no que tange à aposentadoria de servidores públicos (art. 40, § 4º, III) e dos segurados do regime geral da previdência social (art. 201, § 1º), dispondo, em ambos os casos, que a lei estabelecerá regime diferenciado em caso de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a integridade física.

Implicitamente, o direito à integridade física e moral decorre do art. 5º, III, que protege o ser humano contra a tortura, tratamento degradante e desumano (III ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante), a ser estudado no próximo item.

A Declaração Universal de Direitos Humanos prevê que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” (artigo V). Já Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe que “Art. 5. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”.

No Brasil, a intangibilidade física também impede que haja condutas invasivas do corpo humano, sem a anuência do titular, salvo para proteção de outros valores constitucionais, como, por exemplo, para salvar sua vida.

No campo penal, a utilização contra a vontade do titular de partes do seu corpo para fins probatórios será enfrentada no comentário ao art. 5º, LXIII (“o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”), que concretiza o direito de não ser obrigado a se autoincriminar (garantia contra a autoincriminação, nemo tenetur se detegere).

No campo cível, discutiu-se a intangibilidade física nos casos de não cooperação do réu em ação cível de investigação de paternidade, que se recusa a fornecer material para o exame de DNA. Apesar do altíssimo grau de certeza do DNA, que asseguraria o direito da personalidade de se conhecer sua própria ascendência, o STF decidiu, por maioria, que a integridade física, no caso, prepondera, devendo o juiz da causa utilizar a presunção de paternidade em desfavor daquele que recusou o exame e outros elementos que constem do processo (testemunhas do relacionamento amoroso, correspondência etc. – STF, HC 71.373, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10-11-1994, Plenário, DJ de 22-11-1996).

6.2. A TORTURA (ART. 5º, III E XLIII) E SEU TRATAMENTO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL

A Constituição dispõe, no inciso III do art. 5º, que “ninguém será submetido à tortura”. Logo depois, no inciso XLIII do mesmo art. 5º, impõe que a lei “considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, (...)”, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Retomou-se, então, a previsão da Constituição Imperial de 1824, que em seu art. 179, XIX, estabeleceu: “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais penas cruéis”.

A tortura foi sistematicamente utilizada pelo regime militar no Brasil (1964-1988) em diversos presos políticos, sendo a apuração de tais fatos bárbaros um dos objetivos da Comissão Nacional da Verdade instituída pela Lei n. 12.528/2011.

A Constituição de 1988 não definiu “tortura”, tendo deixado tal tarefa para a jurisprudência, secundada pelos tratados internacionais e pela lei (9.455/97).

Para a jurisprudência do STF, decidiu o Ministro Celso de Mello que “... o delito de tortura – por comportar formas múltiplas de execução – caracteriza-se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade” (passagem de voto, grifo nosso, HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ de 10-8-2001).

A Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, adotada em 10 de dezembro de 1984 (promulgada internamente pelo Decreto n. 40, de 15-2-1991), designa tortura como qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”.

A Convenção ainda determina que não se considerará como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram. Por sua vez, a Convenção da ONU, em seu art. 5º, § 2º, estabelece o princípio do aut dedere, aut judicare, pelo qual o Estado contratante tem o dever de extraditar ou julgar o torturador que esteja sob sua jurisdição, não importando a nacionalidade do autor, vítima ou local que a tortura tenha ocorrido. Também estabelece o art. 5º o dever do Estado de criminalizar a tortura, no caso dela ocorrer em seu território (princípio da territorialidade da lei penal), ou, caso ocorra fora do seu território, for seu nacional o autor (princípio da nacionalidade ativa, justificando a extraterritorialidade da lei penal) ou a vítima (princípio da nacionalidade passiva).

Assim, para essa Convenção, a tortura é ato que inflige dores ou sofrimentos agudos (físicos ou mentais), por agente público (direta ou indiretamente), para: 1) obter confissão; ou 2) obter informação; ou 3) castigar por ato próprio ou de terceiro; ou 4) para intimidar ou coagir; ou 5) por discriminação de qualquer natureza (por exemplo, torturar um homossexual por sua orientação sexual).

A Convenção de 1984 é criticada por ter adotado uma definição estrita de tortura, dando a entender que a tortura não pode ser cometida por omissão e negligência. Também foi alvo de polêmicas a menção a “sanções legítimas” que descaracterizam a tortura, exigência na época da negociação do tratado dos países que adotam castigos corporais. Essa menção a “sanções legítimas” podem ser utilizadas de modo abusivo por países, como os Estados Unidos, interessados em justificar os seus meios de interrogatórios de suspeitos de prática de atos de terrorismo (ver mais sobre tratamento cruel e o art. 16 da Convenção da ONU contra a Tortura abaixo).

Já a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, de 9 de dezembro de 1985 (promulgada internamente pelo Decreto n. 98.386/89), dispõe que a tortura é “todo ato pelo qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena ou com qualquer outro fim”. Tal convenção cria uma figura equiparada de tortura, ao dispor que também é tortura “a aplicação, sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental, embora não causem dor física ou angústia psíquica” (art. 2º, parte final). A Convenção dispõe que não estarão compreendidos no conceito de tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequências unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decorram.

Comparando a Convenção das Nações Unidas de 1984 com a Convenção Interamericana de 1985, temos as seguintes convergências:

a) ambas considerando tortura como “sofrimentos físicos e mentais”;

b) para fins de investigação penal, intimidação, castigo pessoal.

Já as divergências são as seguintes:

a) só a Convenção da ONU exige que a tortura seja feita por agente público ou com sua aquiescência;

b) só a Convenção da ONU exige que o sofrimento seja agudo;

c) a Convenção Interamericana tipifica como tortura o ato de imposição de sofrimento físico e psíquico com “qualquer fim”;

d) a Convenção Interamericana admite que pode ser tortura determinada pena ou medida preventiva;

e) a Convenção Interamericana criou a “figura equiparada”, ou seja, são equiparadas a tortura medidas que não infligem dor ou sofrimento, mas diminuem a capacidade física ou mental.

Além dessas definições, cabe lembrar que o Estatuto de Roma (que criou o Tribunal Penal Internacional) definiu tortura como sendo o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que esteja sob a custódia ou o controle do acusado; este termo não compreende a dor ou os sofrimentos resultantes unicamente de sanções legais, inerentes a essas sanções ou por elas ocasionadas (artigo 7.2).

O STF utilizou a definição de tortura prevista na Convenção da ONU de 1984 (incorporada internamente em 1991) para dar sentido ao tipo estabelecido no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“Art. 233. Submeter criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância a tortura: Pena – reclusão de um a cinco anos – HC 70.389/SP, Rel. p/ o ac. Min. Celso de Mello, DJ de 10-8-2001).

6.2.1. O crime de tortura previsto na Lei n. 9.455/97

A Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, define tortura como sendo “constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação racial ou religiosa”.

Ainda, há o subtipo de tortura que consiste em submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Há outro subtipo de tortura que determina que, na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

Comparando o disposto nos diplomas internacionais ratificados pelo Brasil e a Lei n. 9.455/97, nota-se que a lei brasileira é mais próxima do diploma interamericano, pois é mais geral que a Convenção da ONU, que considera essencial ser a tortura cometida por agente público ou com sua aquiescência.

Assim, para a Lei brasileira, a tortura exige: 1) sofrimento físico ou mental causado a alguém; 2) emprego de violência ou grave ameaça; 3) para obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa; 4) ou para provocar ação ou omissão de natureza criminosa; 5) ou, então, em razão de discriminação racial ou religiosa.

O tipo penal nacional não contempla a violência imprópria, por meio de uso de droga ou outra substância análoga. Assim, a tortura provocada pelo uso de droga pode configurar, por exemplo, crime de abuso de autoridade. Por outro lado, o subtipo de tortura relativo à aplicação de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo, bem como o subtipo referente à tortura contra pessoa presa ou sujeita a medida de segurança, são semelhantes ao disposto na Convenção Interamericana. A qualidade de agente público é causa de aumento de pena (de um sexto até um terço) de acordo com a Lei n. 9.455/97.

Por seu turno, o art. 1º, § 6º, da Lei n. 9.455/97 determina que o crime de tortura é inafiançável e insuscetível de graça e anistia, reproduzindo o art. 5º, XLIII, da CF/88. A lei não impede a concessão do indulto, uma vez que o art. 84, XII, da CF/88, referente ao indulto, nenhuma restrição impõe.

Quanto à extraterritorialidade da jurisdição que incumbe ao Brasil pelo art. 7º da Convenção da ONU de 1984, o art. 2º da Lei n. 9.455/97 determina que a lei é aplicável –ainda quando o crime não tenha sido cometido no território nacional, desde que a vítima brasileira ou ainda encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira. Assim, há dois casos de extraterritorialidade: 1) pelo princípio da personalidade passiva, quando a vítima da tortura for brasileira; e 2) pelo princípio da universalidade da jurisdição, quando o agente encontra-se em território brasileiro.

Por fim, o art. 4º da Lei n. 9.455/97 revogou expressamente o art. 233 da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Consequentemente, a tortura realizada em criança ou adolescente é regida pela Lei n. 9.455/97, que, nesse caso, prevê tal situação como causa de aumento de pena de um sexto até um terço (art. 1º, § 4º, II). Também é causa de aumento de pena na mesma dosagem o crime contra gestante, portador de deficiência ou maior de 60 (sessenta) anos, ou ainda se o crime é cometido mediante sequestro.

QUADRO DA LEI N. 9.544/97

Constitui crime de tortura

A) Constranger alguém com violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a.1) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

a.2) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

a.3 ) em razão de discriminação racial ou religiosa (cuidado, não é todo tipo de discriminação)

B) Submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental:

b.1) como forma de aplicar castigo pessoal;

b.2) medida de caráter preventivo (intimidação).

6.2.2. O tratamento desumano ou degradante

A Constituição de 1988 prevê a proibição do “tratamento desumano ou degradante” no mesmo inciso III do art. 5º, que veda ainda a tortura. O tratamento desumano ou degradante consiste em toda conduta que leva a humilhações, rebaixando e erodindo a autoestima e a estima social de uma pessoa, violando sua dignidade. O tratamento desumano abarca o degradante: o tratamento desumano é aquele que humilha e degrada, e, além disso, provoca severo sofrimento físico ou mental irrazoável (por isso, desumano). O tratamento degradante é aquele que cria em suas vítimas o sentimento de inferioridade e humilhação.

Vários precedentes da Corte Europeia de Direitos Humanos confirmam a diferença entre tortura e tratamento desumano. Para a Corte EDH, intérprete da Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950), a tortura é uma conduta (ação ou omissão) pela qual é imposto intenso sofrimento físico ou mental, com uma finalidade que pode ser obter confissão ou informação, castigar, intimidar, em razão de discriminação, quando o responsável for agente público. Assim, a tortura seria o tratamento desumano agravado e com finalidade específica.

No Brasil, a tortura também tem finalidade específica (ver a Lei n. 9.455/97 acima comentada). Os demais tratamentos degradantes podem ser objeto do tipo de maus-tratos (art. 136 do CP: “Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina”) ou ainda abuso de autoridade (Lei n. 4.898, de 9-12-1965).

6.2.3. Tortura e penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes como conceito integral. Diferenciação entre os elementos do conceito na jurisprudência da Corte Europeia de Direitos Humanos (caso irlandês) e seus reflexos no art. 16 da Convenção da ONU contra a Tortura de 1984

A Convenção contra a Tortura e tratamento desumano e degradante criou uma divisão entre “tortura” e outros atos que constituem tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, mas que não são considerados “tortura”, tal como definida no art. 1º da Convenção. De acordo com o art. 16 da Convenção, os Estados se comprometem a coibir e punir tais atos, quando forem cometidos por funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência.

A inspiração da redação do art. 16 foi fruto de tratamento desumano a prisoneiros realizado em plena Europa democrática, no seio da luta antiterrorista britânica. Em 1971, o Reino Unido deflagrou a “Operação Demetrius” para reprimir ativistas suspeitos de integrar ou apoiar o IRA (Irish Revolutionary Army) na Irlanda do Norte e deteve quase 350 pessoas. Várias delas foram submetidas às chamadas “5 técnicas” (“five techniques”) de interrogatório, que consistiam em: obrigação de ficar de pé por horas e horas, usar capuz cobrindo toda a cabeça (retratado em foto célebre de prisioneiro iraquiano na Prisão de Abu Ghraib, Iraque, feita por soldados norte-americanos), sujeição a ruído excessivo, privação de sono e privação de comida e água por prazo indeterminado. Tudo voltado para desorientar, enfraquecer, gerar privação de sentidos, intimidar, obtendo a total sujeição do prisioneiro para seus propósitos.

Essas técnicas são comumente conhecidas como “tortura invisível” e foram usadas também por diversas ditaduras no mundo. A Irlanda, então, processou o Reino Unido perante a Corte Europeia de Direitos Humanos (Corte EDH), na primeira demanda interestatal de todo o sistema europeu de direitos humanos20. Porém, a Corte EDH, em julgamento de 18 de janeiro de 1978, considerou que tais técnicas não eram tortura, mas sim tratamento cruel e desumano, proibido no art. 3º da Convenção Europeia de Direitos Humanos.

Por isso, em 1984, a Convenção da ONU quis evitar que Estados utilizassem essas técnicas (e outras) sob a alegação de que não se trataria de “tortura”. Pelo art. 16 da Convenção, o tratamento cruel, degradante e desumano também deve ser coibido e punido.

Em 1999, mostrando a evolução do sistema europeu de direitos humanos, a Corte EDH modificou sua posição, citando expressamente a Convenção da ONU contra a Tortura de 1984, no Caso Selmouni vs. França e considerou que atos como submeter o prisioneiro a “corredor polonês” (fazê-lo correr entre duas fileiras de policiais e ser espancado), assediá-lo verbalmente pela sua origem árabe, ser alvo de urina de um policial, obrigá-lo a simular sexo oral com um policial, ameaçá-lo com uma seringa, entre diversas outras condutas descritas no caso, foram além do tratamento degradante e consistiram em tortura. Para a Corte EDH, a tortura pode ser sintetizada em atos, com características cruéis e severas, de violência física e mental, considerados em seu conjunto, que causam dor e sofrimento agudo. Com isso, a Corte modificou seu posicionamento, uma vez que adota a interpretação evolutiva da Convenção Europeia de Direitos Humanos (tida como um “instrumento vivo”), sustentando que atos que hoje são caracterizados como degradantes ou desumanos podem, no futuro, ser caracterizados como tortura.

6.2.4. Experimentação humana e seus limites bioéticos: casos de convergência com o conceito de tortura

O uso de seres humanos como cobaias não voluntárias em pesquisas “médicas” pode gerar sofrimento agudo que converge com o conceito de tortura.

Há vários casos dramáticos da história, como os envolvendo experimentos nazistas do Dr. Josef Mengele (conhecido como “Anjo da Morte” e morto sob nome falso em Bertioga, São Paulo, em 1979) ou os da Unidade 731 das forças japonesas de ocupação na China (1933-1945), que levaram à realização de testes sobre a tolerância do corpo humano à dor, à hipotermia, a doenças infecciosas, ao uso intenso de água salgada, entre outros, impondo sofrimento e dor intensos.

Em 2009, o Presidente Barack Obama instituiu a Comissão Presidencial para Estudo de Questões Bioéticas, que, entre outros, investigou a experimentação não voluntária em seres humanos feita por pesquisadores norte-americanos na Guatemala, durante os anos 40 do século passado, por meio da inoculação de doenças sexualmente transmissíveis (em especial sífilis).

O Direito Internacional Humanitário prevê que é crime de guerra as violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de agosto de 1949, a saber, qualquer ato de tortura ou outros tratamentos desumanos, incluindo as experiências biológicas, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos das Convenções de Genebra (art. 8º, § 2º, do Estatuto de Roma, já incorporado internamente pelo Decreto n. 4.388/2002).

6.3. PRECEDENTES DO STF E DO STJ

Integridade Física e Exame Compulsório de DNA em Ação de Investigação de Paternidade. Impossibilidade. “Discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas – preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer – provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, ‘debaixo de vara’, para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos” (HC 71.373, Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10-11-1994, Plenário, DJ de 22-11-1996).

Integridade Física e Exame de DNA, sem consentimento da mulher, na placenta após sua expulsão do corpo. Possibilidade. “Coleta de material biológico da placenta, com propósito de fazer exame de DNA, para averiguação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. (...) Bens jurídicos constitucionais como ‘moralidade administrativa’, ‘persecução penal pública’ e ‘segurança pública’ que se acrescem – como bens da comunidade, na expressão de Canotilho – ao direito fundamental à honra (CF, art. 5º, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho” (STF, Rcl 2.040-QO, Rel. Min.Néri da Silveira, julgamento em 21-2-2002, Plenário, DJ de 27-6-2003).

Algemas e infâmia social. “As algemas, em prisões que provocam grande estardalhaço e comoção pública, cumprem, hoje, exatamente o papel da infâmia social. E esta é uma pena que se impõe antes mesmo de se finalizar a apuração e o processo penal devido, para que se fixe a punição necessária a fim de que a sociedade imponha o direito a que deve se submeter o criminoso. Se a prisão é uma situação pública – e é certo que a sociedade tem o direito de saber quem a ela se submete – é de se acolher como válida juridicamente que se o preso se oferece às providências policiais sem qualquer reação que coloque em risco a sua segurança, a de terceiros e a ordem pública não há necessidade de uso superior ou desnecessário de força ou constrangimento. Nesse caso, as providências para coagir não são uso, mas abuso de medidas e instrumentos. E abuso, qualquer que seja ele e contra quem quer que seja, é indevido no Estado Democrático. A Constituição da República, em seu art. 5º, III, em sua parte final, assegura que ninguém será submetido a tratamento degradante, e, no inciso X daquele mesmo dispositivo, protege o direito à intimidade, à imagem e à honra das pessoas. De todas as pessoas, seja realçado. Não há, para o direito, pessoas de categorias variadas. O ser humano é um e a ele deve ser garantido o conjunto dos direitos fundamentais. As penas haverão de ser impostas e cumpridas, igualmente por todos os que se encontrem em igual condição, na forma da lei” (STF, HC 89.429, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 22-8-2006, Primeira Turma, DJ de 2-2-2007).

Algemas e Tratamento degradante no Tribunal do Júri. Réu sem passado de violência. Impossibilidade do uso de algemas. Se não há segurança suficiente, deve ser adiada a sessão do júri. “(...). Diante disso, indaga-se: surge harmônico com a Constituição mantê-lo, no recinto, com algemas? A resposta mostra-se iniludivelmente negativa. (...) Da leitura do rol das garantias constitucionais – art. 5º –, depreende-se a preocupação em resguardar a figura do preso. A ele é assegurado o respeito à integridade física e moral – inciso XLIX. (...) Ora, estes preceitos – a configurarem garantias dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no País – repousam no inafastável tratamento humanitário do cidadão, na necessidade de lhe ser preservada a dignidade. Manter o acusado em audiência, com algema, sem que demonstrada, ante práticas anteriores, a periculosidade, significa colocar a defesa, antecipadamente, em patamar inferior, não bastasse a situação de todo degradante. (...) Quanto ao fato de apenas dois policiais civis fazerem a segurança no momento, a deficiência da estrutura do Estado não autorizava o desrespeito à dignidade do envolvido. Incumbia, sim, inexistente o necessário aparato de segurança, o adiamento da sessão, preservando-se o valor maior, porque inerente ao cidadão” (STF, HC 91.952, voto do Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7-8-2008, Plenário, DJE de 19-12-2008.)

Algemas. Uso permitido para proteger direitos de terceiros ou do próprio acusado. “O uso de algemas durante audiência de instrução e julgamento pode ser determinado pelo magistrado quando presentes, de maneira concreta, riscos a segurança do acusado ou das pessoas ao ato presentes” (STF, Rcl 9.468-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 24-3-2011, Plenário, DJE de 11-4-2011).

Tortura e Extradição. Território Palestino, mas ocupado por Israel. Extraterritorialidade da lei, prevista na Convenção da ONU de 1984, no combate à tortura permite a extradição. “(...)a própria natureza do crime de tortura já autoriza a flexibilização da regra geral de competência jurisdicional penal (o princípio da territorialidade da lei incriminadora). (...). Quero dizer: em matéria de delito de tortura, abre-se a oportunidade para que os Estados-partes estabeleçam a sua própria jurisdição criminal, ainda que os delitos objeto de eventual pedido de extradição extrapolem os limites das respectivas fronteiras. Sendo assim, e a partir da simples leitura das alíneas ‘b’ e ‘c’ do parágrafo 1º do Artigo 5º, combinado com o parágrafo 4º do Artigo 8º da ‘Convenção contra a Tortura’, basta a nacionalidade do autor (princípio da nacionalidade ativa) ou da suposta vítima (princípio da nacionalidade passiva) para que o Governo requerente possa, legitimamente, subscrever o pedido de extradição. Isto, não me custa repetir, com apoio na regra da extraterritorialidade da lei criminal, expressamente autorizada pela referida Convenção. (...)” (STF, Ext 1122, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento de 21-5-2009).

Tortura e criança. Caracterização. “Tenho para mim, desse modo, que o policial militar que, a pretexto de exercer atividade de repressão criminal em nome do Estado, inflige, mediante desempenho funcional abusivo, danos físicos a menor momentaneamente sujeito ao seu poder de coerção, valendo-se desse meio executivo para intimidá-lo e coagi-lo à confissão de determinado delito, pratica, inequivocamente, o crime de tortura, tal como tipificado pelo art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, expondo-se, em função desse comportamento arbitrário, a todas as consequências jurídicas que decorrem da Lei 8.072/1990 (art. 2º), editada com fundamento no art. 5º, XLIII, da Constituição” (HC 70.389, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 23-6-1994, Plenário, DJ de 10-8-2001.) O artigo 233 foi expressamente revogado pela Lei n. 9.455/97, que rege o tema no Brasil.

Tortura e criança. Caracterização. “(...) Ressai dos fatos narrados na denúncia que a paciente tinha a guarda provisória e precária da vítima e a submeteu a intolerável e intenso sofrimento psicológico e físico ao praticar, em continuidade delitiva, diversas agressões verbais e violência física, de forma a caracterizar o crime de tortura descrito no art. 1º, inciso II, combinado com o § 4º, inciso II da Lei 9.455/97” (STJ, HC 172.784/RJ, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julgamento em 3-2-2011, 5ª Turma, DJU de 21-2-2011).

Dano Moral imprescritível em caso de tortura, não incidência da prescrição quinquenal de ações contra a Fazenda Pública. “O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática” (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ de 17-2-2003). No mesmo sentido: “Tortura. Dano moral. Fato notório. Nexo causal. Não incidência da prescrição quinquenal –- art. 1º Decreto 20.910/1932. Imprescritibilidade. (...) 11. A dignidade humana desprezada, in casu, decorreu do fato de ter sido o autor torturado revelando flagrante violação a um dos mais singulares direitos humanos, os quais, segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.(...)” (STJ, REsp 1165986/SP, Min. Luiz Fux, julgamento em 16-11-2010, DJU de 4-2-2011).

7. Liberdade de pensamento e expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação

Art. 5º, IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

Art. 5º, V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

Art. 5º, IX – é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;

7.1. CONCEITO E ALCANCE

A liberdade de expressão consiste no direito de manifestar, sob qualquer forma, ideias e informações de qualquer natureza. Por isso, abrange a produção intelectual, artística, científica e de comunicação de quaisquer ideias ou valores. Para o STF, a liberdade de expressão engloba a livre manifestação do pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica (HC 83.125, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-9-2003, Primeira Turma, DJ de 7-11-2003).

A forma não é relevante: o STF decidiu que o gesto de mostrar as nádegas em público, em reação a críticas da plateia em um teatro, ainda que a conduta seja “inadequada e deseducada”, está inserido na liberdade de expressão (HC 83.996/RJ Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-8-2004).

A liberdade de expressão é prevista, inicialmente, no art. 5º, IV, da CF. Há, contudo, dispositivos constitucionais correlatos, como o art. 5º, VI, que dispõe sobre a liberdade religiosa (ver abaixo), ou ainda o art. 5º, IX, que prevê a liberdade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura e licença e o art. 5º, XIV, que assegura o direito ao acesso à informação.

Esses direitos, em seu conjunto, demonstram que a liberdade de expressão possui duas facetas: a que assegura a expressão do pensamento e a que assegura o direito dos demais de receber, sob qualquer forma ou veículo, a manifestação do pensamento de outrem. Nessa linha, a Declaração Universal de Direitos Humanos é clara: a liberdade de opinião e expressão inclui o direito de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras (artigo XIX).

A Constituição de 1988 protege a liberdade de manifestação do pensamento também em outro título da Constituição (Título VIII, referente à “ordem social”), no capítulo da “Comunicação Social”. O art. 220, caput, prevê, novamente, a liberdade de manifestação do pensamento, da criação, da expressão e informação, sob qualquer forma e veículo. O art. 220, § 1º, assegura a liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social e seu § 2º veda expressamente qualquer censura de natureza política, artística ou ideológica.

A repetição da vedação da censura (arts. 5º, IX, e 220, § 2º) não deixa qualquer dúvida sobre a orientação constitucional a favor da liberdade de manifestação, contrária a qualquer forma de censura.

A censura consiste em ato estatal de direcionamento ou vedação da expressão do indivíduo ou da imprensa, o que é proibido pela Constituição. Para o STF, “não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas” (ADI 4.451-REF-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 2-9-2010, Plenário, DJE de 1º-7-2011.) e ainda “(...) a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões” (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009).

7.2. A PROIBIÇÃO DO ANONIMATO, DIREITO DE RESPOSTA E INDENIZAÇÃO POR DANOS

A liberdade de expressão encontra uma série de limitações explícitas na própria Constituição de 1988. Inicialmente, o art. 5º, IV, assegura que é livre a manifestação do pensamento, mas veda expressamente o anonimato.

Essa proibição do anonimato gerou importante discussão sobre as investigações policiais amparadas nos chamados “Disque-Denúncia”, nos quais o anonimato do noticiante é assegurado. A visão consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça determina que a delação anônima (notitia criminis inqualificada) enseja a “diligências preliminares”, que, se confirmarem minimamente o alegado na peça apócrifa (anônima), ensejam a instauração de inquérito policial. Essas diligências preliminares são medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, a verossimilhança dos fatos noticiados anonimamente, a fim de promover, então, em caso positivo, a formal instauração da investigação criminal (ver, entre outros, STF, Inq 1.957, Rel. Min. Carlos Velloso, voto do Min. Celso de Mello, julgamento em 11-5-2005, Plenário, DJ de 11-11-2005). A peça anônima não pode, per se, gerar a imediata instauração de inquérito policial ou ação penal.

Já no inciso V fica consagrada a contrapartida do direito à livre manifestação em uma sociedade democrática: a todos também é assegurado o direito de resposta e a indenização proporcional ao dano ocasionado pela manifestação de pensamento de outrem.

O direito de resposta consiste na possibilidade de replicar ou de retificar matéria publicada, sendo invocável por aquele que foi ofendido em sua honra objetiva ou subjetiva (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009).

Já a indenização proporcional ao dano abarca tanto os danos materiais quanto os morais. Há muitas discussões sobre valores excessivos fixados pelo Judiciário. A antiga Lei de Imprensa (Lei n. 5.250/67) protegia as empresas de comunicação ao estipular um teto para tais valores indenizatórios, o que não foi aceito pelo STF, que considerou que “toda limitação, prévia e abstrata, ao valor de indenização por dano moral, objeto de juízo de equidade, é incompatível com o alcance da indenizabilidade irrestrita assegurada pela atual Constituição da República” (RE 447.584, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 28-11-2006, Segunda Turma, DJ de 16-3-2007).

A linha adotada pela Constituição de 1988 sinaliza que a liberdade de manifestação gera também responsabilização daqueles que dela abusam.

Nesse sentido é também a posição dos textos internacionais de direitos humanos. A Convenção Americana de Direitos Humanos dispõe, em seu art. 13, que a liberdade de expressão não pode estar sujeita à censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente previstas em lei, devendo ainda a lei proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência. A Convenção Europeia de Direitos Humanos bem sintetiza a tensão entre a liberdade de expressão e outros direitos humanos, ao dispor que a liberdade de expressão não pode ser objeto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, em uma sociedade democrática, à segurança pública, à proteção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à proteção dos direitos e liberdades de outrem (art. 9º).

Veremos os principais casos nos quais foram debatidos os limites à liberdade de expressão.

7.3. A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E O “DISCURSO DE ÓDIO” (HATE SPEECH)

O discurso de ódio (hate speech) consiste na manifestação de valores discriminatórios, que ferem a igualdade, ou de incitamento à discriminação, violência ou a outros atos de violação de direitos de outrem. Essa terminologia acadêmica é de extrema atualidade no Brasil e em diversos países no mundo, em face do discurso neonazista, antissemita, islamofóbico, entre outras manifestações de pensamento odiosas.

O STF debateu o caso no chamado “Caso Ellwanger”, no qual, entre outros temas, foram discutidos os limites da liberdade de expressão e seu alcance no caso da publicação de obras antissemitas. De acordo com a maioria dos votos (vencidos os Ministros Marco Aurélio e Carlos Britto, que valorizaram a liberdade de expressão), não há garantia constitucional absoluta. Ou seja, as liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites explícitos e implícitos (fruto da proporcionalidade e ponderação com outros direitos) previstos na Constituição e nos tratados de direitos humanos. A liberdade de expressão não pode ser invocada para abrigar “manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”. Em vários votos, como, por exemplo, o do Min. Gilmar Mendes, foram feitas referências à colisão entre a liberdade de expressão e o direito à igualdade, bem como à dignidade humana. No caso, preponderou o direito à igualdade e a dignidade humana, admitindo-se que não era caso de se privilegiar a liberdade de expressão de ideias racistas antissemitas.

Consequentemente, decidiu o STF que o “preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o ‘direito à incitação ao racismo’, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica” (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004).

Nesse sentido, cabe lembrar o alerta de Daniel Sarmento, que, comparando a visão norte-americana de liberdade de expressão com a brasileira, ponderou que a concepção norte-americana é uma concepção ultra-libertária, sendo um verdadeiro fim em si mesma (não admitindo restrições), e não um instrumento21.

Já no Brasil, adotamos a visão da “liberdade de expressão responsável”, ou seja, com limites explícitos (por exemplo, a vedação ao anonimato, direito de resposta, indenização proporcional ao dano) e implícitos (ponderação com os demais direitos, que, no caso da divulgação de ideias racistas, vulnera o direito à igualdade).

7.4. LEI DE IMPRENSA E REGULAMENTAÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Como visto acima, a liberdade de expressão é tratada tanto no “rol do art. 5º” quanto no capítulo da comunicação social. Essa repetição não é acidental: a comunicação de massa, em diversos países democráticos, é sujeita a regulamentação específica, diferente da que rege a comunicação entre indivíduos.

A liberdade de informação jornalística decorre da liberdade de expressão, mas dela difere: na liberdade de expressão, predomina o discurso direto do emitente, que veicula suas ideias e valores; na liberdade de informação predomina o discurso indireto do emitente, que noticia e veicula fatos ou falas de outrem.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 reiterou o direito à livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação (art. 220, caput), vedando a edição de leis que venham a restringir à liberdade de informação jornalística (art. 220, § 1º), e ainda também proibiu qualquer censura política, ideológica e artística (art. 220, § 2º).

Porém, a CF/88 regulou fortemente o conteúdo transmitido pela comunicação de massa das emissoras de rádio e televisão (que são concessões públicas), ao dispor, em diversos incisos do art. 221, que esses meios devem observar em sua programação uma “preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” (inciso I), além de zelar pela “promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (inciso II), e devem esses veículos acatar a “regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei” (inciso III), e, finalmente, devem obedecer aos “valores éticos e sociais da família” (inciso IV).

Na jurisprudência do STF, prevalece o espírito liberal de valorização da liberdade de expressão, mesmo na comunicação de massa. Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 130, o STF considerou como totalmente não recepcionada pela ordem constitucional a Lei n. 5.250/67 (denominada “Lei da Imprensa”).

Para o STF, o conjunto desses dispositivos constitucionais referentes à “Comunicação Social” (Capítulo V do Título VIII da CF/88) demonstra que os veículos de comunicação de massa representam uma “instituição-ideia”, influenciando cada pessoa e auxiliando a formar a opinião pública.

Nessa linha, o STF sustentou que o capítulo constitucional da comunicação social representa um prolongador de direitos que são emanações da dignidade da pessoa humana: a livre manifestação do pensamento e o direito à informação e à expressão artística, científica, intelectual e comunicacional. Portanto, para o STF, a liberdade de informação jornalística é expressão sinônima de liberdade de imprensa, constituindo-se em um patrimônio imaterial do povo e “irmã siamesa da democracia”. Ou, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “a censura governamental, emanada de qualquer um dos três Poderes, é a expressão odiosa da face autoritária do poder público”. No final, o STF decidiu que, apesar da não recepção da Lei n. 5.250/67, o direito de resposta, nela regulamentado, ainda é cabível, uma vez que é fruto direto do art. 5º, V, da CF/88.

7.5. LIBERDADE DE EXPRESSÃO EM PERÍODO ELEITORAL

O Direito Eleitoral brasileiro, sob a justificativa de impedir manipulação do eleitorado, ofensa à isonomia entre os candidatos ou favorecimento pela mídia de determinado candidato, possui diversos dispositivos de regulamentação da liberdade de expressão no período eleitoral.

Um dos primeiros casos suscitados no STF, ainda em 1994, foi a vedação à utilização de gravações externas, montagens ou trucagens na propaganda eleitoral gratuita. O STF decidiu que essas restrições são constitucionais, uma vez que o acesso ao rádio e à televisão, sem custo para os partidos, dá-se a expensas do erário e deve ocorrer na forma que dispuser a lei, consoante disposição expressa na Carta Federal (art. 17, § 3º). Essas restrições são proporcionais, na ótica do STF, pois visam eliminar desequilíbrios, fruto do poder econômico (por exemplo, vedando computação gráfica e efeitos especiais), assegurando-se a isonomia entre os candidatos (ADI 956, Rel. Min. Francisco Rezek, julgamento em 1º-7-2004, Plenário, DJ de 20-4-2001).

Em 2002, o STF analisou a constitucionalidade da proibição da participação, na propaganda partidária, de pessoa filiada a partido que não o responsável pelo programa (art. 45, § 1º, da Lei n. 9.096/95). Para o STF, essa restrição é constitucional, pois a propaganda partidária “destina-se à difusão de princípios ideológicos, atividades e programas dos partidos políticos, caracterizando-se desvio de sua real finalidade a participação de pessoas de outro partido no evento em que veiculada” (ADI 2.677-MC, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 26-6-2002, Plenário, DJ de 7-11-2003.)

Em 2006, o STF reconheceu a inconstitucionalidade do art. 35-A inserido na Lei n. 9.504/97 (“Lei das Eleições”), que vedava a divulgação de pesquisas eleitorais a partir do décimo quinto dia anterior até às dezoito horas do dia do pleito. Decidiu o STF que essa regra ofendeu o direito à informação garantido pela Constituição Federal e a liberdade de expressão política, sendo, “à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, inadequada, desnecessária e desproporcional quando confrontada com o objetivo pretendido pela legislação eleitoral que é, em última análise, o de permitir que o cidadão, antes de votar, forme sua convicção da maneira mais ampla e livre possível” (ADI 3.741, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6-9-2006, Plenário, DJ de 23-2-2007, Informativo 439 do STF).

Finalmente, em 2011, o STF declarou inconstitucional as proibições às emissoras de rádios e televisões, na programação normal e noticiários, de uso de trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito, a partir de 1º de julho do ano de eleições (art. 45, II, da Lei n. 9.504/97). Nesse caso, o STF fez valer a liberdade de imprensa das empresas de rádio e televisão, que, até aquele momento, estavam impedidas de veicular os tradicionais programas humorísticos expondo criticamente a imagem dos candidatos (ou os próprios) a situações cômicas.

Quanto ao art. 45, , da mesma Lei (proibição de veicular propaganda política ou difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes), o STF deu interpretação conforme à Constituição para considerar conduta vedada, aferida a posteriori pelo Poder Judiciário, a veiculação, por emissora de rádio e televisão, de crítica ou matéria jornalísticas que venham a descambar para a propaganda política, passando, nitidamente, a favorecer uma das partes na disputa eleitoral, de modo a desequilibrar o “princípio da paridade de armas” (ADI 4.451-REF-MC, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 2-9-2010, Plenário, DJE de 1º-7-2011). Essa interpretação conforme permite a matéria jornalística ou crítica opinativa, somente impedindo a chamada “propaganda dissimulada ou disfarçada”.

7.6. OUTROS CASOS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO E SUAS RESTRIÇÕES NO STF

Proteção da Criança e Adolescente e liberdade de expressão e informação. Restrição prevista na lei e não na Constituição. Inconstitucionalidade. “Divulgação total ou parcial, por qualquer meio de comunicação, de nome, ato ou documento de procedimento policial, administrativo ou judicial relativo à criança ou adolescente a que se atribua ato infracional. Publicidade indevida. Penalidade: suspensão da programação da emissora até por dois dias, bem como da publicação do periódico até por dois números. Inconstitucionalidade. A Constituição de 1988 em seu art. 220 estabeleceu que a liberdade de manifestação do pensamento, de criação, de expressão e de informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerá qualquer restrição, observado o que nela estiver disposto. Limitações à liberdade de manifestação do pensamento, pelas suas variadas formas. Restrição que há de estar explícita ou implicitamente prevista na própria Constituição” (ADI 869, Rel. p/o ac. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 4-8-1999, Plenário, DJ de 4-6-2004).

Proibição judicial que impede órgão de imprensa de divulgar teor sigiloso de investigação policial. Não é caso de ofensa à ADPF 130. “Liberdade de imprensa. Decisão liminar. Proibição de reprodução de dados relativos ao autor de ação inibitória ajuizada contra empresa jornalística. Ato decisório fundado na expressa invocação da inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça. Contraste teórico entre a liberdade de imprensa e os direitos previstos nos arts. 5º, X e XII, e 220, caput, da CF. Ofensa à autoridade do acórdão proferido na ADPF 130, que deu por não recebida a Lei de Imprensa. Não ocorrência. Matéria não decidida na ADPF. Processo de reclamação extinto, sem julgamento de mérito. Votos vencidos. Não ofende a autoridade do acórdão proferido na ADPF 130 a decisão que, proibindo a jornal a publicação de fatos relativos ao autor de ação inibitória, se fundou, de maneira expressa, na inviolabilidade constitucional de direitos da personalidade, notadamente o da privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça” (Rcl 9.428, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-12-2009, Plenário, DJE de 25-6-2010).

Tribunal de Contas da União e anonimato permanente do noticiante de irregularidade. Impossibilidade. “A Lei 8.443, de 1992, estabelece que qualquer cidadão, partido político ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU. A apuração será em caráter sigiloso, até decisão definitiva sobre a matéria. Decidindo, o Tribunal manterá ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia (§ 1º do art. 55). Estabeleceu o TCU, então, no seu Regimento Interno, que, quanto à autoria da denúncia, será mantido o sigilo: inconstitucionalidade diante do disposto no art. 5º, V, X, XXXIII e XXXV, da CF” (MS 24.405, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 3-12-2003, Plenário, DJ de 23-4-2004).

Disque-Denúncia. Anonimato. Necessidade de diligências criminais preliminares para só depois instaurar o inquérito policial. “(...) Firmou-se a orientação de que a autoridade policial, ao receber uma denúncia anônima, deve antes realizar diligências preliminares para averiguar se os fatos narrados nessa ‘denúncia’ são materialmente verdadeiros, para, só então, iniciar as investigações. 2. No caso concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais federais diligenciaram no sentido de apurar as identidades dos investigados e a veracidade das respectivas ocupações funcionais, tendo eles confirmado tratar-se de oficiais de justiça lotados naquela comarca, cujos nomes eram os mesmos fornecidos pelos ‘denunciantes’. Portanto, os procedimentos tomados pelos policiais federais estão em perfeita consonância com o entendimento firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito. 3. Habeas corpus denegado” (HC 95.244, Rel. Min. Dias Toffoli, 1ª Turma, julgado em 23-3-2010, publicado no DJ em 30-4-2010).

8. Liberdade de consciência e liberdade religiosa

Art. 5º, VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Art. 5º, VII – é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;

Art. 5º, VIII – ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;

8.1. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA

A liberdade de consciência consiste no direito de possuir, inovar, expressar ou até desistir de opiniões e convicções, assegurando-se o direito de agir em consonância com tais valores. A liberdade de pensamento (vide acima) abarca a liberdade de consciência, mas sua especificação na Constituição realça a importância de se assegurar a livre formação e exteriorização de convicções e valores.

A própria Constituição valoriza a liberdade de consciência ao prever a chamada “escusa de consciência” (ou ainda “imperativo de consciência” ou “objeção de consciência”), que consiste na possibilidade de invocar convicção filosófica, política ou religiosa para não cumprir obrigação legal a todos imposta, devendo cumprir prestação alternativa fixada em lei.

