V
— Quer dizer que estamos presos? — perguntou a senhora Adriana.
Chovia a cântaros, e com o repicar das grossas gotas no zinco do teto quase não se ouvia a sua voz. Sentada no chão, em cima de uma pele de carneiro, olhava fixamente para o cabo que se havia acomodado num canto do escritório. Dionisio permanecia em pé, ao seu lado, com uma expressão aérea, como se nada do que estava acontecendo à sua volta lhe dissesse respeito. Tinha os olhos injetados e o olhar mais vidrado que de costume. O guarda Carreño, também em pé, se apoiava no armário-arsenal.
— Não tenho outro remédio, entenda-me — confirmou Lituma. Aqueles temporais andinos, com raios e trovões, não o deixavam feliz; nunca se acostumara com eles. Sempre imaginava que iam aumentar, aumentar, até o cataclismo. Também não ficava feliz com ter ali, detidos, o cantineiro beberrão e aquela bruxa. — O melhor seria que facilitasse as coisas para nós, dona Adriana.
— E por que estamos presos? — insistiu ela, sem se alterar. — O que fizemos?
— A senhora não disse a verdade sobre Demetrio Chanca, ou, melhor dizendo, Medardo Llantac. Era este o nome do capataz, não é mesmo? — Lituma tirou o radiograma que recebera de Huancayo como resposta à sua consulta e passeou-o diante da cara da mulher. — Por que não me disse que ele era o prefeito de Andamarca, o tal que se salvou da matança que os senderistas fizeram? A senhora sabia por que esse homem viera se esconder aqui.
— Naccos inteira sabia — disse a mulher, tranquilamente. — Por azar.
— E por que não me contou quando interroguei a senhora na outra vez?
— Porque não me perguntou — replicou a mulher, com a mesma calma. — Pensei que o senhor também soubesse.
— Não sabia, veja só. — Lituma levantou a voz. — Mas agora sei, e também sei que, como discutiu com ele, a senhora tinha uma forma fácil de se vingar do pobre capataz, entregando-o aos terrucos.
Dona Adriana ficou olhando um bom tempo para ele, com uma ironia compassiva, examinando-o com seus olhos saltados. Por fim começou a rir.
— Eu não tenho tratos com os senderistas — exclamou, com sarcasmo. — Esses aí gostam menos de nós que de Medardo Llantac. Não foram eles que o mataram.
— Quem foi, então?
— Já falei. O destino.
Lituma teve vontade de cair de pancada, nela e no bêbado do marido. Não, não estava zombando dele. Era uma doida de merda, mas estava totalmente a par do que acontecera; era cúmplice, com certeza.
— Pelo menos deve saber que os cadáveres daqueles três estão apodrecendo num túnel da mina abandonada, não é mesmo? Seu marido não falou? Porque, a mim, ele contou isso. E poderia confirmar, se não estivesse caindo de bêbado.
— Não me lembro de ter contado coisa nenhuma — divagou Dionisio, fazendo caretas e imitando um urso. — Devia estar meio alto. Agora, pelo contrário, estou em plena forma e não me lembro de ter falado nada com o senhor, senhor cabo.
Riu, torcendo um pouco o corpo molengo, e tornou a se distrair, adotando uma atitude impassível e olhando os objetos do posto com interesse. Carreño foi sentar-se no banco, atrás da mulher.
— Todas as mãos de Naccos apontam para vocês — afirmou, mas a senhora Adriana não se virou para fitá-lo. — Todos dizem que foram vocês os inspiradores do que aconteceu com eles.
— E o que aconteceu com eles? — A mulher soltou uma gargalhada provocativa.
— É o que eu gostaria que nos contasse, dona Adriana — disse Lituma. — Esqueça os diabos, os espíritos malignos, a magia negra e a branca, esqueça essas histórias enfeitiçantes que conta para os peões. Conte-me simplesmente o que aconteceu com esses três homens. Por que todos murmuram no acampamento que a senhora e o seu marido são os causadores do que lhes aconteceu?
A mulher tornou a rir, sem alegria, com um laivo de desprezo. Assim, em cima da pele, deformada pela posição e pelas roupas folgadas, havia nela qualquer coisa de sinistro e inquietante. Não parecia assustada com o que podia lhe acontecer. Lituma pensou que a mulher estava tão certa do seu destino que até se dava ao luxo de compadecer-se dos movimentos de cegos que ele e seu adjunto davam. E, quanto ao cantineiro, já se havia visto um cínico igual? Agora nem se lembrava mais de que quis vender o segredo; tinha até a desfaçatez de negar que tivessem conversado ao lado da mina abandonada e que ele dera a entender, de maneira inequívoca, que os desaparecidos estavam no fundo de um túnel. A partir de então, até a chegada do radiograma de Huancayo, Lituma e Tomasito haviam descartado os terrucos como responsáveis pelos desaparecimentos. Mas, agora, hesitavam de novo. Os terrucos deviam estar procurando aquele prefeito de Andamarca, mesmo com nome falso, que dúvida. De maneira que... Em todo caso, todos os dedos apontavam para este casal, como disse Tomasito. Porque, pouco a pouco, interceptando uma palavra de um peão e de outro um pouco mais, e relacionando o que tinha sido insinuado por uns e por outros, não havia dúvida: o cantineiro e sua mulher tinham muito a ver e, em todo caso, sabiam perfeitamente o que acontecera. O aguaceiro continuava, cada vez mais forte.
— O senhor precisa de um culpado para esses desaparecimentos — exclamou Dionisio de repente, voltando ao mundo real para encarar Lituma. — Está indo pelo caminho errado, senhor cabo. Não temos nada a ver. Adriana pode ler o destino das pessoas, mas não o decide.
— O que houve com eles está além de vocês e de nós — sua mulher cortou-lhe a palavra. — Já lhe disse. Destino, é assim que se chama. Existe, por mais que muita gente não goste. E, além do mais, o senhor sabe muito bem que esses falatórios dos peões não valem nada.
— Não é bem assim — disse, atrás dela, Carreño. — A esposa de Demetrio, ou melhor, de Medardo Llantac, declarou, antes de sair de Naccos, que na última vez que viu o marido ele lhe disse que ia beber na sua cantina.
— E todos os peões e capatazes não vêm ao nosso estabelecimento? — irrompeu Dionisio, acordando de novo. — Aonde mais podem ir? Há alguma outra cantina em Naccos?
— Para dizer a verdade, não temos acusações concretas contra vocês — reconheceu Lituma. — Certo. Porque eles sabem pela metade ou porque têm medo. Mas, quando pressionamos um pouco, todos insinuam que vocês têm alguma participação nesses desaparecimentos.
Dona Adriana voltou a rir, com seu riso amargo e desafiante. Fez uma careta que tomou toda a sua boca, como esses rostos que os adultos deformam para divertir as crianças.
