VI
— Bem, acho que já posso ir embora — disse o cabo Lituma, calculando que se partisse imediatamente chegaria a Naccos antes de anoitecer.
— De jeito nenhum, meu amigo — deteve-o, levantando duas mãos cordiais, o engenheiro alto e louro que estava sendo tão gentil com ele desde que chegara a La Esperanza. — A noite pode alcançá-lo no caminho, coisa que não recomendo. Fique para jantar e dormir aqui, e amanhã cedinho Francisco López o leva de volta a Naccos no jipe.
O engenheiro moreninho, que chamavam de Pichín, também insistiu, e Lituma não se fez de rogado para passar mais uma noite na mina. Porque, de fato, não era prudente viajar às escuras por aquelas solidões, e também porque, desse modo, teria oportunidade de ver e ouvir um pouco mais aquele gringo que está visitando a La Esperanza, um explorador ou coisa assim. Desde que o viu, ficou fascinado. O homem usava barba e cabelo desgrenhados, longos como Lituma só vira antes em certas imagens de profetas e apóstolos bíblicos, ou como usavam alguns doidos ou mendigos seminus pelas ruas de Lima. Mas aquele homem não tinha nada de doido; era um sábio. Porém singelo e amistoso, com um jeito de cidadão das nuvens perdido na terra, e totalmente indiferente — inconsciente? — do perigo que havia corrido na mina com a incursão dos terrucos. Os engenheiros o chamavam de Profe e às vezes Escarlatina.
Enquanto tomava depoimentos, fazia o inventário do que os assaltantes tinham levado e escrevia os informes necessários para a companhia de seguros, Lituma ouvia os dois engenheiros, principalmente o louro, o Profe, falando dos horrores que os terrucos fariam com ele se tivessem descoberto que, ali mesmo, embaixo do seu nariz, escondido nos depósitos de água, havia um agente da CIA. O homem entrava no jogo. Em matéria de horrores, podia dar lições aos terrucos, uns aprendizes que só sabiam matar as pessoas a bala, faca ou esmagando suas cabeças, mediocridades comparadas com as técnicas dos antigos peruanos que, nisso, tinham atingido formas refinadíssimas. Mais que os antigos mexicanos, embora haja um complô internacional de historiadores para ocultar a contribuição peruana à arte dos sacrifícios humanos. Todo mundo sabia que os sacerdotes astecas, no alto das pirâmides, arrancavam o coração das vítimas da guerra florida, mas quanta gente ouviu falar da paixão religiosa dos chancas e dos huancas pelas vísceras humanas, da delicada cirurgia com que extirpavam o fígado e os miolos e os rins das suas vítimas, que comiam em suas cerimônias acompanhados de boa chicha de milho? Os engenheiros o provocavam e ele os provocava e Lituma fingia estar concentrado na redação dos informes, mas não perdia uma palavra da conversa. E daria qualquer coisa para sentar-se um bom tempo para ouvir aquele tagarela e examinar à vontade seu jeito estrambótico.
Era gringo? Por seus olhos claros e esses cabelos louros que se enredavam em sua cabeça e por sua barba já com muitos fios brancos, parecia. Tanto como pelo jaquetão de rombos vermelhos e brancos, tão cafona, que usava sobre as calças e camisas de vaqueiro e seus sapatões de alpinista. Nenhum peruano se vestia assim. Mas o espanhol que falava era mais que perfeito, muitas de suas palavras Lituma ouvia pela primeira vez, mas tinha certeza de que existiam nos livros. Um verdadeiro crânio, puta merda. Esta noite prometia.
Nos bons tempos, explicaram os engenheiros, La Esperanza tinha mais de cem mineiros em suas socavas, mas agora só trabalhavam uns trinta. E, pelo andar da carruagem, com os problemas e a baixa no preço dos metais, talvez tivesse que fechar, como outras minas em Cerro de Pasco e de Junín. Continuava funcionando mais por não dar o braço a torcer que por outra razão, porque já não era bom negócio. O acampamento parecia o da construtora, em Naccos: pequeno, com barracões de madeira e duas casas sólidas, onde funcionava o escritório e onde se alojavam os engenheiros quando vinham.