No caso do serviço militar obrigatório, o art. 14, § 1º, dispõe que às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência (pacifistas, por exemplo), entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

A Lei n. 8.239/91 prevê que tal serviço alternativo será prestado em organizações militares da ativa e em órgãos de formação de reservas das Forças Armadas ou em órgãos subordinados aos Ministérios Civis, mediante convênios entre estes e os Ministérios Militares, desde que haja interesse recíproco e, também, sejam atendidas as aptidões do convocado. O indivíduo realizará atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, em substituição às atividades de caráter essencialmente militar. Ao final do período, será conferido Certificado de Prestação Alternativa ao Serviço Militar Obrigatório, com os mesmos efeitos jurídicos do Certificado de Reservista.

Caso haja recusa ou cumprimento incompleto do Serviço Alternativo por motivo de responsabilidade pessoal do interessado, não será emitido o certificado, pelo prazo de dois anos após o vencimento do período que ele teria que ter cumprido. Após esses dois anos, o certificado só será emitido após a decretação, pela autoridade competente, da suspensão dos direitos políticos do inadimplente, que poderá, a qualquer tempo, regularizar sua situação mediante cumprimento das obrigações devidas.

Apesar de minuciosa, a Lei n. 8.239/91 não foi implementada pela União até 2011. Até que tal situação seja alterada, os jovens alistados que alegaram “imperativo de consciência” receberam o “Certificado de Dispensa de Serviço Alternativo”, sem qualquer outro ônus. Mais de 40 mil jovens, de 2002 a 2006, invocaram o “imperativo de consciência”, segundo os dados do Departamento de Mobilização do Ministério da Defesa, que constam de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal em litisconsórcio com o Ministério Público Militar, perante a Justiça Federal de Santa Maria (RS). Em 2011, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou a apelação dessa ação e decidiu que “os mais de vinte anos de vigência da regra da escusa de consciência sem a devida implementação, bem como a ausência de informação clara pelos órgãos responsáveis a respeito do direito”, resultam no dever da União de implementar tal serviço alternativo em um prazo de três anos (Ação Civil Pública, Ap. Cív. 2008.71.02.000356-3/RS. Rel. Des. Federal Marga Inge Barth Tessler, julgamento em 16-3- 2011).

Quanto à obrigação de servir como jurado no Tribunal do Júri, dispõe o art. 438 do CPP que a recusa ao serviço do júri fundada em convicção religiosa, filosófica ou política importará no dever de prestar serviço alternativo, sob pena de suspensão dos direitos políticos, enquanto não prestar o serviço imposto. Esse serviço alternativo consiste no exercício de atividades de caráter administrativo, assistencial, filantrópico ou mesmo produtivo, no Poder Judiciário, na Defensoria Pública, no Ministério Público ou em entidade conveniada para esses fins. Cabe ao juiz fixar o serviço alternativo atendendo aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (art. 438, §§ 1º e 2º, do CPP).

No tocante às obrigações eleitorais, o Código Eleitoral prevê que o eleitor que, sendo obrigado (o voto no Brasil é obrigatório a todos os brasileiros, alfabetizados, dos 18 aos 70 anos), deixar de votar e não se justificar até 60 dias após a realização da eleição deverá pagar multa (art. 7º do CE). A inscrição eleitoral será cancelada nos seguintes casos se o eleitor, por três eleições consecutivas não votar, nem justificar a sua ausência ou, finalmente, não pagar a multa por não ter votado e não ter justificado. Com o cancelamento da inscrição, ele não poderá exercer seus direitos políticos, até que cumpra suas obrigações eleitorais pagando a multa.

No caso da alegação, pelo eleitor, de convicções filosóficas contrárias a sua participação no processo eleitoral (como eleitor ou mesário), não há “prestação alternativa” como prevê a Constituição. O pagamento de multa não serve como “serviço alternativo”, pois tem cunho punitivo, o que não é o caso do serviço alternativo preconizado pela Constituição de 1988.

8.2. LIBERDADE DE CRENÇA OU DE RELIGIÃO

A liberdade de crença e religião é faceta da liberdade de consciência, consistindo no direito de adotar qualquer crença religiosa ou abandoná-la livremente, bem como praticar seus ritos, cultos e manifestar sua fé, sem interferências abusivas.

A proteção da liberdade de crença ou religião impede a punição daquele que a invoca para não cumprir obrigação legal a todos imposta, como vimos acima na análise da “escusa de consciência”, como também impede que alguém seja obrigado a acreditar em algum culto ou religião ou impelido a renunciar ao que acredita.

Fica estabelecido o marco de tolerância a toda e qualquer religião, devendo o Estado ter uma postura de neutralidade sem favorecer ou prejudicar qualquer uma delas. O art. 19 da CF qualifica o Estado brasileiro como Estado laico, uma vez que veda a qualquer ente federativo estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

A laicidade do Estado, no Brasil, foi consagrada somente na Constituição de 1891 e suas sucessoras. Na Constituição imperial de 1824, houve a adoção da religião católica como oficial do Estado (Estado Confessional, art. 5º) e prevalecia o regalismo, que consiste na subordinação da Igreja ao Estado em seus assuntos internos (por exemplo, pelo art. 102, II, cabia ao Imperador nomear os Bispos).

Por outro lado, há outros comandos da Constituição de 1988 que fazem remissão à fé e a religiões, a saber:

1) a expressão “sob a proteção de Deus” no Preâmbulo da CF/88;

2) a escolha do descanso semanal “preferencialmente aos domingos” prevista no art. 7º, XV, fruto do dia do descanso preconizado pelo cristianismo;

3) a previsão de colaboração do Estado com entes religiosos, caso isso seja “de interesse público” (art. 19, I);

4) a previsão de dispensa do serviço militar obrigatório em tempo de paz aos eclesiásticos (art. 143, § 2º);

5) a previsão do ensino religioso, de matrícula facultativa, como disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (art. 210, § 1º);

6) o art. 5º, VII, assegura, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva.

Quanto ao conteúdo do ensino religioso em escolas públicas, há duas visões sob o tema. A primeira visão, tradicional, sustenta que o ensino tem conteúdo vinculado ao ensino dos dogmas de determinada fé, devendo ser ofertadas várias opções aos alunos, de acordo com o interesse, podendo ser os professores vinculados a igrejas ou cultos, sendo vedado qualquer forma de doutrinação ou proselitismo.

A segunda visão defende que o ensino religioso em escola pública deve consistir na exposição das doutrinas e história das religiões, bem como da análise de posições não religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores, que devem ser professores da própria rede pública. Essa segunda posição foi defendida pela Procuradoria-Geral da República, ao propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.439/2010 (ainda não julgada) perante o Supremo Tribunal Federal, questionando a Lei n. 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) e a Concordata Brasil-Santa Sé (tratado incorporado internamente pelo Decreto 77.107/2010).

Quanto à prestação de assistência religiosa nos estabelecimentos civis e militares de internação coletiva (quartéis, presídios, hospitais públicos, entre outros), há um direito que exige do Estado a implementação das condições materiais mínimas para a realização do culto, sem discriminação de qualquer um, desde que solicitados pelos internos.

8.3. LIMITES À LIBERDADE DE CRENÇA E RELIGIÃO

Há limites à liberdade de crença e religião, que são oriundos da necessária convivência com outros direitos e valores constitucionais. Entre as situações analisadas pelo Judiciário estão:

1) Colisão entre a liberdade de religião, no que diz respeito à liberdade de culto, e o direito à integridade psíquica, no caso do uso de alto-falantes, com ruídos acima do permitido. Há ponderação de valores, não podendo a liberdade de religião impor, de modo desproporcional, ofensa ao sossego e descanso dos demais, que compõem o direito à integridade psíquica e à saúde.

2) Solicitação de data alternativa para realização de exames e concursos públicos. Há diversas ações judiciais e pleitos administrativos no Brasil que exigem a mudança de datas de provas e exames em nome de crença de candidato que o impede de realizar a prova no dia ou horário previsto ordinariamente. Em alguns casos, é possível que o pedido do candidato seja atendido pela própria Administração, sem maiores ônus e sem que a igualdade entre os candidatos seja afetada (pela realização de prova de conteúdo diferente em outra data), como, por exemplo, a realização de prova em horário diferente porém com incomunicabilidade do candidato beneficiado, evitando a quebra do sigilo da prova, que será a mesma para todos. Porém, em vários casos, o indivíduo pleiteia que a prova seja diferente, o que torna impossível a manutenção da igualdade no concurso: a prova terá que ser diferente para o candidato que alegou óbice religioso para fazer no mesmo dia dos demais candidatos. Teremos, então, a necessidade de se ponderar o dispositivo constitucional da igualdade (art. 5º, caput) e a liberdade de religião (art. 5º, VIII), que proíbe a privação de direitos devido à crença religiosa. Defendemos que é possível conciliar esses dois direitos na maior parte dos casos, como, por exemplo, pelo uso da diferenciação de horários com incomunicabilidade do candidato que alega óbice religioso para não fazer no horário normal (uso do critério da concordância prática entre esses dois direitos, ou ainda da acomodação razoável). O STF, em 2011, reconheceu a repercussão geral dessa questão no Recurso Extraordinário 611.874, ainda não julgado, tendo como relator o Min. Dias Toffoli.

3) Posição provisória do STF recusando mudança de data do ENEM para aluno da fé judaica. Prevalência da igualdade em detrimento da liberdade de religião. “Pedido de restabelecimento dos efeitos da decisão do Tribunal a quo que possibilitaria a participação de estudantes judeus no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) em data alternativa ao Shabat. (...) Em mero juízo de delibação, pode-se afirmar que a designação de data alternativa para a realização dos exames não se revela em sintonia com o princípio da isonomia, convolando-se em privilégio para um determinado grupo religioso” (STA 389-AgR, Rel. Min. Presidente Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2009, Plenário, DJE de 14-5-2010).

4) Recusa de tratamento médico por motivo religioso. A recusa de determinado tratamento médico por motivo religioso é também tema polêmico. Há vários casos nos quais o paciente alega impedimento religioso para recusar determinado tratamento (por exemplo, recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová), pondo em risco sua própria vida. Em que pese a decisões judiciais de 1º grau autorizando médicos a desconsiderar a vontade do próprio paciente, entendemos, como aponta Barroso, que cabe ao paciente, com a ressalva daqueles que não podem expressar de modo pleno sua vontade (os interditados, as crianças e adolescentes), a escolha do tratamento, em nome da liberdade e de sua autonomia. Para Barroso, a liberdade de religião é um direito fundamental que concretiza uma “escolha existencial que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade”. A recusa do paciente em se submeter a procedimento médico, por motivo de crença religiosa, “configura manifestação da autonomia do paciente, derivada da dignidade da pessoa humana”. O próprio autor citado ressalva que o consentimento deve ser genuíno, ou seja, válido, inequívoco, livre e informado22.

5) Colocação de crucifixos em órgãos públicos e, em especial, nas salas de audiência e sessões dos Tribunais. Outro tema debatido é a colocação de símbolos de uma religião específica em repartições públicas do Estado laico brasileiro. Para os defensores da inexistência de impedimento constitucional à colocação de crucifixos em salas de audiência, plenários, entre outros órgãos públicos, trata-se de manifestação cultural, típica de um país cuja população é majoritariamente católica, que não indica preferência do Estado por uma religião ou outra. Para os opositores dessa prática comum no Poder Público brasileiro, a existência do crucifixo ou de outros símbolos religiosos sinaliza uma conduta confessional por parte da administração pública, que não poderia custear (com dinheiro público) um símbolo e nem afixá-lo em local público, pois não seria um dos símbolos nacionais (bandeira, hino, armas e selos nacionais) previstos no art. 13 da CF/88. No Brasil, a existência, inclusive no Plenário do Supremo Tribunal Federal, do crucifixo católico foi questionada judicialmente também perante o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em 2007, o CNJ rejeitou, por maioria, quatro pedidos de providência (1.344, 1.345, 1.346 e 1.362) que exigiam a retirada dos crucifixos em dependências de órgãos do Poder Judiciário. Para o CNJ, os crucifixos e objetos da religião católica existentes nos Tribunais são símbolos da cultura brasileira, amparados no art. 215 da Constituição (que trata da cultura), não interferindo na imparcialidade e universalidade do Poder Judiciário. O único voto vencido, o do Conselheiro Paulo Lobo, defendeu que, no âmbito público do Estado laico não é cabível demonstrações como o uso de símbolos religiosos específicos. O próprio STF acata esse posicionamento majoritário no CNJ, pois na sala do Plenário do STF se encontra, ao fundo, acima do escudo de armas brasileiro, um crucifixo.

9. Direito à intimidade e vida privada, honra e a imagem

Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Art. 5º, XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Art. 5º, XII – é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

9.1. CONCEITO: DIFERENÇA ENTRE PRIVACIDADE (OU VIDA PRIVADA) E INTIMIDADE

O direito à privacidade consiste na faculdade de se optar por estar só e não ser perturbado em sua vida particular, formando uma esfera de autonomia e exclusão dos demais e evitando que, sem o consentimento do titular ou por um interesse público, nela se intrometam terceiros.

Assim, o direito à privacidade é um direito fundamental que permite que seu titular impeça que determinados aspectos de sua vida sejam submetidos, contra a sua vontade, à publicidade e a outras turbações feitas por terceiros.

O direito à privacidade ou vida privada engloba, de acordo com a doutrina, o direito à intimidade. Para Alexandre de Moraes e Manoel Gonçalves Ferreira Filho, a intimidade relaciona-se às relações subjetivas e de trato íntimo de uma pessoa, suas relações familiares e de amizade, enquanto privacidade ou vida privada é mais ampla e envolve todos os relacionamentos sociais, inclusive as relações comerciais, de trabalho e de estudo23.

A privacidade foi consagrada por Warren e Brandeis, que, em artigo intitulado “Right to Privacy”, publicado em 189024, deram releitura ao “direito de estar só”, sustentando que este abarcava as várias manifestações do modo de ser de um indivíduo, como suas cartas, desenhos, gestos e conversas, que mereciam proteção mesmo diante dos meios de comunicação social. Desde então, houve intenso desenvolvimento da proteção da privacidade, trazendo debates sobre seu alcance e conteúdo, em especial no momento de globalização e aumento incessante do fluxo de informação entre as pessoas.

Para auxiliar o entendimento sobre a dinâmica da proteção da privacidade é utilizada a teoria das esferas ou círculos concêntricos25. De acordo com essa teoria, a privacidade ou vida privada em sentido amplo contempla três círculos concêntricos: a vida privada em sentido estrito, o círculo da intimidade e o círculo do segredo.

O círculo da vida privada em sentido estrito consiste no conjunto de relações entre o titular e os demais indivíduos, contendo informações de conteúdo material (por exemplo, dados sobre a riqueza de alguém) e também sentimentos, porém de caráter superficial e de menor impacto sobre a intimidade, como, por exemplo, as amizades comuns. No círculo da vida privada em sentido estrito são contidos os sigilos de âmbito patrimonial (fiscal, bancário) e de dados das mais diversas ordens (registros telefônicos, dados telemáticos, entre outros).

Já o círculo da intimidade é composto pelo conjunto de manifestações (informações, imagens, gestos, entre outros), só compartilhados com familiares e amigos próximos e, no máximo, com profissionais submetidos ao sigilo profissional. Nesse círculo encontra-se a previsão da proibição da intrusão de terceiros no domicílio (inviolabilidade do domicílio prevista no art. 5º, IX, da CF/88) e ainda a proteção do acesso indevido e publicização do conteúdo das comunicações pelos mais diversos meios, gerando o sigilo do conteúdo telemático, epistolar, telefônico, entre outros.

Finalmente, no círculo do segredo, há todas as manifestações e preferências íntimas que são componentes confidenciais da personalidade do titular, envolvendo suas opções e sentimentos que, por sua decisão, devem ficar a salvo da curiosidade de terceiros.

A teoria das esferas ou círculos concêntricos parte do pressuposto de que a proteção da intimidade depende da conduta do próprio titular, que, a partir de escolhas pessoais, decide o que vai partilhar ou não com o público. O Código Civil de 2002 obedeceu o comando constitucional, dispondo, em seu art. 21, que “a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.

9.2. DIREITO À HONRA E À IMAGEM

O direito à privacidade desdobra-se, com base na Constituição de 1988, na proteção do direito à honra e direito à imagem. O direito à honra consiste na preservação da reputação de determinada pessoa perante a sociedade (honra objetiva) ou da dignidade e autoestima de cada um (honra subjetiva). A pessoa jurídica possui somente a honra objetiva.

O direito à imagem consiste na faculdade de controlar a exposição da própria imagem para terceiros. Esse controle da exposição da imagem veda tanto a divulgação quanto montagem, inclusive diante dos meios de comunicação e abrangendo tanto a pessoa física quanto a jurídica.

O direito à imagem foi tratado no STF na análise da exposição de pessoas algemadas, o que constituiria uma “infâmia social”, ofendendo o disposto no art. 5º, X (direito à imagem). Para a Min. Cármen Lúcia, “(...) as algemas, em prisões que provocam grande estardalhaço e comoção pública, cumprem, hoje, exatamente o papel da infâmia social. (...) A Constituição da República, em seu art. 5º, III, em sua parte final, assegura que ninguém será submetido a tratamento degradante, e, no inciso X daquele mesmo dispositivo, protege o direito à intimidade, à imagem e à honra das pessoas. De todas as pessoas, seja realçado. Não há, para o direito, pessoas de categorias variadas. O ser humano é um e a ele deve ser garantido o conjunto dos direitos fundamentais. As penas haverão de ser impostas e cumpridas, igualmente por todos os que se encontrem em igual condição, na forma da lei” (HC 89.429, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 22-8-2006, Primeira Turma, DJ de 2-2-2007).

Também é cabível a indenização no caso de publicação de fotografia não consentida, sendo admitida a cumulação do dano material com dano moral, pois “a publicação da fotografia de alguém, com intuito comercial ou não, causa desconforto, aborrecimento ou constrangimento, não importando o tamanho desse desconforto, desse aborrecimento ou desse constrangimento. Desde que ele exista, há o dano moral, que deve ser reparado, manda a Constituição, art. 5º, X” (STF, RE 215.984, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 4-6-2002, Segunda Turma, DJ de 28-6-2002).

9.3. DIREITO À PRIVACIDADE E SUAS RESTRIÇÕES POSSÍVEIS

O direito à privacidade convive, no texto constitucional e nos tratados de direitos humanos, com o direito à informação e com a liberdade de imprensa.

A primeira restrição ao direito à privacidade é oriunda da própria conduta do titular. Caso o titular exponha sua imagem e conduta ao público, não poderá rechaçar a divulgação de sua imagem-retrato incluída no próprio cenário público do qual participa (caso de um comício, de uma manifestação popular, entre outros). Também aqueles que vivem da exploração da imagem (celebridades) ou atuam na vida política, aceitam maior exposição das diversas manifestações de sua conduta, não podendo, depois, invocar o direito à privacidade para impedir a divulgação de fatos considerados desabonadores.

Entretanto, mesmo as figuras públicas possuem o direito à privacidade, em especial no que diz respeito ao círculo da intimidade e do segredo, em ambientes fechados ou reservados. Por isso, viola a intimidade a atitude de fotografar, sem autorização, com teleobjetivas, celebridades em seus lares ou ambientes reservados, sem acesso ao público.

Há maior polêmica a respeito da exposição da prática de atos íntimos de pessoas em espaços públicos. De um lado, há aqueles que defendem que, mesmo em espaços públicos, há a incidência do direito à privacidade, mesmo das pessoas célebres. Nesse sentido é a lição de Walter Rothenburg, que, comentando o caso de conhecida apresentadora brasileira filmada sem seu conhecimento ou anuência em praia pública em cidade espanhola, praticando atos íntimos com seu namorado, sustentou que “(...) Quem ‘ousa’ fazer amor na praia ou no mar expõe-se deliberadamente em certa medida e, assim, tem diminuída sua esfera de privacidade, mas dela não abdica completamente. Mesmo que o espaço seja público, não se pode devassar completamente a privacidade das pessoas, que guardam em algum grau a possibilidade de determinação sobre o que querem expor”26.

Entendemos que há dois parâmetros que são úteis para determinar a prevalência da privacidade em casos de exposição de comportamentos em espaços públicos, que é a (i) falta de interesse público das filmagens e fotografias (o voyeurismo de alguns não atende esse critério) e a (ii) falta de autorização para a obtenção das imagens que serão, depois, alavancas para maiores vendagens, audiência e lucros de terceiros.

Esses foram os parâmetros da Corte Europeia de Direitos Humanos, em caso célebre envolvendo a Princesa Caroline de Mônaco, alvo frequente de fotógrafos paparazzi, que, com teleobjetivas potentes e outras táticas, tiraram fotos do cotidiano da princesa em espaços públicos. A Corte, em face da falta de interesse público legítimo e de autorização da Princesa (dada a finalidade comercial evidente da atividade dos fotógrafos), considerou que houve violação ao direito à privacidade previsto na Convenção Europeia de Direitos Humanos27.

Em sentido oposto, há precedente do Superior Tribunal de Justiça, em caso envolvendo foto publicada sem autorização de banhista de topless em praia em Santa Catarina, no qual ficou decidido que “se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução sem conteúdo sensacionalista pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição realizada” (REsp 595.600-SC, Rel. Min. Cesar Asfor, julgamento em 18-3-2004).

Os políticos também possuem direito à privacidade limitado, porém não inexistente. Assim, o comportamento íntimo dos agentes públicos merece proteção, salvo se a divulgação for justificável em face interesse público, como, por exemplo, a divulgação de fotos referentes à infidelidade conjugal de político conhecido pelo discurso da defesa da família e da moral para angariar votos.

A segunda limitação diz respeito à preponderância, em um juízo de proporcionalidade, do direito à informação diante do direito à privacidade e a vontade do titular de não expor dados de sua vida em público, mesmo diante de fatos que têm interesse social. Um caso célebre que ocorreu no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (TCF) é o caso do “Assassinato dos soldados de Lebach” (também conhecido como Caso Lebach). No caso, tratou-se da proibição da edição de documentário por empresa de televisão alemã sobre uma chacina ocorrida em Lebach (foram mortos quatro soldados em um roubo de munição) na iminência da soltura de um dos criminosos. O TCF decidiu que, em geral, o direito de informação da população em crimes graves prevalece (interesse social), sendo permitida a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso. Porém, um documentário posterior, anos depois, é inadmissível, em face da ameaça à sua reintegração à sociedade (ressocialização), devendo ser protegida sua imagem e intimidade28.

Outro tema sempre discutido no Brasil é se há violação ao direito à honra pela divulgação de mera suspeita ou ainda de ação penal ou de improbidade ainda não transitada em julgado. Em vários precedentes judiciais, não há violação do direito à honra se a informação prestada atender o dever de veracidade aferível naquele momento e seu conteúdo for relevante para o interesse público, excluindo-se do âmbito de proteção da privacidade. Nesse sentido, decidiu o STJ que “(...) a honra e imagem dos cidadãos não são violados quando se divulgam informações verdadeiras e fidedignas a seu respeito e que, além disso, são do interesse público. O veículo de comunicação exime-se de culpa quando busca fontes fidedignas, quando exerce atividade investigativa, ouve as diversas partes interessadas e afasta quaisquer dúvidas sérias quanto à veracidade do que divulgará”.

Porém, o dever de veracidade que incumbe à mídia deve ser avaliado no contexto jornalístico, no qual as matérias devem ser produzidas de modo célere. Se a suspeita sobre o indivíduo realmente existia e a divulgação informou que eram “suspeitas” (sem apontá-lo como criminoso condenado), não houve violação de sua honra, mesmo que, anos depois, ele tenha sido absolvido cabalmente (REsp 984.803, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgamento em 19-8-2009).

9.4. ORDENS JUDICIAIS RESTRINGINDO A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO EM NOME DO DIREITO À PRIVACIDADE

O direito à privacidade, para ser protegido de modo integral, exige a intervenção judicial, inclusive com o manejo da tutela preventiva ou inibitória. Há vários casos nos quais o titular do direito à privacidade busca ordem judicial para suspender previamente a divulgação de notícia, retirar livros de circulação, impedir publicação de notícia em jornais etc. Tal ordem judicial consistiria em censura proibida pela CF/88, que só admitiria a responsabilidade a posteriori da mídia, que deveria indenizar os danos causados? A resposta é negativa.

A liberdade de informação e a vedação da censura não geram restrição ao direito de acesso à justiça, igualmente previsto na CF/88 em seu art. 5º, XXXV. A tutela inibitória existe justamente para os casos nos quais a indenização a posteriori é insuficiente para recompor o direito lesado, o que ocorre justamente no caso da privacidade, que nunca será recomposta após a divulgação das informações29.

Nesse sentido, Gilmar Mendes defende o direito de acesso à justiça, uma vez que a proteção judicial à ameaça ao direito à privacidade em nada valeria, caso a intervenção judicial apenas “pudesse se dar após a configuração da lesão”30.

9.5. DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÃO DE INTERESSE PÚBLICO OBTIDA ILICITAMENTE

Outro tema que merece destaque na atualidade brasileira é a possibilidade de divulgação de informações de interesse público, mas que foram obtidas ilicitamente pela ação de terceiros. Por exemplo, é legítimo que emissora de televisão veicule gravação ilícita de conversa telefônica (feita por terceiros, que repassaram a gravação à emissora) de agentes públicos com diálogos sobre corrupção e recebimento de propina? É legítimo que um jornal divulgue informações sobre político, que recebeu de suas fontes não reveladas (sigilo de fonte), contidas em inquérito criminal sob sigilo judicial?

Em casos semelhantes aos dois exemplos citados, o STF não permitiu, em exame preliminar, a divulgação das informações ao público, por considerar que, respectivamente, o sigilo telefônico e o sigilo judicial foram indevidamente violados, em detrimento da privacidade dos envolvidos (Pet 2.702-MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 18-9-2002, Plenário, DJ de 19-9-2003, e Rcl 9.428, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-12-2009, Plenário, DJE de 25-6-2010).

Nesses casos, para o STF, a liberdade de imprensa, que foi valorizada na ADPF 130 (que considerou não recepcionada a Lei de Imprensa), deve obediência ao direito à privacidade, mediante proteção de sigilo legal de dados cobertos por segredo de justiça (Rcl 9.428, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 10-12-2009, Plenário, DJE de 25-6-2010).

9.6. INVIOLABILIDADE DOMICILIAR

9.6.1. Conceito e as exceções constitucionais

O art. 5º, XI, dispõe que “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. O direito à privacidade ecoa nessa garantia, fazendo com que o indivíduo seja o “senhor de sua morada”, podendo impedir que o Poder Público ou terceiros a invadam, salvo na ocorrência das exceções previstas no texto da Constituição, que são: 1) flagrante delito; 2) desastre; 3) prestar socorro; e 4) por ordem judicial, durante o dia.

A invasão domiciliar, então, consiste na entrada de terceiro em uma casa, sem a permissão do morador, ou ainda contra sua expressa proibição.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que o conceito de “casa” é abrangente, atingindo todo e qualquer compartimento privado não aberto ao público, onde determinada pessoa possui moradia ou exerce profissão ou atividade.

Assim, o conceito constitucional ou normativo de “casa” abrange a moradia propriamente dita (nas mais diversas formas) e também os locais de exercício de qualquer atividade nos espaços não abertos ao público existentes em empresas, escritórios de contabilidade, consultórios médicos e odontológicos, entre outros (HC 93.050, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-6-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2008). Nessa linha, o Código Penal dispõe que a expressão “casa” compreende: I – qualquer compartimento habitado; II – aposento ocupado de habitação coletiva; III – compartimento não aberto ao público, onde alguém exerce profissão ou atividade (art. 150, § 4º).

Para que seja, então, lícita a entrada de qualquer pessoa a uma casa (em seu sentido normativo, amplo, consagrado pelo STF) é necessário separar duas situações: (i) com autorização do morador e (ii) sem autorização do morador (invito domino, ou seja, contra a vontade do morador).

Com a autorização do morador, não há restrição a entrada em uma casa, inclusive por parte de autoridades públicas.

Sem autorização do morador, cabe a entrada em uma casa a qualquer momento, nas seguintes hipóteses: 1) na ocorrência de flagrante delito ou iminência de o ser (art. 150, § 3º, II, do CP); 2) na ocorrência de desastre; e 3) para prestar socorro. Também sem autorização do morador e somente durante o dia, cabe a entrada de determinada pessoa em uma casa por ordem judicial.

O “durante o dia” previsto na Constituição é determinado de acordo com o critério físico-astronômico, compreendendo o lapso temporal entre a aurora e o crepúsculo, que, em geral, corresponde ao período das 06:00hs às 18:00hs, podendo ser alargado no caso do horário de verão, uma vez que a proteção prevista na Constituição visa impedir possíveis ações ilegais acobertadas pela escuridão na casa invadida31. A forma pela qual deve ser feita a invasão do domicílio é ditada pelo art. 245 do CPP, que dispõe que “as buscas domiciliares serão executadas de dia, salvo se o morador consentir que se realizem à noite, e, antes de penetrarem na casa, os executores mostrarão e lerão o mandado ao morador, ou a quem o represente, intimando-o, em seguida, a abrir a porta”.

Com isso, nenhum terceiro poderá, sem o consentimento do morador, ingressar, durante o dia, sem ordem judicial, em espaço privado não aberto ao público. É a cláusula de reserva de domicílio. Além da sanção do crime de invasão de domicílio (art. 150 do CP) ou ainda de abuso de autoridade (art. 3º, c, da Lei n. 4.898/65), a prova resultante da diligência de busca e apreensão gerada por violação indevida do espaço domiciliar é inadmissível, “porque impregnada de ilicitude material” (HC 93.050, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-6-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2008).

Apesar do comando expresso do art. 5º, XI, o STF reconheceu como válida a invasão domiciliar durante a noite por ordem judicial, justificando-a em virtude da (i) inexistência de outra alternativa, pois a invasão durante o dia frustraria o escopo da medida, inviabilizando a tutela judicial justa; (ii) houve desgaste mínimo à privacidade, pois o escritório de advocacia cujo recinto foi invadido pelos policiais federais (para instalação de aparelho de interceptação ambiental) estava vazio (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010).

Correto o entendimento do STF, uma vez que a ponderação de bens e valores prevista no corpo da Constituição não é exaustiva nem impede a aplicação do critério da proporcionalidade em situações não previstas pelo Poder Constituinte (vide Parte I, Capítulo III, item 7.4.5 sobre a “ponderação de 2º grau”). De fato, há casos nos quais o direito de acesso à justiça e seus corolários, como o direito à verdade e à tutela jurídica justa, exigem que o direito à privacidade seja mitigado, podendo o juiz autorizar, fundamentadamente, a invasão domiciliar noturna. Interpretar as exceções à inviolabilidade domiciliar como sendo exaustivas seria negar a tutela jurídica justa, o que não é, obviamente, o objetivo de um Estado Democrático de Direito.

9.6.2. Proibição de ingresso no domicílio e a atividade das autoridades tributárias e sanitárias

O poder de polícia e o atributo da autoexecutoriedade dos atos administrativos (privilège du preálable) não autorizam a invasão domiciliar por parte dos agentes públicos fora das exceções previstas no art. 5º, XI.

No caso das autoridades tributárias, o art. 145, § 1º, da CF dispõe que pode a administração tributária identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Nessa linha, o art. 195 do CTN dá ao Fisco o direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais, impondo a obrigação dos que os detém de exibi-los. Essa regra impõe amplo acesso dos agentes fiscalizadores aos documentos e bens para a correta aplicação da lei tributária, existindo a obrigação legal de apresentar tais itens para fiscalização (STF, Súmula 439: “Estão sujeitos à fiscalização tributária ou previdenciária quaisquer livros comerciais, limitado o exame aos pontos objeto da investigação”).

Porém, não pode a lei tributária exigir que o fiscalizado aceite a entrada dos fiscais nos espaços privados sem acesso ao público. Sem o consentimento, não podem os fiscais ingressar nesses recintos, que ficam ao abrigo da inviolabilidade domiciliar do art. 5º, XI, da CF/88. Nesse caso, cabe ao Fisco proceder ao lançamento por arbitramento, com a imposição de multa pela não apresentação dos documentos e informações exigidos, ou obter ordem judicial para ingressar no recinto (entre outros, STF, HC 93.050, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-6-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2008).

No caso das autoridades sanitárias, o poder de polícia não autoriza o ingresso em casa sem autorização do morador, mesmo que seja para a fiscalização em ações de combate à dengue e outras doenças. Assim, resta ao Poder Público a imposição de multas e outras sanções, inclusive eventual determinação de evacuação da área. Caso necessite ingressar na moradia, deve obter ordem judicial. De acordo com o Min. Celso de Mello, “(...) nem os organismos policiais e nem a Administração Pública, afrontando direitos assegurados pela Constituição da República, podem invadir domicílio alheio, sem a prévia e necessária existência de ordem judicial, ressalvada a ocorrência das demais exceções constitucionais. (...) O respeito (sempre necessário) à garantia da inviolabilidade domiciliar decorre da limitação constitucional que restringe, de maneira válida, as prerrogativas do Estado e, por isso mesmo, não tem o condão de comprometer a ordem pública, especialmente porque, no caso, como é enfatizado, as liminares em referência não impedem o Governo do Distrito Federal de exercer, com regularidade, o poder de polícia que lhe é inerente, circunstância esta que lhe permite adotar as providências administrativas necessárias à evacuação da área, desde que observadas as concernentes prescrições constitucionais” (STF, SS 1.203, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 8-9-1997, publicação de 15-9-1997).

9.7. ADVOGADO: INVIOLABILIDADE DO ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA E PRESERVAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL

O art. 133 da CF/88 determina que o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. Dessa disposição, decorrem o (i) sigilo profissional do advogado e ainda a (ii) inviolabilidade do escritório de advocacia, concretizando tanto o direito à privacidade quanto da ampla defesa.

O sigilo profissional entre o advogado e o cliente, contudo, não é absoluto. Admite-se a interceptação telefônica e ambiental quando o advogado deixa sua função de defensor e passa a atuar como coautor ou partícipe na prática de crimes em conjunto com seu cliente, aproveitando-se justamente das prerrogativas do advogado. Nesse momento, não pode a inviolabilidade constitucional do advogado servir para violar os direitos de terceiros (as vítimas das práticas criminosas). Frise-se que se admite a violação do sigilo profissional e da inviolabilidade dos locais de exercício da profissão da advocacia quando houver provas ou fortes indícios da participação de advogado na prática delituosa sob investigação e no exato limite desse envolvimento. Assim, não se admite a interceptação telefônica e ambiental do escritório de advocacia simplesmente para obter provas contra o cliente do advogado, o que ofende tanto a ampla defesa quanto a privacidade nas relações profissionais.

A inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do advogado, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia foi prevista no art. 7º da Lei n. 8.906/94 (com nova redação dada pela Lei n. 11.767/2008), o que está em linha com a inviolabilidade domiciliar (art. 5º, XI) e ainda com a inviolabilidade constitucional do advogado nos seus atos e manifestações no exercício da profissão (art. 133 da CF/88).

Há dois casos nos quais a inviolabilidade do local de exercício do trabalho do advogado pode ser quebrada: (i) prática de crime pelo próprio advogado e (ii) fundados indícios de que em poder do advogado há objeto que constitua instrumento ou produto do crime ou que constitua elemento do corpo de delito ou, ainda, documentos ou dados imprescindíveis à elucidação do fato em apuração (art. 2º, II, da Portaria n. 1.288, de 30-6-2005 do Ministro da Justiça, regulando a atuação da Polícia Federal).

Caso haja indícios da prática de crime por parte de advogado (em associação ou não com seu cliente), pode ser decretada, por ordem judicial, a quebra da inviolabilidade do escritório de advocacia, inclusive com a expedição de mandado de busca e apreensão, específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representante da Ordem dos Advogados do Brasil.

Também é possível a quebra da inviolabilidade do escritório do advogado quando este servir de esconderijo para “elemento do corpo de delito” (art. 243, § 2º, do CPP). Na mesma linha, é possível a quebra da inviolabilidade para se obter instrumento ou produto do crime, bem como documentos ou dados imprescindíveis à elucidação do fato em apuração (art. 2º, II, da Portaria n. 1.288, de 30-6-2005, do Ministro da Justiça). A busca e apreensão não pode abarcar documentos que dizem respeito a outros sujeitos não investigados.

Assim, a inviolabilidade domiciliar do escritório de advocacia não é absoluta e não pode acobertar a prática de crimes pelo advogado, tendo o STF decidido que “não opera a inviolabilidade do escritório de advocacia, quando o próprio advogado seja suspeito da prática de crime, sobretudo concebido e consumado no âmbito desse local de trabalho, sob pretexto de exercício da profissão” (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010).

Ambas as situações acima mencionadas (a quebra do sigilo profissional e ainda da inviolabilidade do escritório de advocacia) exigem ordem judicial, estando sob o abrigo da reserva de jurisdição.

9.8. O SIGILO DE DADOS EM GERAL

O sigilo de dados consta do texto do art. 5º, XII, tendo a CF/88 o considerado “inviolável”.

Tendo em vista a consagração da relatividade das liberdades públicas, o Supremo Tribunal Federal, ao longo dos anos, sedimentou as hipóteses e formas pelas quais o sigilo de dados pode ser violado por terceiros legitimamente.

Em primeiro lugar, cabe uma separação entre os denominados “dados pessoais” e os “dados públicos”.

Os dados pessoais consistem em informações relativas à intimidade de um indivíduo, que este não revela ao público em geral, só autorizando determinadas pessoas a acessá-las.

Já os dados públicos são aquelas informações acessíveis a todos, mesmo que referentes a determinado indivíduo, pois são pertinentes à vida social. Essas informações, pela sua natureza, não estão protegidas pelo sigilo de dados constante do art. 5º, XII. Entre as informações a todos acessíveis, estão as que constam dos registros públicos, como, por exemplo, o registro de pessoa física (quem é o pai ou a mãe de determinado indivíduo, seu local de nascimento etc. ), o registro de imóveis (quem é o proprietário de determinado imóvel) etc.

Há situações ainda de proteção a informações constante de determinados bancos de dados, não importando a natureza (se pública ou privada), em virtude da especial finalidade da transmissão da informação ao gestor do banco de dados, que não pode ser desvirtuada. É o caso das informações cadastrais da Receita Federal, que são remetidas ao órgão fiscal para o cumprimento de suas funções, voltadas ao cumprimento da igualdade de todos perante a arrecadação tributária (impedindo a sonegação). Com isso, essas informações, mesmo que meramente cadastrais e constantes de outras fontes, não podem ser repassadas a terceiros para que estes lucrem com tais dados, sem autorização de cada indivíduo.

Como o sigilo de dados pessoais ou ainda de dados constante de banco de dados reservados não é absoluto, é possível invocar o critério da proporcionalidade para afastar o direito à privacidade e privilegiar outro direito previsto na Constituição ou nos tratados de direitos humanos. Para tanto, cumpre demonstrar:

a) a adequação da medida ao fim pretendido;

b) sua necessidade (inexistência de meio menos invasivo que alcance o mesmo fim); e

c) a importância da quebra para a preservação de outro direito fundamental.

Agora resta analisar quem pode ordenar a quebra do sigilo. Em primeiro lugar, é possível a quebra por ordem judicial, em nome da concretização do direito de acesso à justiça. Assim, não pode um determinado gestor de banco de dados opor sigilo ao Poder Judiciário, vulnerando com isso o direito das partes de obter uma tutela justa e célere.

Em segundo lugar, cabe a quebra do sigilo de dados por expressa autorização constitucional ou legal. Assim, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CF, art. 58, § 3º) e o Ministério Público (art. 129, VI, e Lei Complementar n. 75/93, em especial no seu art. 8º, § 2º) podem ordenar a quebra de sigilo de dados em geral (ver as restrições específicas ao MP abaixo), desde que de modo fundamentado e mantendo o sigilo. Na realidade, trata-se de uma transferência de sigilo.

Em terceiro lugar, é possível o acesso de determinadas instituições a informações tidas como pessoais, para o exercício de suas próprias atribuições previstas na Constituição Federal ou na lei. Nesses casos, o sigilo de dados não lhe pode ser oponível.

Assim, a Receita Federal, o Banco Central, os Tribunais de Contas têm acesso a dados pessoais dos indivíduos fiscalizados para o exercício de suas funções. No caso do Tribunal de Contas da União, o art. 1º da Lei n. 8.730/93 prevê a apresentação das Declarações de Bens e Rendas pelas autoridades e por todos quantos exerçam cargo eletivo e cargo, emprego ou função de confiança, na administração direta, indireta e fundacional, de qualquer dos Poderes da União. Para tanto, foi firmado um convênio entre a Secretaria da Receita Federal do Brasil e o TCU, que prevê a disponibilização ao Tribunal dos dados da Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda Pessoa Física das pessoas obrigadas à prestação das informações estabelecidas pela Lei n. 8.730/93.

Cabe, agora, o detalhamento da proteção do sigilo no que tange ao sigilo bancário e ao sigilo fiscal.

9.8.1. Sigilo fiscal

Os dados fiscais de uma pessoa (física ou jurídica) consistem no conjunto de informações sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo tributário ou de terceiros sobre a natureza e estado de seus negócios ou atividades, conforme dispõe o art. 198 do CTN, que impõe o chamado sigilo fiscal, proibindo o Fisco e seus servidores de divulgarem, sob qualquer forma, tais informações. O sigilo fiscal nada mais é que um desdobramento do direito à intimidade e à vida privada (HC 87.654, voto da Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 7-3-2006, Segunda Turma, DJ de 20-4-2006).