— Eu não meto ideias na cabeça de ninguém — murmurou. — Eu tiro de dentro as ideias que eles têm e boto na frente dos seus olhos. Acontece que nenhum desses índios gosta de se olhar no espelho.
— Eu só os ajudo a esquecer suas tristezas, dando-lhes de beber — voltou a interromper Dionisio, pousando seus olhos aquosos e vibráteis em Lituma. — O que seria dos peões se não tivessem sequer a cantina para afogar suas mágoas em álcool.
Estalou um raio, ao longe, seguido de um estrondo. Os quatro ficaram em silêncio, até que o ruído cessou e só restava o barulhinho miúdo da chuva. Toda a encosta pela qual se descia ao acampamento era um lodaçal, atravessado por múltiplos arroios. Pela porta entreaberta, Lituma via cortinas de água e um fundo de nuvens sombrias. O acampamento e os morros dos arredores haviam desaparecido numa mancha cinzenta. E eram três da tarde.
— É verdade o que se fala da senhora, dona Adriana? — exclamou de repente Carreño. — Que, quando era jovem, a senhora e seu primeiro marido, um mineiro com um nariz deste tamanho, mataram um pishtaco?
Dessa vez a bruxa deu meia-volta para olhar o guarda. Ficaram medindo-se um bom tempo, em silêncio, e, por fim, Tomasito piscou e baixou a vista.
— Me dê a sua mão, rapaz — murmurou a senhora Adriana, aplacada.
Lituma viu que o guarda retrocedia e esboçava um sorriso, mas no mesmo instante ficou sério. Dionisio o observava, divertido, cantarolando em voz baixa. Dona Adriana estava com a mão estendida para ele, esperando. Sua cabeça, vista de costas, parecia um espanador alvoroçado. O adjunto perguntou-lhe com os olhos o que devia fazer. Lituma encolheu os ombros. Tomasito deixou que a mulher colocasse sua mão direita entre as dela. O cabo avançou um pouco a cabeça. Dona Adriana tocava e limpava a mão do guarda e aproximou-a dos seus olhos grandes e saltados: Lituma pensou que iam sair das órbitas e rolar pelo chão do barraco. Tomasito deixava-se tocar, pálido, olhando para ela com desconfiança. “Eu devia soltar logo um palavrão e acabar com esta palhaçada”, pensava Lituma, imóvel. Dionisio voltara a se isolar em algum sonho e, com os olhos entrecerrados, cantarolava baixinho uma muliza dessas que os tropeiros entoam para distrair o tédio nos seus longos percursos. Por fim, a bruxa soltou a mão do guarda e bufou, como se tivesse feito um grande esforço.
— Então são mágoas de amor — murmurou. — Seu rosto já me dizia isso, rapaz.
— Ora, isso é o que todas as adivinhadoras do mundo sempre adivinham — disse Lituma. — Vamos falar de coisas sérias, dona Adriana.
— E você tem um coração deste tamanho — prosseguiu ela, como se não houvesse ouvido Lituma falar; havia separado as mãos modelando um coração gigante. — Que sorte a dela, ser amada assim.
Lituma esboçou um risinho.
— Ela está tentando amolecer você, Tomasito, não deixe — murmurou. Mas o guarda não ria. Tampouco o ouvia. Muito sério, olhava para a mulher, fascinado. Ela tornou a segurar sua mão e a massageá-la, e examinou-a outra vez de perto, com seus olhos exagerados. O cantineiro continuava entoando a mesma canção, em voz baixa, balançando o corpo e saltitando ao compasso da melodia, indiferente a todo o resto.
— É um amor que lhe traz desgraças, que faz você sofrer — disse dona Adriana. — Seu coração sangra toda noite. Mas pelo menos isso o ajuda a viver.
Lituma não sabia o que fazer. Sentia-se incomodado. Não acreditava em bruxas. Muito menos nos falatórios e disparates sobre Adriana que corriam no acampamento e na comunidade de Naccos, como a história de que ela e o seu primeiro marido, um mineiro, tinham matado um pishtaco com as próprias mãos. Mas sempre se sentia desorientado e confuso quando se falava das coisas do além. Será que se podia adivinhar a história das pessoas nas linhas da mão? Nas cartas do baralho? Nas folhas de coca?
— Você vai ter um final feliz, não se desespere — concluiu a senhora Adriana, soltando a mão do guarda. — Não sei quando. Talvez precise sofrer um pouco mais. Aqueles lá são uns mortos de fome, nunca se cansam de pedir mais e mais. Mas o que agora fez sangrar, no final acaba bem.
Bufou outra vez e virou-se para Lituma.
— Não está querendo nos agradar para nos fazer esquecer os desaparecidos, dona?
A bruxa soltou uma risadinha outra vez.
— Eu não leria a sua sorte nem que me pagasse, cabo.
— Nem eu deixaria, tampouco. Puta merda, e o que está acontecendo com esse aí.
Empolgado com sua própria fantasia, elevando o canto que entoava e com os olhos fechados, Dionisio havia começado a dançar sem sair do lugar, num estado de grande concentração. Quando o guarda Carreño pegou em seu braço e o sacudiu, o cantineiro parou e abriu os olhos, passando sobre eles um olhar assombrado, como se os visse pela primeira vez.
— Não comece a bancar o bêbado, você não está tão alto assim — repreendeu-o Lituma. — Vamos voltar ao assunto. Podem me dizer, afinal, o que aconteceu com aqueles sujeitos? Depois deixo vocês irem embora.
— Nem eu nem meu marido vimos nada — disse ela, endurecendo os olhos e a voz. — Vá e descubra a verdade com quem nos acusou de inspiradores.
— De qualquer maneira, o que aconteceu já passou e não tem mais remédio, senhor cabo — salmodiou Dionisio. — Entenda que é inútil. Não vá se arrebentar contra o destino, admita que é em vão.
De súbito parou de chover e, no mesmo instante, o exterior se iluminou com um sol de meio-dia. Lituma podia ver um arco-íris coroando os morros que rodeavam o acampamento, em cima do bosquezinho de eucaliptos. Toda a terra, cheia de poças e riachos que brilhavam, parecia feita de azougue. E lá estava, no horizonte da cordilheira, onde as pedras e o céu se tocavam, aquela coloração estranha, entre violeta e roxa, que ele vira reproduzida em tantas saias e mantos das índias, nos sacos de lã que os camponeses penduravam nas orelhas das lhamas, e que para ele era a cor particular dos Andes, desta cordilheira tão misteriosa e tão violenta. Carreño ficara pensativo, quase ausente, com as palavras da bruxa. Claro, Tomasito: ela disse o que você queria ouvir.
— Onde vai nos deixar presos? — Dona Adriana lançou um olhar depreciativo para o barracão. — Aqui? Vamos dormir nós quatro juntos, uns em cima dos outros?