Numa ala vivia o capataz (agora ausente, pois tinha levado o ferido para Huancayo). Nessa casinha deram a Lituma um quarto, com uma cama, um lampião a querosene e um lavatório. Da janela viu os dois reservatórios de água, no meio do caminho entre a entrada do túnel e os barracões. Dois recipientes altos, fixados com pilares de pedra e umas escadinhas de ferro. Num deles, esvaziado na véspera para a limpeza anual, os engenheiros e o doutor se refugiaram quando ouviram os terrucos. Ali dentro, tremendo de frio e de medo — ou também teriam inventado piadas em voz baixa? —, permaneceram as três horas que os invasores levaram para trocar tiros com a meia dúzia de homens da segurança e botá-los para correr — o morto e o ferido pertenciam ao grupo que trabalhava sob as ordens de Francisco López —, roubar os explosivos, pavios, remédios, botas e roupas do armazém e o estojo de primeiros socorros, e discursar para os mineiros, que mandaram sair dos barracões e formar na pequena esplanada vizinha, à luz de umas lâmpadas de acetileno.
— Sabe do que vou me lembrar desta aventura, cabo? — perguntou o engenheiro louro, que Pichín chamava de Bali. — Não do medo que sentia, nem do roubo, nem mesmo do pobre rapaz que alvejaram. Mas de que nenhum mineiro nos denunciou.
Estavam começando a comer, sentados em torno de uma mesa comprida. Entre a fumaça dos cigarros, flutuavam aromas apetitosos.
— Bastava alguém apontar com o dedo ou com a cabeça para o reservatório — concordou Pichín. — Teriam feito um julgamento revolucionário e nós já estaríamos no Paraíso, não é, Bali?
— Você e eu no inferno, Pichín. O Profe iria para o céu, ele sim. Porque, imagine, cabo, o Escarlatina, este aí que está na sua frente, ainda não cometeu o primeiro pecado.
— Eu não teria feito uma cachorrada dessas — disse o doutor, e Lituma tentou em vão detectar no seu sotaque alguma sílaba que soasse estrangeira. — Eu os acompanharia para compartilhar as chamas. Das que queimam, eu não disse lhamas, essas que cospem.
Ele havia cozinhado enquanto os dois engenheiros e Francisco López e Lituma bebiam um perfumado pisco iquenho que afinal lhe encheu as veias de um delicioso calorzinho e a cabeça de uma despreocupação excitada. Na verdade, o doutor preparou um verdadeiro banquete: sopa de batata seca e favas com pedaços de galinha e uma milanesa com arroz branco. De lamber os beiços! Comeram todos esses manjares com umas cervejinhas geladas que acabaram deixando Lituma muito alegre. Não comia tão bem fazia meses; desde os tempos de Piura, no mínimo. Estava tão absorto que, desde o momento em que se sentou à mesa com eles, quase não se lembrara mais dos desaparecidos de Naccos, nem dos prantos noturnos e das confissões sentimentais de Tomasito, os dois assuntos que — agora se dava conta — ocupavam toda sua vida ultimamente.
— E sabe por que vou me lembrar para sempre da lealdade desses trinta mineiros, cabo? — insistiu o engenheiro Bali. — Porque eles deram uma lição a Pichín e a mim. Nós pensávamos que tinham ligação com os terrucos. E, como pode ver, graças ao silêncio deles, estamos aqui.
— Vivinhos e serelepes, e com uma história do caralho para contar aos amigos — concluiu Pichín.
— Ainda temos muita estrada pela frente. — O Profe levantou o copo de cerveja. — Vocês acham que devem a vida aos trabalhadores que não os delataram. Eu lhes digo que devem aos apus destas montanhas. Eles foram benevolentes com vocês graças a mim. Resumindo: eu os salvei.
— E por que graças ao senhor, Profe? — perguntou Pachín. — O que deu para os apus?
— Trinta anos de estudo — suspirou o doutor. — Cinco livros. Uma centena de artigos. Ah, e até um mapa linguístico-arqueológico da serra central.
— O que são os apus, doutor? — atreveu-se a perguntar Lituma.