As informações que compõem os arquivos do Fisco são importantes para tutelar vários direitos fundamentais de terceiros. Como faceta do direito da intimidade, o sigilo fiscal não é absoluto, podendo ser afastado, devendo o Fisco fornecer tais informações e transferindo-se o sigilo ao órgão que venha a receber tais informações. A chamada “quebra do sigilo fiscal” consiste tão somente na quebra do monopólio do Fisco sob tais informações, sendo mais apropriada a denominação de “transferência do sigilo fiscal” para ente que continua obrigado a não divulgar tais informações ao público.

Essa transferência do sigilo fiscal pode ocorrer para: (i) o Poder Judiciário por ordem judicial, em ações penais ou cíveis, cuja tutela justa dependa das informações econômicas e financeiras em poder do Fisco; (ii) outros Fiscos (por exemplo, do Fisco Federal para o Fisco Estadual), em face da necessária troca de informações para o cumprimento de suas funções (art. 198 do CTN); (iii) autoridades estrangeiras para permutar informações no interesse da arrecadação e da fiscalização de tributos; (iv) o Tribunal de Contas da União (Lei n. 8.730/93), para supervisão da moralidade e probidade dos agentes públicos; (v) demais autoridades administrativas, desde que seja comprovada a instauração regular de processo administrativo, no órgão ou na entidade respectiva, com o objetivo de investigar o sujeito passivo a que se refere a informação, por prática de infração administrativa; (vi) Comissão Parlamentar de Inquérito, federal ou estadual; (vii) Ministério Público da União, de acordo com Lei Complementar n. 75/93. Vê-se que a transferência de sigilo fiscal não é submetida a cláusula de reserva de jurisdição.

A transferência de sigilo fiscal para o Ministério Público da União, sem a mediação do Poder Judiciário, é tema ainda controverso. A base normativa para tal transferência é o art. 8º, § 2º, da LC n. 75/93, que determina que “nenhuma autoridade poderá opor ao Ministério Público, sob qualquer pretexto, a exceção de sigilo, sem prejuízo da subsistência do caráter sigiloso da informação, do registro, do dado ou do documento que lhe seja fornecido”. Em despacho de 27 de dezembro de 2007, o Advogado-Geral da União, Ministro José Dias Toffoli (atualmente Ministro do STF) adotou parecer normativo (vinculante para a Receita Federal) no sentido de que não há que se opor reserva de sigilo fiscal ao Ministério Público da União, dirimindo as controvérsias no seio dos órgãos da Administração Federal.

Contudo, há vários precedentes judiciais que entendem que, mesmo para o Ministério Público da União, é necessária ordem judicial para a transferência do sigilo fiscal (STJ, HC 160.646-SP, Relator Min. Jorge Mussi, julgado em 1º-9-2011).

No Tribunal Superior Eleitoral, o posicionamento pacificado também é pela impossibilidade do Ministério Público eleitoral requisitar, diretamente, a quebra do sigilo fiscal à Receita Federal, devendo obter, antes, ordem judicial para tanto (TSE, AgR-REsp 82.404/RJ, rel. Min. Arnaldo Versiani, julgamento em 4-11-2010).

A divulgação indevida desses dados sigilosos consiste no crime de “violação de sigilo funcional”, que é punido de acordo com a previsão do art. 325 do CP (Violação de sigilo funcional: Art. 325. Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave).

9.8.2. Sigilo bancário

Os dados e informações constantes nas contas correntes e aplicações diversas em instituições financeiras devem ser utilizados para o correto cumprimento das normas financeiras existentes, sendo proibida a divulgação indevida, de modo a preservar a intimidade do seu titular. Nesse sentido, STF reconheceu que o sigilo bancário é consequência da proteção constitucional da privacidade. Porém, como já vimos, o direito à privacidade não é absoluto, podendo ceder diante de outros direitos, como, por exemplo, os direitos de terceiros lesados (ver, entre outras decisões, AI 655.298-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 4-9-2007, Segunda Turma, DJ de 28-9-2007).

O art. 192 da CF/88 exige lei complementar para a regência do sistema financeiro, tendo sido editada a Lei Complementar n. 105/2001, que trata do sigilo bancário. De acordo com essa lei, as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados, mas, ao mesmo tempo, há hipóteses de (i) não incidência do sigilo e (ii) transferência do sigilo bancário para outros entes.

Na primeira hipótese (não incidência do sigilo), a Lei Complementar n. 105 prevê que não constitui violação do dever de sigilo: I – a troca de informações entre instituições financeiras, para fins cadastrais, inclusive por intermédio de centrais de risco (o que legitimou a atuação da SERASA), observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil; II – o fornecimento de informações constantes de cadastro de emitentes de cheques sem provisão de fundos e de devedores inadimplentes, a entidades de proteção ao crédito (legitimando os Serviços de Proteção ao Crédito), observadas as normas baixadas pelo Conselho Monetário Nacional e pelo Banco Central do Brasil; III – a comunicação, às autoridades competentes, da prática de ilícitos penais ou administrativos, abrangendo o fornecimento de informações sobre operações que envolvam recursos provenientes de qualquer prática criminosa (o que autoriza a ação proativa dos funcionários dos Bancos); IV – a revelação de informações sigilosas com o consentimento expresso dos interessados; e finalmente V – o uso pelo Banco Central das informações contidas nas contas de depósitos, aplicações e investimentos mantidos em instituições financeiras para sua fiscalização, inclusive nos casos de regime especial de intervenção. Porém, o STF já decidiu que o Banco Central não pode, sob a justificativa de fiscalização, quebrar o sigilo bancário de contas correntes de dirigente de Banco público estadual (o que abrangia inclusive as que ele mantinha com sua mulher) (RE 461.366, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 3-8-2007, Primeira Turma, DJ de 5-10-2007).

Na segunda hipótese (transferência do sigilo), a Lei Complementar n. 105 elenca uma série de entes que podem, de modo fundamentado (ver abaixo), requerer ao Banco Central ou às instituições financeiras o acesso aos dados com a transferência do sigilo bancário. A lógica que embasou essas hipóteses é a limitabilidade do direito à privacidade, devendo ser permitido o acesso (com a transferência do sigilo) para a preservação de outros direitos e valores constitucionais.

Assim, são entes legitimidades a obter o acesso e transferência do sigilo bancário de acordo com a Lei Complementar n. 105:

1) Poder Judiciário, em inquéritos ou processos de qualquer natureza.

2) Câmara dos Deputados e Senado Federal, por decisão aprovada nos respectivos Plenários.

3) Comissões parlamentares de inquérito, por decisão aprovada em seu plenário.

4) As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso (constitucionalidade ainda em debate32).

Além disso, as Comissões Parlamentares de Inquérito Estaduais também podem pedir a quebra do sigilo bancário e fiscal, desde que autorizadas pela Constituição estadual (STF, ACO 1.390/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 25-5-2009).

O Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Poder Legislativo, não foi contemplado pelo próprio legislador na Lei Complementar n. 105, embora suas atividades de verificação e julgamento de contas (art. 71, II, da CF) justificassem o direito de acesso direto e transferência do sigilo, não cabendo ao Judiciário uma interpretação extensiva que lhe possibilite isso (MS 22.801, Rel. Min. Menezes Direito, julgamento em 17-12-2007, Plenário, DJE de 14-3-2008).

Também o Ministério Público foi esquecido pela Lei Complentar n. 105/2001, mas possui, contudo, a autorização prevista no art. 8º, § 2º, da LC n. 75/93 (visto acima). Apenas foi mencionado que, caso o Banco Central do Brasil e a Comissão de Valores Mobiliários verifiquem a ocorrência de crime definido em lei como de ação pública, ou indícios da prática de tais crimes, esses entes informarão ao Ministério Público, juntando à comunicação os documentos necessários à apuração ou comprovação dos fatos. Salvo nessa hipótese, cabe ao Ministério Público requerer, fundamentadamente, o acesso e transferência de sigilo bancário ao Poder Judiciário, que deferirá ou não a medida.

A única permissão aceita pelo STF de acesso direto pelo Ministério Público aos dados cobertos pelo sigilo bancário é no caso de informações financeiras e bancárias referentes às verbas públicas. O princípio da publicidade regente da atuação do Poder Público (art. 37 da CF) impede que o administrador público alegue “privacidade” para impedir o acesso direto do Parquet a tais dados (STF, MS 21.729, Rel. p/ o ac. Min. Néri da Silveira, julgamento em 5-10-1995, Plenário, DJ de 19-10-2001).

A discussão da atualidade sobre a quebra do sigilo bancário por órgão não judicial merece reflexão. Será que o sigilo bancário é sujeito à reserva de jurisdição, ou seja, sua violação depende de ordem judicial fundamentada? Entendemos que não.

Em primeiro lugar, não há na Constituição de 1988 a exigência de “ordem judicial” para a superação do sigilo bancário, que, aliás, sequer consta expressamente do texto constitucional.

Em segundo lugar, cabe analisar o argumento dos defensores de que a quebra do sigilo bancário seja sempre feita por autoridade judicial, negando tal poder em especial às Autoridades Tributárias, aos Tribunais de Contas e ao Ministério Público. A argumentação, em geral, funda-se na maior garantia do jurisdicionado associada a nenhum prejuízo à atuação desses órgãos. Ou seja, em outras palavras: “que mal há em, por exemplo, a Autoridade Tributária pleitear ao Juiz a quebra do sigilo bancário em uma investigação fiscal qualquer? Se o pedido for sólido, o juiz autorizará o acesso ou, caso este negue, o Tribunal autorizará, em grau de recurso”.

Com a devida vênia dos entendimentos em contrário, há aqui uma ponderação de valores que é esquecida: de um lado, há o direito à privacidade daquele detentor das contas correntes e dos ativos financeiros; de outro, há os direitos dos terceiros que são protegidos pela atuação dos órgãos de fiscalização, em especial da imensa maioria de brasileiros que exige que o Estado obtenha recursos e assegure os direitos fundamentais sociais, como direito à educação, saúde, moradia, entre outros. Também do outro lado da ponderação, há o direito à igualdade, pois a fragilidade da fiscalização aumenta o ônus de se viver em sociedade, punindo aqueles que voluntariamente cumprem a lei e estimulando outros a descumpri-la, na ausência de temor de sanções concretas.

Usando como exemplo o caso das autoridades tributárias, vê-se que, na atualidade, os sonegadores usam o sistema bancário em suas atividades econômicas formais e também nas informais. O Fisco não tem outra arma menos invasiva para conferir se a atividade econômica relatada é real ou apenas forjada para menor pagamento de tributos, a não ser a conferência dos dados contidos nas transações bancárias. Para aqueles que exigem ordem judicial para acesso do Fisco aos dados bancários, a alternativa seria a solicitação judicial para conferência de dados nas investigações ordinárias e extraordinárias. Para cada contribuinte, uma ação. Claro que seriam milhões de novas ações – de cunho satisfativo (pois se pede somente a autorização da transferência de sigilo bancário para exercer a fiscalização ordinária), renovadas periodicamente, que exigiriam imenso tempo e recurso do Estado-Juiz (e também dos Advogados Públicos), resultando em caos no acesso à justiça e estímulo para que mais pessoas deixem de pagar tributos. Teríamos milhares de Varas Judiciais somente para autorizar acesso aos dados bancários por parte das fiscalizações tributárias federais, estaduais e municipais. Isso é tão absurdo que sequer é tentado. De fato, a “opção brasileira” para suprir as deficiências no combate à sonegação é simplesmente aumentar as alíquotas e criar novos tributos, que também serão sonegados, em uma espiral viciosa sem fim, exasperando a carga daqueles que não sonegam.

A mesma situação ocorre no que tange aos Tribunais de Contas. Como averiguar se cada contrato, conta fiscalizada ou mesmo declarações de imposto de renda de servidores públicos federais (ver acima) contém dados reais ou ficção contábil? Será que atende o direito fundamental à probidade administrativa exigir a propositura de milhares de ações judiciais de autorização de transferência de sigilo bancário para que determinado Tribunal de Contas possa exercer o seu mister? Na prática do Brasil de hoje, os Tribunais de Contas não realizam essa atividade de fiscalização real, contentando-se com as análises documentais tradicionais e vários escândalos envolvendo superfaturamento, e conluios em obras públicas são relatados pela imprensa nacional sem que o Tribunal de Contas respectivo tivesse atento à situação. O cachorro não late, o alarme não soa...

No caso do Ministério Público, a exigência de dois agentes políticos (o membro do Ministério Público e o Magistrado) analisarem cada pedido de quebra de sigilo bancário (com a exceção do caso das verbas públicas – vide acima o precedente do STF) ocasiona investigações extremamente demoradas, facilitando sobremaneira a prescrição e estimulando, de novo, a impunidade e novas violações aos direitos de terceiros.

Porém, como visto, a posição atual (2013) do STF sobre o acesso a dados bancários sem autorização judicial é a seguinte:

1) Autoridade Tributária: a questão está em aberto, devendo o leitor ficar atento ao deslinde do caso no STF;

2) Tribunais de Contas: exige-se autorização judicial, pela ausência de previsão na Lei Complementar n. 105;

3) Ministério Público: somente no caso de verbas públicas;

4) Comissão Parlamentar de Inquérito, Câmara dos Deputados e Senado Federal, por decisão aprovada nos respectivos Plenários.

Dependem de prévia autorização do Poder Judiciário a prestação de informações e o fornecimento de documentos sigilosos bancários solicitados por comissão de inquérito administrativo destinada a apurar responsabilidade de servidor público por infração praticada no exercício de suas atribuições, ou que tenha relação com as atribuições do cargo em que se encontre investido.

Em todas as hipóteses de acesso e transferência do sigilo bancário dos bancos para qualquer outro ente, exige-se fundamentação da requisição do ente ou da ordem judicial, que deve levar em consideração: (i) a indispensabilidade da medida, bem como a (ii) existência de procedimento regular em curso e o (iii) interesse público na quebra (por exemplo, proteção dos direitos e valores constitucionais).

9.9. COAF E OS SIGILOS BANCÁRIO E FISCAL

A sofisticação da criminalidade levou à criação, pela Lei n. 9.613/98, do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda, que foi encarregado de “disciplinar, aplicar penas administrativas, receber, examinar e identificar as ocorrências suspeitas de atividades ilícitas previstas nesta Lei, sem prejuízo da competência de outros órgãos e entidades”.

O COAF é considerado a “unidade de inteligência financeira” brasileira, tendo como missão receber e analisar informações de cunho econômico-financeiro de pessoas físicas e jurídicas, que obtém de diversas fontes obrigadas a enviar dados de cadastro e movimentação, em especial Bancos. Essas informações são prestadas por critérios objetivos (depósito que ultrapassa determinado valor) ou subjetivos (considerados, a critério do informante que conhece seu cliente, atípicos ou suspeitos – art. 11 da Lei n. 9.613). O COAF poderá requerer aos órgãos da Administração Pública as informações cadastrais bancárias e financeiras de pessoas envolvidas em atividades suspeitas (art. 14, § 3º, da Lei n. 9.613/98 e art. 2º, § 6º, da LC n. 105/2001). Após análise, o COAF comunicará às autoridades competentes para a instauração dos procedimentos cabíveis, quando concluir pela existência de qualquer ilícito (art. 15 da Lei n. 9.613).

Assim, não cabe ao COAF investigar com profundidade, mas sim provocar a autoridade (por exemplo, Polícia ou Ministério Público) para que investigue.

O COAF repassa a tais autoridades os “Relatórios de Informações Financeiras”, que contém informações sobre operações atípicas (não necessariamente ilícitas), para que as investigações sejam aprofundadas, podendo as autoridades recebedoras dos Relatórios solicitar, eventualmente, ao juízo competente a quebra dos sigilos bancário e fiscal.

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (6ª Turma), na análise de rumoroso caso de corrupção envolvendo personalidades da sociedade brasileira (Operação Boi Barrica) decidiu que o mero encaminhamento de Relatório de Inteligência Financeira pelo COAF ao Ministério Público, retratando “operação atípica”, não pode embasar pedido de decretação judicial de quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico ou ainda interceptação telefônica, devendo a autoridade policial realizar diligências posteriores que demonstrem que tais quebras de sigilo são imprescindíveis. Com isso, o STJ decretou a nulidade das ordens judiciais por falta de fundamentação adequada e invocou ainda a teoria dos frutos da árvore envenenada para descartar provas obtidas em decorrência daquelas anuladas (inclusive eventuais conversas comprometedoras obtidas – ver HC 191.378, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 6ª Turma, julgamento em 15-9-2011).

Todavia, é difícil realizar essas “diligências posteriores” que não envolvam quebras de sigilo e que não alertem os envolvidos (que assim destroem provas e camuflam seus atos), uma vez que as técnicas tradicionais (oitiva de testemunhas, vigilância – “campana”, e outras) são quase sempre inúteis em crimes de corrupção e de lavagem de ativos, que vulneram intensamente direitos fundamentais de terceiros.

9.10. O CNJ E OS SIGILOS BANCÁRIO E FISCAL

O art. 8º, V, do Regimento do Conselho Nacional de Justiça prevê que compete ao Corregedor Nacional de Justiça “requisitar das autoridades fiscais, monetárias e de outras autoridades competentes informações, exames, perícias ou documentos, sigilosos ou não, imprescindíveis ao esclarecimento de processos ou procedimentos submetidos à sua apreciação, dando conhecimento ao Plenário”.

Esse Regimento ampara-se diretamente na Emenda Constitucional n. 45/2004, cujo art. 5º, § 2º, dispõe que, até que entre em vigor o novo Estatuto da Magistratura (que será feito por futura lei complementar, de iniciativa exclusiva do STF), o Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, disciplinará seu funcionamento e definirá as atribuições do Ministro-Corregedor.

Esse poder da Corregedoria do CNJ de quebrar os sigilos bancário e fiscal foi questionado, no final de 2011, em dois mandados de segurança, impetrados por associações de magistrados contra atos do Corregedor Nacional de Justiça, sob a alegação de violação do art. 5º, X (direito à privacidade), e vício formal, uma vez que uma resolução do CNJ não poderia substituir autorização expressa em lei complementar. Os processos estão em curso, sob a relatoria do Ministro Luiz Fux (STF, Mandados de Segurança n. 31.083 e 31.085).

9.11. SIGILO DE CORRESPONDÊNCIA E DE COMUNICAÇÃO TELEGRÁFICA: POSSIBILIDADE DE VIOLAÇÃO E AUSÊNCIA DE RESERVA DE JURISDIÇÃO

O art. 5º, XII, da CF/88 assegura o sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica. Em que pese que este último tenha ficado ultrapassado pelo desenvolvimento tecnológico, o direito à privacidade do conteúdo tanto da comunicação epistolar quanto da telegráfica não é absoluto. Admite-se a restrição da privacidade para fazer prevalecer outros direitos constitucionais, aplicando-se o critério da proporcionalidade no caso concreto.

No caso da comunicação epistolar, o art. 41, parágrafo único, da Lei de Execução Penal (Lei n. 7.210/84), editado antes da Constituição de 1988, autoriza o direito do estabelecimento prisional a violar correspondência encaminhada ou dirigida aos presos. O STF considerou tal regra compatível com a Constituição, uma vez que nenhuma liberdade pública é absoluta e não pode o direito à privacidade ser invocado para permitir crimes. Para o Min. Celso de Melo, a “inviolabilidade do sigilo epistolar não pode constituir instrumento de salvaguarda de práticas ilícitas” (HC 70.814, Rel. Min.Celso de Mello, julgamento em 1º-3-1994, Primeira Turma, DJ de 24-6-1994).

Assim, o critério da proporcionalidade foi aplicado, prevalecendo a proteção dos direitos dos terceiros (vítimas dos crimes que poderiam ser cometidos) em face do direito à privacidade dos presos.

Digno de nota é a ausência de reserva de jurisdição: mesmo autoridade administrativa pode violar o sigilo de correspondência, na visão do STF.

9.12. O SIGILO TELEFÔNICO E INTERCEPTAÇÃO PREVISTA NA LEI N. 9.296/96, INCLUSIVE DO FLUXO DE COMUNICAÇÕES EM SISTEMAS DE INFORMÁTICA E TELEMÁTICA

O art. 5º, XII, da Constituição prevê, excepcionalmente, a violação do sigilo das comunicações telefônicas sob os seguintes requisitos: 1) existência de lei regulamentadora; 2) ordem judicial; 3) nas hipóteses e na forma prevista na lei regulamentadora para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Quanto à lei regulamentadora, houve omissão legislativa até a edição da Lei n. 9.296/96. Consequentemente, o STF considerou prova ilícita aquela obtida mediante quebra do sigilo das comunicações telefônicas, mesmo quando existia ordem judicial, uma vez que o art. 57, II, a, do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei n. 4.117/62) foi considerado não recepcionado pela Constituição de 1988.

A ordem judicial é indispensável e deve ser fundamentada. Nem Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pode ordenar a interceptação telefônica, uma vez que a violação do sigilo da comunicação é matéria abrangida pelo princípio da reserva de jurisdição. Pode tão somente a CPI ordenar a quebra do sigilo dos dados telefônicos (registros das chamadas – quem ligou e para quem ligou – e duração), mas nunca ordenar a interceptação da conversa telefônica.

A Lei n. 9.296, de 24 de julho de 1996, regrou as hipóteses e forma da interceptação telefônica, que rapidamente se transformou em um dos instrumentos mais utilizados de investigação policial no Brasil.

A interceptação dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça, podendo ser decretada de ofício pelo juiz, ou a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público.

Para a decretação da interceptação de comunicações telefônicas é necessário que haja (i) indícios razoáveis da autoria ou participação em infração penal, inclusive com a qualificação dos investigados (salvo impossibilidade – ver abaixo o tópico dos “autores desconhecidos”), bem como que a (ii) prova não possa ser feita por outros meios disponíveis em casos de (iii) infração penal punida com pena de reclusão (pena máxima de mera detenção não autoriza interceptação telefônica).

Assim, de acordo com a Lei n. 9.296/96 não cabe a determinação judicial de interceptação telefônica se:

1) não houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal;

2) existir outro meio de produção da prova pretendida;

3) for caso de crime punido com pena máxima de detenção.

No caso de notitia criminis anônima, deve a autoridade policial antes realizar diligências preliminares para, só após, com novos indícios, solicitar a interceptação telefônica (HC 99.490, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 23-11-2010, Segunda Turma, DJE de 1º-2-2011).

O juiz deve decidir no prazo máximo de vinte e quatro horas, fundamentando a decisão. O período de interceptação deve ser fixado na decisão, mas não poderá exceder o prazo de 15 dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Apesar de a lei não estabelecer, expressamente, quantas prorrogações de “15 dias” são possíveis, prevalece o entendimento da possibilidade de renovações sucessivas até que a investigação esteja finalizada, desde que as ordens judiciais sejam fundamentadas e demonstrem a indispensabilidade das prorrogações para o deslinde do caso. Nesse sentido, decidiu o STF que “(...) É lícita a prorrogação do prazo legal de autorização para interceptação telefônica, ainda que de modo sucessivo, quando o fato seja complexo e, como tal, exija investigação diferenciada e contínua. (...)” (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010).

Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público (MP), que poderá acompanhar a sua realização. Em vários casos, não há a cientificação prévia ao MP e a Defesa alega vício e nulidade das provas obtidas. Na hipótese do Ministério Público ofertar a denúncia, o STF entendeu que esse argumento é superado, pois a denúncia implica “envolvimento próximo do promotor” (HC 83.515, Rel. Min. Nelson Jobim, julgado em 16-9-2004, publicado em 4-3-2005).

Porém, na fase do inquérito policial, pode o próprio Ministério Público promover o arquivamento da peça, caso não aceite ter sido mantido alheio à interceptação e a considere prova ilícita, não existindo outra apta a sustentar uma denúncia idônea. No caso de o juiz remeter o inquérito policial (de acordo com o art. 28 do CPP) ao Procurador-Geral de Justiça (Ministério Público Estadual) ou à 2ª Câmara de Coordenação e Revisão (no caso do Ministério Público Federal), a decisão de arquivamento do inquérito policial por esses entes, em virtude da ilicitude da prova, tem que ser acolhida pelo Judiciário.

Após, será feita a transcrição das conversas, com foco naquilo que interessa para o caso. Atualmente, há diversas discussões judiciais sobre o dever de transcrição integral do conteúdo gravado das conversas telefônicas e não somente as partes relevantes, em nome da ampla defesa. Porém, o STF decidiu que “só é exigível, na formalização da prova de interceptação telefônica, a transcrição integral de tudo aquilo que seja relevante para esclarecer sobre os fatos da causa sub iudice” (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010). Nesse mesmo sentido, decidiu o STF que “é desnecessária a juntada do conteúdo integral das degravações das escutas telefônicas realizadas nos autos do inquérito no qual são investigados os ora pacientes, pois bastam que se tenham degravados os excertos necessários ao embasamento da denúncia oferecida, não configurando, essa restrição, ofensa ao princípio do devido processo legal (art. 5º, LV, da CF). Liminar indeferida” (HC 91.207-MC, Rel. p/ o ac. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 11-6-2007, Plenário, DJ de 21-9-2007).

Também cabe mencionar que a Lei n. 9.296/96 permite a interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática, particularmente útil nos casos de correio eletrônico, chats, redes sociais e outras formas de comunicação da internet. Essa previsão legal não viola o direito à privacidade constitucional, que não é absoluto, podendo ser limitado – no caso, pela lei – para que se assegurem os direitos fundamentais de terceiros, vítimas de crimes sujeitos à pena de reclusão (ou seja, crimes graves).

Por sua vez, constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei (o chamado “grampo telefônico”, com pena de reclusão, de dois a quatro anos, e multa).

Em 2008, no bojo de diversas críticas de advogados criminalistas sobre o uso descontrolado de interceptações telefônicas na investigação criminal, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução n. 59, regrando a matéria em especial quanto ao trâmite burocrático dos pedidos. No mesmo ano, o Procurador-Geral da República considerou que tal deliberação administrativa foi além da regulamentação da Lei n. 9.296/96 e ingressou com a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.145 perante o STF (Relator Min. Gilmar Mendes), ainda não julgada.

9.13. A GRAVAÇÃO REALIZADA POR UM DOS INTERLOCUTORES SEM O CONHECIMENTO DO OUTRO: PROVA LÍCITA, DE ACORDO COM O STF (REPERCUSSÃO GERAL)

Há diferença entre a interceptação e a gravação de conversas telefônicas ou ambientais: a interceptação é aquela que é realizada por terceiros sem o consentimento dos envolvidos; a gravação é aquela realizada por um dos participantes (autogravação), com ou sem a anuência dos demais.

Houve muita discussão na doutrina e jurisprudência sobre a licitude da gravação por um dos participantes, sem o consentimento dos demais, de conversa telefônica ou ambiental. Inicialmente, o próprio STF considerou-a prova ilícita, salvo se fosse para a prova de crime feito pelo outro interlocutor (gravação da conversa do sequestrador, por exemplo). Posteriormente, o fato de a conversa ter sido gravada por um dos participantes pesou decisivamente na consolidação do entendimento do STF de que seria prova lícita, tal qual um documento celebrado pelas partes e utilizado apenas por uma delas, sem o consentimento da outra. Somente será prova ilícita se existir uma causa legal de sigilo ou reserva da conversação.

Por isso, a gravação de conversa telefônica por um dos envolvidos se constitui em prova lícita da comunicação da qual participa, salvo a existência de causa legal de sigilo ou reserva (STF, AI 578.858-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 4-8-2009, Segunda Turma, DJE de 28-8-2009).

Também a gravação de conversa em ambiente qualquer (gravação ambiental) por um dos participantes consiste em prova lícita, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação (RE 583.937-QORG, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 19-11-2009, Plenário, DJE de 18-12-2009, com repercussão geral).

Por outro lado, a jurisprudência reconheceu ser ilícita a gravação ambiental de “conversa informal” entre o suspeito e policiais, caso não tenha sido avisado do direito de permanecer em silêncio. Nesse sentido, decidiu o STJ que “é ilícita a gravação de conversa informal entre os policiais e o conduzido ocorrida quando da lavratura do auto de prisão em flagrante, se não houver prévia comunicação do direito de permanecer em silêncio” (STJ, HC 244.977-SC, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 25-9-2012).

9.14. A INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL

A captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise são previstos na Lei n. 12.850/2013, que expressamente revogou a Lei n. 9.034/95, definindo organização criminosa, bem como dispondo sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal.

Ficou autorizada a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos (art. 3º, II, da Lei).

Antes da edição da Lei n. 12.850/2013, o STF rechaçou a ilicitude da prova de interceptação ambiental, por ausência de um procedimento detalhado previsto na Lei n. 9.034/95 (na redação dada pela Lei n. 10.217/2001). Ainda nesse julgamento, o STF considerou prova lícita a interceptação ambiental realizada com ordem judicial em escritório de advocacia (houve também invasão noturna de domicílio, ver acima), uma vez que havia indícios de envolvimento do advogado com práticas criminosas da quadrilha (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010).

9.15. CASOS EXCEPCIONAIS DE USO DA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA: O “ENCONTRO FORTUITO DE CRIME”, A DESCOBERTA DE NOVOS AUTORES E A PROVA EMPRESTADA

No decorrer da interceptação, é possível que seja provado crime não previsto no pedido (“encontro fortuito de crime” ou também “crime achado”), sendo tal prova lícita, mesmo se a infração penal nova for punida com detenção ou for mera contravenção penal, desde que conexo com a infração constante do pedido (nesse sentido, STF, HC 83.515, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 16-9-2004, Plenário, DJ de 4-3-2005).

Caso seja totalmente desvinculado do crime investigado originalmente, há duas posições. A primeira posição defende que essa gravação pode servir como notitia criminis a fundamentar novo pedido próprio de interceptação (Streck, entre outros)33. A segunda posição considera que a prova é lícita, desde que não se verifique desvio de finalidade ou fraude (por exemplo, simular o pedido de interceptação de um suposto crime sujeito à pena de reclusão só para obter prova do real crime perseguido, sujeito à pena de detenção – exemplo de Moraes34).

Recentemente, na linha da segunda posição, decidiu o STF que o Conselho Nacional de Justiça pode usar prova emprestada de interceptação telefônica criminal em seu procedimento administrativo contra juiz, mesmo que o possível crime do magistrado tenha sido fortuitamente detectado, pois era diverso do que era objeto de investigação no monitoramento telefônico em curso (MS 28.003/DF, Rel. orig. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ o acórdão Min. Luiz Fux, julgamento de 8-2-2012 – Informativo do STF, n. 654, de 6 a 10-2-2012).

Também é possível que coautores e partícipes desconhecidos surjam no decorrer da interceptação, autorizada inicialmente apenas para determinadas pessoas. A prova contra esses novos indivíduos será lícita, uma vez que a própria Lei n. 9.296/96 permite que a interceptação ocorra sem identificação precisa quanto ao investigado. Nesse sentido, decidiu o STF: “Interceptação realizada em linha telefônica do corréu que captou diálogo entre este e o ora paciente, mediante autorização judicial. Prova lícita que pode ser utilizada para subsidiar ação penal, sem contrariedade ao art. 5º, XII, LIV, LV e LVI, da Constituição da República” (HC 102.304, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 25-5-2010, Primeira Turma, DJE de 25-5-2011).

Finalmente, admite-se o uso da chamada prova emprestada, no qual o conteúdo da conversa interceptada em seara criminal é utilizado no âmbito cível (por exemplo, em ação de improbidade) ou disciplinar (processo administrativo). Entendemos que esse uso é regular, uma vez que o direito à privacidade já foi afastado, de maneira legítima, no âmbito criminal, o que pode resultar inclusive na perda da liberdade do réu. Logo, impedir o uso da degravação da conversa interceptada no bojo de outro processo, mesmo que não criminal, não teria o condão de restaurar a privacidade do indivíduo-alvo ou mesmo de terceiros, podendo, porém, assegurar a tutela jurídica justa.

Nesse sentido, decidiu o STF que “dados obtidos em interceptação de comunicações telefônicas e em escutas ambientais, judicialmente autorizadas para produção de prova em investigação criminal ou em instrução processual penal, podem ser usados em procedimento administrativo disciplinar, contra a mesma ou as mesmas pessoas em relação às quais foram colhidos, ou contra outros servidores cujos supostos ilícitos teriam despontado à colheita dessa prova” (Inq 2.424-QO-QO, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 20-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007).

9.16. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA ORDENADA POR JUÍZO CÍVEL

O reconhecimento da limitabilidade dos direitos fundamentais consolidou o uso da proporcionalidade nos precedentes judiciais brasileiros, afastando a literalidade da redação dos direitos previstos na Constituição e nos tratados internacionais. O caso da inviolabilidade do sigilo de correspondência (relativizada pelo STF no caso dos presos) ou da invasão de domicílio por ordem judicial durante a noite (determinada pelo próprio STF) são exemplos marcantes da proporcionalidade nos direitos fundamentais.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou constitucional e legal a interceptação telefônica determinada por juiz em processo cível. Tratava-se de ação na qual se buscava a localização de menor subtraído por um dos genitores, tendo sido esgotados todos os meios tradicionais na esfera cível de localização pelo oficial de justiça e por ofícios infrutíferos e demorados.

Nessa hipótese, o juiz decidiu fazer prevalecer o direito à proteção da criança e do adolescente (art. 227 da CF) em detrimento da inviolabilidade do sigilo telefônico, fruto do direito à intimidade. A proporcionalidade foi aplicada, desconsiderando-se a redação do art. 5º, XII, que faz menção à interceptação telefônica regrada por lei e para investigação e persecução criminais. Na apreciação do caso no Superior Tribunal de Justiça (STJ), o Ministro Relator, Sidnei Beneti, decidiu a favor da possibilidade de interceptação telefônica por juízo cível, uma vez que “(...) há que se proceder à ponderação dos interesses constitucionais em conflito, sem que se possa estabelecer, a priori, que a garantia do sigilo deva ter preponderância” (voto do Ministro, STJ, HC 203.405, julgamento em 28-6-2011).

Parte da doutrina criticou severamente essa decisão, alegando que a subtração de criança ou adolescente ao poder de quem o tem sob sua guarda é crime (com pena de reclusão) tipificado no art. 237 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o que permitiria que o juiz cível representasse ao juiz criminal, para que este, no bojo de um inquérito criminal, ordenasse validamente a interceptação telefônica. Claro que, ao assim proceder, o juízo cível corre o risco de se curvar ao entendimento do seu colega juiz criminal (que poderia entender que não era caso de interceptação telefônica imediata, aguardando diligências policiais prévias) e também de se subordinar à posição do membro do Ministério Público oficiante no Inquérito Policial instaurado, que poderia entender que a conduta em tela não era crime (tendo em vista as peculiaridades do caso), promovendo seu arquivamento, o que negaria novamente o direito de acesso à justiça no processo cível.

Assim, pode-se justificar a interceptação telefônica para fins civis, em caso de (i) esgotados os meios usuais para fazer valer o direito da parte requerente e (ii) para fazer valer o direito de acesso à justiça em prazo razoável. O direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV) deve ser levado em consideração, ponderando-o também com o direito à privacidade. O sigilo telefônico em processos cíveis não pode ser absoluto, sob pena de amesquinharmos o direito a uma tutela justa em caso de imprescindibilidade da interceptação telefônica para fazer valer o direito da parte.

Esse caso torna evidente que o Poder Constituinte não consegue esgotar a regência expressa de todas as hipóteses de colisão entre os direitos fundamentais, uma vez que novas situações sociais surgem, gerando inesperadas colisões de direitos e exigindo ponderação pelo intérprete.

Assim, apesar de a Constituição de 1988 ter ponderado a colisão de direitos entre o direito à privacidade e os direitos das vítimas no campo penal (direito à verdade e justiça), exigindo lei para o caso de interceptação telefônica para fins penais, isso não exclui a possibilidade de ponderação desses mesmos direitos para a obtenção da tutela justa e célere no campo cível.

Do nosso ponto de vista, não há qualquer incongruência: a Constituição exigiu lei para a interceptação telefônica para fins criminais, uma vez que o direito penal trata da liberdade dos indivíduos. Na esfera cível, não há a necessidade de lei, uma vez que o direito de acesso à justiça é suficiente para conferir ao juiz o poder de sopesar os direitos, avaliar a situação e ordenar a interceptação telefônica.

É cedo para prever se esse entendimento do STJ prevalecerá no Supremo Tribunal Federal. A fundamentação do Min. Beneti, porém, é condizente com precedentes anteriores do próprio STF já vistos nesta obra, como os referentes (i) à relatividade da inviolabilidade do sigilo de correspondência e (ii) à relatividade da inviolabilidade domiciliar em período noturno no caso de ordem judicial (que deveria ser cumprida durante o dia, mas o foi durante a noite), em decisão referendada pelo Pleno do STF.

9.17. DECISÕES DO STF

Direito à honra e exame de DNA. “Coleta de material biológico da placenta, com propósito de fazer exame de DNA, para averiguação de paternidade do nascituro, embora a oposição da extraditanda. (...) Bens jurídicos constitucionais como ‘moralidade administrativa’, ‘persecução penal pública’ e ‘segurança pública’ que se acrescem – como bens da comunidade, na expressão de Canotilho – ao direito fundamental à honra (CF, art. 5º, X), bem assim direito à honra e à imagem de policiais federais acusados de estupro da extraditanda, nas dependências da Polícia Federal, e direito à imagem da própria instituição, em confronto com o alegado direito da reclamante à intimidade e a preservar a identidade do pai de seu filho” (Rcl 2.040-QO, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 21-2-2002, Plenário, DJ de 27-6-2003).

Diferença entre interceptação de comunicações e obtenção de dados. “Não há violação do art. 5º, XII, da Constituição, que, conforme se acentuou na sentença, não se aplica ao caso, pois não houve ‘quebra de sigilo das comunicações de dados (interceptação das comunicações), mas sim apreensão de base física na qual se encontravam os dados, mediante prévia e fundamentada decisão judicial’” (RE 418.416, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 10-5-2006, Plenário, DJ de 19-12-2006).

Quebra de sigilos e fundamentação. “São consideradas ilícitas as provas produzidas a partir da quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico, sem a devida fundamentação. Com esse entendimento, a Segunda Turma deferiu habeas corpus para reconhecer a ilicitude das provas obtidas nesta condição e, por conseguinte, determinar o seu desentranhamento dos autos de ação penal” (HC 96.056, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 28-6-2011, Segunda Turma, Informativo 633).

Prorrogação sucessiva das interceptações telefônicas. Possibilidade. “É lícita a interceptação telefônica, determinada em decisão judicial fundamentada, quando necessária, como único meio de prova, à apuração de fato delituoso. (...) É lícita a prorrogação do prazo legal de autorização para interceptação telefônica, ainda que de modo sucessivo, quando o fato seja complexo e, como tal, exija investigação diferenciada e contínua. (...) O Ministro Relator de inquérito policial, objeto de supervisão do STF, tem competência para determinar, durante as férias e recesso forenses, realização de diligências e provas que dependam de decisão judicial, inclusive interceptação de conversação telefônica. (...) O disposto no art. 6º, § 1º, da Lei federal 9.296, de 24 de julho de 1996, só comporta a interpretação sensata de que, salvo para fim ulterior, só é exigível, na formalização da prova de interceptação telefônica, a transcrição integral de tudo aquilo que seja relevante para esclarecer sobre os fatos da causa sub iudice” (Inq 2.424, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 26-11-2008, Plenário, DJE de 26-3-2010). No mesmo sentido: HC 105.527, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 29-3-2011, Segunda Turma, DJE de 13-5-2011; HC 92.020, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 21-9-2010, Segunda Turma, DJE de 8-11-2010.

Reserva de Jurisdição e interceptação telefônica. Impossibilidade de CPI ordenar a interceptação. “O princípio constitucional da reserva de jurisdição – que incide sobre as hipóteses de busca domiciliar (CF, art. 5º, XI), de interceptação telefônica (CF, art. 5º, XII) e de decretação da prisão, ressalvada a situação de flagrância penal (CF, art. 5º, LXI) – não se estende ao tema da quebra de sigilo, pois, em tal matéria, e por efeito de expressa autorização dada pela própria Constituição da República (CF, art. 58, § 3º), assiste competência à CPI, para decretar, sempre em ato necessariamente motivado, a excepcional ruptura dessa esfera de privacidade das pessoas” (MS 23.652, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-11-2000, Plenário, DJ de 16-2-2001). No mesmo sentido: MS 23.639, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-11-2000, Plenário, DJ de 16-2-2001.

Licitude da gravação por um dos interlocutores. “A gravação de conversa telefônica feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro, quando ausente causa legal de sigilo ou de reserva da conversação não é considerada prova ilícita” (AI 578.858-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 4-8-2009, Segunda Turma, DJE de 28-8-2009).

Crime achado. Conexão. Prova lícita. “Encontro fortuito de prova da prática de crime punido com detenção. (...) O Supremo Tribunal Federal, como intérprete maior da Constituição da República, considerou compatível com o art. 5º, XII e LVI, o uso de prova obtida fortuitamente através de interceptação telefônica licitamente conduzida, ainda que o crime descoberto, conexo ao que foi objeto da interceptação, seja punido com detenção” (AI 626.214-AgR, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 21-9-2010, Segunda Turma, DJE de 8-10-2010).