— Bem, eu sei que não temos uma delegacia de polícia à sua altura — disse Lituma. — A senhora vai ter que se conformar com o que há. Este posto não está à nossa altura, tampouco. Não é, Tomasito?
— Certo, meu cabo — murmurou o guarda, acordando.
— Deixe, pelo menos, Dionisio ir embora. Se não, quem vai abrir a cantina. Vão nos roubar tudo, e aquela meia dúzia de cacarecos é tudo o que nós temos.
Lituma examinou-a outra vez, intrigado. Gorda, amorfa, imersa em seus trapos poeirentos de brechó, só com os quadris protuberantes recordando ao mundo que aquilo era uma mulher, a bruxa falava sem a menor emoção, como se tivesse que cumprir uma formalidade, revelando que no fundo não se preocupava com o que pudesse lhe ocorrer. Dionisio demonstrava ainda mais desdém que ela pela própria sorte. Voltara a entrefechar os olhos e a desligar-se do mundo. Como se ambos estivessem muito acima daquilo tudo. Ainda bancavam os superiores, puta merda.
— Vamos fazer um trato — disse, afinal, Lituma, derrotado por um súbito desânimo. — Vocês me dão sua palavra de que não põem os pés fora do acampamento. Nem mesmo vinte metros. Com esta condição, vou permitir que permaneçam no seu negócio, enquanto investigamos.
— E para onde iríamos? — entreabriu os olhos Dionisio. — Se nós pudéssemos, já teríamos partido. Aqueles caras não estão lá, escondidos nas montanhas, com as pedras prontas? Naccos se transformou numa prisão, e vocês e nós somos os prisioneiros. Ainda não entendeu, senhor cabo?
A mulher se levantou com grande esforço, apoiando-se no marido. E, sem se despedir dos guardas, os dois saíram do barracão. Afastaram-se em passinhos curtos, escolhendo as pedras ou elevações onde houvesse menos lama.
— Você ficou gelado com o que a bruxa lhe falou, Tomasito.
Lituma ofereceu um cigarro ao rapaz. Fumaram, vendo as silhuetas de Dionisio e Adriana diminuírem e desaparecerem ladeira abaixo.
— Ficou impressionado com a história da grande mágoa de amor? — Lituma soprou uma baforada de fumaça. — Ora, alguns mais, outros menos, mas todo mundo tem a sua. Ou você acha que é o único que sofre por causa de mulher?
— O senhor me disse que nunca passou por isso, meu cabo.
— Bem, mas tive meus casos — disse Lituma, sentindo-se diminuído. — Só que os meus acabam logo. Com piranhas, quase sempre. Uma vez, em Piura, naquela Casa Verde de que lhe contei, eu quase enlouqueci por uma moreninha. Mas, para dizer a verdade, nunca cheguei ao extremo de querer me matar por causa de uma mulher.
Fumaram durante um bom tempo, em silêncio. Lá embaixo, ao pé da encosta, uma figurinha começava a subir pela trilha, na direção do posto.
— Acho que nunca saberemos o que aconteceu com aqueles três, Tomasito. Na verdade, por mais que o pessoal do acampamento dê a entender que Dionisio e dona Adriana estão envolvidos, eu não consigo engolir essa história.
— Também tenho dificuldade para acreditar, meu cabo. Mas então como se explica que todos os peões terminem acusando os dois.
— A explicação é que os serranos são supersticiosos e acreditam em diabos, pishtacos e mukis — disse Lituma. — E como Dionisio e a mulher são meio bruxos, o povo os relaciona com os desaparecimentos.
— Eu não acreditava em nada disso até agora — tentou brincar o guarda. — Mas, depois do que dona Adriana leu na minha mão, prefiro acreditar. Gostei daquela história de coração grande.
Lituma já podia distinguir a pessoa que estava subindo: tinha um capacete de mineiro que emitia reflexos na tarde agora luminosa, com um céu radiante e sem nuvens. Quem diria que poucos minutos antes estava cheio de trombas-d’água, trovões, negras nuvens carregadas?
— Ah, porra, a bruxa conquistou você — Lituma prosseguiu a brincadeira. — Não foi você quem fez desaparecer aqueles três, Tomasito?
— Quem sabe, meu cabo.
Acabaram rindo, nervosos, dando umas risadinhas insinceras. Enquanto isso, vendo o homem do capacete já bem próximo, Lituma não conseguia tirar da cabeça Pedrito Tinoco, o mudinho que fazia biscates, que limpava os barracões, que tinha visto a matança de vicunhas em Pampa Galeras com os próprios olhos. Desde que Tomasito lhe contou a sua história, não lhe saía mais da cabeça. Por que sempre se lembrava dele nesse lugar, entre o parapeito e aquelas rochas cinza, lavando roupa? O homem de capacete tinha uma pistola na cintura e um cassetete parecido com os da polícia. Mas estava à paisana, de jeans e com um jaquetão em cujo antebraço direito se distinguia um bracelete negro.
— Não há dúvida de que há um monte de gente aqui que sabe muito bem o que aconteceu, mas não quer abrir a boca. Os únicos idiotas que estão nas nuvens somos você e eu. Não se sente meio bobalhão aqui em Naccos, Tomasito?
— Eu me sinto é indignado. Claro que todo mundo sabe alguma coisa, mas mentem e querem jogar a culpa no cantineiro e na sua mulher. Acho até que combinaram tudo para nos dar a entender que foram Dionisio e dona Adriana que inventaram a coisa. Assim nos despistam e se livram de qualquer responsabilidade. Não seria melhor enterrar este caso, meu cabo?
— Não é que eu tenha muito interesse em esclarecer o caso, Tomasito. Como trabalho, quero dizer. Mas sou muito curioso. Cismei de saber o que aconteceu com eles. E depois do que você me contou do mudinho e do tenente Pancorvo, não vou dormir sossegado até descobrir.
— O povo está assustado, já notou? Na cantina, na obra, nas equipes de trabalho. Até entre os índios da comunidade que ainda não saíram daqui. O clima está tenso, como se fosse acontecer alguma coisa. Pode ser por causa do boato de que a estrada vai parar, todo mundo vai ficar sem trabalho. E, também, tanta matança por todo lado. Os nervos estão à flor da pele. O ar está pesado. Não sente?
Sim, Lituma sentia. Os rostos dos peões estavam tensos, os olhos se mexiam da direita para a esquerda tentando surpreender um inimigo à espreita, as conversas na cantina ou entre os barracos eram entrecortadas, lúgubres e se interrompiam com a sua presença. Seria por causa dos desaparecimentos? Estariam assustados porque um deles podia vir a ser o quarto?
— Boa tarde, cabo — disse o homem de capacete de mineiro, fazendo um gesto de saudação. Era um mestiço alto e forte, com a barba crescida. Usava botas de mineiro, com a sola bem larga, enlameadas até os tornozelos. Tentou limpá-las antes de entrar no barracão, sapateando forte na viga da soleira. — Venho de La Esperanza. Para buscar o senhor, cabo Lituma.