— Os deuses manes, os espíritos tutelares dos morros e montanhas da Cordilheira — disse o professor, encantado de falar de uma coisa que, pelo visto, lhe dava um enorme prazer. — Cada elevação dos Andes, por pequena que seja, tem seu deusinho protetor. Quando os espanhóis chegaram e destruíram os ídolos e as huacas e batizaram os índios e proibiram os cultos pagãos, pensaram que essas idolatrias iam acabar. Mas a verdade é que, entremeadas com os ritos cristãos, continuam vigentes. Os apus decidem a vida e a morte nestas terras. Devemos a eles o fato de estarmos aqui, meus amigos. Um brinde aos apus de La Esperanza!
Encorajado pelo pisco, pela cerveja e pela atmosfera cordial, Lituma interveio outra vez:
— Lá em Naccos tem uma mulher, meio bruxa, que entende muito dessas coisas, doutor. A dona Adriana. E, justamente, segundo ela os morros estão cheios de espíritos, com os quais ela diz que se comunica. Garante que são malignos e que gostam de carne humana.
— Adriana? A mulher de Dionisio, o vendedor de pisco? — replicou na hora o doutor. — Conheço muito bem. E também o beberrão do marido. Iam de vila em vila, uma tropa de músicos e bailarinos e ele vestido de ukuko, quer dizer, de urso. Uns bons informantes, os dois. Os senderistas ainda não os mataram acusando-os de antissociais?
Lituma ficou estupefato. Aquele homem era como Deus, sabia de tudo e conhecia todo mundo. Como, ainda por cima sendo estrangeiro?
— Em vez de doutor, chame-me de Paul, Paul Stirmsson, ou simplesmente Pablo, ou Escarlatina, que é como me chamam os meus alunos em Odense. — Havia tirado um cachimbo dos bolsos do jaquetão de rombos vermelhos e nele desmanchava um par de cigarros de tabaco negro; assentava o fumo com os dedos. — No meu país só são chamados de doutor os médicos, não os humanistas.
— Vamos, Escarlatina, conte ao cabo Lituma como foi que virou peruanófilo — incentivou Pichín.
Quando ainda era um menino de calças curtas, lá na Dinamarca, sua terra natal, seu pai lhe dera um livro sobre o descobrimento e a conquista do Peru pelos espanhóis, escrito por um senhor chamado Prescott. Essa leitura decidiu o seu destino. Desde então viveu cheio de curiosidade pelos homens, as coisas e as histórias deste país. Passou toda a vida estudando e ensinando os costumes, os mitos e a história do Peru, primeiro em Copenhague e depois em Odense. E fazia trinta anos que passava todas as férias nas montanhas do Peru. Nos Andes se sentia em casa.
— Agora entendo por que fala assim o espanhol — murmurou Lituma, cheio de admiração.
— E olhe que não o ouviu falar quéchua — interveio Pichín. — Com os mineiros, fica em altos papos, direitinho como se fosse um índio de pura cepa.
— Quer dizer que também fala quéchua — exclamou Lituma, maravilhado.
— Em suas variantes cusquenha e ayacuchana — precisou o Profe, sem esconder a satisfação que o assombro do policial lhe causava. — E um pouquinho de aimará, também.
Acrescentou que, no entanto, a linguagem peruana que gostaria de ter aprendido era a dos huancas, uma antiga cultura dos Andes centrais, depois conquistada pelos incas.
— Melhor dizendo, apagada pelos incas — corrigiu. — Eles fizeram uma boa fama, e a partir do século XVIII todos falam de conquistadores tolerantes, que adotavam os deuses dos vencidos. Um grande mito. Como todos os impérios, os incas eram brutais com os povos que não se submetiam docilmente a eles. Praticamente excluíram da história os huancas e os chancas. Destruíram suas cidades e os dispersaram, espalhando-os por todo o Tahuantinsuyo, mediante o sistema de mitimaes, os exílios maciços de populações. Fizeram de tudo para que não ficassem traços das suas crenças nem dos seus costumes. Nem mesmo da sua língua. Esse dialeto quéchua que sobreviveu na região não era a língua dos huancas.