Direito ao silêncio e vedação da autoincriminação. Inaplicável à interceptação telefônica. “(...) a Lei 9.296/1996 nada mais fez do que estabelecer as diretrizes para a resolução de conflitos entre a privacidade e o dever do Estado de aplicar as leis criminais. Em que pese ao caráter excepcional da medida, o inciso XII possibilita, expressamente, uma vez preenchidos os requisitos constitucionais, a interceptação das comunicações telefônicas. E tal permissão existe, pelo simples fato de que os direitos e garantias constitucionais não podem servir de manto protetor a práticas ilícitas. (...) Nesse diapasão, não pode vingar a tese da impetração de que o fato de a autoridade judiciária competente ter determinado a interceptação telefônica dos pacientes, envolvidos em investigação criminal, fere o direito constitucional ao silêncio, a não autoincriminação” (HC 103.236, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 14-6-2010, Segunda Turma, DJE de 3-9-2010).

“Ação cível originária. Mandado de segurança. Quebra de sigilo de dados bancários determinada por CPI de Assembleia Legislativa. Recusa de seu cumprimento pelo Banco Central do Brasil. LC 105/2001. Potencial conflito federativo (cf. ACO 730-QO). Federação. Inteligência. Observância obrigatória, pelos Estados-membros, de aspectos fundamentais decorrentes do princípio da separação de poderes previsto na CF de 1988. Função fiscalizadora exercida pelo Poder Legislativo. Mecanismo essencial do sistema de checks-and-counterchecks adotado pela CF de 1988. Vedação da utilização desse mecanismo de controle pelos órgãos legislativos dos Estados-membros. Impossibilidade. Violação do equilíbrio federativo e da separação de poderes. Poderes de CPI estadual: ainda que seja omissa a LC 105/2001, podem essas comissões estaduais requerer quebra de sigilo de dados bancários, com base no art. 58, § 3º, da Constituição” (ACO 730, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 22-9-2004, Plenário, DJ de 11-11-2005).

Ingresso do Fiscal Tributário em casa na falta de consentimento do morador: somente ordem judicial. “(...) 2. Em consequência, o poder fiscalizador da administração tributária perdeu, em favor do reforço da garantia constitucional do domicílio, a prerrogativa da autoexecutoriedade, condicionado, pois, o ingresso dos agentes fiscais em dependência domiciliar do contribuinte, sempre que necessário vencer a oposição do morador, passou a depender de autorização judicial prévia. 3. Mas, é um dado elementar da incidência da garantia constitucional do domicílio o não consentimento do morador ao questionado ingresso de terceiro: malgrado a ausência da autorização judicial, só a entrada invito domino a ofende” (AgRg no RE 331.303-PR, STF, julgado em 10-2-2004, publicado no DJ de 12-3-2004).

10. Liberdade de informação e sigilo de fonte

Art. 5º, XIV – é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

O direito à informação consiste no direito individual ou coletivo de fornecer, veicular e receber informações sobre fatos ou condutas em geral. Há, então, a dupla dimensão do direito à informação: a dimensão de (i) fornecer infomação e a de (ii) recebê-la. Todos têm o direito de se informar livremente a partir de diversas fontes. A Constituição Federal garante o direito à informação e, simultaneamente, assegura o sigilo da fonte ao jornalista, quando necessário ao exercício de sua atividade profissional.

No Estado Democrático de Direito, o direito ou liberdade de informação possui duais espécies: (i) a liberdade de informação individual e a (ii) liberdade de informação de massa ou coletiva, pelos meios de comunicação, o que consagra a liberdade de imprensa.

A liberdade de imprensa consiste em um conjunto de atividades de produção de informação a terceiros em um ambiente livre de censura e outras formas de intimidação. Consiste em uma instituição-ideia, que permite a (i) revelação de informações, (ii) realização de críticas e (iii) formação da opinião pública (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009).

O sigilo da fonte consiste no direito do jornalista de impedir que terceiros conheçam a identidade daquele que transmitiu determinada informação. Consequentemente, não é possível constranger o jornalista, de qualquer modo, para que quebre o sigilo de suas fontes de informação jornalística. O sigilo de fonte é também um dever, no caso daquele que só forneceu a informação sob essa ressalva. Caso o jornalista divulgue assim mesmo o nome da fonte, viola seu sigilo profissional (prática do crime previsto no art. 154 do CP).

Em face da importância da liberdade de imprensa, o STF elencou áreas que podem ser regulamentadas por leis dos mais diversos âmbitos (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009):

1) direitos de resposta e de indenização, proporcionais ao agravo;

2) proteção do sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional;

3) responsabilidade penal por calúnia, injúria e difamação;

4) regulamentação das diversões e espetáculos públicos;

5) previsão de estabelecimento de meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente” (inciso II do § 3º do art. 220 da CF);

6) independência e proteção remuneratória dos profissionais de imprensa como elementos de sua própria qualificação técnica (inciso XIII do art. 5º);

7) participação do capital estrangeiro nas empresas de comunicação social (§ 4º do art. 222 da CF);

8) composição e funcionamento do Conselho de Comunicação Social (art. 224 da CF).

Nesse mesmo acórdão, o STF decidiu que são irregulamentáveis os bens de personalidade que se põem como o próprio conteúdo ou substrato da liberdade de informação jornalística, o que assegura a liberdade de conteúdo da matéria publicada.

Tema importante na atualidade é o uso das ações de indenização por dano moral como fator de inibição da liberdade de imprensa. Para o STF, é necessário assegurar a proporcionalidade entre o dano moral ou material sofrido por alguém pela ação de jornalistas e a indenização fixada, pois a “excessividade indenizatória é, em si mesma, poderoso fator de inibição da liberdade de imprensa, em violação ao princípio constitucional da proporcionalidade” (ADPF 130, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 30-4-2009, Plenário, DJE de 6-11-2009).

10.1. JURISPRUDÊNCIA DO STF

Sigilo de Fonte e sua proteção. “Em suma: a proteção constitucional que confere ao jornalista o direito de não proceder à ‘disclosure’ da fonte de informação ou de não revelar a pessoa de seu informante desautoriza qualquer medida tendente a pressionar ou a constranger o profissional de imprensa a indicar a origem das informações a que teve acesso, eis que – não custa insistir – os jornalistas, em tema de sigilo da fonte, não se expõem ao poder de indagação do Estado ou de seus agentes e não podem sofrer, por isso mesmo, em função do exercício dessa legítima prerrogativa constitucional, a imposição de qualquer sanção penal, civil ou administrativa, tal como reconheceu o Supremo Tribunal Federal” (Inq 870/RJ, Rel. Min. Celso de Mello, DJU de 15-4-1996).

Liberdade de imprensa e crítica jornalística. “O STF tem destacado, de modo singular, em seu magistério jurisprudencial, a necessidade de preservar-se a prática da liberdade de informação, resguardando-se, inclusive, o exercício do direito de crítica que dela emana, por tratar-se de prerrogativa essencial que se qualifica como um dos suportes axiológicos que conferem legitimação material à própria concepção do regime democrático. Mostra-se incompatível com o pluralismo de ideias, que legitima a divergência de opiniões, a visão daqueles que pretendem negar, aos meios de comunicação social (e aos seus profissionais), o direito de buscar e de interpretar as informações, bem assim a prerrogativa de expender as críticas pertinentes. Arbitrária, desse modo, e inconciliável com a proteção constitucional da informação, a repressão à crítica jornalística, pois o Estado – inclusive seus Juízes e Tribunais – não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais da Imprensa” (AI 705.630-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 22-3-2011, Segunda Turma, DJE de 6-4-2011).

11. Liberdade de locomoção

Art. 5º, XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;

LXI – ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;

LXII – a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada;

LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;

LXIV – o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;

LXV – a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária;

LXVI – ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;

LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

11.1. CONCEITO E RESTRIÇÕES À LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO

A liberdade de locomoção (ou ambulatorial) consiste no direito de ir, vir e permanecer, sem interferência do Estado ou de particulares, podendo ainda o indivíduo deixar, em tempo de paz, o território nacional com seus bens.

Como qualquer outro direito, este também é restringível por disposição expressa do texto constitucional ou, ainda, por meio de restrição implícita resultante da ponderação com outros direitos.

No caso, a CF/88 já dispõe que o indivíduo pode ter o seu direito de deixar o território nacional com seus bens restrito em tempo de guerra. Porém, na busca de preservação de outros direitos (como, por exemplo, o direito à igualdade tributária), pode o Estado instituir tributos para aqueles que queiram levar seus bens para fora do País.

Por fim, a CF/88 nada dispõe, no art. 5º, XV, sobre o ingresso no território nacional.

No que tange aos nacionais, nenhum obstáculo pode ser imposto pelo Estado ao ingresso no território nacional, por decorrência implícita à proibição da pena de banimento (art. 5º, XLVII, b).

Quanto aos estrangeiros, pode o Estado regular e probir seu ingresso, com a exceção do solicitante de refúgio a quem o Brasil deve, obrigatoriamente, permitir o ingresso (art. 4º, X da CF/88, regulamentado pela Lei n. 9.474/97 e pela Convenção da ONU sobre os Refugiados de 1951, já ratificada e incorporada internamente).

11.2. HIPÓTESES CONSTITUCIONALMENTE DEFINIDAS PARA PRIVAÇÃO DE LIBERDADE

O art. 5º, LXI, da CF/88 prevê que ninguém será preso senão em (i) flagrante delito ou por (ii) ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

Assim, ressalvados os casos de transgressão militar e crime propriamente militar (que veremos abaixo), a Constituição de 1988 consagrou a liberdade ambulatorial ao dispor que, excepcionalmente, a prisão só será realizada em flagrante delito ou por ordem de autoridade judiciária competente. Assim, os órgãos policiais do Estado perderam a competência de decretar a “prisão para averiguação”. Recentemente, o STF reconheceu a existência da condução coercitiva por parte de autoridade policial, sem ordem judicial.

Já a prisão em flagrante delito pode ser efetuada por qualquer indivíduo, dispondo o art. 301 do CPP que “qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”.

O art. 302 do CPP estabelece que determinada pessoa pode ser presa em flagrante delito quando: I – está cometendo a infração penal; II – acaba de cometê-la; III – é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV – é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração. Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência (art. 303).

precariedade do flagrante como fundamento da prisão: ao receber o auto de prisão em flagrante em até 24 horas, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; ou II – converter a prisão em flagrante em preventiva, se se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou ainda III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Consequentemente, o flagrante delito não poderá servir para manter um indivíduo preso durante uma investigação ou processo penal.

Na segunda hipótese referente à prisão decretada por ordem de autoridade judiciária competente, a Constituição de 1988 permitiu que a lei regulasse, de modo proporcional, a restrição à liberdade.

A Lei n. 12.403, de 2011, expressamente fez referência à indispensabilidade do binômio “necessidade e adequação” para que seja decretada qualquer medida cautelar restritiva à liberdade. Antes da sentença penal definitiva, é essencial a demonstração da necessidade, adequação e urgência para a prisão cautelar. São espécies legais de prisão provisória ou processual (antes da sentença definitiva) decretada por autoridade judiciária: prisão temporária e a prisão preventiva. Atualmente, então, antes da sentença penal definitiva, só há três hipóteses de prisão criminal de determinada pessoa: (i) flagrante delito (que deve depois se redundar em liberdade ou prisão preventiva); (ii) prisão temporária; (iii) prisão preventiva.

A prisão temporária é decretada pelo juiz na fase investigatória, a requerimento da Polícia ou do Ministério Público, sendo cabível nas hipóteses da Lei n. 7.960/89 e somente em virtude de sua imprescindibilidade para a investigação policial. A Lei n. 7.960 dispõe que caberá prisão temporária nas seguintes hipóteses: I – quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; ou II – quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; ou III – quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado em crimes que elenca (que vão desde o homicídio doloso ao genocídio, tráfico de drogas e crimes contra o sistema financeiro). A prisão temporária terá o prazo de 5 (cinco) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade.

Já a prisão preventiva consiste na espécie de prisão cautelar, a ser decretada pelo juiz em qualquer fase do inquérito ou processo, de ofício, se no curso da ação penal, ou a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial, para que seja garantida a ordem pública, a ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, desde que haja prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (arts. 311 e 312 do CPP). É possível ainda a decretação da prisão preventiva em caso de descumprimento de qualquer das outras medidas cautelares (ver abaixo a lista das outras medidas cautelares possíveis).

A prisão preventiva será admitida nas seguintes hipóteses, mencionadas no art. 313 do CPP: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a quatro anos; II – no caso de reincidente que houver cometido outro crime doloso (com sentença transitada em julgado), desde que não transcorrido o período depurador inserido no art. 64, I, do CP; III – nos casos de crimes envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; IV – no caso de dúvida quanto à identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. 

Como alternativa à prisão, há hoje um extenso rol de medidas coercitivas menos invasivas, a saber (art. 319 do CPP):

a) comparecimento periódico em juízo;

b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações;

c) proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

d) proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;

e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;

f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do CP) e houver risco de reiteração;

h) fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

i) monitoração eletrônica.

Há caso de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar, que consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. Essa substituição do local do aprisionamento poderá ocorrer nos casos de indivíduo: I – maior de 80 anos; II – extremamente debilitado por motivo de doença grave; III – que seja considerado imprescindível para dar cuidados especiais a pessoa menor de 6 anos de idade ou com deficiência; ou IV – seja gestante a partir do 7º mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.

Finalmente, a 1ª Turma do STF reconheceu, em 2011, a possibilidade de prisão por autoridade policial e condução coercitiva do detido (também denominada prisão cautelar de curta duração) para fins de investigação policial (STF, 1ª Turma, HC 107.644/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 6-9-2011). Para o STF, o art. 144, § 4º, da CF/88 assegura às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. Consequentemente, os agentes policiais, tendo em vista a necessidade de elucidação de um delito, podem realizar, sem ordem judicial ou estado de flagrante delito, a prisão e condução coercitiva de pessoas para prestar esclarecimentos ou depoimentos (com uso de algemas, inclusive). Nesse acórdão, o STF não utilizou a “teoria dos poderes implícitos” da Polícia, pois existe expressa previsão constitucional, que dá poderes à polícia para investigar a prática de eventuais infrações penais, bem como para exercer as funções de polícia judiciária. Cabe acompanhar atentamente a evolução da jurisprudência do STF (em virtude de não ter sido uma decisão do Plenário e pelas aposentadorias e renovação dos quadros da Corte) a respeito dessa modalidade de prisão cautelar de curta duração decretada pela autoridade policial para fins de investigação penal.

Apesar desse importante precedente do STF autorizando a condução coercitiva por policiais sem ordem judicial, entendemos que é necessário cautela, uma vez que não há autorização legal.

A título de comparação, o Ministério Público pode requisitar condução coercitiva de vítimas e testemunhas, de acordo com o previsto na Lei Complementar n. 75/93 (art. 8º, I) e na Lei n. 8.625/93 (art. 26, I, a). Só é conduzida coercitivamente a pessoa que descumpre a regular notificação de comparecimento. Já a Polícia não é mencionada, o que gera discussão sobre se é necessária intimação para comparecimento e só após a condução coercitiva ou se pode a Polícia já prender a pessoa (em sua casa, local de trabalho etc.) e conduzi-la para prestar esclarecimentos. Além disso, essa prisão de curta duração já encontra sucedâneo que é a prisão temporária – com ordem judicial.

11.3. LIBERDADE PROVISÓRIA COM OU SEM FIANÇA

A Constituição de 1988 prevê que a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária e ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança (art. 5º, LXV e LXVI). Assim, há previsão constitucional expressa que possibilita (i) análise judicial da prisão de qualquer indivíduo e (ii) a concessão de liberdade provisória com ou sem fiança.

Consequentemente, caso não seja necessária, adequada e urgente a segregação cautelar de um indivíduo ou outra medida menos invasiva, o juiz deve conceder a liberdade provisória, com ou sem fiança (se a pena privativa de liberdade cominada for superior a quatro anos: 10 a 200 salários mínimos). No caso de crimes com pena prevista igual ou inferior a quatro anos, a fiança pode ser arbitrada já pelo delegado de polícia (no valor de 1 a 100 salários mínimos).

Há determinados crimes aos quais a Constituição proíbe a fiança, que são os (i) crimes de racismo; (ii) crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e os definidos como crimes hediondos; e (iii) crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Contudo, mesmo diante de delitos inafiançáveis, caso não haja necessidade da prisão provisória, deve o juiz conceder liberdade provisória sem fiança.

Em 2012, o STF reconheceu a inconstitucionalidade da proibição da concessão de liberdade provisória aos acusados de tráfico de entorpecentes, prevista na Lei Antidrogas (art. 44 da Lei n. 11.343/2006). Para o STF, cabe ao magistrado analisar o caso concreto e conceder a restituição da liberdade no crime de tráfico de entorpecentes caso faltem os requisitos da imposição da prisão preventiva, impondo ainda as medidas cautelares previstas na Lei n. 12.403, exceto a fiança que continua proibida pelo texto constitucional. Ou seja, para o STF, o art. 5º, XLIII, da CF/88 não proibiu a liberdade provisória e sim somente a fiança (HC 104.339, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-5-2012).

A prisão processual ou provisória é, assim, medida excepcional, que deve ser fundamentada e servir como última opção ao julgador.

11.4. PRISÕES NOS CASOS DE TRANSGRESSÕES MILITARES OU CRIMES PROPRIAMENTE MILITARES, DEFINIDOS EM LEI E AS PRISÕES NO ESTADO DE EMERGÊNCIA

Além da prisão em flagrante, a Constituição de 1988 prevê quatro hipóteses de prisão que independem de ordem judicial, a saber:

a) Prisão por transgressão militar. A Lei n. 6.880/80 (“Estatuto dos Militares”) determina, em seu art. 42, que “a violação das obrigações ou dos deveres militares constituirá crime, contravenção ou transgressão disciplinar, conforme dispuser a legislação ou regulamentação específicas”. Assim, a transgressão disciplinar consiste na violação dos regulamentos administrativos do corpo militar, que, de acordo com o art. 142 da CF/88 (também repetido no art. 1º da LC n. 97/99 – normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas), deve ser organizado com base na hierarquia e na disciplina. Para assegurar plenamente esses preceitos (hierarquia e disciplina), é permitida pelo texto constitucional a decretação de prisão pelo superior competente por falta administrativa de determinado militar. Porém, exige-se que haja a prévia menção da conduta como falta disciplinar, inserida no regulamento administrativo do corpo militar.

b) Prisão por crime militar próprio, definido em lei. O Brasil adotou o critério legal para definição do crime militar (ratione legis): é crime militar o que a lei, no caso o Código Penal Militar (CPM, Decreto-Lei n. 1.001/69) assim define. O crime militar próprio é aquele que só pode ser praticado por militar, como, por exemplo, os crimes de abandono de posto (art. 195 do CPM), omissão de eficiência da força (art. 198 do CPM), omissão de eficiência para salvar comandados (art. 199 do CPM), dormir em serviço (art. 203 do CPM), de deserção (art. 187 do CPM), entre outros.

c) Prisão em Estado de Defesa. A Constituição permite que, na vigência do estado de defesa, a prisão por crime contra o Estado poderá ser determinada administrativamente pelo executor da medida, que a comunicará imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial (art. 136, § 3º, I).

d) Prisão em Estado de Sítio. A Constituição permite que, no estado de sítio decretado por comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, seja feita a prisão por ordem administrativa do executor do estado de sítio, com detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns (art. 139, II). No estado de sítio decretado por declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira também é possível a decretação da prisão por ordem administrativa do executor.

11.5. ENUNCIAÇÃO DOS DIREITOS DO PRESO

A importância de se garantir os direitos de um indivíduo no momento da prisão é universal, pois evita abusos a um indivíduo que está fragilizado e evidentemente em situação de vulnerabilidade. Para implementar esses direitos nos Estados Unidos, a Suprema Corte estadunidense – durante o período de atuação do Chief Justice Warren – decidiu, no caso “Miranda vs. Arizona”35 em 1966, que todo custodiado deve ser advertido, no momento da prisão, pela própria polícia, que tem direito de ficar em silêncio ou, caso prefira falar, de consultar previamente seu advogado36.Qualquer outro comportamento da polícia ensejaria a nulidade da confissão obtida. No caso Miranda, o voto do Chief Justice Warren expôs as vísceras do sistema de investigação policial norte-americano, por meio da transcrição de partes de manuais de interrogatório, que ensinavam como obter a confissão do suspeito, por meio de técnicas diversas.

O ponto em comum de todas essas técnicas usadas nos EUA era criar uma atmosfera de dominação, isolar e fragilizar o suspeito, impedindo contatos com advogados e parentes. Assim, valia tudo para obter a confissão: uso da representação com toques teatrais do “policial bom, policial mau” (“Mutt and Jeff”, no jargão), falsas “testemunhas” e reconhecimentos forjados para desestabilizar o suspeito, duração excessiva do interrogatório, sugestão de exculpantes (como legítima defesa – mas que não teriam credibilidade alguma, conforme comemora o próprio manual, uma vez que o suspeito teria inicialmente negado a autoria), argumentos para convencer o suspeito a não chamar um advogado (“se você é inocente, por que precisa de um advogado?”), entre outras “técnicas”. Tudo isso sem contar a violência pura, que, obviamente, não constava dos manuais, mas que foi lembrada no voto do Juiz Warren37. O resgate desse voto histórico é importante para demonstrar a importância universal dos direitos do indivíduo no momento em que é preso.

A Constituição de 1988 enumera alguns direitos do indivíduo que devem ser enunciados pelo executor da medida:

a) Direito à comunicação do local de sua prisão. O preso tem o direito de que seja comunicado à família (ou a pessoa por ele indicada) e ao juiz competente do local onde se encontre. Essa comunicação permite o relaxamento da prisão ilegal ou ainda a concessão da liberdade provisória.

b) Direito ao silêncio. O preso será informado do seu direito de permanecer calado. Esse direito é também denominado “autodefesa passiva”, com o investigado ou réu preferindo adotar uma linha de defesa não ativa, uma vez que cabe à Acusação provar o alegado. Ora, por conseguinte, não pode o acusado ser apenado por um exercício regular do direito de defesa, e, então, não se pode extrair nenhuma consequência negativa do exercício do direito ao silêncio, como, por exemplo, estipulava a antiga redação do art. 18638 do CPP brasileiro, felizmente já alterada39.

c) Direito à assistência da família e de advogado. O preso tem assegurada a assistência da família e de advogado. Caso não possua recursos para pagar o advogado sem prejuízo da subsistência pessoal ou familiar, tem direito à assistência jurídica integral por intermédio da Defensoria Pública.

d) Direito à identificação dos captores e dos interrogadores. O preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial.

A jurisprudência ainda extraiu o privilégio contra a autoincriminação do preso e dos demais investigados e acusados, decorrente do direito expresso ao silêncio do preso, como veremos abaixo.

11.6. DIREITO A NÃO CONTRIBUIR PARA SUA PRÓPRIA INCRIMINAÇÃO

Diversos tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil asseguram o direito de todo indivíduo de não ser obrigado a se autoincriminar, o que é conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se detegere. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966 e já ratificado e incorporado internamente, assegura a “cada indivíduo acusado de um crime”, entre as garantias processuais mínimas para o exercício do direito de defesa, aquela de não ser constrangido a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado (art. 14, II e III, g). A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), em vigor para o Brasil desde 1992, assegura “a toda pessoa acusada de delito”, entre outras garantias mínimas, o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada (art. 8º, II, g).

No caso brasileiro, a disposição constitucional sobre o direito ao silêncio do preso (art. 5º, LXIII, ver comentário acima) gerou, para o STF, o direito de toda pessoa, perante qualquer Poder, em qualquer processo (administrativo ou judicial), não importando a qualidade de sua posição no procedimento (mesmo se na condição de testemunha) de não ser obrigado a se autoincriminar ou a contribuir, de qualquer forma, para sua própria incriminação (privilégio contra a autoincriminação, nemo tenetur se detegere).

O direito a não ser obrigado a se autoincriminar compõe o direito à defesa. A não incriminação é uma modalidade de autodefesa passiva, que é exercida por meio da inatividade do indivíduo sobre quem recai ou pode recair uma imputação. O indivíduo pode defender-se da maneira que entender mais conveniente, sem que ninguém possa coagi-lo ou induzir seu comportamento, podendo inclusive optar pelo non facere. Afinal, o ônus da prova recai sobre a Acusação.

O direito de não ser obrigado a se autoincriminar implica a proibição de qualquer ato estatal que impeça, condicione ou perturbe a vontade do indivíduo de não contribuir para o processo sancionatório contra ele dirigido no momento ou no futuro (o que protege a testemunha de responder a pergunta que pode, futuramente, levar a um processo contra si).

As principais consequências, na jurisprudência brasileira, do privilégio contra a autoincriminação são:

a) Silêncio em face de pergunta cuja resposta é autoincriminadora. O STF já se pronunciou diversas vezes que toda pessoa pode invocar o direito de não produzir prova contra si, mesmo sem acusação formal ou no momento de depoimento na condição de testemunha. Toda pessoa que, na condição de testemunha, de indiciado ou de réu, deva prestar depoimento perante órgãos públicos, inclusive perante um juiz e Comissão Parlamentar de Inquérito, pode invocar o direito ao silêncio, sem qualquer prejuízo ou sanção (por exemplo, prisão em flagrante pelo crime de falso testemunho, modalidade “calar a verdade”).

b) Nulidade gerada pela ausência da notificação do direito ao silêncio. O STF determinou que há nulidade no caso de omissão de informação do direito do preso de quedar-se em silêncio, pois “ao invés de constituir desprezível irregularidade, a omissão do dever de informação ao preso dos seus direitos, no momento adequado, gera efetivamente a nulidade e impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas (HC 78708-1, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

c) Direito de não produzir elementos que servirão de prova contra si mesmo. O investigado não pode ser obrigado, sob “pena de desobediência”, a fornecer qualquer elemento de prova contra si mesmo. Por exemplo, não cabe exigir autógrafos para servir de padrão à perícia. Há outros métodos menos gravosos e que atingem o mesmo resultado, como, por exemplo, fazer requisição a órgãos públicos que detenham documentos da pessoa a qual é atribuída a letra.

d) Direito à mentira e as falsidades do investigado. O direito de não ser obrigado a produzir prova contra si mesmo foi expandido no Brasil e fundamenta, em conjunto com o direito à ampla defesa (modalidade autodefesa), a atipicidade da conduta de apresentar versões falsas. O tipo penal de falso testemunho não comporta a punição do investigado ou acusado. O art. 342 do CP, com a redação dada pela Lei n. 10.268/2001, estabelece ser o falso testemunho o ato da testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral, de fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade, o que exclui o investigado ou réu.

e) Direito à mentira e impossibilidade de usar as falsidades na dosimetria da pena. Como resultado do direito do réu de se defender com versões falsas, não pode o juiz, na visão majoritária, usar tal conduta na dosimetria da pena, punindo com maior severidade o réu. Para o STF, “a fixação da pena acima do mínimo legal exige fundamentação adequada, baseada em circunstâncias que, em tese, se enquadrem entre aquelas a ponderar, na forma prevista no art. 59 do CP, não se incluindo, entre elas, o fato de haver o acusado negado falsamente o crime, em virtude do princípio constitucional – nemo tenetur se detegere” (HC 68.742, Rel. p/ o ac. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 28-6-1991, Plenário, DJ de 2-4-1993, com vários julgados posteriores).

f) Vedação da atribuição falsa de identidade. Todavia, o investigado não pode mentir e atribuir para si falsa identidade. Deve optar pelo silêncio, caso não queira revelar sua identidade verdadeira, pois poderá ser processado pelo crime previsto no art. 307 do CP (“Art. 307. Atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem”). Para o STF, “o princípio constitucional da autodefesa (art. 5º, LXIII, da CF/1988) não alcança aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial com o intento de ocultar maus antecedentes, sendo, portanto, típica a conduta praticada pelo agente (art. 307 do CP)” (RE 640.139-RG, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 22-9-2011, Plenário, DJE de 14-10-2011, com repercussão geral).

g) Privilégio contra a autoincriminação e a interceptação telefônica. O privilégio contra a autoincriminação proíbe apenas que o Estado exija do investigado que contribua com sua própria incriminação. Contudo, não impede que o Estado realize investigações que colham, inclusive, a confissão do investigado em interceptações telefônicas ou escutas ambientais. O que é vedado, por ofensivo à dignidade humana, é coagir e forçar o investigado a revelar a prática de crime. Nesse sentido, o STF decidiu que “(...) não pode vingar a tese da impetração de que o fato de a autoridade judiciária competente ter determinado a interceptação telefônica dos pacientes, envolvidos em investigação criminal, fere o direito constitucional ao silêncio, a não autoincriminação” (HC 103.236, voto do Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 14-6-2010, Segunda Turma, DJE de 3-9-2010).

h) Privilégio contra a autoincriminação e o dever de apresentação de documentos. O dever de fornecer documentos é tratado de modo diferente. Nesse último caso, esses documentos entregues em si não têm o condão de incriminar ou absolver quem quer que seja. A batalha da defesa estará na interpretação do alcance e sentido de cada informação contida nos documentos. Assim, é legítima a requisição de documentos ou mesmo o recurso à busca e apreensão judicial de documentos.

i) Privilégio contra a autoincriminação e a intervenção corpórea mínima. O privilégio contra a autoincriminação e a integridade física são direitos utilizados para impedir que o Estado exija do investigado que ceda material integrante do próprio corpo para a investigação de ilícitos. Assim, no Brasil, é vedado que se exija de um indivíduo que doe material para o exame de DNA, que faça o teste do etilômetro (“bafômetro”) ou permita exame de sangue para aferição de estado de embriaguez. A conduta do investigado em fazer tais atos tem que ser voluntária, não podendo ser exigida. Nada impede, contudo, que a investigação obtenha material sem que a integridade física seja violada. No STF, foi considerado legítimo o exame de DNA feito na placenta, após sua expulsão pelo corpo, mesmo contra a vontade da mãe (Rcl 2.040-QO, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 21-2-2002, Plenário, DJ de 27-6-2003). Contudo, outros órgãos internacionais de direitos humanos, como a Corte Europeia de Direitos Humanos, aceitam a intervenção corpórea mínima no próprio investigado (p. ex., exame compulsório de DNA), de modo a preservar o direito à verdade e à justiça das vítimas, fazendo ponderação entre os direitos do investigado e os direitos das vítimas.

11.7. PRISÃO EXTRAPENAL

Há casos de prisão de natureza não criminal, que não tem o caráter de pena criminal, a saber:

a) prisão especial ou preventiva para fins de deportação, expulsão e extradição. Essa prisão era ordenada, antes da Constituição de 1988, por autoridade administrativa, sendo conhecida como prisão administrativa, conforme dispõe a Lei n. 6.815/80 (arts. 61, 69 e 81). Com a Constituição de 1988, cabe ao juiz federal ordenar a prisão especial para fins de deportação e expulsão (prazo máximo de 90 dias, segundo a construção jurisprudencial de Tribunais Regionais Federais) e ao STF ordenar a prisão preventiva para fins de extradição;

b) prisão civil do alimentante inadimplente injustificado. No caso da prisão do depositário infiel (art. 5º, LXVII, da CF/88), o STF não mais a admite, em face da adoção de tratados internacionais de direitos humanos que impedem sua adoção (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos; Convenção Americana de Direitos Humanos). A Súmula Vinculante 25 do STF dispõe que “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”;

c) prisão administrativa disciplinar, já estudada acima e ordenada por autoridade militar nos casos de transgressões militares, fundada nos arts. 5º, LXI, e 142, § 2º, da CF/88.

12. Liberdade de reunião e manifestação em praça pública

Art. 5º, XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;

A Constituição de 1988 assegura a todos o direito de se reunir, pacificamente e sem armas, em locais abertos ao público, sem necessidade de autorização prévia, desde que: (i) avisem previamente à autoridade competente e (ii) não frustrem outra reunião já convocada anteriormente.

A liberdade de reunião é direito-meio, que viabiliza a liberdade de expressão e a liberdade de associação, permitindo a participação da sociedade civil na vida política e social. A reunião em “local aberto ao público” é o instrumento que viabiliza essa participação.

Os requisitos para que se tenha o direito à reunião consistem em seis elementos: a) pessoal: qualquer um pode utilizá-lo; b) temporal: não pode ser inviabilizada outra reunião no mesmo horário; c) finalidade: o fim deve ser pacífico, ou seja, não pode ser feita reunião com violência ou incitação ao ódio ou à discriminação; d) espacial: não pode se sobrepor a outra reunião marcada anteriormente no mesmo local; e) circunstancial: não pode ser feita com participantes armados; e f) formal: deve existir aviso prévio à autoridade competente, para que se verifique a existência dos demais elementos e viabilidade da reunião.

Existentes esses elementos, o espaço público pode abarcar a defesa de teses não majoritárias, como a da defesa da legalização das drogas ou de qualquer outro tipo penal. Essa defesa de teses contrárias ao Direito Penal vigente não se constitui em apologia ao crime, mas sim o exercício legítimo do direito à livre manifestação do pensamento, graças ao exercício do direito de reunião, como decidiu o STF no Caso da “Marcha da Maconha”. Nesse caso, o STF interpretou o Código Penal restritivamente, considerando que não é “apologia ao crime” do art. 287 do CP a defesa em praça pública da mudança da lei e legalização do uso e produção da maconha (ADPF 187, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 15-6-2011, Plenário, Informativo 631).

Em outro caso emblemático, o STF considerou inconstitucional o Decreto n. 20.098/99 do Distrito Federal, que proibia a manifestação com aparelhos sonoros na Praça dos Três Poderes em Brasília. O STF considerou que a liberdade de reunião e de manifestação pública são conquistas da civilização, enquanto fundamento das modernas democracias políticas, não podendo ser exigidas “manifestações silenciosas” (ADI 1.969, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 28-6-2007, Plenário, DJ de 31-8-2007).

13. Liberdade de associação

Art. 5º, XVII – é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;

Art. 5º, XVIII – a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento;

Art. 5º, XIX – as associações só poderão ser compulsoriamente dissolvidas ou ter suas atividades suspensas por decisão judicial, exigindo-se, no primeiro caso, o trânsito em julgado;

Art. 5º, XX – ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado;

Art. 5º, XXI – as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente;

A liberdade de associação consiste no direito de formação de entidades, não importando a espécie ou natureza (com ou sem fim lucrativo), sendo proibida unicamente as de caráter paramilitar. O “caráter paramilitar” expressamente proibido pela Constituição refere-se a associações que buscam organizar e treinar seus membros de forma similar à das Forças Armadas, com uso de hierarquia, disciplina, cadeia de comando (com ou sem fardamento próprio) e voltado a atividades bélicas. A proibição expressa de associações de caráter paramilitar não elimina a possibilidade de proibição também de funcionamento de associações voltadas a outras práticas ilícitas, incidindo nesse caso, a ponderação entre o direito de associação e os direitos de terceiros (futuras vítimas das práticas ilícitas).

Foi prevista pela primeira vez em um texto constitucional brasileiro na Constituição de 1891, destacando-se nos textos constitucionais sucessivos. Há duas facetas ou dimensões da liberdade de associação: a dimensão positiva e a dimensão negativa. A liberdade de associação positiva assegura a qualquer pessoa (física ou jurídica) o direito de associar-se e de formar associações, gerindo-as sem interferência do Estado. Já a liberdade de associação negativa impede que qualquer pessoa seja compelida a filiar-se, permanecer filiado ou ainda a se desfiliar de determinada entidade (ADI 3.045, voto do Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-8-2005, Plenário, DJ de 1º-6-2007).

Além da liberdade de criação (salvo a de caráter paramilitar), a Constituição ainda estabelece outras regras regentes da liberdade de associação, a saber:

(i) criação e funcionamento independente de autorização estatal;

(ii) proibição da interferência estatal em seu funcionamento;

(iii) suspensão de suas atividades por decisão judicial, mesmo que em liminar;

(iv) dissolução compulsória só poderá ser feita por ordem judicial transitada em julgado;

(v) legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente, quando expressamente autorizadas, quer seja no estatuto institutivo ou mediante deliberação em Assembleia. Para o STF, descabe exigir instrumentos de mandatos subscritos pelos associados (RE 192.305, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 15-12-1998, Segunda Turma, DJ de 21-5-1999). Trata-se do instituto da representação processual (defesa de interesses de terceiros, em nome de terceiros), diferente do instituto da substituição processual (defesa em nome próprio dos interesses de terceiros), regulado no inciso LXX do art. 5º.

A Constituição ainda regula o direito de associação em dispositivos referentes aos sindicatos (art. 8º), aos partidos políticos (art. 17) e às cooperativas (arts. 5º, XVIII, e 146 e 174).

13.1. JURISPRUDÊNCIA DO STF

Liberdade de Associação na dimensão negativa. Ninguém pode ser obrigado a pagar mensalidade de associação a qual não quer ingressar, mesmo que seja beneficiado pelos trabalhos da dita associação. “Por não se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei n. 4.591/1964, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido. Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de vontade – art. 5º, II e XX, da CF” (RE 432.106, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 20-9-2011, Primeira Turma, DJE de 4-11-2011).

Representação por parte da Associação. “A representação prevista no inciso XXI do art. 5º da CF surge regular quando autorizada a entidade associativa a agir judicial ou extrajudicialmente mediante deliberação em assembleia. Descabe exigir instrumentos de mandatos subscritos pelos associados” (RE 192.305, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 15-12-1998, Segunda Turma, DJ de 21-5-1999).

14. Direito de propriedade

Art. 5º, XXII – é garantido o direito de propriedade;

Art. 5º, XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;

Art. 5º, XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;

Art. 5º, XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;

Art. 5º, XXVI – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento;

14.1. CONCEITO E FUNÇÃO SOCIAL

O direito de propriedade consiste na faculdade de usar, gozar, usufruir e dispor de um determinado bem. A Constituição de 1988 o inseriu, inicialmente, no caput do art. 5º (“todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade ...do direito ... à propriedade”).

Após, no inciso XXII do mesmo art. 5º, houve novamente a menção à garantia do direito de propriedade e, no inciso seguinte, foi previsto que a propriedade atenderá a sua função social. A propriedade e sua função social são também princípios da ordem econômica e financeira da Constituição, tendo disposto o seu art. 170, II e III, que: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II – propriedade privada; III – função social da propriedade privada”.

Assim, a Constituição consagrou, expressamente, a relatividade do direito de propriedade, que não é mais absoluto e sagrado (como constava, por exemplo, da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, 1789, art. 17), devendo o proprietário cumprir a função social da propriedade (art. 5º, XXIII, da CF). Assim, o direito de propriedade não é mais um direito liberal ou de abstenção tradicional, no qual seu titular pode exigir a ausência de turbação ao seu exercício; é um direito que exige do proprietário e do Estado conduta ativa (o cumprimento da função social) em prol dos interesses da comunidade.

A função social da propriedade consiste na exigência do exercício, pelo proprietário, dos atributos inerentes ao direito de propriedade de modo compatível com o interesse da coletividade.

Para cumprir a função social da propriedade, o proprietário deve tanto respeitar limitações (dimensão negativa da função social da propriedade) quanto parâmetros de ação (dimensão positiva), agindo em prol do interesse público. Logo, o objetivo do direito de propriedade não é mais restrito aos interesses egoísticos do seu titular, mas sim é vinculado ao interesse de toda a coletividade.

A Constituição diferencia duas espécies de função social, a depender do tipo de propriedade (urbana ou rural):

Função social da propriedade urbana: de acordo com o art. 182, § 2º, da CF/88, a propriedade urbana cumpre a função social quando obedece às diretrizes fundamentais de ordenação da cidade fixadas no plano diretor. O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, § 1º, da CF).

Função social da propriedade rural: o art. 186 da CF/88 estabelece que a propriedade rural cumpre sua função social quando atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

14.2. AS RESTRIÇÕES IMPOSTAS AO DIREITO DE PROPRIEDADE

Em nome do direito de todos a condições mínimas de sobrevivência, o Estado pode limitar e regular o direito de propriedade individual e interferir nas atividades econômicas dos entes privados.

A Constituição de 1988 distingue a forma e a intensidade de tais restrições e regulações, como se vê abaixo:

1) Propriedade que esteja cumprindo sua função social. A Constituição prevê que a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV). No mesmo sentido, as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinheiro (art. 182, § 3º).

2) Propriedade que não esteja cumprindo a sua função social. A Constituição prevê a desapropriação para fins de reforma agrária no caso da propriedade rural (ver abaixo), com pagamento ao desapropriado por meio de títulos da dívida pública. No caso de imóvel urbano, a Constituição determinada que o Poder Público municipal, mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, possa exigir nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano (i) não edificado, (ii) subutilizado ou (iii) não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento (função social da propriedade urbana), sob pena, sucessivamente, ou seja, da punição menos gravosa a mais gravosa, de: I – parcelamento ou edificação compulsórios; II – imposto sobre propriedade predial e territorial progressivo no tempo; III – desapropriação com o pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate em até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurado o valor real da indenização e os juros legais.