La Esperanza era uma mina de prata, a quatro horas de marcha, a oeste de Naccos. Lituma nunca estivera lá, mas sabia que vários peões do acampamento eram mineiros daquela empresa em gozo de licença.
— Esta noite os terrucos atacaram e fizeram estragos — explicou, tirando o capacete e sacudindo o cabelo comprido, todo oleoso. Estava com a jaqueta e a calça encharcadas. — Mataram um dos meus homens e feriram outro. Sou o chefe da segurança de La Esperanza. Levaram os explosivos, o dinheiro dos salários e mil coisas mais.
— Sinto muito, mas não posso ir — desculpou-se Lituma. — Somos nós dois aqui no posto, eu e o meu adjunto. Estamos com um problema sério para resolver. Tenho que pedir instruções ao comando de Huancayo.
— Os engenheiros já pediram — replicou o homem, com todo respeito. Tirou um papel dobrado do bolso e lhe entregou. — Falaram pelo rádio com seus chefes. Em Huancayo disseram que o senhor devia assumir. La Esperanza está dentro da sua jurisdição.
Lituma leu e releu, desanimado, o telegrama. Dizia mesmo isso. Naquela mina estavam mais bem equipados do que neste acampamento imundo. Aqui ele estava sem comunicação, cego e surdo para tudo o que acontecia no mundo externo. Porque o rádio do acampamento funcionava tarde, mal e nunca. Quem teve a absurda ideia de montar um posto da guarda civil em Naccos? Deveriam tê-lo instalado em La Esperanza. Mas, se fosse lá, ele e Tomasito deveriam ter enfrentado os terrucos. Estavam pertinho, então. A corda apertava mais um pouquinho o pescoço.
Carreño tinha começado a fazer um café no fogareiro. O homem da mina se chamava Francisco López. Deixou-se cair no couro em que dona Adriana estivera sentada. O bule começou a borbulhar.
— Não há mais nada que o senhor possa fazer — explicou López. — Eles deram o fora, naturalmente, levando o botim. Mas precisamos registrar a ocorrência, para que o seguro indenize a companhia.
Tomás encheu as xícaras de metal com café fervendo e distribuiu-as.
— Se quiser, dou um pulo até La Esperanza, meu cabo.
— Não, vou eu mesmo. Você fica encarregado do posto. E, se eu demorar, reze um pai-nosso por mim.
— Não há perigo, cabo — tranquilizou-o Francisco López. — Eu vim de jipe. Tive que deixá-lo onde termina a trilha. Não é tão longe, menos de uma hora caminhando rápido. Só que o aguaceiro me pegou. Posso trazê-lo de volta assim que terminar a papelada.
Francisco López trabalhava havia três anos em La Esperanza, sempre como segurança. Aquele era o segundo assalto que sofriam. No primeiro, seis meses antes, não houve vítimas, mas também levaram explosivos, roupa, material da despensa e todo o conjunto de primeiros socorros da mina.
— A sorte é que os engenheiros conseguiram se esconder — explicou o mineiro, sorvendo o café aos pouquinhos. — E também um gringo amigo deles, que estava lá de visita. Subiram nos reservatórios de água. Se os encontrassem, já estariam frios. Engenheiros, administradores e executivos nunca se livram. E muito menos os estrangeiros, claro.
— Não se esqueça dos policiais — disse Lituma, com uma voz cavernosa.
Francisco López brincou:
— Eu não queria falar, para não meter medo. Em compensação, não fazem nada com os trabalhadores, a menos que os considerem pelegos.
Falava com a maior naturalidade, como se fosse normal que essas coisas acontecessem, como se sempre houvesse sido assim. Talvez ele tivesse razão, puta merda.
— Com tudo o que tem acontecido, estão falando em fechar La Esperanza — continuou López, soprando a xícara e voltando a beber. — Os engenheiros não querem mais ir para lá. E as taxas revolucionárias aumentam muito os custos.
— Se pagam as taxas, por que eles vão assaltar? — disse Lituma.
— É o que todos nós perguntamos — concordou Francisco López. — Não tem lógica.
Continuava soprando a xícara e bebendo seu café aos golinhos, como se aquele diálogo fosse, também, a coisa mais normal do mundo.
Ter cabelos cor de palha e olhos claros e líquidos era um pesadelo para Casimiro Huarcaya na sua infância. Porque no vilarejo andino de Yauli, onde nasceu, todos eram morenos e, sobretudo, porque seus próprios pais e irmãos também tinham cabelos pretos, rostos morenos e olhos escuros. De onde saíra esse albino na família Huarcaya? As brincadeiras que seus companheiros faziam na escolinha rural levaram Casimiro muitas vezes a brigar, porque, mesmo tendo um bom temperamento, o sangue lhe subia à cabeça toda vez que, para deixá-lo furioso, sugeriam que seu pai não era o seu pai, e sim alguém de fora que tinha passado por Yauli, ou o próprio diabo, que, como se sabe nos Andes, quando vem fazer suas maldades na terra às vezes se corporifica num forasteiro meio gringo que manca.
Casimiro sempre desconfiou, além do mais, que seu próprio pai, o oleiro Apolinario Huarcaya, também tinha suspeitas sobre sua origem. Porque, por um lado, ele sabia que havia causado desavenças entre seus pais e, por outro, porque Apolinario, que tratava bem os seus irmãos e irmãs, não apenas lhe dava sempre as tarefas mais pesadas, como punia com chicotadas qualquer erro seu.
Mas, apesar das piadas dos colegas e do mau relacionamento com a família, Casimiro cresceu sem complexos, forte, hábil com as mãos, esperto e amante da vida. Desde que fez uso da razão, ansiava crescer logo para sair de Yauli rumo a uma cidade grande, como Huancayo, Pampas ou Ayacucho, onde seus cabelos cor de palha e seus olhos claros não atrairiam tanto a curiosidade das pessoas.
Pouco antes de fazer quinze anos, fugiu do vilarejo com um caixeiro-viajante a quem sempre ajudava, quando aparecia em Yauli, a carregar e descarregar as mercadorias e a vendê-las no mercado. Don Pericles Chalhuanca tinha um caminhãozinho do ano de Matusalém, mil vezes emendado e remendado, com o qual percorria todas as comunidades e vilarejos rurais do centro, vendendo produtos da cidade — remédios, ferramentas da roça, roupa, louça, sapatos — e comprando queijo, ollucos, favas, frutas, tecidos e porongos, que depois levava para as cidades. Além de comerciante, don Pericles era um mecânico experiente e com ele Casimiro aprendeu os segredos do caminhão de cor e a consertá-lo toda vez — várias por viagem — que enguiçava nos caminhos atrozes da serra.