Acrescentou que os historiadores modernos não tinham muita simpatia por eles, porque haviam ajudado os espanhóis contra os exércitos incas. Não era justo que o fizessem? Agiram assim seguindo um velho princípio: os inimigos dos nossos inimigos são nossos amigos. Ajudaram os conquistadores pensando que estes os ajudariam a emancipar-se de quem os mantinha em servidão. Erraram, é claro, já que os espanhóis depois os submeteram a um jugo ainda mais severo que o dos incas. A questão é que a história foi muito injusta com os huancas: quase não aparecem nos livros sobre o antigo Peru e, de modo geral, só para lembrar que tinham sido homens de costumes ferozes e colaboradores do invasor.
O engenheiro alto e louro — Bali seria seu nome, ou era apelido? — levantou-se e trouxe de novo a garrafinha daquele pisco iquenho de aroma tão intenso que tinham saboreado antes do jantar.
— Vamos nos vacinar contra a geada — disse, enchendo as taças. — Se os senderistas voltarem, vamos estar tão bêbados que nem nos importaremos.
O vento ululava nas janelas e nos telhados e fazia a casa tremer. Lituma sentia-se bêbado. Incrível que Escarlatina conhecesse Dionisio e dona Adriana. E até havia visto o cantineiro percorrendo o mundo, dançando nas feiras vestido de ukuko. E com seus espelhinhos, corrente e máscara, na certa. Como seria ouvir esses três conversando sobre os apus e pishtacos. Puta merda, interessantíssimo. Será que o doutor acreditava mesmo nos apus, ou queria se fazer de sabido? Pensou em Naccos. Tomasito já devia estar deitado, olhando para o teto na escuridão, imerso nos pensamentos que povoavam suas noites e o faziam derramar lágrimas dormindo. Seria mesmo um mulherão a piuranita Mercedes? Tinha deixado o rapaz doidinho. A espelunca de Dionisio e dona Adriana já devia estar cheia de bêbados tristes, que o cantineiro tentaria animar com seus cantos e trejeitos, incentivando-os a dançar entre si e esbarrando neles como quem não quer nada. Tremenda bicha, na certa. Pensou nos peões, dormindo em seus barracões com o segredo do que aconteceu com aqueles três, um segredo que ele nunca chegaria a conhecer. O cabo sentiu outra pontada de saudade da sua remota Piura, por seu clima candente, sua gente extrovertida que não sabia guardar segredos, seus desertos e montanhas sem apus nem pishtacos, uma terra que, desde que o transferiram para estas alturas encrespadas, vivia na sua memória como um paraíso perdido. Voltaria a botar os pés lá? Fez um esforço para acompanhar a conversa.
— Os huancas eram umas feras, Escarlatina — alegava Pichín, examinando sua taça à contraluz como se temesse que algum inseto houvesse mergulhado nela. — E os chancas também. Você mesmo nos contou as barbaridades que eles faziam para deixar seus apus contentes. Esse hábito de sacrificar crianças, homens, mulheres para o rio que iam desviar, para o caminho que iam abrir, para o templo ou a fortaleza que construíam, não é lá muito civilizado, digamos.
— Lá em Odense, perto do bairro onde moro, uma seita de satanistas assassinou um ancião espetando-lhe alfinetes, como oferenda a Belzebu. — Encolheu os ombros o professor Stirmsson. — Claro que eram umas feras. Algum povo da Antiguidade passaria no exame? Qual deles não foi cruel e intolerante, julgado pela perspectiva de agora?
Francisco López, que tinha saído para ver se tudo estava em ordem, voltou, e com ele entrou um vento gelado no quarto onde conversavam.
— Tudo tranquilo — disse, tirando o poncho. — Mas a temperatura desceu muito e está começando a cair granizo. Vamos bater na madeira, espero que esta noite não venha um huayco, ainda por cima.
— Aqueça-se com um gole. — Voltou a encher seu copo o engenheiro moreno. — Era só o que nos faltava. Depois dos terroristas, um huayco.
— Eu me pergunto — murmurou o engenheiro louro, completamente abstraído, falando para si mesmo — se o que está acontecendo no Peru não é uma ressurreição de toda essa violência empoçada. Como se ela tivesse ficado escondida em algum lugar e, de repente, por alguma razão, saísse de novo à superfície.