3) Propriedade que esteja sendo utilizada para produção de plantas psicotrópicas ilegais. Excepcionalmente, a Constituição prevê caso de confisco, ou seja, de perda da propriedade sem indenização, para punir o proprietário que determina ou deixa que ocorra a cultura ilegal de plantas psicotrópicas (art. 243).

4) Propriedade que seja indispensável para combater iminente perigo público. A Constituição prevê que, no caso de iminente perigo público, o Estado poderá usar a propriedade particular, sendo assegurada indenização posterior de danos causados ao proprietário (art. 5º, XXV). O perigo não precisa ser atual, basta a alta probabilidade de ocorrência (iminência).

5) Propriedade indispensável para a preservação do patrimônio histórico-cultural do Brasil. O patrimônio cultural brasileiro consiste no conjunto de bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A Constituição prevê que o Estado, com a colaboração da comunidade, deve promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. A própria Constituição determinou o tombamento de todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos (art. 216 e seus parágrafos).

14.3. A DESAPROPRIAÇÃO

A CF/88 prevê a possibilidade de perda do direito de propriedade para o atendimento do (i) interesse público geral, (ii) da função social da propriedade rural e (iii) da função social da propriedade urbana.

A desapropriação para a satisfação do interesse público geral é chamada também de desapropriação ordinária (comum), que resulta na transferência compulsória da propriedade para o Poder Público por motivo de necessidade (a desapropriação é indispensável), utilidade pública (a desapropriação aumenta o proveito extraído da propriedade pela coletividade) ou ainda interesse social (determinado grupo social será beneficiado). A Constituição exige que seja paga (a) indenização justa, (b) previamente à transferência e (c) em dinheiro (art. 5º, XXIV).

Por sua vez a desapropriação por descumprimento da função social da propriedade rural é comumente denominada desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Somente a União pode desapropriar para tal finalidade e recai sobre o imóvel que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão. As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.

São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra; e II – a propriedade produtiva (art. 185).

A lei garantirá tratamento especial à propridade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores (art. 186 da CF/88). A Lei n. 8.629/93 trata da temática.

Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos. A Lei complementar n. 76/93, com alterações realizadas pela Lei Complementar n. 88/96, rege o procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária.

Finalmente, a desapropriação por descumprimento da função social urbana da propriedade consiste na perda do direito de propriedade sobre imóvel urbano não edificado, não utilizado ou subutilizado. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. A Lei n. 10.257/2001, denominada “Estatuto da Cidade” rege a desapropriação para fins de política urbana.

É possível que o Poder Público exija do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que este promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente (ou seja, deve-se tentar inicialmente a restrição menos agressiva), de:

a) parcelamento ou edificação compulsórios;

b) imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;

c) finalmente, a última e mais drástica sanção (só após a ineficácia das duas anteriores): a desapropriação mediante pagamento com títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.

14.4. IMPENHORABILIDADE

De acordo com o art. 5º, XXVI, da CF/88, a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento.

Assim, o regime constitucional da impenhorabilidade da propriedade rural é composto pelos seguintes elementos: (i) somente a pequena propriedade; (ii) trabalhada pela família; (iii) somente quanto aos débitos decorrentes da atividade produtiva. Essa impenhorabilidade constitucional tem aplicação imediata (RE 136.753, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 13-2-1997, Plenário, DJ de 25-4-1997).

14.5. PROPRIEDADE DE ESTRANGEIROS

Apesar da igualdade entre os brasileiros e estrangeiros residentes prevista no art. 5º, a própria CF/88 determina tratamentos diferenciados ao longo do seu texto. No caso do direito de propriedade, ela estabelece as seguintes restrições e condicionantes a estrangeiros (pessoas físicas ou jurídicas):

i) Restrição na aquisição e arrendamento. A Constituição dispõe que a lei regulará e limitará a aquisição ou o arrendamento de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira e estabelecerá os casos que dependerão de autorização do Congresso Nacional. Autorização do Senado Federal. A Lei n. 5.709/71 determina que a aquisição de imóvel rural por pessoa física estrangeira não poderá exceder a 50 módulos de exploração indefinida, em área contínua ou descontínua. No caso de pessoas jurídicas estrangeiras ou controlados por estrangeiros, somente poderão ser adquiridos imóveis rurais destinados à implantação de projetos agrícolas, pecuários e industriais que estejam vinculados aos seus objetivos de negócio previstos no estatuto social. A soma das áreas rurais pertencentes a empresas estrangeiras ou controladas por estrangeiros não poderá ultrapassar 25% da superfície do município (ver Parecer AGU de 2010 abaixo).

ii) A empresa brasileira controlada por estrangeiro. Em 1995, foi editada a Emenda Constitucional n. 6 que eliminou do texto original da Constituição a distinção entre empresa brasileira e a empresa brasileira de capital nacional (revogação do art. 171 da CF/88), o que permitiu que empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro adquirissem livremente terras no país. Contudo, em 2010, foi editado o Parecer da AGU n. LA –01, de 19 de agosto de 2010, sobre aquisição de terras por estrangeiros, aprovado pelo Presidente da República, e, consequentemente, com força vinculante para a Administração Pública Federal (arts. 40 e 41 da LC n. 73/93). Nesse Parecer, decidiu-se que continua válida a previsão da Lei n. 5.709/71 sobre a restrição da aquisição e arrendamento de imóveis rurais à “pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no Exterior”. Com isso, as empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro (as “multinacionais”) ficaram sob o regime das restrições acima expostas. Pela nova interpretação, a EC n. 6/95 não influencia na temática, que deve ainda ser regida pelo art. 190 da CF/88, que prega a possibilidade de limitação da aquisição de terras por estrangeiros. Após o Parecer, devem ser registradas as aquisições por tais empresas em livros especiais nos cartórios de imóveis, com comunicação à Corregedoria de Justiça dos Estados e ao Ministério do Desenvolvimento Agrário. Já há entendimento do Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo pela inconstitucionalidade da nova interpretação da AGU40.

iii) Faixa de Fronteira. A Constituição prevê que a faixa de até 150 quilômetros de largura, ao longo das fronteiras terrestres, é designada como faixa de fronteira, sendo considerada fundamental para defesa do território nacional, e sua ocupação e utilização serão reguladas em lei (art. 20, § 2º, da CF/88). A Lei n. 6.634/79 veda transações com imóvel rural, que impliquem a obtenção, por estrangeiro, do domínio, da posse ou de qualquer direito real sobre o imóvel na faixa de fronteira. Proíbe ainda a participação, a qualquer título, de estrangeiro, pessoa natural ou jurídica, em pessoa jurídica que seja titular de direito real sobre imóvel rural na faixa de fronteira.

iv) Meios de comunicação. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. Em qualquer caso, 70% do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação (EC n. 36/2002).

v) Embarcações estrangeiras. Pela redação original dos §§ 2º e 3º do art. 178 da CF/88, deveriam ser brasileiros os armadores, os proprietários, os comandantes e dois terços, pelo menos, dos tripulantes de embarcações nacionais e ainda deveria ser a navegação de cabotagem e a interior privativas de embarcações nacionais, salvo caso de necessidade pública. Com as reformas liberalizantes e de abertura ao capital internacional dos anos 90 no Brasil (e em vários países da América Latina), foi aprovada a Emenda Constitucional n. 07, de 1995, que alterou o art. 178 e remeteu o tratamento normativo dos transportes aéreo, aquático e terrestre à lei ordinária federal, devendo esta, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos internacionais celebrados pelo Brasil, atendido o princípio da reciprocidade. Também ficou disposto que a lei regerá as condições em que o transporte de mercadorias na (i) cabotagem (navegação feita com observação da costa) e a (ii) navegação interior poderão ser feitos por embarcações estrangeiras. Assim passou-se a admitir a propriedade por estrangeiros de navios nacionais e ainda permitiu-se que embarcações estrangeiras concorram pelo transporte de mercadorias no mar territorial e nas águas interiores do País, rompendo-se a tradição de monopólio dos navios nacionais.

15. Direitos autorais

Art. 5º, XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar;

Art. 5º, XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:

a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;

b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;

Art. 5º, XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País;

15.1. DIREITOS AUTORAIS E DOMÍNIO PÚBLICO

O Direito da Propriedade Intelectual consiste no conjunto de regras de proteção referentes às criações intelectuais, bem como seus limites, abarcando tanto o Direito de Autor quanto o Direito de Propriedade Industrial (ver abaixo). Nesse sentido, o Brasil ratificou e incorporou internamente, pelo Decreto n. 75.541/75, o tratado que criou a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI, de 1967 (também chamada de Convenção de Estocolmo). De acordo com a citada Convenção, a proteção da propriedade intelectual consiste na defesa dos direitos relativos às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas e suas emissões, às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas e denominações comerciais, bem como todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico (art. 2º, VIII).

O Direito de Autor consiste no conjunto de direitos e limitações do criador de determinada obra intelectual sobre o integralidade de sua criação e gozo dos seus frutos, em especial no que tange à reprodução, execução ou representação. No Brasil, há ainda direitos conexos aos direitos do autor, como os direitos do intérprete (sobre a sua interpretação de obra de terceiro) ou ainda do produtor.

No que toca aos direitos autorais, a Constituição prevê que a (i) utilização, (ii) publicação ou (iii) reprodução de qualquer obra pertence ao seu autor, sendo transmissíveis aos herdeiros. Desse dispositivo, extraem-se tanto direitos da personalidade do autor (por exemplo, conservar a obra) quanto direitos de propriedade (cessão e comercialização).

A herança no caso dos direitos de autor é condicionada ao prazo previsto na lei. Atualmente, rege o tema a Lei n. 9.610/98, que dispõe, no seu art. 22 que “pertencem ao autor os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou”. Ainda de acordo com a lei, os direitos patrimoniais do autor perduram por setenta anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento, obedecida a ordem sucessória da lei civil.

Após, a obra recairá sob domínio público, sendo livre sua utilização, publicação e reprodução, mas devendo o Estado zelar pela integridade e autoria da obra caída em domínio público.

A Constituição assegura, ainda, a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas, gerando o direito de arena, que consiste na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem (vide a Lei n. 9.615/98 e ainda a Lei n. 12.395, de 2011).

Além disso, cabe o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas. No caso brasileiro, a Lei n. 9.610/98 reconheceu a legitimidade da existência do Escritório Central para a Arrecadação e Distribuição (ECAD, regido inicialmente pela Lei n. 5.988/73, sociedade civil sem fins lucrativos, que desenvolve “atividade de caráter público” de acordo com o STF, RE 201.819, Rel. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 11-10-2005, Segunda Turma, DJ de 27-10- 2006), que fiscaliza e cobra os direitos relativos à execução pública das (i) obras musicais e (ii) lítero-musicais e de fonogramas, inclusive por meio da radiodifusão e transmissão por qualquer modalidade, para, após, destinar o recurso ao autor. Também o STF decidiu que “pela execução de obra musical por artistas remunerados é devido direito autoral, não exigível quando a orquestra for de amadores” (Súmula 386 ).

15.2. A PROTEÇÃO À PROPRIEDADE INDUSTRIAL

A Constituição prevê que a lei assegurará aos autores de (i) inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às (ii) criações industriais, à (iii) propriedade das marcas, aos (iv) nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País.

No Brasil, a Lei n. 9.279/96 regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, tendo estabelecido que a proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerado o seu interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: I – concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade; II – concessão de registro de desenho industrial; III – concessão de registro de marca; IV – repressão às falsas indicações geográficas; e V – repressão à concorrência desleal.

Nesse sentido, decidiu o STF que “a propriedade da marca goza de proteção em todo território nacional. Não há se cogitar da coexistência do uso em Estados diferentes” (RE 114.601, Rel. Min. Célio Borja, julgamento em 14-2-1989, Segunda Turma, DJ de 12-5-1989).

Nessa mesma linha, o art. 218 da CF/88 dispõe que o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológicas, tendo sido editada a Lei n. 10.973/2004 que regula os incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnologias no ambiente produtivo.

16. Direito de herança e Direito Internacional Privado

Art. 5º, XXX – é garantido o direito de herança;

Art. 5º, XXXI – a sucessão de bens de estrangeiros situados no País será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do “de cujus”;

A Constituição reconhece o direito individual à herança, que consiste na transmissão de bens de pessoa natural falecida ou declarada judicialmente ausente (ver abaixo) para os chamados herdeiros, escolhidos pela lei (herdeiro necessário) ou pelo titular dos bens por meio de ato de última vontade (herdeiro testamentário). A abertura da sucessão se dá pela morte da pessoa natural ou pela ausência.

Nessa última hipótese, reconhece-se o estado de ausência a quem desaparece do seu domicílio sem dela haver notícia, sem representante ou procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, cabendo ao juiz, a requerimento de qualquer interessado ou do Ministério Público, declarar sua ausência, e nomear curador. Decorrido um ano da arrecadação dos bens do ausente, ou, se ele deixou representante ou procurador, em se passando três anos, poderão os interessados requerer que se declare a ausência e se abra provisoriamente a sucessão. Dez anos depois de passada em julgado a sentença que concede a abertura da sucessão provisória, poderão os interessados requerer a sucessão definitiva e o levantamento das cauções prestadas. Se, nos dez anos a que se refere este artigo, o ausente não regressar, e nenhum interessado promover a sucessão definitiva, os bens arrecadados passarão ao domínio do (i) Município ou do Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições, incorporando-se ao domínio da (ii) União, quando situados em território federal.

No que tange à sucessão que possa envolver dois ou mais ordenamentos jurídicos (caso de direito internacional privado), a sucessão por morte ou por ausência obedece à lei do país em que domiciliado o defunto ou o ausente, qualquer que seja a natureza e a situação dos bens (art. 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – nova denominação dada à antiga Lei de Introdução ao Código Civil pela Lei n. 12.376/2010).

Excepcionalmente, a Constituição criou regra unilateral de Direito Internacional Privado, que só pode ser aplicada para beneficiar brasileiros: a sucessão de bens de estrangeiros, situados no País, será regulada pela lei brasileira em benefício do cônjuge ou dos filhos brasileiros, ou de quem os represente, sempre que não lhes seja mais favorável a lei pessoal do de cujus.

Assim, no caso de sucessão de bens de estrangeiros, mesmo se o falecido tiver domicílio em outro país, a lei utilizada será a brasileira no que tange aos bens situados no Brasil, desde que tal aplicação beneficie o cônjuge ou filhos brasileiros.

17. Defesa do consumidor

Art. 5º, XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

A Constituição de 1988 reconheceu o dever de proteção do Estado aos direitos do consumidor, que consistem no conjunto de faculdades que asseguram o equilíbrio nas relações de consumo. A Lei n. 8.078/90 (“Código de Defesa do Consumidor”, como denominou o art. 48 da ADCT) rege atualmente a matéria, tendo criado um microssistema de proteção calcado em normas cíveis, penais e administrativas. A defesa do consumidor deve ser um imperativo também da ordem econômica brasileira, como dispõe o art. 170, V, da CF/88. Nesse sentido, o STF decidiu que “o princípio da livre-iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor” (RE 349.686, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 14-6-2005, Segunda Turma, DJ de 5-8-2005). Assim, é imprescindível que o Estado brasileiro, por meio de políticas públicas, concilie a livre-iniciativa e a livre concorrência com os princípios da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social (STF, ADI 319-QO, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 3-3-1993, Plenário, DJ de 30-4-1993).

Corolário dessa exigência de defesa do consumidor foi a decisão do STF de considerar as instituições financeiras alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor (ADI 2.591-ED, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 14-12-2006, Plenário, DJ de 13-4-2007).

Também nas relações econômicas internacionais, o Brasil deve se pautar pelo respeito ao direito dos consumidores. Nesse sentido, coroando uma nova fase da harmonização do Direito do Consumidor no Mercosul foi editada a Declaração Presidencial dos Direitos Fundamentais dos Consumidores do Mercosul (aprovada na XLX Reunião do Conselho Mercado Comum, realizada em Florianópolis, nos dias 14 e 15 de dezembro de 2000), que evitou tratar os direitos do consumidor como barreira não tarifária ao comércio. Pelo contrário, os “considerandos” da Declaração reforçam o caráter de direito fundamental do direito do consumidor, realçando que “os regimes democráticos se baseiam no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, incluídos os direitos do consumidor”. Nesse sentido, os Estados reconheceram que “a defesa do consumidor é um elemento indissociável e essencial do desenvolvimento econômico equilibrado e sustentável do Mercosul”. Sem contar que os Estados aceitaram que, em “um processo de integração, com livre circulação de produtos e serviços, o equilíbrio na relação de consumo, baseado na boa-fé, requer que o consumidor, como agente econômico e sujeito de direito, disponha de uma proteção especial em atenção a sua vulnerabilidade”.

18. Direito à informação e a Lei de Acesso à Informação Pública de 2011

Art. 5º, XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;

A Constituição de 1988 estabelece o direito fundamental de acesso a informações de interesse particular ou de interesse coletivo detidas pelo Poder Público, na forma da lei, que pode afastar esse direito em face de sigilo imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Em 2011, foi adotada a Lei n. 12.527, que entrou em vigor em 16 de maio de 2012 (regulamentada pelo Decreto n. 7.724/12), e que expressamente regulou o direito de acesso a informações previsto neste dispositivo constitucional.

Em linhas gerais, a Lei n. 12.527/2011 dispõe o seguinte:

Entes obrigados – o direito de acesso à informação deve ser assegurado por: I – órgãos públicos integrantes da administração direta dos Poderes Executivo, Legislativo, incluindo as Cortes de Contas, e Judiciário e do Ministério Público; II – autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios; III – entidades privadas sem fins lucrativos que recebam, para realização de ações de interesse público, recursos públicos diretamente do orçamento ou mediante subvenções sociais, contrato de gestão, termo de parceria, convênios, acordo, ajustes ou outros instrumentos congêneres.

Dever de prestar as informações, sem provocação (transparência ativa) – é dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências (por exemplo, internet), de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas. Como exemplo, a lei exige que as competências e estrutura organizacional, bem como os registros de repasses, despesas, licitações e dados gerais de programas diversos, além das respostas a perguntas mais frequentes da sociedade sejam disponibilizadas ex officio.

Pedido de informação – qualquer interessado poderá apresentar pedido de acesso a informações, por qualquer meio legítimo (o que inclui o e-mail e o formulário eletrônico), devendo o pedido conter a identificação do requerente e a especificação da informação requerida. Para o acesso a informações de interesse público, a identificação do requerente não pode conter exigências que inviabilizem a solicitação.

Prazo para o fornecimento da informação – o acesso à informação já disponível deve ser imediato. Não sendo possível, o prazo não pode ser superior a 20 dias para o fornecimento da informação, prorrogável por mais 10 dias, de modo fundamentado.

Recusa fundamentada – a recusa deve indicar as razões de fato ou de acesso pretendido, o que inclui a ausência da informação em seu banco de dados, quando deverá indicar, se for do seu conhecimento, o órgão que a detém.

Custo – o serviço de busca e fornecimento da informação é gratuito, salvo no caso de reprodução de documentos, situação em que poderá haver ressarcimento.

Exceções ao direito de acesso – a Constituição prevê a ressalva impeditiva do sigilo indispensável à segurança da sociedade (ponham em risco a vida, a segurança ou a saúde da população) ou do Estado (o que abarca as informações indispensáveis à atuação soberana e independente do Estado – vide art. 23 da Lei), o que gerou a seguinte classificação tríplice de sigilo das informações públicas: a) ultrassecreta, com prazo máximo de restrição de acesso de 25 anos (renovável uma única vez); b) secreta, com prazo máximo de restrição de acesso de 15 anos; c) reservada, com prazo máximo de restrição de acesso de 5 anos.

Permissão de acesso incondicionada não poderá ser negado acesso à informação: a) necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais; b) sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas.

Não eliminação de outras hipóteses de sigilo legal a lei expressamente não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público.

Acesso restrito a informações pessoais o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais. As informações pessoais terão as seguintes regras de acesso: I – terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e II – poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem.

Excepcional acesso amplo a informações pessoais o consentimento do interessado não será exigido quando as informações pessoais forem necessárias: I – à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico; II – à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem; III – ao cumprimento de ordem judicial; IV – à defesa de direitos humanos; ou V – à proteção do interesse público e geral preponderante; VI – em processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido; VII – em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.

Responsabilidade dos agentes públicos – a lei estabelece que o agente público (civil ou militar) que violar os dispositivos acima mencionados comete infração disciplinar e ato de improbidade administrativa.

Comissão Mista de Reavaliação de Informações é a Comissão que decidirá, no âmbito da Administração Pública federal, sobre o tratamento, classificação de informações sigilosas, com atribuição para rever a classificação de informações ultrassecretas ou secretas, de ofício ou mediante provocação de pessoa interessada, e também para prorrogar o prazo de sigilo de informação classificada como ultrassecreta, sempre por prazo determinado (no máximo mais 25 anos), enquanto o seu acesso ou divulgação puder ocasionar ameaça externa à soberania nacional ou à integridade do território nacional ou grave risco às relações internacionais do País.

Dever de informar não constitui quebra de sigilo a lei ainda dispõe sobre o dever do servidor público de comunicação de crime ou ato de improbidade, dispondo que nenhum servidor poderá ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente por dar ciência à autoridade sobre informação concernente à prática de crimes ou improbidade de que tenha conhecimento, ainda que em decorrência do exercício de cargo, emprego ou função pública.

Mesmo antes da entrada em vigor da Lei em 2012, o STF já havia reconhecido o direito à informação de atos estatais, admitindo ser legítimo o acesso a dados da remuneração bruta, cargos e funções titularizados por servidores públicos, uma vez que tais dados concretizam a informação de interesse coletivo ou geral. Nesse mesmo caso, o STF afastou qualquer ofensa à intimidade, vida privada e segurança pessoal e familiar, determinando somente a proibição de se revelar o endereço residencial, o CPF e a CI de cada servidor. Para o STF, tais revelações ao público representam “o preço que se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado republicano. (...) A negativa de prevalência do princípio da publicidade administrativa implicaria, no caso, inadmissível situação de grave lesão à ordem pública” (SS 3.902-AgR-segundo, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 9-6-2011, Plenário, DJE de 3-10-2011).

19. Direito de petição

Art. 5º, XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;

O direito de petição (right of petition) consiste na faculdade de provocar as autoridades competentes para que adotem determinadas condutas comissivas ou omissivas na defesa de interesse próprio ou coletivo. Logo, o direito de petição pode ser individual ou coletivo.

O direito de petição abarca as chamadas “reclamações ou representações” dirigidas ao Poder Público, para expor reivindicações, exigindo que este se pronuncie sobre determinada questão fática ou de direito, referente a interesse particular ou coletivo.

Constitui-se uma provocatio ad agendum, ou seja, provocação para que o Poder Público se pronuncie, em prazo razoável, sem que o interessado tenha que pagar qualquer taxa ou se submeta a condição ou requisito (sem a necessidade, por exemplo, de possuir advogado). Por outro lado, o Poder Público pode responder desfavoravelmente, devendo cientificar o peticionante.

Mas o direito de petição não é absoluto, não podendo ser invocado para desobrigar o interessado a cumprir determinadas condições específicas voltadas ao exercício do direito de ação, uma vez que, conforme decidiu o STF, “o direito de petição, fundado no art. 5º, XXXIV, a, da Constituição, não pode ser invocado, genericamente, para exonerar qualquer dos sujeitos processuais do dever de observar as exigências que condicionam o exercício do direito de ação, pois, tratando-se de controvérsia judicial, cumpre respeitar os pressupostos e os requisitos fixados pela legislação processual comum. A mera invocação do direito de petição, por si só, não basta para assegurar à parte interessada o acolhimento da pretensão que deduziu em sede recursal” (AI 258.867-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 26-9-2000, Segunda Turma, DJ de 2-2-2001).

Foi com base no direito constitucional de petição que o STF reconheceu ser inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévios de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo (STF, Súmula Vinculante 21).

No mesmo sentido, há a Súmula 373 do STJ: “É ilegítima a exigência de depósito prévio para admissibilidade de recurso administrativo”.

20. Direito à certidão

Art. 5º, XXXIV – são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:

b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

Art. 5º, LXXVI – são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma da lei:

a) o registro civil de nascimento;

b) a certidão de óbito;

Art. 5º, LXXVII – são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania

O direito à certidão consiste na faculdade constitucional de exigir que seja atestada determinada situação particular ou de interesse coletivo por parte de órgão público competente. Para a defesa do direito à certidão é cabível o mandado de segurança ou mesmo a ação civil pública, no caso da defesa de direitos e interesses individuais homogêneos (nesse sentido, STF, RE 472.489-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 29-4-2008, Segunda Turma, DJE de 29-8-2008).

A Lei n. 9.051/95 dispõe sobre a expedição de certidões para a defesa de direitos e esclarecimentos de situações. De acordo com a lei, as certidões para a defesa de direitos e esclarecimentos de situações, requeridas aos órgãos da administração centralizada ou autárquica, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e às fundações públicas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, deverão ser expedidas no prazo improrrogável de quinze dias, contado do registro do pedido no órgão expedidor.

A Constituição de 1988 ainda dispõe que são gratuitos para os reconhecidamente pobres (i) o registro civil de nascimento e (ii) a certidão de óbito, bem como os atos necessários ao exercício da cidadania na forma da lei. Porém, a Lei n. 9.534/97 alterou a Lei n. 8.935/94 e determinou a gratuidade dos assentos do registro civil de nascimento e o de óbito, bem como a primeira certidão respectiva, quer pobres ou não. Para o STF, essa lei é constitucional, pois a atividade desenvolvida pelos titulares das serventias de notas e registros, embora seja análoga à atividade empresarial, sujeita-se a um regime de direito público, não existindo direito constitucional a receber emolumentos, sendo certo de que tais assentos e certidões são atos necessários ao exercício da cidadania, como reza o art. 5º, LXXVII, da CF/88 (conferir ADC 5 e ADI 1.80, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 11-6-2007, Plenário, DJ de 5-10-2007 e ainda ADI 1.800, Rel. p/ o ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 11-6-2007, Plenário, DJE de 28-9-2007).

21. Direito de acesso à justiça

Art. 5º, XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

21.1. CONCEITO

O direito de acesso à justiça (ou direito de acesso ao Poder Judiciário ou direito à jurisdição) consiste na faculdade de requerer a manifestação do Poder Judiciário sobre pretensa ameaça de lesão ou lesão a direito. Concretiza-se, assim, o princípio da universalidade da jurisdição ou inafastabilidade do controle judicial, pelo qual o Poder Judiciário brasileiro não pode sofrer nenhuma restrição para conhecer as lesões ou ameaças de lesões a direitos. Esse direito é tido como de natureza assecuratória, uma vez que possibilita a garantia de todos os demais direitos, sendo oponível inclusive ao legislador e ao Poder Constituinte Derivado, pois é cláusula pétrea de nossa ordem constitucional.

O direito de acesso à justiça possui duas facetas: a primeira é a faceta formal, e consiste no reconhecimento do direito de acionar o Poder Judiciário.

A segunda faceta é a material ou substancial, e consiste na efetivação desse direito: (i) por meio do reconhecimento da assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovem a insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV); (ii) pela estruturação da Defensoria Pública como instituição essencial à função jurisdicional do Estado (art. 134); (iii) pela aceitação da tutela coletiva de direitos e da tutela de direitos coletivos (ver abaixo), que possibilita o acesso a justiça de várias demandas reprimidas (ver abaixo); e (iv) pela exigência de um devido processo legal em prazo razoável, pois não basta possibilitar o acesso à justiça em um ambiente judicial marcado pela morosidade e delonga.

Também não pode a lei criar obstáculos ao poder geral de cautela do juiz, uma vez que este se justifica para assegurar o resultado útil do processo principal: sem o poder de cautela, nada adiantaria o trâmite regular do acesso à justiça. Nessa linha, decidiu o STF que o “poder de cautela, mediante o implemento de liminar, é ínsito ao Judiciário” (ADPF 172-MCREF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 10-6-2009, Plenário, DJE de 21-8-2009).

Por sua vez, o STF decidiu que é inconstitucional a exigência de depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial na qual se pretenda discutir a exigibilidade de crédito tributário” (Súmula Vinculante 28) e ainda que viola a garantia constitucional de acesso à jurisdição a taxa judiciária calculada sem limite sobre o valor da causa (Súmula 667).

21.2. A TUTELA COLETIVA DE DIREITOS E A TUTELA DE DIREITOS COLETIVOS

O direito de acesso à justiça na sua faceta material exige que sejam asseguradas a tutela de direitos coletivos e a tutela coletiva de direitos individuais41.

A tutela de direitos coletivos é aquela que abarca a proteção de interesses indivisíveis, como os interesses difusos e coletivos stricto sensu, como definidos nos arts. 81 e 82 do Código de Defesa do Consumidor. Justamente por serem tais direitos indivisíveis, essa tutela reclama normas especiais, que viabilizem sua proteção pelo Poder Judiciário, como se vê na Lei n. 7.347/85 e na Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor). Além disso, o acesso à justiça exige normas que facilitem a tutela coletiva de direitos individuais (que, em tese, poderiam ser defendidos por cada um de seus titulares, em ações individuais), uma vez que há demandas que possuem determinadas características que exigem tratamento coletivo, como, por exemplo, uma pequena lesão a direitos de milhares de consumidores: seu conteúdo econômico baixo não viabilizaria demandas individuais, mas uma ação coletiva poderia exigir reparação, evitando a sensação de impunidade e desamparo do consumidor.

21.3. AUSÊNCIA DE NECESSIDADE DE PRÉVIO ESGOTAMENTO DA VIA ADMINISTRATIVA E A FALTA DE INTERESSE DE AGIR

O direito de acesso à justiça não pode ser obstaculizado pela exigência de prévio esgotamento da via administrativa. Diferentemente da Constituição de 1967/1969, a Constituição de 1988 não adotou nenhuma espécie de contencioso administrativo obrigatório, condicionando o direito de acesso à justiça somente no caso da (i) Justiça do Trabalho e (ii) Justiça Desportiva.

No caso da Justiça do Trabalho, a Constituição de 1988 determina ser indispensável o término da fase de negociação no caso dos dissídios coletivos (art. 114, § 2º). Em 2009, o STF deu interpretação conforme a Constituição do art. 625, d, da CLT, decidindo que não será obrigatório o acionamento de Comissão de Conciliação Prévia nos dissídios individuais, podendo ser proposta diretamente a ação trabalhista (ADI 2.139-MC e ADI 2.160-MC, voto do Rel. p/ o ac. Min. Marco Aurélio, julgamento em 13-5-2009, Plenário, DJE de 23-10-2009).

No caso da Justiça Desportiva (órgãos privados, relacionados com a autonomia das entidades desportivas), prevê a Constituição de 1988 que o Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei. Porém, a justiça desportiva terá o prazo máximo de 60 dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final (art. 217, §§ 1º e 2º).

Por isso, o STF decidiu que “não há previsão, na Lei Fundamental, de esgotamento da fase administrativa como condição para acesso, ao Poder Judiciário, por aquele que pleiteia o reconhecimento do direito previdenciário (...)” (AI 525.766, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 1º-3-2007).

Porém, na área federal, há discussão nos Juizados Especiais Federais sobre a necessidade de prévio requerimento de benefício previdenciário pelo interessado ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Nesse caso, não se exige esgotamento da via administrativa, mas sim o mero requerimento administrativo para que seja comprovado o interesse de agir do Autor (pelo indeferimento pelo INSS ou delonga na análise do pleito).

21.4. ARBITRAGEM E ACESSO À JUSTIÇA

A Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96) atualizou o regramento desse modo não estatal de solução de controvérsias em litígios envolvendo direitos disponíveis. Houve intensa discussão sobre eventual ofensa ao direito de acesso à justiça pela previsão de obrigatoriedade do cumprimento da cláusula compromissória de instalação de arbitragem para os futuros litígios, prevista em contratos, com o direito à tutela judicial específica para que a arbitragem viesse a ocorrer.

Para o STF, a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato que previa a arbitragem, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso são compatíveis com o art. 5º, XXXV, da CF (SE 5.206-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 12-12-2001, Plenário, DJ de 30-4-2004). A própria lei determina que a arbitragem pode ser prevista somente em casos de direitos disponíveis, que sequer seriam obrigatoriamente submetidos ao Poder Judiciário. Logo, nada obsta seus titulares de acordarem um mecanismo não estatal de solução de controvérsias.

22. A segurança jurídica e o princípio da confiança: a defesa do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

Art. 5º, XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

O direito à segurança jurídica consiste na faculdade de obstar a extinção ou alteração de determinado ato ou fato jurídico, posto a salvo de modificações futuras, inclusive legislativas.

Há duas facetas do direito à segurança jurídica: a objetiva, pela qual se imuniza os atos e fatos jurídicos de alterações posteriores, consagrando a regra geral da irretroatividade da lei e a subjetiva, que também é chamada de princípio da confiança, pela qual a segurança jurídica assegura a confiança dos indivíduos no ordenamento jurídico.

Nesse sentido, decidiu o STF que é obrigatória a “observância do princípio da segurança jurídica enquanto subprincípio do Estado de Direito”, sendo o princípio da confiança um elemento da segurança jurídica (MS 22.357, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 27-5-2004, Plenário, DJE de 5-11-2004).

Nessa linha, a Constituição deteminou que a lei não pode prejudicar:

i) o direito adquirido, que consiste no direito que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aquele cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem (art. 6º, § 2º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro);

ii) ato jurídico perfeito, que consiste no ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou (art. 6º, § 1º, da LINDB); e

iii) coisa julgada, que consiste na decisão judicial de que já não caiba recurso (e não a denominada coisa julgada administrativa, como decidiu o STF no RE 144.996, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 29-4-1997, Primeira Turma, DJ de 12-9-1997).

No STF, o direito à segurança jurídica foi diversas vezes discutido para se firmar:

1) Em casos de nova lei que elimine direitos de servidores públicos, não há direito adquirido à permanência de regime jurídico benéfico da data da posse do servidor; apenas se asseguram os direitos que já se incorporaram ao seu patrimônio. Nesse sentido: “O STF já pacificou sua jurisprudência no sentido de que os quintos incorporados, conforme Portaria MEC 474/1987, constituem direito adquirido, não alcançado pelas alterações promovidas pela Lei 8.168/1991” (AI 754.613-AgR, voto da Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 20-10-2009, Segunda Turma, DJE de 13-11-2009). Ou ainda, decidiu o STF que “Gratificação incorporada aos proventos por força de norma vigente à época da inativação não pode ser suprimida por lei posterior” (RE 538.569-AgR, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 3-2-2009, Segunda Turma, DJE de 13-3-2009).

2) Não ofende direito adquirido, a mudança da lei que incide sobre ato cujo ciclo de formação ainda não se completou, não sendo possível a proteção de mera expectativa de direito. Assim, caso haja mudança constitucional sobre as regras da aposentadoria, aqueles que ainda não possuíam todos os requisitos para a aposentadoria pelas regras revogadas, não podem alegar direito adquirido. Porém, ressalte-se que a previsão de regra de transição pode ser exigido em nome da igualdade, não podendo a nova lei tratar aqueles que já estão há anos contribuindo pelas regras revogadas de modo idêntico aos demais.

3) A inviolabilidade do direito adquirido, ato jurídico perfeito e da coisa julgada não pode ser invocada contra o Poder Constituinte Originário (RE 140.894, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 10-5-1996, Primeira Turma, DJ de 9-8-1996).

4) O STF editou a Súmula Vinculante 1, segundo o qual, ofende a garantia constitucional do ato jurídico perfeito a decisão que, sem ponderar as circunstâncias do caso concreto, desconsidera a validez e a eficácia de acordo constante de termo de adesão instituído pela Lei Complementar n. 110/2001.

5) A irretroatividade da lei não pode ser invocada pelo ente estatal que a tenha editado, o que permite que leis novas preservem a mera expectativa de direito (Súmula 654 do STF), não podendo, após, o Poder Público arrepender-se e questionar a constitucionalidade da própria lei.

6) A irretroatividade da lei, base do direito à segurança jurídica, é expressamente afastada no caso do direito penal, pois a Constituição prevê que a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (art. 5º, XL).

O direito à segurança jurídica não é absoluto, podendo ser afastado para que prevaleçam outros direitos fundamentais.

Há a possibilidade de invocação da coisa julgada inconstitucional, para permitir a superação da coisa julgada (mesmo após o prazo da ação rescisória – coisa julgada soberana), como apregoa o art. 475, § 1º, do CPC, que considera também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Também foi afastada a coisa julgada em ação de investigação de paternidade, para fazer valer o direito à identidade genética, tendo o STF decidido que o princípio da segurança jurídica não pode prevalecer em detrimento da dignidade da pessoa humana, sob o prisma do acesso à informação genética e da personalidade do indivíduo (RE 363.889, Rel. Min. Dias Toffoli, julgamento 7-4-2011, Plenário, Informativo 622, com repercussão geral).

23. Juiz natural e promotor natural

Art. 5º, XXXVII – não haverá juízo ou tribunal de exceção;

Art. 5º, LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

23.1. CONCEITO

O direito ao juiz natural consiste no direito de qualquer indivíduo de ser processado e sentenciado por juízo designado por regras abstratas e existentes previamente. Proíbe-se, assim, o juiz designado para o caso (juiz ad hoc) e o juízo ou tribunal de exceção, aquele que é criado posteriormente para julgar determinado caso.

23.2. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O JUIZ NATURAL: O FORO POR PRERROGATIVA DE FUNÇÃO

A Constituição estabeleceu diversas hipóteses de competência por foro de prerrogativa de função, que se constituem no juiz natural dessas autoridades, a saber:

Função

Espécie de crime

Competência

Presidente da República e Vice-Presidente

crime comum

STF (CF, art. 102, I, b)

crime de responsabilidade

Senado Federal (CF, art. 52, I).

Deputados Federais e

Senadores

crime comum

STF (CF, art. 102, I, b)

crime de responsabilidade

Casa respectiva

(CF, art. 55)

Ministros do STF

crime comum

STF (CF, art. 102, I, b)

crime de responsabilidade

Senado Federal (CF, art. 52, I).

Procurador-Geral da

República

crime comum

STF (CF, art. 102, I, b)

crime de responsabilidade

Senado Federal (CF, art. 52, I).

Advogado-Geral da União

crime comum

STF (CF, art. 102, I, b)

crime de responsabilidade

Senado Federal (CF, art. 52, I).

Membros dos Tribunais

Superiores, do TCU e os chefes de missão diplomática de caráter permanente

crime comum e

de responsabilidade

STF (CF, art. 102, I, b)

Governador de Estado

crime comum

STJ (CF, art. 105, I, a)

crime de responsabilidade

Tribunal Especial (Lei n. 1.079/50, art. 78)

Desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados e do DF

crime comum e

de responsabilidade

STJ (CF, art. 105, I, a)

Desembargadores Federais

Membros dos Tribunais

Regionais Eleitorais e do

Trabalho

crime comum e

de responsabilidade

STJ (CF, art. 105, I, a)

Membros dos Tribunais de

Contas dos Estados, do DF, e dos Conselhos ou Tribunais de

Contas dos Municípios

crime comum e

de responsabilidade

STJ (CF, art. 105, I, a)

Membros do Ministério Público da União que oficiam perante tribunais

crime comum e

de responsabilidade

STJ (CF, art. 105, I, a)

Deputados estaduais

crime comum

Depende da Constituição Estadual (em regra, Tribunais de Justiça)

crime de responsabilidade

Assembleia Legislativa do Estado

crime federal

Tribunal Regional Federal

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

Juízes Federais

Juízes da Justiça Militar

Juízes da Justiça do Trabalho

crime comum e

de responsabilidade

Tribunal Regional Federal

(CF, art. 108, I, a)

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

Membros do Ministério Pú-

blico da União

(MPM/MPT/MPDFT/MPF)

que atuam na 1ª instância

crime comum e

de responsabilidade

Tribunal Regional Federal

(CF, art. 108, I, a). Ou seja, promotor de justiça do DF não é julgado pelo TJ-DF, mas sim pelo TRF, sendo processado criminalmente por membro do MPF

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

Juízes Estaduais e do Distrito Federal

crime comum e

de responsabilidade

Tribunais de Justiça

(CF, art. 96, III)

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

Procurador-Geral de Justiça

crime comum

Tribunais de Justiça

(CF, art. 96, III)

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

crime de responsabilidade

Poder Legislativo Estadual ou

Distrital (CF, art. 128)

crime de responsabilidade conexo com Governador de Estado

Tribunal Especial (Lei n. 1.079/50, art. 78)

Membros do Ministério

Público Estadual

crime comum e

de responsabilidade

Tribunais de Justiça

(CF, art. 96, III)

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

Prefeitos

crime comum

Tribunais de Justiça

(CF, art. 29, X)

crime eleitoral

Tribunal Regional Eleitoral

crime federal

Tribunal Regional Federal

crime de responsabilidade

Câmara de Vereadores

(CF, art. 31)42

Desse quadro, cabem as seguintes observações:

1) Toda vez que a Constituição menciona crime de responsabilidade a ser julgado por órgão político (por exemplo, crime de responsabilidade do Presidente que será julgado pelo Senado, após autorização da Câmara dos Deputados) deve-se entender tal “crime” como sendo infração político-administrativa; quando se referir a crime de responsabilidade a ser julgado por órgão do Poder Judiciário, trata-se de crime de ação penal titularizada pelo Ministério Público (art. 129, I, da CF/88).