Ao lado de don Pericles, era totalmente feliz. O velho comerciante o deslumbrava contando sua vida aventureira, de galo impenitente em aviário alheio, com mulheres seduzidas, grávidas e abandonadas em inúmeros distritos, vilas e localidades de Apurímac, Huancavelica, Ayacucho, Cusco e Cerro de Pasco, departamentos que, envaidecia-se, “semeei com bastardos e bastardas do meu sangue”. Indicava alguns deles a Casimiro no decorrer de suas viagens, com uma piscadela maliciosa. Muitos cumprimentavam respeitosamente o mercador, beijando sua mão e chamando-o de “padrinho”.
Mas o que o garoto mais apreciava era a vida à intempérie que levavam, sem horários nem rumos predeterminados, à mercê das inclemências ou benesses do tempo, das feiras e festas de santo padroeiro, das encomendas que recebiam e dos chiliques do caminhãozinho, fatores que decidiam seu destino cotidiano, seus itinerários, as noites que pernoitavam em cada lugar. Don Pericles tinha uma residência rural, estável e sem rodas, em Pampas, que compartilhava com uma sobrinha casada e com filhos. Quando iam para lá, Casimiro se alojava na casa, como se fosse da família. Mas na maior parte do tempo vivia no caminhão, onde, no meio da carga e protegido por uma lona grossa, fez um refúgio com couros de boi. Se caísse chuva, ia dormir no barraco ou embaixo do caminhão.
O negócio não era grande coisa, pelo menos para Pericles e Casimiro, pois o caminhão consumia todo o lucro, sempre precisando comprar peças e recauchutar pneus, mas dava para ir sobrevivendo. Nos anos que passou ao lado de don Pericles, Casimiro chegou a conhecer como a palma da mão todo o centro dos Andes, seus vilarejos, suas comunidades, suas feiras, seus abismos e vales, e, também, todos os segredos do negócio: onde comprar o melhor milho e para onde levar fios e agulhas, onde esperavam as lâmpadas e os percais como maná do céu, e que fitas, broches, colares e braceletes atraíam de maneira irresistível a cobiça das moças.
Don Pericles o tratava a princípio como aprendiz, depois como filho, afinal como sócio. À medida que envelhecia e o rapaz se tornava homem, o peso do trabalho foi se deslocando para este até que, com o passar dos anos — Casimiro já era o único que dirigia e decidia as compras e vendas —, don Pericles passou a ser o diretor técnico da sociedade.
Quando o ancião teve um ataque cerebral que o deixou paralisado e sem fala, estavam, por sorte, em Pampas. Por isso puderam levá-lo ao hospital e salvá-lo da morte. Mas don Pericles não podia mais viajar e a partir de então Casimiro teve que fazê-lo sozinho. Continuou por um bom tempo, no caminhãozinho imortal, até que um dia teve que desistir porque a sobrinha e os netos de don Pericles lhe exigiam somas fora da realidade para continuar a usá-lo. Devolveu, então, o veículo e, embora tenha visitado regularmente don Pericles até a sua morte, levando-lhe algum presentinho sempre que passava por Pampas, desde então foi dono e senhor do seu negócio. Era um rapagão forte e curtido, com amigos em toda parte, trabalhador e alegre. Podia perfeitamente passar a noite bebendo e dançando nas festas dos povoados, respondendo com piadas engenhosas às piadas dos bêbados sobre o seu cabelo amarelo, e na manhã seguinte abrir seu negócio no mercado antes de qualquer outro comerciante. Tinha substituído o caminhãozinho por uma caminhonete de terceira mão comprada de um agricultor de Huancayo, a quem pagava pontualmente as prestações.
Certa vez, enquanto vendia fivelas e brincos de bijuteria num pequeno povoado de Andahuaylas, viu uma garota que parecia estar esperando para falar com ele a sós. Era jovem, usava tranças e tinha um rosto viçoso e assustadiço como um bichinho. Pensou que não era a primeira vez que a via. Num momento em que ficou sem clientes, a garota se aproximou da carroçaria da caminhonete, onde Casimiro estava sentado.
— Já sei — disse ele, rindo. — Você quer um desses broches e não tem dinheiro.
Ela negou com a cabeça, atrapalhada.
— Você me deixou grávida, papay — sussurrou, em quéchua, baixando os olhos. — Não está lembrando de mim, por acaso?
No meio de brumas, Casimiro recordou alguma coisa. Tinha sido esta a menina que, na festa do Gabriel Arcanjo, subiu com ele na caminhonete? Mas nesse dia ele havia bebido muita chicha, e não tinha certeza de que este rosto fosse aquele já apagado na memória.
— E quem falou que fui eu — respondeu, com maus bofes. — Com quantos você deve ter ficado nessas festas. Pensa que vai me fazer de bobo? Que vou assumir um filho sei lá de quem?
Não pôde continuar a vociferar porque a garota saiu correndo. Casimiro lembrou que don Pericles aconselhava, em casos assim, sentar-se ao volante e arrancar. Mas poucas horas depois, quando fechou o negócio, começou a perambular por ali de um lado para o outro, procurando a garota. Estava contrariado e com vontade de fazer as pazes com ela.
Encontrou-a na estrada, à saída do vilarejo, numa alameda de salgueiros e tunas alvoroçada pelo coaxar das rãs. Ela estava voltando para sua vila, muito magoada. Afinal, Huarcaya acalmou-a, convenceu-a de subir na caminhonete e levou-a até os arredores da comunidade onde vivia. Consolou-a como pôde e lhe deu um pouco de dinheiro, aconselhando-a a procurar uma dessas parteiras que também fazem abortos. Ela assentiu, com os olhos úmidos. Chamava-se Asunta e quando ele perguntou sua idade, respondeu dezoito, mas ele calculou que estava aumentando.
Voltou a passar por lá um mês depois e, indagando, chegou até a casa da garota. Morava com os pais e uma nuvem de irmãos, que o receberam com desconfiança, calados. O pai, dono do seu próprio terreno dentro da comunidade, tinha sido organizador das festas. Entendia espanhol, mas respondia às perguntas de Casimiro em quéchua. Asunta não tinha encontrado ninguém para lhe dar aquelas infusões, mas disse a Huarcaya que não se preocupasse. Seus padrinhos, de um distrito vizinho, lhe disseram que tivesse o filho e que podia ir morar com eles se a expulsassem de casa. Parecia resignada com o que estava acontecendo. Ao despedir-se, Casimiro lhe deu um par de sapatos de meio salto e um xale florido que ela agradeceu beijando sua mão.
Na vez seguinte que passou pelo lugar, Asunta não estava e a família não quis falar dela. O pai recebeu-o com mais hostilidade que na primeira visita e lhe disse à queima-roupa que não voltasse mais. Ninguém sabia ou quis lhe explicar onde moravam os padrinhos de Asunta. Casimiro pensou que fizera tudo o que estava ao seu alcance por aquela menina e que não devia mais perder o sono por ela. Se tornasse a encontrá-la, ele a ajudaria.