— Se vier me falar outra vez da tal ecologista, vou dormir — tentou silenciá-lo seu amigo Pichín. E a Lituma, que o olhava surpreso, explicou, apontando para o amigo: — Ele conhecia a senhora d’Harcourt, aquela que mataram mês passado em Huancavelica. Toma um copo e filosofa sobre ela. E entre um mineiro e um filósofo há uma grande diferença, Bali.
Mas o engenheiro louro não respondeu. Estava ensimesmado, os olhos brilhando por causa da bebida e com uma mecha de cabelo caindo sobre a testa.
— Na verdade, se há uma morte difícil de entender é a de Hortensia. — O rosto do professor se ensombreceu. — Mas, claro, o erro é nosso, querer entender essas matanças com a cabeça. Porque elas não têm explicação racional.
— Ela sabia muito bem o risco que estava correndo — disse Bali, abrindo muito os olhos. — E continuava fazendo o que fazia. Como você, Escarlatina. Você também sabe que está se arriscando. Se eles nos pegassem ontem à noite, talvez Pichín e eu pudéssemos ter negociado com eles. Mas, você, esmagariam seu crânio a pedradas, como fizeram com Hortensia. E, no entanto, continua vindo. Eu tiro o meu chapéu, velho.
— Bem, vocês também continuam vindo — o professor devolveu a gentileza.
— Nós vivemos desta mina — disse Pichín. — Bem, vivíamos.
— O que tem o Peru que desperta essas paixões em alguns estrangeiros? — assombrou-se Bali. — Não merecemos.
— É um país que não dá para entender. — Escarlatina riu. — E não existe nada mais atraente que o indecifrável, para pessoas de países claros e transparentes como o meu.
— Acho que nunca mais voltarei a La Esperanza — Bali mudou de assunto. — Não tenho vontade de bancar o herói, muito menos por uma mina que perde dinheiro. A verdade é que ontem à noite me borrei de medo.
— Nós sentimos, o Profe e eu, no depósito — disse Pichín. — Melhor dizendo, sentimos o cheiro.
Bali riu, o professor riu, e López também riu. Mas Lituma continuou muito sério, só ouvindo, adormecido numa inquietação profunda. Mais tarde, quando, depois de terminar com a garrafa de pisco, todos deram boa-noite e foram para seus dormitórios, o cabo parou na porta do quarto do professor Stirmsson, contíguo ao seu.
— Ainda tenho uma curiosidade, doutor — murmurou, respeitosamente, com a língua um pouco enrolada. — Então os chancas e os huancas sacrificavam gente quando iam abrir um caminho?
O professor estava dobrado para tirar as botas, e a lâmpada de acetileno desmanchava suas feições, dando-lhe um aspecto fantasmagórico. Lituma pensou que, de repente, surgiria um halo dourado de santinho em volta dos seus cabelos brancos.
— Não faziam isso por crueldade, e sim porque eram muito religiosos — explicou. — Era a maneira de mostrar respeito aos espíritos das montanhas, da terra, que iriam perturbar. Faziam isso para não sofrer represálias. Para garantir sua sobrevivência. Para que não houvesse desmoronamentos, huaycos, para que não caísse um raio e os queimasse nem transbordassem as lagoas. É preciso entendê-los. Para eles, não havia catástrofes naturais. Tudo era decidido por uma vontade superior, que precisavam conquistar com sacrifícios.
— Isso mesmo que o senhor contou já ouvi dona Adriana dizer uma vez, doutor.
— Mande lembranças de minha parte a ela e a Dionisio — disse o Profe. — Estivemos juntos pela última vez na feira de Huancayo. Adriana era uma cholita muito bonita, quando jovem. Depois foi piorando, como todo mundo. Vejo que se interessa pela história, cabo.
— Um pouquinho — assentiu Lituma. — Tenha uma boa noite, doutor.