2) De acordo com a Súmula 704 do STF: “não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”.

3) O foro por prerrogativa de função na esfera criminal é estabelecido para a preservação das atribuições do cargo ocupado pela autoridade pública. Assim, não pode ser invocado por ex-ocupante (por aposentadoria, renúncia, cassação etc.). Em 2002, a Lei n. 10.628 estendeu essa prerrogativa aos ex-ocupantes de cargos públicos e ex-detentores de mandatos eletivos e ainda alargou tal prerrogativa para os atos de improbidade, tendo o STF considerado tal extensão inconstitucional em 15 de setembro de 2005. Em 2012, o STF modulou o efeito de tal declaração de inconstitucionalidade, apenas para, em nome da segurança jurídica, considerar válidos os atos processuais eventualmente praticados nesses processos criminais ou de improbidade administrativa entre 24 de dezembro 2002 (data da edição da lei inconstitucional) a 15 de setembro de 2005 (ver ADI 2.797).

4) Não há foro por prerrogativa de função na área cível e, em especial, na ação de improbidade, tendo decidido o STF que há “orientação firmada no sentido de que inexiste foro por prerrogativa de função nas ações de improbidade administrativa” (RE 601.478-AgR, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 16-3-2010, Segunda Turma, DJE de 9-4-2010).

5) O desaforamento (previsto no art. 427 do CPP) do tribunal do júri não viola o princípio do juiz natural, sendo compatível com Constituição, pois assegura o respeito ao devido processo legal e imparcialidade do juízo (STF, HC 67.851, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 24-4-1990, Plenário, DJ de 18-5-1990).

6) Varas criminais coletivas (5 juízes atuando no julgamento em 1º grau) para julgar organizações criminosas, tais quais as estabelecidas em Alagoas não são inconstitucionais. A competência legislativa concorrente (art. 24 da CF) permite tal atuação de lei estadual. Além disso, o julgamento coletivo em 1º grau nesses casos de organizações criminosas favorece a independência judicial (STF, ADI 4414/AL, Rel. Min. Luiz Fux, 30 e 31-5-2012).

23.3. PROMOTOR NATURAL

Após intensa discussão doutrinária e jurisprudencial43, o STF acatou a existência do postulado do promotor natural, que consiste no direito de determinado indivíduo de ser processado por promotor designado de acordo com regras abstratas e prévias ao caso concreto. Para o STF, o postulado do Promotor Natural é implícito ao sistema constitucional brasileiro, gerando os seguintes efeitos:

1) Proibição de designações casuísticas de Promotor, mesmo que efetuadas pela Chefia da Instituição (situação denominada “acusação de exceção”).

2) Garantia de que o afastamento do promotor, originalmente promotor natural, será feito também por regras previamente existentes, como, por exemplo, férias, aposentadoria, quebra da inamovibilidade por decisão de órgão superior, por maioria absoluta, por motivo de interesse público (CF, art. 128, I, b), punição disciplinar do Conselho Nacional do Ministério Público (art. 130-A, § 2º, III) etc.

3) Ausência de violação do postulado do promotor natural pela sucessão de posições colidentes em um mesmo processo, uma vez que tais divergências entre promotores são decorrência da independência funcional (HC 102.147, Rel. Min. Celso de Mello, decisão monocrática, julgamento em 16-12-2010, DJE de 3-2-2011).

23.4. TRIBUNAL DO JÚRI

Art. 5º, XXXVIII – é reconhecida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados:

a) a plenitude de defesa;

b) o sigilo das votações;

c) a soberania dos veredictos;

d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida;

A instituição do Júri consiste no conjunto de normas que rege o julgamento de determinada causa (cível ou criminal) por um colegiado de cidadãos. É inspirada pela Carta Magna, de 1215, que determinava o direito de uma pessoa ser julgada por seus pares.

A Constituição de 1988 inseriu, na mesma linha, a instituição do júri no rol dos direitos individuais. No plano constitucional, a Constituição de 1824 foi a primeira a prever o Tribunal do Júri, tradição que foi mantida até a Constituição de 1988, com as seguintes características: 1) organização regida pela lei; 2) competência mínima a ser observada (podendo ser ampliada pela lei, mas nunca reduzida): julgamento dos crimes dolosos contra a vida; 3) informado pelos princípios da plenitude de defesa, sigilo das votações e soberania dos veredictos.

Atualmente, o Júri possui competência para os crimes dolosos contra a vida (arts. 121, §§ 1º e 2º, 122, parágrafo único, 123, 124, 125, 126 e 127 do CP, consumados ou tentados) e conexos, tendo a Lei n. 11.689/2008 alterado as regras do CPP (arts. 408 e seguintes) para dotar o Júri de um novo procedimento mais célere. Foram mantidas as duas fases do julgamento do procedimento: a primeira fase é o juízo de admissibilidade (judicium accusationis) ou juízo do sumário de culpa perante o juiz togado singular, que se inicia com o recebimento da denúncia por juiz togado (ou queixa, na hipótese de ação penal privada subsidiária da pública) e termina com a sentença de pronúncia, impronúncia ou absolvição sumária. O juiz pode ainda desclassificar o crime para um fora da competência do Júri e caso não seja competente para o julgamento, remeterá os autos ao juiz que o seja. A segunda fase, caso exista a pronúncia, é denominada judicium causae, terminando com o julgamento da causa em plenário no qual os jurados decidem sobre a matéria de fato e o juiz presidente decidirá sobre o quantum da sentença, caso os jurados decidam pela existência de crime.

Da imensa jurisprudência do STF sobre a instituição do júri, devem ser ressaltadas:

i) A competência constitucional do foro por prerrogativa de função prevalece sobre a competência do Tribunal do Júri. Assim, crime doloso contra a vida cometido por juiz de direito, será julgado pelo seu Tribunal de Justiça.

ii) A competência do Tribunal do Júri prevista na Constituição de 1988 é mínima, podendo a lei ampliá-la, o que torna legítimo o julgamento pelo júri dos crimes conexos, tal qual preconiza o Código e Processso Penal.

iii) A competência do Tribunal do Júri, por ser prevista na Constituição Federal, prevalece sobre a competência prevista somente na Constituição Estadual (Súmula 721 do STF).

iv) Corréu que não tem foro por prerrogativa de função deve ser julgado pelo Tribunal do Júri, desmembrando-se o processo penal.

v) Para o STF, “a competência para o processo e julgamento de latrocínio é do juiz singular e não do Tribunal do Júri” (Súmula 603).

vi) Para o STF, é constitucional o julgamento dos crimes dolosos contra a vida de militar em serviço pela justiça castrense, sem a submissão destes crimes ao Tribunal do Júri, nos termos do o art. 9º, III, d, do CPM (HC 91.003, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 22-5-2007, Primeira Turma, DJ de 3-8-2007).

vii) A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri não é absoluta, sendo constitucionais os dispositivos que preveem a anulação da decisão do Júri sob o fundamento de que ela se deu de modo contrário à prova dos autos. Evita-se o arbítrio que é incompatível com o Estado de Direito. (HC 88.707, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 9-9-2008, Segunda Turma, DJE de 17-10-2008).

24. Direitos Humanos no Direito Penal e Processual Penal

Art. 5º, XXXIX – não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

Art. 5º, XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;

Art. 5º, XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

Art. 5º, XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

Art. 5º, XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem;

Art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

24.1. PRINCÍPIOS DA RESERVA LEGAL E DA ANTERIORIDADE EM MATÉRIA PENAL

De acordo com a Constituição de 1988, o Direito Penal é regido pelo princípio da reserva legal (ver acima), pelo qual não há crime sem lei formal anterior que o defina (nullum crime nulla poena sine praevia lege).

Com a exigência de lei prévia, evita-se a surpresa e a insegurança jurídica causada por lei retroativa, bem como o estabelecimento de norma incriminadora sem o respaldo dos representantes do povo (por isso a exigência de lei formal).

Porém, a própria Constituição excepciona a proibição de lei retroativa no campo penal, prevendo que a lei penal retroagirá para beneficiar o réu.

Por sua vez, qualquer alteração legislativa na área criminal que contenha normas penais benéficas, como as que abolem crimes ou que limitam sua abrangência, estabeleçam extinção ou abrandamento de penas ou aumentem os casos de isenção de pena, de extinção de pena, ou qualquer elemento que minore os efeitos deletérios da aplicação da lei penal pretérita, deve retroagir.

A jurisprudência recente do STF traz as seguintes contribuições ao tema:

i) Para o STF, “a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência” (Súmula 711).

ii) Ainda para o STF, “transitada em julgado a sentença condenatória, compete ao juízo das execuções a aplicação de lei mais benigna” (Súmula 611).

iii) Não se admite medida provisória incriminadora. Já a medida provisória não incriminadora foi admitida pelo STF em julgamento anterior à edição da Emenda Constitucional n. 32/2001, que expressamente proibiu medida provisória para tratar de matéria referente ao Direito Penal. Entende-se que esse precedente (RE 254.818, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 8-11-2000, Plenário, DJ de 19-12-2002) não mais é aplicável.

iv) Para o STF, a nova Lei n. 12.015/2009 permite a retroatividade da lei penal mais benéfica, pois, ao unificar os crimes anteriores de estupro e atentado violento ao pudor no novo art. 213 do CP permitiu o reconhecimento da continuidade delitiva dos antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando praticados nas mesmas circunstâncias de tempo, modo e local e contra a mesma vítima, levando a um abrandamento da pena (HC 86.110, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 2-3-2010, Segunda Turma, DJE de 23-4-2010.)

24.2. OS MANDADOS CONSTITUCIONAIS DE CRIMINALIZAÇÃO E O PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE

A proteção de direitos humanos impõe limites materiais e formais ao Direito Penal e à persecução criminal (investigação, processo e execução penais), mas, ao mesmo tempo, também exige que o Estado estabeleça a tutela penal contra condutas de violação de direitos humanos.

Quanto aos limites, desde Beccaria o Direito Penal desenvolve-se sob a atenta observação da proteção dos direitos fundamentais, de modo a impedir o excesso e a sanha vingativa e repressiva da sociedade e do Estado44. Assim, consagrou-se, ao longo dos séculos, a conformação do Direito Penal à proteção de direitos humanos, o que redundou em uma adequação constitucional do Direito Penal.

Do ponto de vista formal, a proteção de direitos dos indivíduos estipulou (i) restrições à aplicação da lei penal pela adoção do princípio da legalidade estrita, presunção de inocência e o in dubio pro reo, irretroatividade da lei gravosa e retroatividade da lei benigna, bem como (ii) garantias processuais, como a do juízo natural, vedação do tribunal de exceção, devido processo legal penal, legalidade e legitimidade das provas, e ainda condicionamentos da (iii) execução penal, por meio da vedação de penas cruéis e desumanas, individualização da pena e direitos do sentenciado.

Do ponto de vista material, há restrições implícitas à tipificação de determinadas condutas, sob pena de violação de direitos fundamentais. Com isso, seria inconstitucional, por violação de direitos fundamentais, a tipificação e punição do homossexualismo ou o uso do Direito Penal para fins de defesa de determinada moralidade religiosa45.

Por outro lado, a Constituição de 1988 e os tratados de direitos humanos também invocam a atuação do Direito Penal para sua proteção. Assim, o Direito Penal não é só limitado pelas Constituições e tratados, mas, em algumas situações, sua aplicação é exigida como instrumento essencial de proteção de bens jurídicos. Ao mesmo tempo em que o Estado não pode se exceder no campo penal (proibição do excesso ou Übermassverbot), também não se pode omitir ou agir de modo insuficiente (proibição da insuficiência ou Untermassverbot).

É uma nova faceta, agora amistosa, na relação entre os Direitos Humanos e o Direito Penal. Parte-se da constatação que, em um Estado Democrático de Direito, o Poder Público não pode se omitir na promoção dos direitos humanos, devendo protegê-los inclusive com o instrumento penal. Caso abra mão da tutela penal, o Estado incorre na proteção deficiente dos direitos fundamentais, violando a Constituição e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Consagra-se o princípio da proibição da proteção deficiente na esfera criminal, que consiste na vedação ao Estado de descriminalizar ou atenuar a tutela penal de certas condutas ofensivas a direitos fundamentais.

O princípio da vedação da proteção deficiente na esfera criminal é fundado implicitamente no próprio dispositivo constitucional que trata do Estado Democrático de Direito e de seu dever de promover a dignidade da pessoa humana (art. 1º, caput e inciso III, da CF/88) e tem os seguintes usos:

i) Torna constitucional e estimula a criação de leis penais criminalizando condutas ofensivas a direitos fundamentais, como, por exemplo, futura lei que venha a criminalizar a homofobia (antigo anseio dos movimentos de direitos humanos no Brasil).

ii) Torna inconstitucional lei ou interpretação da lei que venha a descriminalizar ou ainda dificultar a persecução penal a violadores de direitos humanos. Nesse sentido, a Procuradoria Geral da República propôs a ADI 4.301 perante o STF (ainda em curso, Rel. Min. Joaquim Barbosa), que atacou contra a nova redação do art. 225 do CP, pela qual, no crime de estupro do qual resulte lesão corporal grave ou morte, deve proceder-se mediante ação penal pública condicionada à representação, e não mais por meio de ação penal pública incondicionada. Essa mudança legislativa foi considerada pela PGR inconstitucional por violar o princípio da proibição da proteção deficiente.

No STF, houve já discussão do princípio da proibição da proteção deficiente em voto do Ministro Gilmar Mendes, que afirmou que “a proibição de proteção deficiente adquire importância na aplicação dos direitos fundamentais de proteção, ou seja, na perspectiva do dever de proteção, que se consubstancia naqueles casos em que o Estado não pode abrir mão da proteção do direito penal para garantir a proteção de um direito fundamental”. Nesse caso, o STF não permitiu a equiparação da união estável ao casamento, para fins de extinção de punibilidade à época permitida (antes da edição da Lei n. 11.106/2005) de Autor de estupro de menina de 9 anos, não aceitando o uso de analogia pro reo em caso de dramática violação de direitos humanos (RE 418.376, Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 9-2-2006, Plenário, DJ de 23-3-2007).

A própria Constituição adotou expressamente o dever do uso do Direito Penal para proteger direitos fundamentais por meio dos mandados constitucionais de criminalização. Esses mandados consistem em dispositivos constitucionais que (i) ordenam a tipificação penal de determinada conduta, (ii) exigem a imposição de determinada pena, estabelecem a vedação de determinados benefícios ou até determinam tratamento prisional específico.

São os seguintes mandados expressos de criminalização identificados por Gonçalves46 na Constituição, devendo o leitor não esquecer dos mandados internacionais de criminalização estudados acima nos capítulos sobre os tratados específicos de direitos humanos:

1) Art. 5º, XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

2) Art. 5º, XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.

3) Art. 5º, XLIII – a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

4) Art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

5) Art. 7º, X – proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa.

6) Art. 225, § 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.

7) Art. 227, § 4º – A lei punirá severamente o abuso, a violência e a exploração sexual da criança e do adolescente.

8) Art. 243, parágrafo único – Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins será confiscado e reverterá em benefício de instituições e pessoal especializados no tratamento e recuperação de viciados e no aparelhamento e custeio de atividades de fiscalização, controle, prevenção e repressão do crime de tráfico dessas substâncias.

Abordaremos com destaque alguns desses mandados expressos de criminalização abaixo.

24.3. RACISMO

24.3.1. O crime de racismo e sua abrangência: o antissemitismo e outras práticas discriminatórias

A Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, também chamada de “Lei Caó”, define os crimes de discriminação ou preconceito e suas punições, tendo revogado leis anteriores (Lei n. 7.438/85 e Lei n. 1.390/51, esta que tratava a matéria como contravenção penal – “Lei Afonso Arinos”) . De acordo com seu art. 1º, “serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (redação dada pela Lei n. 9.459/97).

Essa lei pune várias condutas odiosas adotadas pelo agente por motivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, podendo ser classificadas de acordo com o objetivo tutelado:

1) Igualdade no acesso a cargos públicos, que pune a conduta de impedir ou obstar o acesso de alguém ou sua promoção funcional, a qualquer cargo da Administração Direta ou Indireta, bem como das concessionárias de serviços públicos;

2) Igualdade na relação de trabalho, que pune aquele que deixar de conceder os equipamentos necessários ao empregado em igualdade de condições com os demais trabalhadores ou impedir a ascensão funcional do empregado ou obstar outra forma de benefício profissional, ou ainda aquele que proporcionar ao empregado tratamento diferenciado no ambiente de trabalho, especialmente quanto ao salário;

3) Igualdade nas relações de consumo, que pune diversas condutas nas relações consumeristas, tais como: a) recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador; b) recusar, negar ou impedir a inscrição ou ingresso de aluno em estabelecimento de ensino público ou privado de qualquer grau; c) impedir o acesso ou recusar hospedagem em hotel, pensão, estalagem, ou qualquer estabelecimento similar; d) impedir o acesso ou recusar atendimento em restaurantes, bares, confeitarias, ou locais semelhantes abertos ao público; e) impedir o acesso ou recusar atendimento em estabelecimentos esportivos, casas de diversões, ou clubes sociais abertos ao público; f) impedir o acesso ou recusar atendimento em salões de cabeleireiros, barbearias, termas ou casas de massagem ou estabelecimento com as mesmas finalidades;

4) Igualdade nas relações sociais, que pune aquele que impedir o acesso às entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais e elevadores ou escada de acesso aos mesmos, ou ainda que impedir o acesso ou uso de transportes públicos, como aviões, navios, barcas, barcos, ônibus, trens, metrô ou qualquer outro meio de transporte concedido;

5) Igualdade nas Forças Armadas, que pune aquele que impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas;

6) Igualdade no Direito de Família, que pune aquele que impedir ou obstar, por qualquer meio ou forma, o casamento ou convivência familiar e social.

Constitui efeito da condenação a perda do cargo ou função pública, para o servidor público, e a suspensão do funcionamento do estabelecimento particular por prazo não superior a três meses. Porém, tais efeitos não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença condenatória.

Finalmente, cabe destaque (veja a análise da “liberdade de expressão”), a criminalização da conduta de “praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza, a discriminação ou preconceito de raça, por religião, etnia ou procedência nacional”, que foi incluído pela Lei n. 8.081/90.

Em 1994, a Lei n. 8.882 criminalizou a conduta de fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Poderá o juiz determinar, ouvido o Ministério Público ou a pedido deste, ainda antes do inquérito policial, sob pena de desobediência o recolhimento imediato ou a busca e apreensão dos exemplares do material respectivo, bem como a cessação das respectivas transmissões radiofônicas ou televisivas. A Lei n. 12.288, de 2010, ainda permite que o juiz determine, mesmo na fase do inquérito policial, a interdição das respectivas mensagens ou páginas de informação na rede mundial de computadores (internet).

Em 1995, a Lei n. 9.029 vedou a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7º da Constituição Federal. São crimes as práticas discriminatórias de exigir teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez, bem como a adoção de qualquer programa de esterilização forçada.

Por outro lado, a doutrina discute a existência de concurso aparente de normas penais entre o art. 20 da Lei n. 7.716/89 (Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional) e o art. 140, § 3º, do CP (injúria qualificada por preconceito). Esse dispositivo do Código Penal foi acrescentado pela Lei n. 9.459/97, gerando um tipo qualificado ao delito de injúria, que comina a pena de reclusão, de um a três anos, e multa, se a injúria consistir na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

De acordo com Damásio de Jesus, se o agente “chamar alguém de ‘negro’, preto, pretão, negrão, turco, africano, judeu, baiano, japa etc., desde que com vontade de lhe ofender a honra subjetiva relacionada com cor, religião, raça ou etnia, sujeita o autor a uma pena mínima de um ano de reclusão, além de multa47. Assim, nesses casos de xingamentos, uso de expressões chulas, entre outros, considera-se que o art. 140, § 3º, é lex specialis e deve ser aplicado, afastando-se a norma geral do art. 20 da Lei n. 7.716/89, que usa a expressão genérica “praticar, induzir ou incitar”.

O delito de injúria racial não é abarcado pelo regime constitucional punitivo especial do racismo, podendo prescrever. Essa é a posição do STF, que, em 2011, reconheceu a prescrição de crime de injúria qualificada por preconceito imputado a Deputado Federal, da seguinte forma: “Configura injúria qualificada pela utilização de elementos referentes a raça e cor a ofensa por meio dos termos (...) como a ora imputada. (...) Declarada a extinção da punibilidade do querelado, em razão da prescrição da pretensão punitiva” (AP 395 PR, Rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 30-3-2011).

24.3.2. O estatuto constitucional punitivo do racismo e o posicionamento do STF: o caso do antissemitismo e outras práticas discriminatórias

O preconceito consiste em toda conduta estigmatizante e inferiorizante a outrem, gerada por motivo racial, étnico, socioeconômico, idade, estado civil, orientação sexual, deficiência, religião, convicção política, origem nacional ou regional, ou outro fator social.

Para aqueles que defendem o conceito restrito de racismo, este consistiria em preconceito baseado em cor da pele e outros traços fenotípicos. Assim, os crimes previstos na Lei n. 7.716/89 (vista acima) teriam tratamento jurídico desigual: os crimes de discriminação por raça ou seriam inafiançáveis, imprescritíveis e sujeitos à pena de reclusão, por ordem expressa da CF/88 (art. 5º, XLII). Já os crimes de discriminação por religião ou procedência nacional não sofreriam tal rigor. Seriam, por exemplo, prescritíveis.

Esse conceito restrito de racismo foi abandonado pelo STF no julgamento do Habeas Corpus n. 82.424, em 2003, no qual se discutiu se a conduta de publicação de obras antissemitas poderia ser encaixada no crime de racismo, cujo estatuto constitucional punitivo é severo (inafiançabilidade, imprescritibilidade e a cominação de pena de reclusão, conforme o art. 5º, XLI).

Com o objetivo de afastar a imprescritibilidade da pena, a Defesa alegou que a conduta não era “racismo”, porque os judeus não constituiriam uma raça. Assim, a condenação pelo crime de preconceito de religião previsto no art. 20 da Lei n. 7.716 estaria prescrita. Porém, a maioria dos Ministros adotou o chamado conceito amplo de racismo, pelo qual esse crime é realizado contra grupos humanos com características culturais próprias. Assim, o racismo é uma construção social (uma vez que só há uma raça, a humana), consistindo em uma prática que visa inferiorizar, ultrajar e estigmatizar um determinado agrupamento humano por motivo odioso.

De acordo com a ementa do acórdão, da qual foi relator o ministro Maurício Corrêa (foi voto vencido o Relator original, Min. Moreira Alves, que adotava o conceito restrito de racismo e votou pelo reconhecimento da prescrição): “Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pelos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais”.

Ainda, para o STF, “a divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Deste pressuposto origina-se o racismo, que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista” (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004).

Todos os seres humanos podem ser vítimas de racismo, que possui facetas contemporâneas, como a do antissemitismo, xenofobia, islamofobia, entre outras. Nessa linha do STF (conceito amplo do racismo), a prática de todo e qualquer tipo de racismo previsto na lei penal (não somente o oriundo da discriminação racial) impõe o estatuto constitucional punitivo, a saber: inafiançabilidade, imprescritibilidade e pena de reclusão.

O STF decidiu que a ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como “alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem” (HC 82.424, Rel. p/ o ac. Min. Presidente Maurício Corrêa, julgamento em 17-9-2003, Plenário, DJ de 19-3-2004).

Assim, temos o seguinte quadro-resumo:

1) Os crimes de racismo exigem tipificação penal, não bastando a previsão dos mandados constitucionais de criminalização previstos na CF/88, a saber: “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI) e “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, XLII).

2) A Lei n. 7.716/89 tipifica os resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

3) De acordo com o STF, o crime de discriminação por religião (antissemitismo, por exemplo) concretiza o crime de racismo (conceito amplo de racismo, de cunho social e não biológico) e, com isso, sujeito ao regime constitucional punitivo (inafiançabilidade, imprescritibilidade, pena de reclusão).

24.4. LEI DOS CRIMES HEDIONDOS, LIBERDADE PROVISÓRIA E INDULTO

A Constituição de 1988 instituiu regime penal gravoso à tortura, ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, ao terrorismo e aos definidos como crimes hediondos, devendo a lei considerá-los crimes (i) inafiançáveis e (ii) insuscetíveis de graça ou (iii) anistia, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

No caso dos crimes hediondos, a Lei n. 11.464/2007 deu nova redação aos parágrafos do art. 2º da Lei n. 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos), permitindo a liberdade provisória sem fiança, no caso de não existirem os pressupostos para a decretação da prisão preventiva. Em 2012, o STF ainda reconheceu que cabe a concessão da liberdade no crime de tráfico de entorpecentes, caso faltem os requisitos da imposição da prisão preventiva, impondo ainda as medidas cautelares previstas na Lei n. 12.403, exceto a fiança que continua proibida pelo texto constitucional. Ou seja, para o STF, o art. 5º, XLIII, da CF/88 não proibiu a liberdade provisória e sim a fiança (HC 104.339, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 9-5-2012).

Quanto ao indulto, o STF decidiu que o art. 5º, XLIII, da CF, que proíbe a graça nos crimes hediondos definidos em lei, representa gênero do qual o indulto é espécie. Porém, o indulto está previsto especificamente no art. 84, XII, da CF/88, como competência privativa do Presidente da República. Assim, em nome da especialidade, o Presidente possui ampla discricionariedade para conceder o indulto, o que configura ato de governo (HC 90.364, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 31-10-2007, Plenário, DJ de 30-11-2007).

A Constituição de 1988 prevê que constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

O STF, por sua vez, já reconheceu que a imprescritibilidade pode ser ampliada para outros casos, desde que previstos em lei, uma vez que a Constituição se limita, no art. 5º, XLII e XLIV, a excluir os crimes que enumera da incidência material das regras da prescrição, sem proibir, em tese, que a lei futura crie outras hipóteses (RE 460.971, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 13-2-2007, Primeira Turma, DJ de 30-3-2007).

25. O regramento constitucional das penas

Art. 5º, XLV – nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido;

Art. 5º, XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos;

Art. 5º, XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis;

Art. 5º, XLVIII – a pena será cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e o sexo do apenado;

Art. 5º, XLIX – é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;

Art. 5º, L – às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação;

A pena criminal foi regrada pela Constituição de 1988 uma vez que representa importante limitação do direito à liberdade.

Analisaremos as principais características constitucionais das penas:

i) Princípio da pessoalidade, intranscendência, incontagiabilidade ou intransmissibilidade da pena. “A pena criminal é personalíssima, não podendo passar da pessoa do condenado. Por isso, o STF já decidiu que viola o princípio da incontagiabilidade da pena criminal determinada decisão judicial que permite ao condenado fazer-se substituir, por terceiro absolutamente estranho ao ilícito penal, na prestação de serviços à comunidade” (HC 68.309, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 27-11-1990, Primeira Turma, DJ de 8-3-1991).

ii) Princípio da individualização da pena. A Constituição de 1988 exigiu que a lei regulasse a individualização da pena, podendo prever, entre outras, a) pena de privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos. Esse princípio reflete-se nos três momentos do processo de formação da resposta punitiva do Estado: o legislativo (no qual ficam estabelecidas as penas e seus limites máximo e mínimo), o judicial (na sentença, com a dosimetria da pena e eventual penas substitutivas, bem como nas decisões sobre o regime de cumprimento de pena) e o executivo (com a concessão da graça ou indulto). Nos últimos anos, houve intensa análise do princípio da individualização da pena no STF, produzindo as seguintes posições:

a) A proibição em abstrato da progressão de regime de cumprimento de pena nos crimes hediondos (prevista originalmente na Lei de Crimes Hediondos, Lei n. 8.072/90) foi declarada inconstitucional pelo STF em 2006, por violar a individualização da pena, que foi tida como garantia individual (HC 82.959, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 23-2-2006, Plenário, DJ de 1º-9-2006). Após, foi editada a Súmula Vinculante 26/2009: “Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico”. Atualmente, a Lei n. 8.072 prevê que a progressão de regime será feita após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente (Lei n. 11.464, de 2007).

b) Também em nome do princípio da individualização da pena, o STF decidiu também que a lei não pode, em abstrato, proibir a substituição da pena privativa de liberdade pela pena restritiva de direitos (HC 97.256, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 1º-9-2010, Plenário, DJE de 16-12-2010).

c) Para o STF, “a imposição do regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada permitir exige motivação idônea” (Súmula 719).

d) Também o STF decidiu que “admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória” (Súmula 716).

e) Finalmente, para o STF, “a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo art. 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução” (Súmula 715).

iii) Penas proibidas. A Constituição de 1988 determinou a proibição das penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis. Já comentamos acima o caso da pena de morte. Quanto às demais, o STF já decidiu que:

a) A medida de segurança criminal também tem prazo máximo de 30 anos, pois a CF/88 veda prisão de caráter perpétuo. Eventual necessidade de internação por prazo adicional deve ser discutida no juízo cível (HC 84.219, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 16-8-2005, Primeira Turma, DJ de 23-9-2005).

b) Também não pode ser perpétua a pena de inabilitação para o exercício de cargos de administração ou gerência de instituições financeiras (RE 154.134, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 15-12-1998, Primeira Turma, DJ de 29-10-1999).

iv) O dever do Estado de propiciar diferentes tipos de estabelecimentos prisionais. A Constituição determinou que o indivíduo que perde a liberdade tem o direito fundamental de cumprir sua pena em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do delito, a idade e seu sexo. Em virtude do caos do sistema prisional brasileiro, com superlotação de presídios e falta de vagas em regimes semiaberto e aberto, esse tema foi intensamente discutido no STF, que decidiu o seguinte:

a) “Não pode o juiz determinar que o preso continue no regime fechado, se o único óbice à progressão de regime é a ausência de vaga em colônia penal agrícola ou colônia penal industrial ou em estabelecimento similar. A solução, para o STF, é dar-lhe o direito de permanecer em liberdade, até que o Poder Público providencie vaga em estabelecimento apropriado, não podendo ser mantido em prisão domiciliar que é destinada para outras hipóteses” (HC 87.985, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 20-3-2007, Segunda Turma, Informativo 460). Em outra linha, o STF reconheceu o direito até mesmo, na falta de vagas, à conversão da prisão em prisão domiciliar, pois “incumbe ao Estado aparelhar-se visando à observância irrestrita das decisões judiciais. Se não houver sistema capaz de implicar o cumprimento da pena em regime semiaberto, dá-se a transformação em aberto e, inexistente a casa do albergado, a prisão domiciliar” (HC 96.169, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 25-8-2009, Primeira Turma, DJE de 9-10-2009).

b) “O direito à prisão especial, antes da prisão por sentença definitiva, deve ser assegurado, conforme disposto no art. 295 do CPP e ainda em leis diversas (Lei Complementar 75/93, para os membros do MP e Lei Complementar 80/94, para os membros da Defensoria Pública). Para o STF, atende à prerrogativa profissional do advogado ser recolhido preso, antes de sentença transitada em julgado, em cela individual, dotada de condições regulares de higiene, com instalações sanitárias satisfatórias, sem possibilidade de contato com presos comuns (HC 93.391, Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 15-4-2008, Segunda Turma, DJE de 9-5-2008).

v) Execução da pena. A Constituição de 1988 assegurou aos presos o respeito à integridade física e moral. Além disso, de acordo com o art. 5º, § 2º, o Brasil deve respeito às regras internacionais de proteção aos direitos dos reclusos (editadas pela ONU), que foram estudadas no capítulo sobre os direitos humanos internacionais. A Constituição também fez previsão do direito ao aleitamento materno.

26. Extradição e os direitos humanos

Art. 5º, LI – nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei;

Art. 5º, LII – não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de opinião;

26.1. CONCEITO

A extradição é espécie de cooperação jurídica em matéria penal, na qual determinado Estado requer o envio de determinado indivíduo para que seja este julgado criminalmente (extradição instrutória) ou possa cumprir pena criminal (extradição executória)48.

A extradição é regida no Brasil pela Constituição de 1988, pela Lei n. 6.815/80 ou, caso existente, por tratado internacional (que prevalece, pelo critério da especialidade, em relação à Lei n. 6.815/80). Pode ser ativa, no caso de ser o Brasil o Estado Requerente, ou ainda passiva, no caso de Estado estrangeiro requerer a extradição ao Brasil.

Na extradição ativa, o procedimento inicia-se a pedido do juízo criminal, que será encaminhado ao Ministério da Justiça e, eventualmente, ao Ministério das Relações Exteriores, para o trâmite do pedido ao Estado estrangeiro requerido. A extradição ativa é comandada pelo tratado eventualmente em vigor ou pelo pedido encaminhado pelo Brasil e aceito pelo Estado requerido.

No caso da extradição passiva (o Brasil é o Estado requerido), o Estado requerente encaminha seu pedido por via diplomática ou por meio de mecanismos previstos em tratados de extradição (autoridade central). É a chamada 1ª fase ou fase da solicitação administrativa da extradição passiva. Após, o pedido será encaminhado ao Supremo Tribunal Federal, inaugurando a 2ª fase ou fase judicial. Nessa fase, o STF fará um juízo de delibação ou de contenciosidade limitada, no qual será verificado o cumprimento dos requisitos previstos na Constituição, bem com os elencados na Lei n. 6.815/80 ou no tratado de extradição aplicável.

26.2. JUÍZO DE DELIBAÇÃO E OS REQUISITOS DA EXTRADIÇÃO

O juízo de delibação consiste em avaliação, pelo STF, de cumprimento formal dos requisitos constitucionais, convencionais e legais que autorizam a extradição. Não visa verificar a culpa do extraditando, pois é um contencioso de legalidade no qual a defesa apontará eventuais ausências de requisitos essenciais no procedimento extradicional.

Podemos dividir os requisitos essenciais para o deferimento pelo STF de uma extradição passiva em requisitos constitucionais e requisitos legais.

Os requisitos constitucionais são:

1) Não ser o extraditando brasileiro nato e, no caso de naturalizado, ter sido o crime cometido antes da naturalização ou, a qualquer momento, no caso de comprovado envolvimento em tráfico de entorpecente (princípio geral de inextraditabilidade do brasileiro, incluído o naturalizado). Como a Constiutição exige “comprovado envolvimento”, só se admite a extradição passiva executória de brasileiro naturalizado envolvido em tráfico de entorpecentes após a naturalização (que se encerra após a solene entrega do certificado de naturalização pelo Juiz Federal). Logo, o Estado Requerente terá que apresentar certidão de transito em julgado da condenação criminal para que a extradição seja deferida.

2) Não for caso de crime político ou de opinião. A Constituição não define o que vem a ser crime político, tendo o STF adotado a teoria mista para caracterizá-lo: é crime político aquele que é realizado com motivação e os objetivos políticos de um lado (elemento subjetivo), e, de outro, com a lesão real ou potencial a valores fundamentais da organização política do Estado (elemento objetivo). Como exemplo de reconhecimento de crime político está o caso de extraditando acusado de transmitir ao Iraque segredo do Estado Requerente (Alemanha), utilizável em projeto de desenvolvimento de armamento nuclear, tendo o STF indeferido a extradição (Ext 700, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 4-3-1998, Plenário, DJ de 5-11-1999.) Por outro lado, o STF não reconhece a excludente de crime político para casos de terrorismo, sejam atos cometidos por particulares, sejam atos perpetrados com o apoio oficial do próprio aparato governamental, no chamado terrorismo de Estado (Ext 855, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 26-8-2004, Plenário, DJ de 1º-7-2005). Também a Lei n. 6.815/80 determina que o Supremo Tribunal Federal poderá deixar de considerar crimes políticos os atentados contra Chefes de Estado ou quaisquer autoridades, bem assim os atos de anarquismo, terrorismo, sabotagem, sequestro de pessoa, ou que importem propaganda de guerra ou de processos violentos para subverter a ordem política ou social.

3) Ser respeitado o devido processo legal no Estado Requerente. A observância do devido processo legal pelo Estado Requerente no julgamento do extraditando é requisito constitucional implícito, de acordo com o STF (Ext 633-9, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28-8-1996, DJ de 6-4-2001), podendo ser extraído ainda da proibição legal de julgamento do extraditando por juízo de exceção (ver abaixo).

4) Ser comutada a pena de morte ou de caráter perpétuo em pena privativa de liberdade não superior a 30 anos. A exigência de comutação da pena de morte está prevista na Lei n. 6.815/80, mas a comutação da pena de caráter perpétuo foi considerada pelo STF como requisito implícito da CF/88 indispensável para que a extradição passiva possa ser deferida (Ext 855, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 26-8-2004, Plenário, DJ de 1º-7-2005).

São os seguintes os principais requisitos legais previstos na Lei n. 6.815/80 e nos principais tratados de extradição:

1) Obediência e Prevalência dos Tratados. A extradição será regida pelo tratado eventualmente firmado pelo Brasil e pelo Estado Requerendo, afastando-se a Lei n. 6.815/80, pois o tratado é lex specialis em relação à lei.

2) Reciprocidade na ausência de tratado. A extradição só será autorizada pelo Brasil caso haja tratado ou, na sua ausência, caso haja promessa de reciprocidade pelo Estado Requerente (assegurando que, na hipótese de o Brasil solicitar extradição em caso similar, o Estado estrangeiro a deferirá).

3) Especialidade. O Estado Requerente deve se comprometer a só processar ou punir o estraditando pelo crime que estiver no pedido de extradição. Não pode também extraditar para outro Estado (extradição camuflada para terceiro).

4) Identidade ou dupla tipicidade e punibilidade (também chamado modelo do crime hipotético ou paralelismo). Só cabe extradição caso a conduta cometida pelo extraditando for, hipoteticamente, crime no Estado Requerente e também no Brasil, sem qualquer caso de extinção da punibilidade de acordo com os dois ordenamentos jurídicos. Não se exige o mesmo tipo penal ou a mesma denominação: basta que o fato seja crime punível nos dois Estados.

5) Preferência da jurisdição nacional. Penal. Não será concedida extradição caso o Brasil for competente, segundo suas leis, para julgar o crime imputado ao extraditando.

6) Proibição do ne bis in idem. Não será concedida a extradição, caso o extraditando estiver a responder a processo ou já houver sido condenado ou absolvido no Brasil pelo mesmo fato em que se fundar o pedido; a lei brasileira impuser ao crime pena de prisão igual ou inferior a um ano.

7) Proibição de Juízo de Exceção. Não se concede extradição caso o extraditando houver de responder, no Estado requerente, perante Tribunal ou Juízo de Exceção.

8) Proibição de extradição por motivo de discriminação odiosa. Não será concedida a extradição se houver fundados motivos para supor que o pedido de extradição foi apresentado com a finalidade de perseguir ou punir o extraditando por motivo de raça, sexo, religião, nacionalidade ou opinião política ou que tais fatos sirvam para agravar a sua situação.

9) Exigência de crime grave. Só será concedida extradição se a lei brasileira impuser ao crime pena de prisão igual ou inferior a um ano (não cabe extradição para ilícito cível ou contravenção penal).

26.3. TRÂMITE DA EXTRADIÇÃO

A extradição passiva será requerida por via diplomática ou por meio da autoridade central estabelecida por um tratado de extradição. No caso da extradição passiva, há três fases:

a) 1ª Fase – o Ministério da Justiça ao receber o pedido diretamente (com base no tratado) ou do Ministério das Relações Exteriores (que, por sua vez, o recebeu pela via diplomática) avalia se o pedido é compatível com a ordem jurídica brasileira, podendo recusar sumariamente o pedido. Caso o extraditando esteja cumprindo pena no Brasil ou sendo processado por outro crime, pode mesmo assim o Poder Executivo encaminhar o pedido de extradição (é discricionário, o Judiciário não pode exigir que o extraditando cumpra a pena primeiro no Brasil).

b) 2ª Fase – o pedido é encaminhado ao STF, que fará o juízo de delibação extradicional. Mesmo se o extraditando concorde, o processo ainda é necessário, mas será abreviado (extradição sumária). Discute-se atualmente se o Ministro Relator no STF deve, automaticamente, decretar a prisão do extraditando. Entendemos que a Constituição de 1988 não admite prisão cautelar automática, devendo o relator justificar o motivo da ordem de prisão cautelar do extraditando. A defesa do extraditando só poderá alegar vício de identidade, defeito de forma dos documentos apresentados ou inconstitucionalidade, inconvencionalidade ou ilegalidade da extradição. Caso o STF indefira a extradição, o Brasil não poderá expulsá-lo ou deportá-lo, caso haja risco de o indivíduo ser entregue ao Estado Requerente.

c) 3ª Fase – também é uma fase administrativa, na qual o Poder Executivo pode, fundado no tratado, não determinar a extradição autorizada pelo STF. Assim, o STF autoriza, mas não determina a extradição. Caso negue, a palavra final é do STF; caso autorize a extradição, ainda assim a última palavra é do Presidente da República, por ser ele responsável pela condução da política externa brasileira. Caso o Poder Executivo determine a extradição, o Estado Requerente ainda deverá se comprometer a comutar o tempo de prisão que, no Brasil, foi imposta ao extraditando por força do pedido de extradição, além dos outros compromissos já expostos (comutação da pena de morte etc.).