Mas sua vida não voltou a ser o que era. De repente, aqueles caminhos, aquelas serras, aqueles vilarejos que ele percorreu durante tantos anos com don Pericles e depois sozinho, sem nunca sentir que corria qualquer perigo além de furar um pneu ou enguiçar nas estradas ruins, estavam cada vez mais violentos. Casimiro começou a encontrar torres elétricas dinamitadas, pontes explodidas, estradas obstruídas por pedras e troncos, inscrições ameaçadoras e panos vermelhos nos morros. E grupos armados aos quais sempre tinha que dar alguma coisa do que levava: roupas, mantimentos, facas e facões. Começaram a aparecer pelos caminhos, também, patrulhas de sinchis e de soldados. Examinavam seus papéis e saqueavam sua caminhonete, como os sublevados. Nos vilarejos se queixavam de abusos, de roubos, de matanças, e em certas regiões começou um verdadeiro êxodo. Famílias, comunidades inteiras abandonavam suas terras, casas, animais, rumo às cidades da costa.
Em pouco tempo o negócio sobrevivia com muita dificuldade e um belo dia Casimiro percebeu que estava perdendo dinheiro. Por que continuava viajando, comprando e vendendo? Talvez porque tinha metido na cabeça que desse jeito encontraria Asunta. Aquilo foi se transformando de desafio e passatempo em obsessão. Tanto perguntou por ela, nos lugares aonde ia, que afinal as pessoas começaram a achá-lo meio doido e se divertiam dando pistas falsas ou contando-lhe fantasias.
Voltou duas vezes ao vilarejo da garota, tentando conseguir notícias do seu paradeiro com a família. O pai o xingou e jogou-lhe pedras. Mas uma irmã de Asunta veio ao seu encontro na estrada e contou que os padrinhos da garota moravam em Andahuaylas e se chamavam Gallirgos. No entanto, em Andahuaylas ninguém tinha notícias de uma família com esse nome. Na segunda vez que passou pela casa de Asunta, o pai havia falecido e a mãe e os filhos partido para Ica, com outras famílias de colonos. Houvera uma matança na região e todos viviam aterrorizados.
Por que procurava Asunta com tanta perseverança? Ele se interrogava e não sabia responder. Seria pelo possível filho ou filha, que devia estar agora com uns três anos? Mesmo já sem muitas esperanças de encontrá-la, continuava perguntando por ela, aqui e ali, como um rito, sabendo que só ia receber respostas negativas. Devia ter ido para Lima, como tantas outras moças da serra. Na certa estava trabalhando de empregada doméstica em alguma casa, ou como operária, ou então se casara e seu filho ou filha já tinha irmãos.
Já havia passado muito tempo e Casimiro Huarcaya pensava cada vez menos em Asunta quando chegou, numa noite de bebedeira generalizada — era o início das festas do povoado —, à localidade de Arcca, ao sul do Ayacucho. Ao sair da hospedaria onde tinha jantado, viu-se cercado por um grupo hostil de homens e mulheres que o xingavam, apontando para seu cabelo e chamando-o de nacaq, pishtaco. Estavam bêbados demais para tentar fazê-los raciocinar, explicando que nem todos os homens que tinham a desgraça de ter cabelos claros viviam, mundo afora, à procura de vítimas humanas para roubar-lhes o sebo, e optou por entrar na sua caminhonete. Mas não o deixaram arrancar. Estavam assustados e furiosos e se incitavam uns aos outros.
Tiraram-no do veículo aos safanões e começaram a espancá-lo, sem ouvir suas explicações. Quando achou que já não tinha mais escapatória, ouviu tiros. Viu homens e mulheres armados e o cerco hostil se desmanchou. Do chão onde havia desabado, aturdido pelos golpes, Casimiro ouviu as vozes dos seus salvadores. Explicavam à multidão de cujas mãos o tinham arrancado que não se devia acreditar em pishtacos, que isso eram superstições, crenças obscurantistas inculcadas no povo por seus inimigos.
Então, reconheceu Asunta. Não teve a menor dúvida. Apesar da luz escassa e do aturdimento em seu cérebro, não vacilou um segundo. Era ela. Só que agora não usava tranças, e sim um cabelo curtinho, como de homem. E, em vez de saia, calças jeans e tênis. E uma escopeta nas mãos. Ela também o reconhecera, pelo visto. Não respondeu ao cumprimento que ele fez com a mão, nem ao sorriso que lhe dirigiu. Estava explicando agora, a outros homens e mulheres armados que o cercavam, que esse albino, Casimiro Huarcaya, a tinha estuprado, fazia cinco anos, aproveitando-se das festas de outro povoado. E que a deixara grávida. E que quando foi lhe contar tratou-a de prostituta, ou quase isso. E que, depois, como quem joga um osso para um cachorro, ele se dignou a dar-lhe dinheiro para fazer um aborto. Era Asunta mas não era Asunta. Pelo menos, Casimiro não conseguia identificar a garotinha tímida que beijava a sua mão com aquela mulher fria, séria, didática, que contava tais intimidades em voz alta, como se falasse de outra pessoa.
Tentou lhe dizer que durante aquele tempo todo estivera perguntando por ela. Tentou perguntar o que acontecera com o filho que estava esperando, se tinha nascido albino como ele. Mas sua voz não saiu. Eles conversaram por um bom tempo, trocando ideias em espanhol e em quéchua. Fizeram-lhe perguntas que não soube responder. Quando percebeu que haviam tomado uma decisão sobre a sua sorte, teve uma sensação de irrealidade. Ali estava, então, a mulher que tinha procurado durante tantos anos. Vinha se aproximando dele com a escopeta apontada para a sua cabeça. E Casimiro teve certeza de que a mão não lhe tremeria ao disparar.
— Guarda civil, guarda civil — disse Mercedes. — A última coisa que passaria pela minha cabeça é que você era um milico desses que dirigem o trânsito.
— Já sei que comigo você caiu de nível — respondeu o rapaz. — Mas não se preocupe, com uma mulher assim ao meu lado vou chegar muito longe.
— Se o visse vestido de guarda civil eu morreria de vergonha — disse ela.
— Por que ela nos julgava tão mal? — grunhiu Lituma.
— Por que será? — suspirou Tomasito. — Por causa da miséria que ganhamos.
Haviam saído de Huánuco por volta das seis, com uma hora de atraso, e estavam ocupando os dois assentos da frente no velho Dodge, ao lado do motorista. Atrás se apinhavam quatro passageiros, entre os quais uma senhora que gemia “ai, Jesus” a cada buraco da estrada. O motorista estava com um gorro enterrado até as orelhas e um cachecol cobrindo a sua boca, de um modo que quase não se distinguia o seu rosto. Tinha ligado o rádio a todo volume, de maneira que não se ouvia o que Carreño e Mercedes se falavam ao ouvido. À medida que o veículo subia a Cordilheira, o aparelho captava pior e a música naufragava entre apitos e zumbidos.