Todos andam assustados desde que se soube da invasão de pishtacos e que nos bairros de Ayacucho os moradores organizam rondas para combatê-los. “Temos que fazer a mesma coisa”, dizem. “Não pode ser que os degoladores comecem a fazer sua farra em Naccos também.” Querem acender fogueiras de noite entre os barracões para avisá-los assim que apareçam. Eles sempre surgem onde as coisas começam a dar errado. Está se repetindo a história de quando Naccos entrou em decadência. Porque isto aqui já foi um vilarejo mineiro muito próspero. Foi por isso que Timoteo e eu, quando fugimos de Quenka, viemos para cá.
Nessa época eu era jovem e a mina de Naccos não estava abandonada; vivia cheia de mineiros que vinham de toda a região, e até de lugares afastados como Pampas, Acobamba, Izcuchaca e Lircay. Volta e meia abriam novas galerias na socava para tirar a prata e o zinco. E os recrutadores tinham que ir cada vez mais longe para contratar gente disposta a vir para a mina, que na época se chamava Santa Rita. Para alojá-los, montaram barracões e tendas em todas as encostas do morro; muitos mineiros dormiam enrolados em seus ponchos nos vãos das pedras grandes. Até que um dia os engenheiros disseram que o metal de qualidade havia acabado, que praticamente só restava a escória invendível.
Quando começaram a despedir trabalhadores e Santa Rita a entrar em decadência e muita gente a sair de Naccos, aconteceram coisas estranhas que ninguém sabia explicar. E no vilarejo surgiram uma desconfiança e um medo parecidos com os que os peões da estrada sentem agora. Um gordinho que vinha de Huasicancha e era vigia do armazém começou a emagrecer e a dizer que se sentia estranho, como se estivesse vazio por dentro e seu corpo fosse só pele e ossos, um balão que podia ser estourado com um alfinete, e sua cabeça também parecia purgada de ideias e de lembranças. Quando morreu, poucas semanas depois, estava tão encolhido e magro que parecia um menino raquítico de dez anos. Não se lembrava de onde vinha nem do próprio nome, e perguntava assustado aos que iam vê-lo, com um fiapinho de voz, se era humano ou animal, pois nem disso tinha certeza. Não me contaram, Timoteo e eu vimos isso com nossos próprios olhos.
O vigia se chamava Juan Apaza. Só depois de enterrá-lo no fundo da bocaina os mineiros de Santa Rita e suas famílias começaram a suspeitar que a misteriosa doença da Apaza não era tal, e sim um pishtaco que tinha atravessado o seu caminho. Exatamente como agora, todo mundo em Naccos estava agitado e nervoso. “Existe remédio contra isso?”, perguntavam. “Pode-se fazer alguma coisa contra os pishtacos?” Vinham me consultar porque correu o boato de que eu sabia quais morros eram machos e quais morros eram fêmeas, e também que pedras pariam. Claro que existe remédio, claro que se pode fazer alguma coisa. Ter cuidado e tomar precauções. Deixar uma bacia de água na entrada da casa para anular o efeito do pó mágico que o pishtaco joga em suas vítimas, serve. Urinar numa pontinha das camisas e casacos antes de vestir, ajuda. E usar alguma coisa de lã, as mulheres uma faixa, trazer consigo uma tesoura, um sabonete e um dente de alho ou um pouquinho de sal, também. Não fizeram nada disso, e portanto as coisas deram no que deram. Eles não aceitavam a verdade; esses de agora estão aceitando. Já tiveram provas suficientes para não continuarem incrédulos. Não é mesmo?
Quando o povo de Naccos percebeu o que estava acontecendo, o pishtaco que matou Juan Apaza já tinha secado vários. Na época a gordura humana servia para fazer unguentos ou misturar no metal dos sinos, para cantarem no tom certo.
Agora, desde a invasão dos pishtacos, muita gente tem certeza em Ayacucho de que a gordura é mandada para o estrangeiro e para Lima, onde há fábricas que só funcionam com sebo de homem ou de mulher.
Conheci muito bem esse pishtaco de Santa Rita. Depois de secar Juan Apaza, ele secou Sebastián, um amigo de Timoteo. Toda Naccos acompanhou essa história passo a passo, porque o homem começou a contá-la para os mineiros desde a primeira vez que se sentiu esquisito. Quer dizer, desde aquela noite nos arredores do povoado, quando vinha pelo pampa com um rebanho de lhamas, em que topou com um dos recrutadores de Santa Rita que era seu conhecido. Estava com um poncho e um chapelão enterrado até as orelhas. Fumava, encostado numa pedra. Sebastián reconheceu-o na hora. Já o tinha visto nos distritos e comunidades da região, insistindo com os camponeses para irem trabalhar em Naccos e adiantando uns soles a fim de convencê-los.