27. Devido processo legal, contraditório e ampla defesa

Art. 5º, LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

27.1. CONCEITO

O devido processo legal de caráter procedimental (procedural due process) consiste na qualidade de determinado processo, cível, penal ou administrativo, informado pelos princípios do juiz natural, ampla defesa, contraditório e publicidade.

No plano penal, o devido processo criminal consiste, para o STF, na reunião das seguintes garantias: “(a) direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e ao conhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, sem dilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa e à defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis ex post facto; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado com fundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i) direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra a autoincriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de ‘participação ativa’ nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quando existentes” (HC 94.016, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 16-9-2008, Segunda Turma, DJE de 27-2-2009).

Também o STF reconhece como implícito ao art. 5º, LIV, o chamado devido processo legal substancial, que consiste em limite ao poder de legislar, devendo as leis ser elaboradas levando-se em consideração os princípios de justiça, sendo dotadas de razoabilidade (reasonableness) e de racionalidade (rationality), guardando um real e substancial nexo com o objetivo que se quer atingir (ADI 1.511-MC, voto do Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 16-10-1996, Plenário, DJ de 6-6-2003).

Por sua vez, a Constituição assegura o contraditório e ampla defesa nos processos judiciais e administrativos, bem como os meios e recursos a ela inerentes. Porém, os inquéritos (policial, civil ou ainda administrativo) são procedimentos inquisitivos, visando a coleta de fatos, sem ser informados pelo contraditório e ampla defesa. Após o inquérito, os atos de supressão ou limitação de direitos devem ser submetidos a ampla defesa e contraditório.

Nesse sentido, decidiu o STF que:

a) “Descabe ter-se como necessário o contraditório em inquérito administrativo. O instrumento consubstancia simples sindicância visando a, se for o caso, instaurar processo administrativo no qual observado o direito de defesa” (RE 304.857, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 24-11-2009, Primeira Turma, DJE de 5-2-2010).

b) “Desnecessidade de observância no inquérito civil dos princípios do contraditório e da ampla defesa” (RE 481.955-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 10-5-2011, Primeira Turma, DJE de 26-5-2011).

c) “Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio” (HC 82.354, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 10-8-2004, Primeira Turma, DJ de 24-9-2004).

27.2. O DEVIDO PROCESSO LEGAL E O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

O direito ao duplo grau de jurisdição consiste na faculdade de se exigir o (i) reexame integral de determinada decisão judicial, a ser realizado (ii) por órgão diverso e de hierarquia superior no Poder Judiciário.

A Constituição de 1988 não assegurou tal direito explicitamente, sendo fruto implícito: (i) dos direitos decorrentes de tratados de direitos humanos (art. 5º, § 2º), como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Americana de Direitos Humanos; e (ii) da previsão em diversos dispositivos constitucionais de recursos a Tribunais (deduzido, por exemplo, dos arts. 102, II, e 105, II).

Para o STF, o direito ao duplo grau de jurisdição não é absoluto, pois há diversas previsões na Constituição de julgamentos de única instância ordinária, tanto na área cível quanto na matéria criminal. O STF não se sensibilizou com a regra da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), pela qual todos têm direito ao duplo grau de jurisdição em matéria penal, uma vez que prevalece a Constituição, mesmo diante de tratados de direitos humanos (RHC 79.785, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 29-3-2000, Plenário, DJ de 22-11-2002).

Entretanto, no caso Barreto Leiva contra Venezuela, a Corte IDH decidiu que há violação da Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.2 ”h”) no julgamento em única ou última instância, no qual não se garanta o direito de recorrer do julgamento a órgão distinto (sentença de 17 de novembro de 2009). A Corte ressalvou, ainda nesse julgamento, que considera compatível com a Convenção o estabelecimento de foro por prerrogativa de função mesmo na mais Alta Corte de um país, mas exigiu que sejam criados mecanismos que assegurem, mesmo em uma situação de julgamento originário, o direito de recorrer do julgamento a outro órgão (por exemplo, fracionando o órgão colegiado máximo, para criar Turma de Julgamento e Turma de Apelação – parágrafo 91 da sentença Barreto Leiva).

28. Provas ilícitas

Art. 5º, LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

28.1. CONCEITO

O devido processo legal exige que seja assegurado o direito à prova, que, como qualquer outro direito fundamental, possui limites expressos e implícitos. Ou seja, não se pode invocar o direito fundamental à prova de modo ilimitado ou incondicionado. A Constituição determina que são inadmissíveis, em qualquer espécie de processo, as provas obtidas por meios ilícitos. De acordo com o art. 157 do CPP, as provas ilícitas são aquelas que foram obtidas com violação a normas constitucionais ou legais.

Há duas espécies de provas ilícitas: a) prova ilícita em sentido estrito, que é aquela que foi obtida em violação de regra de direito material; e b) prova ilegítima, que foi obtida em violação a regra processual.

São hipóteses de prova ilícita em sentido estrito (produzidas fora de um processo regular) as obtidas: pela violação indevida do domicílio (art. 5°, XI, da CF), pela interceptação indevida das comunicações (art. 5°, XII, da CF), por meio de tortura ou maus-tratos (art. 5°, III, da CF), pela violação do sigilo de correspondência (art. 5º, XII), por violação do direito à intimidade (caso de quebra do sigilo bancário e fiscal de modo não apropriado – ver Parte IV, item 9.8 sobre tais sigilos), entre outras49.

Por sua vez, a prova ilegítima é aquela que foi obtida em processo regular, mas violando as regras vigentes.

28.2. ACEITAÇÃO DAS PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILÍCITOS E TEORIA DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA

A temática das provas ilícitas levou a várias decisões importantes na jurisprudência brasileira a saber:

a) Aceitação excepcional das provas obtidas por meios ilícitos. Apesar da vedação da utilização de provas ilícitas prevista na Constituição, admite-se excepcionalmente seu uso em um processo para fazer valer o direito à ampla defesa. Há, assim, juízo de ponderação entre o devido processo legal (que não admite prova ilícita) e o direito à ampla defesa, podendo ser aceita a prova ilícita se for indispensável à defesa de determinado indivíduo.

b) Teoria dos frutos da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree). As provas derivadas de uma prova ilícita são também consideradas ilícitas (ilicitude por derivação). Para o STF, são inadmissíveis os elementos probatórios a que Estado somente obteve em razão da prova ilícita (HC 93.050, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 10-6-2008, Segunda Turma, DJE de 1º-8-2008). Todavia, é lícita a prova que foi obtida sem contaminação com outra prova ilícita existente no processo ( STF, RHC 74.807, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 22-4-1997, Segunda Turma, DJ de 20-6-1997).

c) Aceitação de gravação feita por um dos interlocutores, sem ciência do outro. Não é prova ilícita a gravação de conversa telefônica ou conversa em ambiente qualquer (gravação ambiental) por um dos participantes, se não há causa legal específica de sigilo nem de reserva da conversação (RE 583.937-QORG,Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 19-11-2009, Plenário, DJE de 18-12-2009, com repercussão geral). Contudo, há precedente recente do TSE que julgou ilícita a gravação ambiental feita por interlocutor-eleitor, sem ordem judicial (possivelmente, essa decisão será revertida por contrariar o entendimento do STF – ver TSE, Recurso Especial Eleitoral n. 34.426, julgamento em 16-8-2012).

d) Aceitação de gravação por imagem em espaço privado pela vítima de crime. Não é prova ilícita a gravação de imagens feita com o objetivo de identificar o autor de crimes, feita em seu próprio espaço privado, pela vítima de atos delituosos (HC 84.203, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 19-10-2004, Segunda Turma, DJE de 25-9-2009).

29. A presunção de inocência e suas facetas

Art. 5º, LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

A presunção da inocência consiste no direito de só ser considerado culpado de determinado delito após o trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória, também denominada presunção de não culpabilidade. Há duas aplicações típicas da presunção de inocência no processo penal brasileiro: no (i) processo de conhecimento e na; (ii) execução da pena criminal definitiva.

No processo de conhecimento, a presunção de inocência exige que toda prisão processual seja cautelar (não pode ser antecipação da prisão definitiva) e fundamentada. Assim, a prisão preventiva sem motivo equivale à antecipação da pena, uma vez que, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a regra é a liberdade, sendo indispensável a demonstração de situações efetivas que justifiquem a prisão e o consequente sacrifício da liberdade individual no curso de um processo penal (STF, HC 95.009, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 6-11-2008, Plenário, DJE de 19-12-2008).

Ainda no processo de conhecimento, a presunção de não culpabilidade exige que a culpa do indivíduo seja demonstrada por provas requeridas pelo Acusador (in dubio pro reo), restando somente à Defesa provar fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do Autor (as chamadas exculpantes). Essa faceta da presunção de não culpabilidade é adotada pelo STF, como se vê nesse precedente: “(...) Não encontro justificativa alguma para que se inverta, em processo penal de condenação, o ônus da prova. Entendimento diverso, a meu ver, implicaria evidente ofensa à presunção constitucional da não culpabilidade (art. 5º, LVII)” (HC 95.142, voto do Rel. Min. Cezar Peluso, julgamento em 18-11-2008, Segunda Turma, DJE de 5-12-2008).

Ocorre que essa última faceta da presunção da inocência deveria, por coerência, implicar a limitação do poder do magistrado criminal de requerer, de ofício, a produção de uma prova qualquer, uma vez que seu resultado (a prova em si) auxilia o Acusador, já que o réu nada precisa provar. Somente no que tange às exculpantes (cujo ônus probatório é do réu) é que se admitiria a produção probatória de ofício por parte do magistrado, uma vez que auxiliaria a Defesa, como defende Denise Abade50.

Todavia, esse desdobramento da presunção de não culpabilidade (limitar os poderes instrutórios de ofício do magistrado criminal) não é aceito pela doutrina processualista majoritária nem pela jurisprudência, sendo corriqueira a aceitação dos poderes instrutórios de ofício ao magistrado no processo penal, mesmo em desfavor da Defesa nos casos em que a prova só auxilia a tese da Acusação (esmagadora maioria dos casos), o que é justificado em nome do princípio da verdade real do processo penal51.

No que tange à execução da pena criminal definitiva , a presunção de inocência exige que a execução da pena privativa de liberdade só possa ocorrer após o trânsito em julgado da sentença condenatória (STF, HC 84.078, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 5-2-2009, Plenário, DJE de 26-2-2010).

30. Identificação criminal

Art. 5º, LVIII – o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei;

A Constituição de 1988 determina que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei (art. 5º, LVIII). Repudiou-se o constrangimento desnecessário gerado pela identificação criminal, que acarretava aparência de culpa (ver o item anterior sobre a presunção de não culpabilidade).

A Constituição admite que lei imponha exceções ao direito daquele já identificado civilmente de não ser identificado criminalmente. A Lei n. 12.037/2009 prevê a identificação datiloscópica e fotográfica criminal para quaisquer pessoas que (i) não apresentem identificação civil e (ii) para aqueles que já foram identificados civilmente nas hipóteses elencadas pela lei, referentes à indispensabilidade de tal identificação (art. 3º).

Recentemente, a Lei n. 12.654/2012 alterou a Lei n. 12.037/2009 e também a Lei de Execução Penal, criando a identificação de perfil genético para fins criminais, tendo como inspiração o Sistema de Indexação de DNA (CODIS – Combined DNA Index System) gerenciado pelo FBI norte-americano. A identificação de perfil genético consiste no uso de material que contém DNA – ácido desoxirribonucleico – de um indivíduo para identificá-lo, o que é mais preciso que as técnicas tradicionais de identificação (fotográfica e datiloscópica).

Os dados relacionados à coleta do perfil genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos, gerenciado por unidade oficial de perícia criminal, não podendo revelar traços somáticos ou comportamentais das pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados genéticos (busca-se impedir discriminações odiosas, por exemplo, pela não contratação de alguém ou aumento do valor de seguro de vida).

A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do delito. A identificação do perfil genético será armazenada em banco de dados sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos da investigação criminal ou determinado em decisão judicial.

Finalmente, a lei exigiu que os condenados por (i) crime praticado dolosamente e com violência de natureza grave contra pessoa, ou (ii) por qualquer dos crimes previstos no art. 1º da Lei n. 8.072/90 (Lei de Crimes Hediondos), sejam submetidos, obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA, por técnica adequada e indolor.

De acordo com a lei, é necessária autorização judicial para que a autoridade policial, no caso de inquérito instaurado, tenha acesso ao banco de dados de identificação de perfil genético.

Pelo que se viu, a Lei n. 12.654/2012 somente autorizou expressamente a intervenção corpórea automática (desde que feita por técnica indolor) para coleta do material dos condenados definitivos (ver Parte IV, item 6 sobre integridade física).

No caso de investigação e instrução criminais, a medida de coleta de material biológico para a identificação do perfil genético dependerá das circunstâncias do caso (juízo de ponderação) e de autorização judicial, a pedido da Autoridade Policial, do Ministério Público, da Defesa ou mesmo de ofício.

Contudo, alertamos que a intervenção corpórea mínima em outros casos não foi aceita pelo STF (ver detalhada análise no capítulo sobre integridade física), que terá agora outra oportunidade para rever sua jurisprudência sobre a ponderação entre o direito à integridade física e os direitos à segurança, à verdade e à justiça.

31. Ação penal privada subsidiária

Art. 5º, LIX – será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;

A Constituição de 1988 criou uma única exceção à titularidade do Ministério Público na ação penal pública: a ação privada subsidiária da ação penal pública pela vítima ou seu representante, regulamentada no Código de Processo Penal (art. 29). O ajuizamento da ação penal privada subsidiária da ação penal pública é cabível na existência de inércia do Ministério Público (MP), que se abstém, no prazo legal, de (i) oferecer denúncia, ou de (ii) requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, ou, ainda, (iii) de requisitar diligências investigatórias à autoridade policial.

Caso o MP tenha realizado uma dessas três atividades (por exemplo, promoveu o arquivamento do inquérito policial), não há inércia – mesmo que a vítima não concorde com as razões do Parquet, não podendo ser proposta a ação penal privada subsidiária (STF, HC 74.276, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-9-1996, Primeira Turma, DJE de 24-2-2011).

32. Publicidade dos atos processuais

Art. 5º, LX – a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;

Em linha com a liberdade de informação dos atos envolvendo o Poder Público, a Constituição de 1988 possui dispositivo específico sobre a publicidade dos atos processuais: esses devem, como regra geral, desenvolver-se de modo público, somente podendo ser submetidos a sigilo, permitindo-se o acesso às partes somente nos casos de (i) defesa da intimidade ou do (ii) interesse social.

Nesse sentido, o STF já decidiu que a publicidade dos atos processuais não pode ser restrita por atos judiciais de natureza discricionária, devendo ser fundamentada a decisão de sigilo, nos casos excepcionais, “para a defesa da honra, da imagem e da intimidade de terceiros ou quando a medida for essencial para a proteção do interesse público” (RMS 23.036, Rel. p/ o ac. Min. Nelson Jobim, julgamento em 28-3-2006, Segunda Turma, DJ de 25-8-2006).

33. Prisão civil

Art. 5º, LXVII – não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;

A Constituição de 1988 assegurou o direito individual de não ser preso por dívida, com duas exceções: 1) inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar e 2) depositário infiel.

Porém, a ratificação brasileira de tratados de direitos humanos, como o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11 – “ninguém poderá ser preso apenas por não poder cumprir com uma obrigação contratual”) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7º, 7 - 7.“Ninguém deve ser detido por dívidas. Este princípio não limita os mandatos de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemente de obrigação alimentar”), eliminou a possibilidade de qualquer hipótese de prisão civil do depositário infiel e permitiu apenas a prisão do alimentante que, podendo prestar os alimentos devidos, decide voluntariamente não prestá-los.

Para o STF, o status normativo supralegal ou constitucional dos tratados de direitos humanos (ver o duplo estatuto dos tratados de direitos humanos no capítulo específico) no Brasil tornou inaplicável a legislação ordinária ou mesmo complementar com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de Incorporação interna dos tratados (em especial, o art. 652 do CC - Lei n. 10.406/2002 – RE 466.343, Rel. Min. Cezar Peluso, voto do Min. Gilmar Mendes, julgamento em 3-12-2008, Plenário, DJE de 5-6-2009, com repercussão geral).

Finalmente, foi editada a Súmula Vinculante 25, que determinou que “é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.

34. Assistência jurídica integral e gratuita

Art. 5º, LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

A Constituição de 1988 criou o direito à assistência jurídica integral, que deve ser prestado pelo Estado de modo gratuito aos que comprovarem insuficiência de recursos. A menção à “assistência jurídica integral” é inovação da Constituição, que não adotou a linha restritiva de “assistência judiciária”, utilizada na Constituição de 1934, que foi a primeira a contar com esse direito, que se manteve nas Constituições posteriores (exceto a Constituição de 1937, que não o mencionou). A Constituição ainda inovou ao incluir o termo “integral”, o que exige que o Estado preste inclusive orientação jurídica e assistência extraprocessual (perante órgãos administrativos, por exemplo).

Esse direito é indispensável para fazer valer os demais direitos. Por isso, estudaremos logo abaixo os principais aspectos da Defensoria Pública, instituição essencial à função jurisdicional do Estado e que serve de instrumento para assegurar o direito à assistência jurídica integral.

35. Defensoria Pública

35.1. CONCEITO, INSERÇÃO CONSTITUCIONAL E PODERES

A constitucionalização da Defensoria Pública foi uma das inovações da Constituição de 1988. De acordo com o art. 134, a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

Foi consagrada pela Constituição para ser a responsável pela prestação gratuita do direito à assistência jurídica integral aos que dela necessitem, concretizando o “direito a ter direitos”, pois sem o acesso à justiça os demais direitos ficam em risco.

Nesse sentido, decidiu o STF que “de nada valerão os direitos e de nenhum significado revestir-se-ão as liberdades, se os fundamentos em que eles se apoiam – além de desrespeitados pelo Poder Público ou transgredidos por particulares – também deixarem de contar com o suporte e o apoio de um aparato institucional, como aquele proporcionado pela Defensoria Pública, cuja função precípua, por efeito de sua própria vocação constitucional (...), consiste em dar efetividade e expressão concreta, inclusive mediante acesso do lesado à jurisdição do Estado, a esses mesmos direitos, quando titularizados por pessoas necessitadas, que são as reais destinatárias tanto da norma inscrita no art. 5º, LXXIV, quanto do preceito consubstanciado no art. 134, ambos da CR” (ADI 2.903, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 1º-12-2005, Plenário, DJE de 19-9-2008).

Ainda de acordo com a Constituição de 1988, a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios devem ser organizadas por lei complementar, assegurando-se a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais. Já as Defensorias Públicas Estaduais possuem autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária, fruto da Emenda Constitucional n. 45/2004.

Em 6 de agosto de 2013, foi promulgada a Emenda Constitucional n. 74, que conferiu às Defensorias Públicas da União e do Distrito Federal a autonomia administrativa e financeira já obtida pelas Defensorias dos Estados (novo § 3º do art. 134).

A Lei Complementar n. 80/94 (alterada sensivelmente em 2009 pela LC n. 132) dispõe que a Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, (i) a orientação jurídica, (ii) a promoção dos direitos humanos e a (iii) defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal (art. 1º da LC n. 80, conforme redação da LC n. 132/2009).

Ainda de acordo com a Lei Complementar n. 80/94, a Defensoria Pública é composta por: a) Defensoria Pública da União; b) Defensoria Pública do Distrito Federal e dos Territórios; c) Defensoria Pública dos Estados. Seus princípios institucionais são a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.

São objetivos da Defensoria Pública: I – a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; II – a afirmação do Estado Democrático de Direito; III – a prevalência e efetividade dos direitos humanos; IV – a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (objetivos incluídos pela LC n. 132, de 2009). Pelo que foi exposto, vê-se que a missão maior da Defensoria Pública, em um país marcado por desigualdades sociais e negação de direitos no cotidiano, é a defesa de direitos humanos.

Cabe à Defensoria Pública da União atuar perante Justiças Federal, do Trabalho, Eleitoral, Militar, Tribunais Superiores e instâncias administrativas da União. Essa atuação é tão ampla que a Lei Complementar n. 80/94 prevê que a Defensoria Pública da União deverá firmar convênios com as Defensorias Públicas dos Estados e do Distrito Federal, para que estas, em seu nome, atuem junto aos órgãos de primeiro e segundo graus de jurisdição referidos.

A Lei Complementar n. 80/94 estabelece as normas gerais da Defensoria Pública dos Estados, que ainda são regidas pelas suas leis estaduais, em linha com a competência legislativa concorrente estabelecida pela CF/88 (art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: XIII – assistência jurídica e Defensoria pública).

No tocante à chefia, a Defensoria Pública da União tem por chefe o Defensor Público-Geral Federal, nomeado pelo Presidente da República, dentre membros estáveis da Carreira e maiores de 35 anos, escolhidos em lista tríplice formada pelo voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida uma recondução, precedida de nova aprovação do Senado Federal.

Já a Defensoria Pública do Estado tem por chefe o Defensor Público-Geral, nomeado pelo Governador do Estado, dentre membros estáveis da Carreira e maiores de 35 anos, escolhidos em lista tríplice formada pelo voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros, para mandato de dois anos, permitida uma recondução. 

35.2. FUNÇÕES INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA

A Lei Complementar n. 132/2009 explicitou as diversas funções institucionais que decorrem da missão constitucional da Defensoria de defesa do direito a ter direitos dos vulneráveis no Brasil.

O art. 4º da citada Lei dispõe que cabe à Defensoria Pública a promoção de ações de qualquer natureza (inclusive as referentes a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos), a atuação extrajudicial na orientação e conciliação (inclusive promovendo prioritariamente a solução extrajudicial dos litígios, por meio da mediação, arbitragem, conciliação e outras técnicas), a atuação em estabelecimentos policiais e penitenciários, visando assegurar à pessoa, sob quaisquer circunstâncias, o exercício dos direitos e garantias individuais e ainda o poder de representar aos sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, postulando perante seus órgãos. Isso sem contar a função de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico.

Das ausências de atribuição, uma das mais sentidas é a falta de legitimidade ativa do Defensor Público Geral Federal para propor ações diretas de controle abstrato de constitucionalidade, pois o rol do art. 103 da CF/88 não lhe contempla.

Dessas importantes funções, ressalto a ênfase em fórmulas diferenciadas na defesa dos direitos dos vulneráveis, que vão além da assistência jurídica em um litígio judicial individual, a saber: a) atuação na solução extrajudicial de conflitos; b) uso da tutela coletiva de direitos e de direitos coletivos; c) provocação dos mecanismos internacionais de direitos humanos, de modo a superar eventual jurisprudência nacional (inclusive a do STF) restritiva ou de denegação de direitos.

Para o futuro, fica evidente que a Defensoria Pública desempenhará protagonismo no chamado litígio estratégico de direitos humanos52, que consiste no uso de mecanismos jurídicos judiciais para obter avanços sociais.

Por outro lado, em 2012, o STF reforçou a autonomia constitucional da Defensoria Pública, ao considerar que deve ser interpretado conforme a Constituição Federal dispositivo estadual sobre a celebração de convênios pela Defensoria com a OAB, no sentido de apenas autorizar, sem obrigatoriedade nem exclusividade, a Defensoria a celebrar convênio com a OAB (ADI 4163/SP, Rel. Min. Cezar Peluso, 29-2-2012, Informativo STF n. 656).

36. O direito à duração razoável do processo

Art. 5º, LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A Emenda Constitucional n. 45/2004 introduziu o direito à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação, que combate a delonga tradicional no julgamento de feitos no Brasil, dado acúmulo de causas.

Atualmente, ao menos no caso de restrição a liberdade de locomoção, reconhece-se que pode o STF determinar aos Tribunais Superiores o julgamento de mérito de habeas corpus, se entender irrazoável a demora no julgamento (HC 91.041, Rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgamento em 5-6-2007, Primeira Turma, DJ de 17-8-2007 – nesse caso, em sede de habeas corpus, o STF determinou que a autoridade impetrada apresentasse imediatamente, na primeira sessão da Turma na qual oficiava, o habeas corpus ajuizado).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos utiliza o seguinte critério para, caso a caso, determinar se houve violação do devido processo legal em um prazo razoável: (i) complexidade da causa; (ii) atividade das partes (ou seja, se uma das Partes contribuiu, com medidas procrastinatórias); e (iii) atividade do juiz53.

37. Justiça de transição, direito à verdade e justiça

A justiça de transição engloba o conjunto de dispositivos que regula a restauração do Estado de Direito após regimes ditatoriais ou conflitos armados internos, englobando quatro dimensões (ou facetas): (i) direito à verdade e à memória; (ii) o direito à reparação das vítimas; (iii) o dever de responsabilização dos perpetradores das violações aos direitos humanos e, finalmente; (iv) a formatação democrática das instituições protagonistas da ditadura (por exemplo, as Forças Armadas).

O direito à verdade consiste na exigência de toda informação de interesse público, bem como exigir o esclarecimento de situações inverídicas relacionadas a violações de direitos humanos. Tem natureza individual e coletiva, pois interessa a toda comunidade o esclarecimento das situações de desrespeito aos direitos humanos. Tem dupla finalidade: o conhecimento e também o reconhecimento das situações, combatendo a mentira e a negação de eventos, o que concretiza o direito à memória.

Recentemente, a Lei n. 12.527/2011 regulamentou o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, e no inciso II do § 3º do art. 37, bem como no § 2º do art. 216 da CF (ver Parte IV, item 18 sobre a citada lei acima).

O direito à verdade é concretizado tanto na sua faceta histórica, mediante Comissões de Verdade (ver abaixo a Lei n. 12.528/2012), quanto na sua faceta judicial (fruto das ações judiciais – cíveis e criminais – de punição dos agentes responsáveis).

No Brasil, a Lei n. 12.528/2011 criou a Comissão Nacional da Verdade. De acordo com seu art. 1º, a comissão tem como finalidade “examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição), a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

Além de (i) esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos, promovendo o esclarecimento dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria, ainda que ocorridos no exterior, a Comissão deve encaminhar aos órgãos públicos competentes toda e qualquer informação obtida que possa auxiliar na (ii) localização e identificação de corpos e restos mortais de desaparecidos políticos e (iii) recomendar a adoção de medidas e políticas públicas para prevenir violação de direitos humanos, assegurar sua não repetição e promover a efetiva reconciliação nacional.

Quanto à obtenção da verdade judicial, é cabível a responsabilização dos agentes que promoveram graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar. Para tanto, a Corte IDH considerou ser inaplicável a Lei n. 6.683/79 (Lei da Anistia) aos agentes da ditadura, uma vez que tal lei ofendeu o direito à justiça das vítimas e seus familiares, previsto implicitamente nos arts. 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Caso Gomes Lund vs. Brasil, sentença de 24-11-2010).

Ocorre que o STF decidiu pela improcedência da ADPF 153, interposta pelo Conselho Federal da OAB, que almejava a interpretação conforme a Constituição da Lei da Anistia, no sentido de excluir os agentes da ditadura do seu alcance. Para o relator, Min. Eros Grau, a Lei da anistia veiculou uma decisão política assumida naquele momento e a Constituição de 1988 não pode afetar leis-medida que a tenham precedido (ADPF 153, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 29-4-2010, Plenário, DJE de 6-8-2010).

38. Garantias fundamentais

A Constituição de 1988 prevê, no seu Título II, direitos e garantias fundamentais. Por garantias fundamentais, entendem-se os instrumentos, inseridos na Constituição, que asseguram e promovem os direitos fundamentais. Entre essas garantias, há ações constitucionais, também chamadas de remédios constitucionais, que possuem natureza híbrida: representam ações regidas pelo Direito Processual, mas, ao mesmo tempo, são inseridas na Constituição e desempenham a função de proteger direitos fundamentais.

oito ações constitucionais: o habeas corpus, o mandado de segurança individual, o mandado de segurança coletivo, o mandado de injunção, o habeas data, a ação popular, a ação civil pública e ainda o direito de petição. Analisaremos, abaixo, as principais características de cada uma delas.

38.1. HABEAS CORPUS

Art. 5º, LXVIII – conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder;

Conceito – O habeas corpus consiste em ação constitucional cabível sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, conforme dispõe o art. 5º, LXVIII.

Origem – O habeas corpus tem raízes na Carta Magna (1215) e no Habeas Corpus Act (1679). No Brasil, foi previsto no Código Criminal do Império (1830) e, pela primeira vez em um texto constitucional, na Constituição de 1891.

Cabimento – Logo após a Constituição de 1891, a interpretação do cabimento do habeas corpus foi ampliada para abarcar a violação de todo e qualquer direito constitucional, uma vez que a redação do art. 72, § 22, da Constituição de 1891 (que tratou do habeas corpus) não mencionava “liberdade de locomoção”. Essa ampliação do alcance do habeas corpus foi denominada “teoria brasileira do habeas corpus”, eliminada somente na Reforma Constitucional de 1926, que alterou a redação do art. 72, § 22, para incluir a redação próxima da atual (com referência expressa à liberdade de locomoção). Atualmente, é cabível o habeas corpus para combater lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder.

Restrição – A CF/88 prevê que não caberá habeas corpus em face de punições disciplinares militares (art. 142, § 2º).

Competência para julgamento Será determinada de acordo com o tipo de autoridade coatora e, excepcionalmente, de acordo com o paciente (aquele que sofre sofreu violência ou coação em sua liberdade ambulatorial).

Espécies e ordem O habeas corpus pode ser preventivo (antes da ocorrência da lesão), quando, se concedido, gerará um “salvo conduto” ao paciente para assegurar seu direito de ir ou repressivo, quando se obtém um alvará de soltura liberatório contra ato abusivo ou ilegalidade.

Propositura e trâmite Pode ser proposto por qualquer pessoa física (em sua defesa ou na defesa de terceiro) ou jurídica, inclusive o Ministério Público e a Defensoria para proteger direito de ir e vir de determinado indivíduo (liberdade de locomoção ou liberdade ambulatorial). Pode ser proposta sem advogado ou formalidade. O juiz, no exercício de sua atividade jurisdicional, pode conceder de ofício. O trâmite é singelo: o Impetrante sustenta a existência de lesão ou ameaça de lesão à liberdade de locomoção por conduta imputada à Autoridade Coatora, em desfavor do Paciente. A Autoridade Coatora presta informações, o Ministério Público oficia como custos legis, dando parecer (já que pode ter ocorrido inclusive crime por parte da Autoridade Coatora), e o juízo concede ou denega a ordem de habeas corpus.

Súmulas do STF sobre Habeas Corpus:

Súmula 299 – O recurso ordinário e o extraordinário interpostos no mesmo proceso de Mandado de segurança, ou de “Habeas Corpus”, serão julgados conjuntamente pelo Tribunal Pleno.

Súmula 319 – O prazo do recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, em “Habeas Corpus” ou Mandado de Segurança, é de cinco dias.

Súmula 344 – Sentença de primeira instância concessiva de “Habeas Corpus”, em caso de crime praticado em detrimento de bens, serviços ou interesses da União, está sujeita a recurso “ex officio”.

Súmula 395 – Não se conhece de recurso de “Habeas Corpus” cujo objeto seja resolver sobre o ônus das custas, por não estar mais em causa a liberdade de locomoção.

Súmula 431 – É nulo o julgamento de recurso criminal, na segunda instância, sem prévia intimação, ou publicação da pauta, salvo em “Habeas Corpus”.

Súmula 606 – Não cabe “Habeas Corpus” originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em “Habeas Corpus” ou no respectivo recurso.

Súmula 690 – Compete originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de “Habeas Corpus” contra decisão de Turma recursal de Juizados Especiais Criminais.

Súmula 691 – Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de “Habeas Corpus” impetrado contra decisão do relator que, em “Habeas Corpus” requerido a Tribunal Superior, indefere a liminar.

Súmula 692 – Não se conhece de “Habeas Corpus” contra omissão de relator de extradição, se fundado em fato ou direito estrangeiro cuja prova não constava dos autos, nem foi ele provocado a respeito.

Súmula 693 – Não cabe “Habeas Corpus” contra decisão condenatória a pena de multa, ou relativo a processo em curso por infração penal a que a pena pecuniária seja a única cominada.

Súmula 694 – Não cabe “Habeas Corpus” contra a imposição de pena de exclusão de militar ou de perda de patente ou de função pública.

Súmula 695 – Não cabe “Habeas Corpus” quando já extinta a pena privativa de liberdade.

38.2. MANDADO DE SEGURANÇA

Art. 5º, LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas corpus” ou “habeas data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público;

Conceito O mandado de segurança visa proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, ameaçado ou lesado por ilegalidade ou abuso de poder de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público (art. 5º, LXIX). A Constituição de 1988 inovou e prevê ainda o mandado de segurança coletivo a ser impetrado por (i) partido político com representação no Congresso Nacional e por (ii) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados (art. 5º, LXX).

Origem – Foi inserido pela primeira vez em uma Constituição na Constituição de 1934. Visava incrementar a proteção de direitos, após o fim da “teoria brasileira do habeas corpus”. Desde então compõe o texto das nossas Constituições (ausência somente na Constituição de 1937), constituindo-se em instituto tipicamente brasileiro: somente há institutos próximos (e não idênticos) em outros países, como o “recurso de amparo” da Espanha. A regulamentação foi durante décadas a da Lei n. 1.533/51, que foi revogada e substituída pela Lei n. 12.016, de 2009, com poucas alterações.

Cabimento – Cabe mandado de segurança para proteger “direito líquido e certo”, que consiste em todo direito cujos fatos que o embasam podem ser provados de plano, sem instrução probatória. Não se admite, então, dilação probatória no mandado de segurança: a prova tem que ser preconstituída. Também só é cabível mandado de segurança para combater condutas (comissivas ou omissivas) (i) ilegais ou fruto de (ii) abuso de poder imputadas à autoridade pública ou agente privado no exercício de atribuições do Poder Público. A Lei n. 12.016/2009 vedou a impetração de mandado de segurança contra ato de gestão comercial praticado pelo administrador de empresa pública, de sociedade de economia mista e de concessionária de serviço público. A mesma lei determinou que se equiparam às autoridades públicas os representantes ou órgãos de partidos políticos e os administradores de entidades autárquicas, bem como os dirigentes de pessoas jurídicas ou as pessoas naturais no exercício de atribuições do poder público, somente no que disser respeito a essas atribuições.

Restrição – Não cabe mandado de segurança para proteger a (i) liberdade de locomoção (pois cabe habeas corpus) nem a (ii) a autodeterminação informativa (veremos abaixo, pois é cabível habeas data).

Competência para julgamento – Será determinada de acordo com o tipo de autoridade coatora, de acordo com a Constituição e com as leis infraconstitucionais.

Espécies e ordem – O mandado de segurança pode ser preventivo (antes da ocorrência da lesão ao direito líquido e certo) ou repressivo (depois da ilegalidade ou abuso de poder). Em geral, pede-se antecipação de tutela pela via liminar.

Propositura e trâmite – O legitimado ativo (impetrante) é o pretenso titular do direito líquido e certo, o que abarca pessoas físicas, jurídicas, entes despersonalizados (inclusive órgãos públicos despersonalizados, como Mesas do Poder Legislativo e Ministério Público). O prazo é de 120 dias (decadencial) contados da ciência da conduta impugnada. O impetrado é a autoridade coatora, que é aquele que praticou o ato ilegal ou abusivo, ou ainda aquele que ordenou tal prática. Após a propositura e eventual apreciação da liminar, há a prestação das informações pela Autoridade Coatora. O Ministério Público atua como fiscal da lei, emitindo parecer logo após o prazo para envio das informações. O rito completa-se, de modo célere, com a sentença. O conteúdo da sentença de procedência é mandamental, ou seja, é uma ordem dirigida à autoridade coatora, que comete crime de desobediência, caso a descumpra. Concedida a segurança, a sentença estará sujeita obrigatoriamente ao duplo grau de jurisdição.

38.3. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO

Art. 5º, LXX – o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por:

a) partido político com representação no Congresso Nacional;

b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros ou associados;

Conceito Dispõe a Lei n. 12.106/2009, que regulamentou o art. 5º, LXX, que o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por partido político com representação no Congresso Nacional, na defesa de seus interesses legítimos relativos a seus integrantes ou à finalidade partidária, ou por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há, pelo menos, um ano, em defesa de direitos líquidos e certos da totalidade, ou de parte, dos seus membros ou associados, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial. Assim, não cabe exigir autorização assemblear (de assembleia da associação).

Origem e diferenças A Constituição de 1988 criou o mandado de segurança coletivo, que difere do mandado de segurança individual somente quanto aos (i) legitimados (visto acima) e (ii) objeto.

Objeto Os direitos protegidos pelo mandado de segurança coletivo podem ser: I – coletivos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que seja titular grupo ou categoria de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica básica; II – individuais homogêneos, assim entendidos, para efeito desta Lei, os decorrentes de origem comum e da atividade ou situação específica da totalidade ou de parte dos associados ou membros do impetrante.

Partidos Políticos Para parte da doutrina, os partidos políticos podem defender todo e qualquer direito líquido e certo coletivo ou individual homogêneo, pois a finalidade partidária é defender e bem representar o interesse da sociedade. Há precedente contrário do STJ, que restringe a ação dos partidos políticos na defesa dos filiados e em questões políticas, como bem lembra Pedro Lenza54. A Lei n. 12.016 adotou a visão restritiva e determinou que os partidos só podem impetrar mandado de segurança coletivo na defesa de direitos líquidos e certos referentes a seus integrantes ou à finalidade partidária.

Organização sindical, entidade de classe ou associação Já as organizações sindicais, entidade de classe ou associação, podem defender direitos líquidos e certos coletivos ou individuais homogêneos dos membros ou parte deles, na forma dos seus estatutos e desde que pertinentes às suas finalidades, dispensada, para tanto, autorização especial (ver ainda Súmula 630 do STF).

Trâmite – Há poucas diferenças do já estudado no mandado de segurança individual. O mandado de segurança coletivo não induz litispendência para as ações individuais, mas os efeitos da coisa julgada não beneficiarão o impetrante a título individual se não requerer a desistência de seu mandado de segurança no prazo de 30 dias a contar da ciência comprovada da impetração da segurança coletiva. No mandado de segurança coletivo, a liminar só poderá ser concedida após a audiência do representante judicial da pessoa jurídica de direito público, que deverá se pronunciar no prazo de 72 horas. A sentença fará coisa julgada em face somente dos membros do grupo ou categoria substituídos pelo impetrante.

Súmulas do STF sobre Mandado de Segurança:

Súmula 101 – O mandado de segurança não substitui a ação popular.

Súmula 248 – É competente, originariamente, o Supremo Tribunal Federal, para mandado de segurança contra ato do Tribunal de Contas da União.

Súmula 266 – Não cabe mandado de segurança contra lei em tese.

Súmula 267 – Não cabe mandado de segurança contra ato judicial passível de recurso ou correição.

Súmula 268 – Não cabe mandado de segurança contra decisão judicial com trânsito em julgado.

Súmula 269 – O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança.

Súmula 270 – Não cabe mandado de segurança para impugnar enquadramento da Lei n. 3.780, de 12-7-1960, que envolva exame de prova ou de situação funcional complexa.

Súmula 271 – Concessão de mandado de segurança não produz efeitos patrimoniais em relação a período pretérito, os quais devem ser reclamados administrativamente ou pela via judicial própria.

Súmula 272 – Não se admite como ordinário recurso extraordinário de decisão denegatória de mandado de segurança.

Súmula 299 – O recurso ordinário e o extraordinário interpostos no mesmo processo de mandado de segurança, ou de “Habeas Corpus”, serão julgados conjuntamente pelo Tribunal Pleno.

Súmula 304 – Decisão denegatória de mandado de segurança, não fazendo coisa julgada contra o impetrante, não impede o uso da ação própria.

Súmula 319 – O prazo do recurso ordinário para o Supremo Tribunal Federal, em “Habeas Corpus” ou mandado de segurança, é de cinco dias.

Súmula 330 – O Supremo Tribunal Federal não é competente para conhecer de mandado de segurança contra atos dos Tribunais de Justiça dos Estados.

Súmula 392 – O prazo para recorrer de acórdão concessivo de segurança conta-se da publicação oficial de suas conclusões, e não da anterior ciência à autoridade para cumprimento da decisão.

Súmula 405 – Denegado o mandado de segurança pela sentença, ou no julgamento do agravo, dela interposto, fica sem efeito a liminar concedida, retroagindo os efeitos da decisão contrária.

Súmula 429 – A existência de recurso administrativo com efeito suspensivo não impede o uso do mandado de segurança contra omissão da autoridade.

Súmula 430 – Pedido de reconsideração na via administrativa não interrompe o prazo para o mandado de segurança.

Súmula 474 – Não há direito líquido e certo, amparado pelo mandado de segurança, quando se escuda em lei cujos efeitos foram anulados por outra, declarada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal.

Súmula 506 – O agravo a que se refere o art. 4º da Lei n. 4.348, de 26-6-1964, cabe, somente, do despacho do presidente do Supremo Tribunal Federal que defere a suspensão da liminar, em mandado de segurança; não do que a “denega”.

Súmula 510 – Praticado o ato por autoridade, no exercício de competência delegada, contra ela cabe o mandado de segurança ou a medida judicial.