— Apertadinhos como estavam, você na certa aproveitava para passar a mão — comentou Lituma.
— Está falando comigo só para ter um pretexto e beijar meu pescoço — disse ela, também falando com a boca encostada em seu ouvido.
— Incomoda? — sussurrou ele, passando os lábios devagarzinho no contorno da orelha.
— Essas bolinagens dentro do carro são uma coisa — sentenciou Lituma.
— Está me fazendo cócegas — disse ela. — O motorista deve achar que sou uma idiota que fica rindo o tempo todo.
— É que o amor para você não é coisa séria. — Carreño tornou a beijá-la.
— Prometa que nunca mais na vida vai usar farda de milico — disse Mercedes. — Pelo menos enquanto estivermos juntos.
— Prometo tudo o que você me pedir — adoçou-se o rapaz.
— E olhe só — suspirou Lituma. — Voltou a usar, e aqui nem sequer pode tirar o uniforme. Vai morrer com as botas nos pés, Tomasito. Viu esse filmaço?
Carreño passara o braço pelos ombros dela e tentava amortecer com seu corpo os solavancos que o Dodge fazia Mercedes dar. Escurecia depressa, estava começando a fazer frio. Vestiram os suéteres de alpaca que tinham comprado em Huánuco, mas um dos vidros do veículo estava rachado e um ventinho gelado se filtrava pela fresta. O motorista acabou desligando o rádio, já inaudível.
— Não é que eu ache que vai acontecer alguma coisa — disse, falando alto, por trás do cachecol. — Mas minha obrigação é avisar. Tem havido muitos assaltos nesta estrada ultimamente.
Nenhum dos passageiros fez qualquer comentário, mas a atmosfera do veículo ficou espessa, como leite coalhado. Carreño sentiu que Mercedes estava rígida.
— E o mais provável é que nós dois vamos para o túmulo fardados, Tomasito. Você às vezes não se cansa de esperá-los? Às vezes não pensa: “Tomara que venham de uma vez e termine esta maldita guerra de nervos”?
— E o que quer dizer isso? — perguntou, afinal, no banco de trás, a senhora das exclamações. — Que estamos em perigo?
— Espero que não — respondeu o motorista. — Mas tenho o dever de avisar.
— E se acontecer? — perguntou outro passageiro.
— Se acontecer, o melhor é não ser respondão — sugeriu o motorista. — Esta é a minha recomendação, pelo menos. Os caras que assaltam vêm armados e com o dedo no gatilho.
— Quer dizer, damos a eles tudo o que temos, feito cordeirinhos mansos — disse a mulher, irritada. — Mesmo que fiquemos com uma mão atrás e outra na frente. Que bom conselho, caramba.
— Se quiser bancar a heroína, é problema seu — disse o motorista. — Só estou dando uma opinião.
— Está é assustando os passageiros — interveio Carreño. — Uma coisa é dar um conselho, outra coisa é meter medo nas pessoas.
O motorista virou um pouquinho a cabeça para observá-lo.
— Não quero assustar ninguém — afirmou. — Só que já me assaltaram três vezes, e na última me quebraram o joelho com uma pancada.
Houve um longo silêncio, entrecortado pelos roncos e espasmos do motor e os sons metálicos da carroceria sacudida pelos buracos e pedras do caminho.
— Não sei por que você faz um trabalho tão perigoso, então — comentou um passageiro que até aquele momento não tinha falado nada.
— Pela mesma razão pela qual vocês viajam até Lima por terra, sabendo que é perigoso — disse o motorista. — Por necessidade.
— Maldita hora em que vim para Tingo María, maldita hora em que aceitei o convite daquele babão — sussurrou Mercedes no ouvido do rapaz. — Eu estava muito bem, tinha dinheiro para comprar roupa, sempre me divertia no show do Vacilón, era independente. E agora, perseguida e amancebada com um guarda civil.
— Era o seu destino — o rapaz tornou a beijá-la na orelha, sentindo-a estremecer. — Por mais que você não acredite, agora vai começar a melhor parte da sua vida. Sabe por quê? Porque estamos juntos. E quer que lhe diga uma coisa?
— Eu sempre esperando coisinhas gostosas, carícias, bolinação, trepadas para me distrair do jejum forçado, e você sempre indo para o lado romântico — reclamou Lituma. — Você não tem jeito, Tomasito.
— O quê? — sussurrou ela.
— Juntos até que a morte nos separe. — Carreño mordiscou a ponta da sua orelha e Mercedes riu, alto.
— Vocês não estão em viagem de lua de mel, por acaso? — O motorista olhou para eles.
— Acabamos de nos casar — confirmou instantaneamente Carreño. — Como adivinhou?
— Meu sexto sentido. — O motorista riu. — E pelos beijinhos que estão dando.
Alguém riu no banco de trás e um passageiro murmurou: “Parabéns para os noivos.” Carreño apertou Mercedes contra si e, beijando-a, sussurrou:
— Agora você é minha mulherzinha diante de todo mundo. Nunca mais vai poder se livrar de mim.
— Se continuar me fazendo cócegas, vou mudar de lugar — sussurrou ela. — Estou quase fazendo xixi de tanto rir.
— Eu pagaria qualquer coisa para ver uma mulherzinha mijando — mugiu Lituma, estremecendo o catre. — Nunca pensei nisso, droga. E agora que me provoca, não há fêmeas à vista.
— Você devia ir no porta-malas — disse Carreño. — Bem, vou lhe dar um descanso. Dez minutos sem beijar. Pode dormir no meu ombro, como no caminhão. Eu acordo você se nos assaltarem.
— A coisa estava ficando boa com o assunto do xixi, e você a manda dormir — protestou Lituma. — Ai, que desgraça.
— Como você é engraçado, guardinha — disse ela, acomodando-se.
— Ninguém vai estragar a nossa lua de mel — disse o rapaz.
A estrada estava vazia; vez por outra cruzavam com algum caminhão ostentoso que obrigava o Dodge a sair da pista.
Não chovia, mas o céu estava pesado e, em vez de estrelas, um tênue clarão esfumava os contornos de algumas nuvens de chumbo e o horizonte de picos e cristas de neve. Carreño foi adormecendo.
— Acordei com um brilho que me feriu os olhos e uma voz dizendo: “Documentos” — continuou o guarda. — Lutando contra o torpor, apalpei a cintura e o revólver estava onde devia estar.
— Vamos começar com histórias de caubói — comentou Lituma. — Quantos você matou dessa vez?