Sebastián foi falar com ele e o recrutador lhe ofereceu um cigarro. Era um forasteiro branco, com uma barbinha cor de barata e olhos claros, que em Naccos foi apelidado de Garanhão porque era metido a mulherengo (deu em cima de mim várias vezes, sem Timoteo saber). Os dois estavam fumando e conversando sobre a onda de azar que havia assolado Santa Rita, com o fim do metal, quando, de repente, Sebastián sentiu no rosto uma baforada de fumaça do Garanhão que o fez espirrar. Na mesma hora sentiu-se tonto e com sono. Não era fumaça de cigarro o que o outro lhe soprara no rosto, claro. Eram aqueles pós que o pishtaco usa para atordoar suas vítimas de modo que não sintam nada enquanto tira a sua gordura. Que pós são esses? Ossos triturados de lhama ou de alpaca, quase sempre. Quem os aspira não sente nem nota nada. O pishtaco pode tirar tudo de dentro dele sem que perceba nada nem sinta dor. Foi o que o Garanhão fez, e Sebastián, a partir dessa noite, começou a emagrecer, a diminuir e a se esquecer do que sabia. Igualzinho a Juan Apaza. Até que também morreu.
Aconteceu quando Naccos vivia da mina Santa Rita e também está acontecendo agora, que vive desta estrada. As desgraças não vão vir dos terrucos que andam matando ou levando tanta gente para a sua milícia. Nem dos pishtacos que rondam por aí. É verdade que estes sempre aparecem nos tempos difíceis, como demonstra a invasão de Ayacucho. Por aqui deve haver alguns, nas cavernas destas montanhas, acumulando sua reserva de gordura humana. Devem precisar dessas coisas lá em Lima, ou nos Estados Unidos, para lubrificar as novas máquinas, os foguetes que mandam para a Lua por exemplo. Dizem que não há gasolina nem óleo que faça funcionar tão bem os inventos científicos como a gordura dos runas. Para isso, devem ter mandado seus degoladores armados com uns facões de lâmina curva que se esticam feito chiclete rumo ao pescoço do sacrificado. Eles também fazem estragos, quem vai negar.
Mas as piores desgraças vêm sempre das almas que não dão as caras. São essas que pedem mais do que as pessoas podem dar. Ficam por aí, como pedras entre as pedras, esperando que os peões, de tanto sofrer desgraças, fiquem de miolo mole. Eles se irritam à toa quando eu explico. Para que perguntam, se depois tapam as orelhas e não querem ouvir? É melhor seguir os conselhos do meu marido: bebam, bebam até cair, que na embriaguez tudo fica melhor do que é, desaparecem os terrucos, os pishtacos e tudo o que enfurece e assusta vocês.
— Mas por que eu? — voltou a perguntar-se, de repente, Mercedes.
— Sinto muito, Tomasito — interrompeu Lituma, na escuridão. — Essa história que lemos no jornal de Lima sobre os sujeitos que roubam olhos de crianças me deixou enojado. Esta noite não estou com paciência para os seus namoricos. Vamos falar dos rouba-olhos, é melhor. Ou de Dionisio e da bruxa, que também não consigo tirar da cabeça.
— De jeito nenhum, meu cabo — respondeu Tomás, deitado no seu catre. — As noites são de Mercedes e de mais ninguém, a menos que eu esteja de serviço. Já tenho muitas horas durante o dia para me desesperar com as coisas que acontecem. Fique com os pishtacos e me deixe com minha mulher.
— Por que você não foi preso, ou, em todo caso, nós dois? — repetiu Mercedes.