Súmula 511 – Compete à Justiça Federal, em ambas as instâncias, processar e julgar as causas entre autarquias federais e entidades públicas locais, inclusive mandados de segurança, ressalvada a ação fiscal, nos termos da Constituição Federal de 1967, art. 119, § 3º.

Súmula 512 – Não cabe condenação em honorários de advogado na ação de mandado de segurança.

Súmula 597 – Não cabem embargos infringentes de acórdão que, em mandado de segurança decidiu, por maioria de votos, a apelação.

Súmula 623 – Não gera por si só a competência originária do Supremo Tribunal Federal para conhecer do mandado de segurança com base no art. 102, I, “n”, da Constituição, dirigir-se o pedido contra deliberação administrativa do tribunal de origem, da qual haja participado a maioria ou a totalidade de seus membros.

Súmula 624 – Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer originariamente de mandado de segurança contra atos de outros tribunais.

Súmula 625 – Controvérsia sobre matéria de direito não impede concessão de mandado de segurança.

Súmula 626 – A suspensão da liminar em mandado de segurança, salvo determinação em contrário da decisão que a deferir, vigorará até o trânsito em julgado da decisão definitiva de concessão da segurança ou, havendo recurso, até a sua manutenção pelo Supremo Tribunal Federal, desde que o objeto da liminar deferida coincida, total ou parcialmente, com o da impetração.

Súmula 627 – No mandado de segurança contra a nomeação de magistrado da competência do Presidente da República, este é considerado autoridade coatora, ainda que o fundamento da impetração seja nulidade ocorrida em fase anterior do procedimento.

Súmula 629 – A impetração de mandado de segurança coletivo por entidade de classe em favor dos associados independe da autorização destes.

Súmula 630 – A entidade de classe tem legitimação para o mandado de segurança ainda quando a pretensão veiculada interesse apenas a uma parte da respectiva categoria.

Súmula 631 – Extingue-se o processo de mandado de segurança se o impetrante não promove, no prazo assinado, a citação do litisconsorte passivo necessário.

Súmula 632 – É constitucional lei que fixa o prazo de decadência para a impetração de mandado de segurança.

Súmula 701 – No mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público contra decisão proferida em processo penal, é obrigatória a citação do réu como litisconsorte passivo.

38.4. MANDADO DE INJUNÇÃO

Art. 5º, LXXI – conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;

Conceito De acordo com a Constituição de 1988, o mandado de injunção pode ser proposto sempre que “a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI). Combate-se a inércia de regulamentação que impede ou dificulta a efetividade das normas constitucionais. O STF admite o mandado de injunção coletivo, tendo considerado até ser inadmissível o pedido de desistência do MI coletivo após o início do julgamento no STF (por ser o Sindicato impetrante mero substituto processual, ou seja, o titular do direito inviabilizado pela omissão são os trabalhadores – ver em STF, MI 712-QO, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 15-10-2007, Plenário, DJ de 23-11-2007).

Origem e cabimento A Constituição de 1988 criou o mandado de injunção. Para o STF, “para ser cabível o mandado de injunção é necessário que se constate: 1) omissão de norma regulamentadora e 2) concreta inviabilidade de plena fruição de direito ou liberdade constitucional (ou prerrogativa inerente à nacionalidade, soberania e cidadania) pelo seu titular. Por isso, é necessário que se comprove, de plano, a (i) titularidade do direito e a (ii) sua inviabilidade decorrente da ausência de norma regulamentadora do direito constitucional” (MI 2.195-AgR, voto da Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 23-2-2011, Plenário, DJE de 18-3-2011).

Legitimidade ativa e passiva – Cabe ao titular (pessoa física ou jurídica) do direito inviabilizado a propositura do mandado de injunção. Por sua vez, a legitimidade passiva é do agente que possui competência para elaborar a norma faltante.

Competência – A competência para julgamento do MI depende do ente omisso e pode ser assim resumida: a) STF (art. 102, I, q): cabe ao STF julgar o MI quando quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição do Presidente da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, das Mesas de uma dessas Casas Legislativas, do Tribunal de Contas da União, de um dos Tribunais Superiores, ou do próprio Supremo Tribunal Federal; também cabe ao STF o julgamento de recurso ordinário, quando o mandado de injunção for decidido em única instância pelos Tribunais Superiores, se denegatória a decisão. b) STJ (art. 105, I, h): cabe ao STJ julgar mandado de injunção quando a elaboração da norma regulamentadora for atribuição de órgão, entidade ou autoridade federal, da administração direta ou indireta, excetuados os casos de competência do Supremo Tribunal Federal e dos órgãos da Justiça Militar, da Justiça Eleitoral, da Justiça do Trabalho e da Justiça Federal. c) TSE (art. 121 § 4º, V), no caso de recurso contra denegação de mandado de injunção por um Tribunal Regional Eleitoral. d) Justiça Estadual (art. 125, § 1º): delega aos Estados a organização da justiça estadual, observados os princípios da CF/88; assim, em vários Estados, como o de São Paulo, o mandado de injunção contra autoridades estaduais e municipais é da competência do TJ55.

Trâmite e efeitos – O mandado de injunção é regido pelo trâmite do mandado de Segurança, sendo utilizada, então, sua estrutura básica: Impetrante, Autoridade Coatora, Parecer do MP e Sentença, sem fase probatória (direito provado de plano).

Contudo, o caráter mandamental da sentença de concessão do mandado de segurança não foi transposto, inicialmente, ao mandado de injunção. Entendeu o STF, nos primeiros anos após a Constituição de 1988, que, em nome da separação dos poderes, não poderia o Poder Judiciário dar uma ordem para que o direito em questão no processo fosse implementado. O impetrante deveria se contentar com a “certificação da mora” por parte do Judiciário (posição não concretista). Ao longo dos anos, houve mudança dessa posição. Assim, hoje o STF entende que é possível, na ação de mandado de injunção, (i) determinar a suspensão de processos administrativos ou judiciais, com o intuito de assegurar ao interessado a possibilidade de ser contemplado por norma mais benéfica, ou que lhe assegure o direito constitucional invocado (posição concretista individual). Também pode o (ii) STF fixar prazo para que o órgão legislativo inerte legisle (posição concretista intermediária). Além disso, o STF pode (iii) determinar a edição de outras medidas que garantam a posição do impetrante até a oportuna expedição de normas pelo legislador (posição concretista individual – cf. em MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008). E, finalmente, pode (iv) o STF determinar que, até que o legislador normatize a matéria, determinada solução seja aplicada ao impetrante e a todos os demais prejudicados (posição concretista geral). Essa última hipótese ocorreu no caso da inércia da regulamentação da greve dos servidores públicos, ordenando o STF a aplicação, por analogia, da lei que regula a greve dos empregados privados (Lei n. 7.783/89 – cf. em MI 712, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 25-10-2007, Plenário, DJE de 31-10-2008).

38.5. HABEAS DATA

Art. 5º, LXXII – conceder-se-á “habeas data”:

a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;

b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;

Conceito e origem O habeas data consiste em garantia fundamental que assegura o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público e também serve para retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo (art. 5º, LXXII). Essa parte final do dispositivo constitucional demonstra que há a via ordinária como alternativa. É inovação da Constituição e 1988, inspirado nas Constituições de Portugal e da Espanha, e que visa proteger o direito à autodeterminação informativa. Sua instituição foi uma ruptura com o passado de arquivos secretos da Ditadura e perseguição política. Não se trata simplesmente de assegurar o direito à informação e combater a “cultura do biombo” dos bancos de dados de entes públicos ou de caráter público, mas também de permitir que o interessado possa retificar as informações, controlando sua veracidade. Em 1997, foi editada a Lei n. 9.504 que regulamentou o habeas data, após anos de utilização analógica da Lei do Mandado de Segurança.

Objeto – Cabe habeas data para assegurar o conhecimento e eventual retificação de informação do titular, garantindo, em benefício de pessoa física ou jurídica diante de bancos de dados públicos ou de caráter público: (i) o direito de acesso aos dados e registros existentes; (ii) o direito de retificação das informações errôneas; e (iii) direito de complementação dos dados insuficientes ou incompletos. Considera-se de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações. A Lei n. 9.507/97 fixou o objeto do HD para o seguinte tripé: obter, corrigir e e anotar (incluir) contestação ou explicação sobre dado verdadeiro mais justificável (caso típico de inclusão de anotação sobre existência de pendência judicial).

Diferença com o direito à certidão (mandado de segurança) – No caso do direito à obtenção de certidões (art. 5º, XXXIV, b) ou mesmo o direito à informação de interesse particular ou geral (art. 5º, XXXIII), a garantia fundamental apta a proteger tais direitos é o mandado de segurança. Assim, o pedido de certidão de contagem de tempo de serviço negado abusivamente por gerente do INSS é protegido pelo uso do mandado de segurança e não do habeas data. No mesmo sentido, o habeas data não se revela meio idôneo para se obter vista de processo administrativo, cabendo mandado de segurança (HD 90-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 18-2-2010, Plenário, DJE de 19-3-2010).

Legitimidade ativa e passiva Pode impetrar habeas data o pretenso titular do direito à autodeterminação informativa. Consequentemente, o habeas data não se presta para solicitar informações relativas a terceiros, pois, nos termos do inciso LXXII do art. 5º da CF, sua impetração deve ter por objetivo “assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante” (HD 87-AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 25-11-2009, Plenário, DJE de 5-2-2010). No polo passivo, a Lei n. 9.504/97 adotou o mesmo modelo do mandado de segurança, sendo a Autoridade Coatora o agente que detém a informação e o Requerido (que poderá recorrer) o sujeito de direito a quem pertencem os registros ou dados. Esse sujeito de direito pode ser público ou privado: o critério será a disponibilização da informação ao público. Assim, considera-se de caráter público todo registro ou banco de dados contendo informações que sejam ou que possam ser transmitidas a terceiros ou que não sejam de uso privativo do órgão ou entidade produtora ou depositária das informações. Por isso, decidiu o STF que o Banco do Brasil é parte ilegítima para figurar no polo passivo de ação de HD uma vez que mantinha os dados pleiteados pelo impetrante para seu uso privativo (STF, RE 165.304, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 19-10-2000, Plenário, DJ de 15-12-2000).

Trâmite A Lei n. 9.504/97 prevê uma fase administrativa e uma fase judicial. A fase administrativa (ou pré-judicial) consiste no pedido das informações para conhecimento e eventual retificação ou complementação ao órgão detentor. Caso haja recusa ou atendimento imperfeito do pedido, é que surge o interesse de agir para a impetração do habeas data. Por isso, a petição inicial deverá ser instruída com prova da recusa ao acesso às informações, ou do decurso de mais de 10 dias sem decisão, ou ainda da recusa em fazer-se a retificação ou do decurso de mais de 15 dias, sem decisão e, finalmente, da recusa em fazer-se o complemento de dados ou anotação. Nesse sentido, a Súmula n. 02 do STJ: “não cabe o habeas data (cf., art. 5º, LXXII, letra a) se não houve recusa de informações por parte da autoridade administrativa”. O rito do HD é similar ao do mandado de segurança: há o impetrante e a autoridade coatora e não se admite instrução probatória. O HD não serve para corrigir aquilo que for controverso: eventual necessidade de dilação probatória exigirá o uso das ações ordinárias.

Competência – A autoridade coatora é essencial para definir competência judicial. A competência do STF é para: habeas data contra atos do Presidente da República, das Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, do Procurador-Geral da República e do próprio STF; cabe ao STJ julgar habeas data: contra atos de Ministro de Estado, Comandantes das Forças Armadas ou do próprio STJ; os Tribunais Regionais Federais julgam habeas data contra atos do próprio Tribunal ou de juiz federal; o juiz federal julga habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais; e, finalmente, os tribunais estaduais julgam habeas data segundo o disposto na Constituição do Estado (observados os casos já previstos pela CF/88); e o juiz estadual, para os casos restantes.

38.6. AÇÃO POPULAR

Art. 5º, LXXIII – qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;

Conceito e origem – A ação popular consiste em ação em que qualquer cidadão pede a anulação de ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência. Sua origem está nas chamadas ações públicas romanas (publica judicia), no qual o autor agia a favor do povo (pro populo). No Brasil, a primeira Constituição a prever tal garantia fundamental foi a Constituição de 1934, no inciso XXXIII do art. 113 que estabeleceu: “Qualquer cidadão será parte legítima para pleitear a declaração de nulidade ou a anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios”. A ação popular protege o direito fundamental da boa governança, que consiste no direito difuso de toda a comunidade de ser governada segundo os princípios da legalidade, da moralidade e de invocar a tutela jurisdicional para combater práticas lesivas a tal direito. O direito de propor ação popular é do cidadão (age, em nome próprio, na defesa de direito difuso – substituição processual – ver abaixo), o que o insere na categoria dos “direitos políticos de fiscalização”.

Objeto Inicialmente, a ação popular trata de invalidar atos praticados com ilegalidade de que resultou lesão ao patrimônio público. Essa ilegalidade pode advir de vício formal ou substancial, devido à violação de regra de incompetência do agente, ou ainda forma, bem como fruto de ilegalidade do objeto e inexistência dos motivos ou desvio de finalidade. Após a Constituição de 1988, houve a ampliação do objeto da ação popular, que abarca agora ato lesivo à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural. A moralidade administrativa consiste no conjunto de preceitos de bom-agir do governante, sendo considerada a conduta ética e em boa-fé que se espera do gestor público. Há três elementos básicos do regime jurídico da ação popular: a) cidadão é o proponente (vide abaixo a legitimidade subsidiária do MP); b) ilegalidade; e c) lesividade. Para o STJ, o alargamento das hipóteses de cabimento da ação popular não elimina o dever do Autor Popular de comprovar a lesividade do ato, mesmo em se tratando de lesão à moralidade administrativa, ao meio ambiente ou ao patrimônio histórico e cultural (EREsp 260.821/SP Relator p/ Acórdão Ministro João Otávio de Noronha, Primeira Seção, DJ 13.02.2006)56. A ação popular, ainda, é o instrumento pioneiro na tutela de direitos difusos no Brasil, sendo regulamentada pela Lei n. 4.717 de 1965.

Legitimidade ativa e passiva A legimitidade da ação popular é do cidadão, que é o nacional exercente de direitos políticos. Por isso, deve comprovar, na petição inicial, ser eleitor e estar em gozo dos seus direitos políticos. A propositura da ação popular é direito político, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência (CF, art. 5º, LXXIII). Para Pedro Lenza, não cabe assistência ao menor cidadão (como se sabe, o jovem de 16 a 18 pode, de modo facultativo, ser eleitor)57. Excepcionalmente, o MP assumirá o polo ativo, para dar continuidade a ação popular já proposta (art. 9º da Lei n. 4.717/65). Não podem propor ação popular: os inalistáveis ou inalistados, aqueles que sofrem de suspensão de direitos políticos, os estrangeiros (mesmo os portugueses no gozo do estatuto da igualdade, pois não há a reciprocidade em Portugal exigida pela CF/88), os partidos políticos e entidades de classe ou qualquer outra pessoa jurídica (ver abaixo a Súmula 365 do STF). Quanto à legitimidade passiva, cabe a propositura contra as pessoas jurídicas cujo patrimônio foi lesado, bem como contra os agentes que causaram o dano – por ação ou omissão, e ainda contra os beneficiados. É possível a mudança de polo da pessoa jurídica de direito público ou privado, que pode abster-se de contestar e também pode atuar ao lado do Autor. Essa inusual modificação do polo de uma ação demonstra a natureza de tutela de direitos difusos da ação popular.

Trâmite O pedido na ação popular consiste na invalidade do ato ou omissão ou sua desconstituição, com a reparação dos prejuízos causados e eventual restituição de bens e valores. O Autor não paga custas ou honorários, salvo má-fé. O MP intervém obrigatoriamente como custos legis e, no abandono pelo Autor Popular, pode assumir o polo ativo. Cabe tutela antecipatória e ainda a propositura de ação popular preventiva. A sentença de improcedência ou de carência exige reexame necessário (art. 19 da Lei n. 4.717) e a coisa julgada é secundum eventum litis, ou seja, a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no caso de haver sido a ação julgada improcedente por falta ou deficiência de prova; nessa hipótese, qualquer cidadão poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova. O prazo de prescrição da ação popular é de cinco anos da conduta (art. 21 da Lei 4.717). Entendemos, contudo, que a Constituição, em seu art. 37, § 5º (“A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por qualquer agente, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvadas as respectivas ações de ressarcimento”), impõe a imprescritibilidade da ação de reparação de danos ao Erário, o que impacta não só ações ordinárias, mas também a ação popular que venha exigir a reparação de danos. A imprescritibilidade da ação de reparação de danos ao Erário foi reconhecida pelo STF (MS 26.210, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 4-9-2008, Plenário, DJE de 10-10-2008).

Competência A competência para o conhecimento de uma ação popular varia de acordo com o bem jurídico protegido: se for patrimônio da União, por exemplo, a competência será do juízo federal. Será, em geral, do juízo de 1º grau – federal ou estadual. Não há foro por prerrogativa de função, mesmo para o Presidente da República, para a ação popular. Excepcionalmente, pode uma ação popular ser julgada originalmente pelo STF no caso da alínea n do art. 102, I, da Constituição (“a ação em que todos os membros da magistratura sejam direta ou indiretamente interessados, e aquela em que mais da metade dos membros do tribunal de origem estejam impedidos ou sejam direta ou indiretamente interessados”).

Súmulas do STF:

Súmula 101 – O mandado de segurança não substitui a ação popular.

Súmula 365 – Pessoa jurídica não tem legitimidade para propor ação popular.

38.7. DIREITO DE PETIÇÃO

Conceito e origem – consiste no direito de se dirigir às autoridades competentes para que realizem determinadas condutas comissivas ou omissivas. É um termo geral aplicável a todas as chamadas “reclamações ou representações” encaminhadas aos órgãos públicos, para a defesa de interesse próprio ou coletivo. Inspira-se no Petition of Right de 1628, pelo qual o Parlamento britânico reconhecia uma série de limitações ao Poder Público. No caso do direito de petição, o indivíduo provoca a autoridade pública para que faça ou deixe de fazer algo. No Brasil, a primeira Constituição que o reconheceu foi a de 1824. A Constituição de 1988 o disciplina no art. 5º, XXXIV, a, que determina que se reconhece, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder.

Objeto – O direito de petição tem como objeto a (i) defesa de direitos e o (ii) combate à ilegalidade e os abusos de poder, sem a necessidade do pagamento de taxa ou sem que haja outro requisito (por exemplo, ter advogado etc.). Trata-se da chamada provocatio ad agendum, pois o indivíduo provoca a autoridade e inclui em sua agenda o tema da petição, exigindo resposta positiva ou negativa. Pode ser exercido de forma individual ou coletiva, para proteger direito próprio ou de terceiro (inclusive direitos difusos ou coletivos). Sua utilidade está na atuação do indivíduo para exigir que a Administração Pública atue de modo eficiente e legítimo, preservando os direitos dos interessados.

Legitimidade ativa e passiva – A legitimidade ativa para exercer o direito de petição é de toda pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado. A legitimidade passiva é reservada aos entes ou órgãos públicos, e ainda às entidades privadas que exerçam função pública.

Trâmite O trâmite do direito de petição pode ser regulamentado pelo ente público, porém não pode ser (i) obstaculizado ou gerar (ii) efeito negativo ao peticionante. Nesse sentido, decidiu o STF que a exigência de depósito recursal em processo administrativo é obstáculo inconstitucional ao direito de petição (Súmula Vinculante do STF n. 21 e Súmula 373 do STJ). A petição deve ser recebida e examinada em tempo razoável, devendo ainda o peticionante ser comunicado da decisão tomada pela autoridade a quem a petição foi dirigida. Não há direito de ver deferido o pleito.

Competência – Depende do objeto da petição: a análise da petição incumbirá à autoridade que tem atribuição de atender o pleito encaminhado.

38.8. AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:

III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;

Como já vimos acima, a tutela dos direitos metaindividuais representa faceta material do direito de acesso à justiça. Nessa linha, a Constituição consagrou a ação civil pública como ação apta a tutelar os direitos coletivos em sentido amplo (direitos difusos e coletivos em sentido estrito) e os direitos individuais homogêneos (vide Parte I, Capítulo III, item 2.5.5).

A Constituição outorgou a defesa judicial ou extrajudicial de tais direitos ao Ministério Público (CF, art. 129, III), às entidades associativas, sindicatos e partidos políticos (CF, arts. 5º, XXI, e 8º, III). A Lei n. 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) e a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) tratam daquilo que a doutrina denomina “processo coletivo brasileiro”, regrando a legitimidade (ver acima a legitimidade da Defensoria Pública), ônus da prova, efeitos da coisa julgada, execução, entre outros temas da tutela metaindividual.

Súmulas do STF e do STJ:

STF, Súmula 643 – O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades escolares.

STJ, Súmula 329 – O Ministério Público tem legitimidade para propor ação civil pública em defesa do patrimônio público.

STJ, Súmula 470 – O Ministério Público não tem legitimidade para pleitear, em ação civil pública, a indenização decorrente do DPVAT em benefício do segurado.

STJ, Súmula 489 – Reconhecida a continência, devem ser reunidas na Justiça Federal as ações civis públicas propostas nesta e na Justiça estadual.

Foi cancelada a Súmula 183 do STJ: “Compete ao juiz estadual, nas comarcas que não sejam sede de vara da Justiça Federal, processar e julgar ação civil pública, ainda que a União figure no processo”.

39. Sistema Único de Saúde

O direito à saúde assegura a promoção do bem-estar físico, mental e social de um indivíduo, impondo ao Estado a oferta de serviços públicos a todos para prevenir ou eliminar doenças e outros gravames. O direito à saúde possui faceta individual e difusa, pois há o direito difuso de todos de viver em um ambiente sadio, sem o risco de epidemias ou outros malefícios à saúde. Por isso, determina a Constituição de 1988 que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 195).

No caso brasileiro, o art. 198 da CF/88 consagrou o Sistema Único de Saúde, que consiste em política pública de saúde, pela qual o Estado promove o direito à saúde de modo universal e igualitário em todo o território nacional. A utilização do termo “único” visa impor uma política nacional de saúde, superando as divergências entre os entes federados. Nesse sentido, Weichert alerta, em sua obra, que não pode um ente federado prestar ações de saúde fora do SUS58.

De acordo com o art. 198 da CF/88, as ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade.

Em resumo, a prestação do serviço de saúde no Brasil deve obedecer, então, aos seguintes princípios cardeais: (i) alcance universal, não podendo ninguém ser excluído; (ii) igualitária, não sendo permitida a discriminação de qualquer tipo, o que impede a diferenciação entre aqueles que podem pagar e os que não podem; (iii) integral, não podendo ter limite de atendimento que prejudique a saúde; (iv) equitativa, com investimentos em todos os campos necessários; (v) aberta à participação da comunidade; (vi) descentralizada para os Municípios; (vii) gratuita e em geral estatal; e (viii) colaborar com a preservação do meio ambiente e dos direitos dos trabalhadores. Ademais, o sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.

Dispõe ainda a Constituição de 1988 que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada, podendo as instituições privadas participar de forma complementar do Sistema Único de Saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

É vedada, todavia, a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos, bem como é vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.

39.1 JURISPRUDÊNCIA DO STF

Judicialização do direito à saúde. “O direito à saúde – além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas – representa consequência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. (...) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade” (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-2000, Segunda Turma, Plenário, DJ de 24-11-2000).

40. Sistema Único de Assistência Social

O direito à assistência social consiste na faculdade de exigir do Estado prestação monetária ou serviço que assegurem condições materiais mínimas de sobrevivência, sem que seja exgido qualquer outra contraprestação por parte do beneficiado.

A ausência de contraprestação é característica da assistência social que a diferencia dos direitos previdenciários, complementando-o. Aliás, os direitos de seguridade social são compostos pelo tripé: direito à saúde, direito à previdência social e o direito à assistência social. O financiamento da assistência social é feito por toda a sociedade, mostrando sua natureza solidária.

A Constituição de 1988 estabelece os seguintes objetivos da assistência social: (i) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; (ii) o amparo às crianças e adolescentes carentes; (iii) a promoção da integração ao mercado de trabalho; (iv) a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; (v) a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

A assistência social é um direito indispensável para que o Brasil cumpra seu objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais (art. 3º da CF/88). Atualmente, a Lei Orgânica da Assistência Social é a Lei n. 8.742, de 1993, com várias mudanças implementadas pela Lei n. 12.435, de 2011.

41. Direitos das pessoas com deficiência e das pessoas com transtornos mentais

41.1. DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

As pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de natureza física, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade com as demais pessoas59. A “deficiência” significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social60.

A deficiência é considerada um conceito social (e não médico) em evolução, resultante da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras geradas por atitudes e pelo ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

Assim, fica evidente que a “deficiência está na sociedade, não nos atributos dos cidadãos que apresentem impedimentos físicos, mentais, intelectuais ou sensoriais. Na medida em que as sociedades removam essas barreiras culturais, tecnológicas, físicas e atitudinais, as pessoas com impedimentos têm assegurada ou não a sua cidadania”61.

A expressão “pessoa portadora de deficiência” corresponde àquela usada pela Constituição brasileira (art. 7º, XXXI; art. 23, II, art. 24, XIV; art. 37, VIII; art. 203, IV e V; art. 208, III; art. 227, §§ 1º, II, e 2º ; art. 244). Porém, o termo “portadora” é inadequado, pois indica ser possível deixar de ter a deficiência... .

Assim, a expressão utilizada pela Convenção da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência é “pessoas com deficiência”. Essa Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional seguindo-se o rito especial do art. 5º, § 3º62, e possui, consequentemente, estatuto normativo equivalente à emenda constitucional. Portanto, houve atualização constitucional da denominação para “pessoa com deficiência”, que, a partir de 2009, passou a ser o termo utilizado.

A luta pela implementação dos direitos das pessoas com deficiência desembocou, nesse início de século, na fase da chamada “linguagem dos direitos”. A luta pela afirmação dos direitos das pessoas com deficiência passou pelo reconhecimento de que sua situação de desigualdade e exclusão constitui verdadeira violação de direitos humanos, tendo sido superado o modelo médico da abordagem da situação das pessoas com deficiência. Esse modelo considerava a deficiência como um “defeito” que necessitava de tratamento ou cura. Quem deveria se adaptar à vida social eram as pessoas com deficiência, que deveriam ser “curadas”. A atenção da sociedade e do Estado, então, voltavam-se ao reconhecimento dos problemas de integração da pessoa com deficiência para que esta desenvolvesse estratégias para minimizar os efeitos da deficiência em sua vida cotidiana.

Já o modelo de direitos humanos (ou modelo social) vê a pessoa com deficiência como ser humano, utilizando apenas o dado médico para definir suas necessidades. A principal característica deste modelo é sua abordagem de “gozo dos direitos sem discriminação”. Fica consagrado o vetor de antidiscriminação das pessoas com deficiência, o que acarreta reflexão sobre a necessidade de políticas públicas para que seja assegurada a igualdade material, consolidando a responsabilidade do Estado e da sociedade na eliminação das barreiras à efetiva fruição dos direitos do ser humano.

No Brasil, além dos tratados já mencionados nos capítulos acima, a Constituição de 1988 possui diversos dispositivos que tratam de pessoas com deficiência:

É de competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios “cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência” (art. 23, II).

O art. 37, VIII, dispõe que “a lei reservará percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão”. No plano federal, a Lei n. 8.112 prevê até 20% da reserva de vagas (art. 5º, § 2º).

O art. 7º, XXXI proíbe “qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência”

O art. 203, V, estabelece a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

No que tange à criança e adolescente com deficiência, o art. 227, II, determina a “criação de programas de prevenção e atendimento especializado para os portadores de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de preconceitos e obstáculos arquitetônicos”.

O art. 227, § 2º, determina que a lei deve dispor sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência.

41.2. DIREITOS DAS PESSOAS COM TRANSTORNOS MENTAIS

O caso Damião Ximenes (ver Parte II, Capítulo IV, item 13.3.11 sobre os casos brasileiros da Corte IDH) demonstrou a necessidade de promoção dos direitos das pessoas com transtornos mentais. Cabe ao Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família. Para tanto, foi editada a Lei n. 10.216/2001, que zela pelos direitos e atendimento das pessoas com transtornos mentais.

Esse atendimento deve ser prestado em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais.

A finalidade permanente de qualquer tratamento é a reinserção social do paciente em seu meio. Por isso, o tratamento ambulatorial tem preferência e a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. O regime de internação deve ser estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.

Com isso, é vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais nos chamados “asilos”, que tradicionalmente no Brasil não asseguravam o tratamento integral nem os direitos das pessoas com transtornos mentais.

Por sua vez, ressaltamos que o tratamento das pessoas com transtornos mentais deve ser estritamente de acordo com os direitos humanos previstos na Constituição e nos tratados internacionais.

Assim, além de não poder incidir qualquer discriminação odiosa (quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra), são direitos específicos da pessoa portadora de transtorno mental:

a) ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde;

b) ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

c) ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

d) ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

e) ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária;

f) ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

g) receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

h) ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

i) ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Esse último direito (de tratamento em serviços comunitários) faz com que a internação psiquiátrica só possa ser realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. São os seguintes tipos de internação psiquiátrica estabelecidos na Lei n. 10.216/2001:

a) internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;

b) internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro. A internação psiquiátrica involuntária deverá, no prazo de setenta e duas horas, ser comunicada ao Ministério Público Estadual pelo responsável técnico do estabelecimento no qual tenha ocorrido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta;

c) internação compulsória: aquela determinada pela Justiça. A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.

O término da internação voluntária deve ser feito por (i) solicitação escrita do paciente ou por (ii) determinação do médico. O término da internação involuntária será feito por (i) solicitação escrita do familiar, ou responsável legal, ou quando estabelecido pelo (ii) especialista responsável pelo tratamento.

41.3. DIREITOS DA PESSOA COM TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Em 27 de dezembro de 2012 foi finalmente instituída, pela Lei n. 12.764, a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista63. O termo leigo “autismo” é substituído pelo termo mais amplo “pessoa com transtorno do espectro autista”, que permite visão mais abrangente do quadro, que abarca várias síndromes como a de Asperger, Kanner, Heller ou ainda o Transtorno Invasivo do Desenvolvimento Sem Outra Especificação.

A lei veio em boa hora para dar visibilidade a esse espectro que é mal compreendido pela maior parte dos chamados neurotípicos (e também a mídia), que usa de modo pejorativo e preconceituoso o termo “autista” para designar situação de alienação negativa. Serve a lei para promover a inclusão social da pessoa com transtorno do espectro autista, na linha de reconhecimento de direitos.

De acordo com a lei, a pessoa com transtorno do espectro autista é aquela portadora de síndrome clínica caracterizada da seguinte forma:

a) deficiência persistente e clinicamente significativa da comunicação e da interação sociais, manifestada por deficiência marcada de comunicação verbal e não verbal usada para interação social; ausência de reciprocidade social; falência em desenvolver e manter relações apropriadas ao seu nível de desenvolvimento;

b) padrões restritivos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades, manifestados por comportamentos motores ou verbais estereotipados ou por comportamentos sensoriais incomuns; excessiva aderência a rotinas e padrões de comportamento ritualizados; interesses restritos e fixos.

A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.

São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista a vida digna, a integridade física e moral, o livre desenvolvimento da personalidade, a segurança e o lazer, bem como a proteção contra qualquer forma de abuso e exploração. Para tanto, ficam assegurados o direito de acesso a ações e serviços de saúde, com vistas à atenção integral às suas necessidades de saúde, e o o acesso à educação e ao ensino profissionalizante. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, terá direito a acompanhante especializado. Apesar de a lei ser silente, entendemos que o acompanhante especializado, por ser direito fruto da inclusão social, deve ser custeado pela mantenedora escolar (pública ou privada).

Por sua vez, a pessoa com transtorno do espectro autista não será impedida de participar de planos privados de assistência à saúde em razão de sua condição de pessoa com deficiência.

A pessoa com transtorno do espectro autista não será submetida a tratamento desumano ou degradante, nem será privada de sua liberdade ou do convívio familiar, bem como não sofrerá discriminação por motivo da deficiência.

Quanto às punições específicas, a lei determina que o gestor escolar (a lei não discrimina se gestor público ou particular), ou autoridade competente, que recusar a matrícula de aluno com transtorno do espectro autista, ou qualquer outro tipo de deficiência, será punido com multa de 3 a 20 salários mínimos. Em caso de reincidência, apurada por processo administrativo, assegurado o contraditório e a ampla defesa, haverá a perda do cargo.






1 DIMITRI, Dimoulis. Vida (Direito à). In: DIMOULIS, Dimitri et al. (Orgs.). Dicionário brasileiro de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 1, p. 397-399.

2 REY MARTÍNEZ, Fernando. Eutanasia y derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008.

3 Este protocolo entrou em vigor em 11 de julho de 1991.

4 Este protocolo entrou em vigor em 1º de julho de 2003.

5 Corte Europeia de Direitos Humanos, Söering vs. Reino Unido, julgamento de 7 de julho de 1989, Série A 161.

6 Ver mais sobre o caso em ABADE, Denise Neves. Direitos fundamentais na cooperação jurídica internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.

7 Comitê de Direitos Humanos, Comentário Geral n. 18, de 1989, em especial parágrafo 7º. Ver mais sobre os comentários ou observações gerais em CARVALHO RAMOS, André de. Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

8 ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Ed., 2009, p. 346-371.

9 ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Brasília: Universidade de Brasília, 1997, em especial p. 97.

10 ROTHENBURG, Walter Claudius. Igualdade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coords.). Direitos fundamentais e estado constitucional: estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Ed., 2009, p. 346-371.

11 RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta, Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 3.

12 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

13 Obra indispensável na temática: IKAWA, Daniela. Ações afirmativas em universidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

14 Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 6-6-1994 e ratificada pelo Brasil em 27-11-1995.

15 Sexo refere-se às características biológicas de um ser: homem ou mulher. Já gênero consiste no conjunto de aspectos sociais, culturais, políticos relacionados a diferenças percebidas entre os papéis masculinos e femininos em uma sociedade. Assim, o travesti e o transexual referem-se à identidade de gênero de uma determinada pessoa.

16 Lei n. 9.099: “Art. 88. Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas”.

17 Em relação ao art. 33 (que prevê que varas comuns acumulem as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto não estiverem estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher) não há inconstitucionalidade pela violação da competência dos Estados-membros. Também o art. 41 da lei é constitucional, não ofendendo o art. 98, I, da CF (que trata dos crimes de menor potencial ofensivo), pois o legislador pode considerar que os casos que envolvem violência doméstica e familiar contra a mulher não são “crimes de menor potencial ofensivo”. Nesse sentido, cabe lembrar que também os crimes afetos à Justiça Militar não estão sob a incidência da Lei n. 9.099/95 (art. 90-A da Lei n. 9.099/95, que reza “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar”).

18 Intervenção oral no julgamento da ADC 19/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 9-2-2012.

19 “Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”

20 Sobre o sistema europeu de direitos humanos, ver CARVALHO RAMOS, André de. Processo internacional de direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

21 SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de direito constitucional, em especial “A liberdade de expressão e o problema do hate speech”. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

22 BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Disponível em: <http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/testemunhas_de_jeova.pdf>. Acesso em: 2 dez. 2012.

23 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 24. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 53. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira.

24 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The right of privacy. Havard Law Review, n. 5, p. 193-220, 1890.

25 No Brasil, ver COSTA JR., Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.

26 ROTHENBURG, Walter Claudius. O tempero da proporcionalidade no caldo dos direitos fundamentais. In: OLIVEIRA NETO, Olavo de; LOPES, Maria Elizabeth de Castro (Coords.). Princípios processuais civis na Constituição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 283-319.

27 Corte Europeia de Direitos Humanos, Von Hannover vs. Germany, Application n. 59320/00, julgamento de 24-6-2004.

28 Ver o caso Lebach em MARTINS, Leonardo (Org.). Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão. Montevidéu: Konrad Adenauer Stiftung, 2005.

29 Nessa linha, defendendo o uso da tutela inibitória para proteger o direito à privacidade, ver ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela inibitória da vida privada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.

30 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

31 Nesse sentido, MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 152-153.

32 No STF, há intensa discussão sobre a possibilidade de as autoridades fiscais, no exercício de suas atividades e autorizadas pelas LC n. 105, ordenarem a quebra do sigilo bancário. Por 6 x 4, na Ação Cautelar n. 33, o STF reconheceu essa possibilidade. Votaram a favor do poder da Receita Federal os Ministros Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Gilmar Mendes, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Ellen Gracie. Pouco tempo depois, no julgamento do RE 389.808, o Min. Joaquim Barbosa ausentou-se e o Min. Gilmar Mendes mudou de posição e o STF negou essa possibilidade (5 x 4, contra o Fisco), gerando insegurança jurídica evidente. Com a posse dos novos Ministros Luiz Fux (aposentadoria de Eros Grau) e da Min. Rosa Weber (aposentadoria de Ellen Gracie), espera-se que o tema seja, em breve, pacificado.

33 STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais: Constituição, cidadania, violência: a Lei 9.296/96 e seus reflexos penais e processuais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

34 MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 164.

35 Ernesto Miranda foi preso por suspeita de autoria do crime de estupro. Após, foi levado para interrogatório e confessou, sem assistência de advogado. Condenado, recorreu à Suprema Corte americana, que anulou o julgamento pela violação ao direito de não ser obrigado a se autoincriminar. Em um novo julgamento, Miranda foi novamente condenado. Anos mais tarde, Miranda foi assassinado. Ironicamente, o suspeito de seu assassinato foi advertido sobre seus direitos, graças a Miranda Rule.

36 As advertências hoje feitas compõem a chamada Miranda Rule. No original: “You have the right to remain silent. Anything you say can and will be used against you in a Court of law. You have the right to be speak to an attorney, and to have an attorney present during any questioning. If you cannot afford a lawyer, one will be provided for you at government expense.

37 Ver em Miranda vs. Arizona, 384 U.S. 436 (1966).

38 Redação anterior do art. 186: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”.

39 A recente Lei n. 10.792/2003 deu nova redação ao art. 186 do CPP, adequando-o ao processo penal de partes. O novo art. 186 estipula que: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”.

40 Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, MS, 0058947-33.2012.8.26.0000, Rel. Des. Guerrieri Rezende, julgado em 12-9-2012.

41 ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

42 ABADE, Denise Neves. Direito processual penal para concursos públicos federais. No prelo.

43 Por todos, ver LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, em especial p. 850-853.

44 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. Paulo M. Oliveira. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988.

45 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: a dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2005, p. 49.

46 Por todos, ver GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos. Mandados expressos de criminalização e a proteção de direitos fundamentais na Constituição brasileira de 1988. Belo Horizonte: Fórum, 2007.

47 O referido autor critica fortemente a dosimetria da pena (reclusão, 1 a 3 anos, comparando-a com a de homicídio culposo – detenção, 1 a 3 anos). JESUS, Damásio de. Código Penal anotado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 520.

48 Ver a indispensável obra de ABADE, Denise Neves. Direitos fundamentais e cooperação jurídica internacional: extradição, assistência jurídica, execução da pena e transferência de presos. São Paulo: Saraiva, 2013.

49 Por todos, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

50 A favor da limitação dos poderes instrutórios penais do juiz, fundada no princípio acusatório e da presunção da inocência, afastando a aplicação da “verdade real” em um processo penal de partes, ver, por todos, ABADE, Denise Neves. Garantias do processo penal acusatório: o novo papel do Ministério Público no processo penal de partes. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

51 Contra, defendendo os poderes instrutórios de ofício ilimitados do juiz criminal, mesmo em desfavor da Defesa, ver, por todos, BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

52 Sobre litígio estratégico de direitos humanos, ver CARDOSO, Evorah Lusci Costa. Litígio estratégico e sistema interamericano de direitos humanos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. VIEIRA, Oscar Vilhena; ALMEIDA, Eloísa Machado de. Advocacia estratégica em direitos humanos: a experiência da Conectas. Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 8, n. 15, p. 187 e s., dez. 2011.

53 CARVALHO RAMOS, André de. Direitos humanos em juízo: comentários aos casos contenciosos e consultivos da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2001.

54 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1050.

55 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1053.

56 Por todos, ver MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança e ações constitucionais (atualizado por Arnoldo Wald e Gilmar Ferreira Mendes). 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2012.

57 LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

58 WEICHERT, Marlon Alberto. Saúde e federação na Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

59 Art. 1º da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

60 Art. 1º, 1, da Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, incorporada internamente pelo Decreto n. 3.956/2001. Ver ainda a Standard Rules em Normas Uniformes sobre Igualdade de Oportunidades para as Pessoas Portadoras de Deficiência da ONU (Resolução AG.48/96, de 20-12-1993).

61 Ver em FONSECA, Ricardo Tadeu Marques da. A ONU e seu Conceito Revolucionário de Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.ampid.org.br/Artigos/Onu_Ricardo_Fonseca.php>. Acesso em: 26 dez. 2008.

62 Art. 5º, § 3º: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (Incluído pela EC n. 45, de 2004).

63 No Brasil, ver a luta da sociedade civil pela promoção da dignidade das pessoas com transtorno do espectro autista em <http://www.autismoerealidade.org/>.