Mercedes esfregava os olhos, movendo a cabeça para um lado e para o outro. O motorista estava passando os títulos de eleitor dos passageiros para um homem de metralhadora que estava com metade da cabeça dentro do veículo. Carreño viu uma guarita iluminada por lampiões, um escudo, e outro homem, enrolado num poncho e também com metralhadora no ombro, esfregando as mãos. Uma corrente de metal, pendurada em dois barris, fechava o caminho. Em volta não se viam luzes nem casas, só morros.
— Um momentinho — disse o homem, e foi até a guarita com os documentos na mão.
— Não sei o que deu neles — comentou o motorista, virando-se para os passageiros. — Nunca param o trânsito aqui, e muito menos a essa hora.
Sob a luz oleosa do lampião do posto, um dos policiais examinava documento por documento. Aproximava-os dos olhos como se fosse míope. O outro continuava esfregando as mãos.
— Deve estar gelado, lá fora — murmurou a mulher do banco de trás.
— Espere só chegar à puna para ver o que é frio — preveniu o motorista.
Passaram um longo tempo em silêncio, ouvindo o vento assobiar. Agora os policiais estavam conversando, e o que havia recolhido os documentos mostrava um papel ao outro, apontando para o Dodge.
— Se acontecer alguma coisa comigo, continue a viagem. — O rapaz beijou a orelha de Mercedes, vendo os dois homens do posto se aproximarem do carro, um atrás do outro.
— Mercedes Trelles — disse o homem, introduzindo de novo a cabeça no veículo.
— Este é o nome da sua piurana? — disse Lituma. — Então talvez seja parente de uma pessoa que conheci. O Patojo Trelles. Tinha uma sapataria perto do cinema Municipal e vivia comendo chifles.
— Sou eu.
— Venha um momentinho, para uma verificação.
Devolveu os outros documentos ao motorista, para que os distribuísse entre os passageiros, e esperou que Carreño descesse para ajudar a mulher a sair do carro. O outro policial agora estava com a metralhadora nas mãos e permanecia a um metro do ônibus.
— Nenhum dos dois parecia dar muita importância à coisa — disse Tomás. — Pareciam entediados, coisa de rotina. Podia ser pura coincidência que a tivessem chamado. Mas eu não podia me arriscar, tratando-se dela.
— Claro, claro — caçoou Lituma. — Você é desses que primeiro matam e depois perguntam ao morto como se chama.
Mercedes se afastou, caminhando devagar até a guarita, seguida pelo homem que tinha verificado seus documentos. Carreño ficou em pé, junto à porta aberta do Dodge e, embora nas sombras fosse improvável que ele percebesse, sorria exageradamente para o policial que vigiava o carro.
— Como vocês não morrem de frio aqui, chefe — murmurou, enquanto, de maneira espalhafatosa, esfregava os braços e fazia “Brrr”. — A que altura estamos?
— Três mil e duzentos metros, mais ou menos.
O rapaz puxou os cigarros do bolso e botou um na boca. Ia guardar o maço, mas, como que lembrando, ofereceu-o ao policial: “Quer fumar?” Ao mesmo tempo, sem esperar a resposta, deu dois passinhos em sua direção. O policial não se alarmou nem um pouco. Pegou um cigarro e, sem dizer obrigado, pôs na boca.
— Esse aí, como policial, era um bobalhão — julgou Lituma. — Até eu, que sou outro bobalhão, teria desconfiado.
— Estavam mortos de sono, meu cabo.
Carreño acendeu um fósforo, que o vento apagou. Acendeu um segundo, encolhendo-se para proteger o fogo com seu corpo — estava com todos os sentidos em alerta, como uma fera antes de atacar —, ouvindo a senhora queixosa pedir ao motorista para fechar a porta, e aproximou-o da boca onde o cigarro estava pendurado. Quando, em lugar do fogo, foi o cano do revólver que bateu nos seus dentes, o policial ficou petrificado.
— Nem um grito, nem um movimento — ordenou Tomás. — Para o seu bem.
Estava com os olhos fixos no homem que agora abria a boca — o cigarro rolou para o chão — e a quem despojava suavemente da metralhadora com a mão livre, mas com os ouvidos atentos ao que ocorria no carro, temendo que o motorista ou um dos passageiros desse um grito para alertar o policial do posto.
— Mas não ouviu nada, porque os passageiros, sonolentos, nem perceberam o que estava acontecendo — recitou Lituma. — Viu, eu adivinho tudo. Sabe por quê? Porque assisti a muitos filmes na vida e conheço todos os truques.
— Mãos ao alto — ordenou em voz alta, da soleira da porta.
Apontava o revólver para o policial sentado à mesinha e, com a metralhadora, o crânio do que estava à sua frente. Usava este último como escudo. Ouviu Mercedes dar um gritinho, mas não olhou para ela, sempre atento ao homem da mesa. Após um instante de surpresa, este levantou as mãos. Ficou olhando para ele. Piscava, abobalhado.
— Eu disse a Mercedes: “Pegue a metralhadora” — lembrou Carreño. — Mas ela estava morrendo de medo e não se moveu. Tive que repetir a ordem com um grito.
— Não queria fazer xixi nesse momento também?
Dessa vez ela apanhou com as duas mãos a arma que o policial tinha deixado na mesa.
— Botei os dois contra a parede, com as mãos na cabeça — prosseguiu o rapaz. — O senhor ficaria assombrado se visse como eram obedientes, meu cabo. Deixaram-se revistar, entregaram as armas e se amarraram um ao outro sem abrir o bico.
Só quando Tomás e Mercedes estavam saindo, um deles se atreveu a murmurar:
— Não vai chegar muito longe, compadre.
— E não chegou mesmo — disse Lituma. — Vou dormir, Tomasito, já estou cansado e sua história me deu sono.
— Estou bem armado para me defender — cortou-o Carreño.
— O que está havendo aqui? — disse, atrás dele, o motorista.
— Nada, nada, já vamos.
— Como que nada? — ouviu-o exclamar. — Mas quem é você, por quê...
— Calma, calma, não é com você, não vai lhe acontecer nada — disse o rapaz, empurrando-o para fora.
Os passageiros tinham descido do Dodge e rodeavam Mercedes, acossando-a com perguntas. Ela balançava as mãos e a cabeça, meio histérica: “Não sei, não sei.”
Carreño jogou no banco do Dodge as metralhadoras e as pistolas dos dois homens do posto e indicou ao motorista que se sentasse ao volante. Pegando Mercedes pelo braço, obrigou-a a subir no carro.
— Vai nos deixar aqui? — indignou-se a senhora das queixas.
— Alguém vem buscá-los, não se preocupem. Não podem vir comigo, iriam pensar que são meus cúmplices.
— Então, deixe eu ficar com eles — protestou o motorista, já empunhando o volante.
— E para que diabos levou o motorista? — bocejou Lituma. — Não bastava Mercedes como companhia?
— Nem minha mulher nem eu sabemos dirigir — explicou Carreño. — Dê a partida de uma vez e pé na tábua.