Era uma pergunta que voltava aos seus lábios desde que escaparam dos policiais. Carreño lhe dera todas as respostas: podia ser que tivessem o nome dela porque a associavam ao Chancho, fichado havia muito tempo na polícia; talvez tenham encontrado no seu título de eleitor alguma emenda ou borrão suspeito; ou então a chamaram como podiam ter chamado qualquer outro passageiro, só para tomar algum dinheiro. Para que ficar remoendo, já havia passado o pior. Não estava livre? Não tinham atravessado a metade da serra sem problemas? Iam chegar a Lima sãos e salvos dentro de duas horinhas. Como que confirmando as palavras de Carreño, o maquinista fez soar o apito do trem e o silvo estridente ecoou prolongadamente nos morros pelados em volta.
— O jornal não falava de pishtacos, falava de tira-olhos ou rouba-olhos — disse Lituma. — Mas você tem razão, Tomasito, parecem mesmo com esses pishtacos dos serranos. O que não me entra na cabeça é que agora comecem a acreditar nessas coisas também em Lima. Na capital do Peru, como é possível!
— O senhor pensa que estou ouvindo, mas não estou aqui — sussurrou Tomasito. — Estou no trem da serra, descendo, descendo até Desamparados, abraçadinho com o meu amor.
— Me convença, me convença — murmurou Mercedes, apertando-se contra ele. — Que foi por puro acaso que me chamaram. Não quero ir para a cadeia. Uma mulher conhecida minha esteve presa em Chorrillos. Eu ia visitá-la. Antes de ir para a prisão, eu me mato.
O rapaz abraçou-a com força, acalentando. Estavam muito juntos, num lugar que era para um só passageiro. O vagão ia repleto, com gente em pé, carregando volumes, pacotes, até galinhas, e em todas as estações continuavam subindo passageiros. Em pouco tempo não se conseguiria mais respirar. Ainda bem que a estação de Matucana já estava logo ali. Tomás apertou a boca contra a selva de cabelos de Mercedes.
— Juro que nunca vai acontecer nada de mau com você — prometeu. — Vou salvá-la sempre, como esta noite.
Beijou-a e viu que ela fechava os olhos. Pela janela, nos picos e encostas dos morros apareciam de quando em quando algumas aldeias, e as pedras do caminho já se coloriam com anúncios de publicidade. Era uma tarde de chumbo, com nuvens baixas, ameaçando uma chuva que nunca chegaria. O clima de Lima, aliás.
— Alguma coisa grave está acontecendo neste país, Tomasito — irrompeu de novo Lituma. — Como é possível que um bairro inteiro de Lima embarque numa lorota dessas? Uns gringos metendo crianças de cinco anos em carros de luxo para tirar seus olhos com bisturis ultradinâmicos. Que haja doidas que falem essas coisas, tudo bem. Lima também deve ter suas donas Adrianas. Mas que um bairro inteiro acredite nisso, e todo mundo saia correndo para buscar os filhos no colégio e comece a linchar forasteiros, não acha incrível?
— Olhos, não há iguais aos da minha Mercedes — murmurou o guarda. — Grandes como estrelas e cor de melaço.
Não parecia nada apreensivo agora. Estivera enquanto rodavam pelos Andes entregues ao volante daquele motorista a quem, para que nem pensasse em bancar o espertinho, Carreño mostrava a pistola de vez em quando. Mas durante a viagem fizeram amizade com ele. Aceitou, ou fingiu que aceitou, a história de que Carreño e Mercedes estavam fugindo de um marido ciumento que ia denunciá-la à polícia. Desceu do carro duas vezes para comprar comida e bebida e sugeriu que eles tomassem o trem em Cerro de Pasco. Como pagamento pelos serviços, Carreño lhe deixou as duas metralhadoras.
— Se quiser, devolva, como bom cidadão. Ou então venda e ganhe um monte de dinheiro com esses brinquedos.
— Vou decidir no cara ou coroa — disse o motorista, desejando feliz lua de mel aos dois. — Vou esperar umas horinhas antes de ir à polícia.
— O jornal dizia que em Chiclayo também aconteceu uma loucura parecida, no mês passado, e outra em Ferreñafe — prosseguiu Lituma. — Que uma mulher viu quatro gringos de bata branca carregando uma criança; que apareceu o cadáver de outra, sem olhinhos, num canal de irrigação e que os rouba-olhos deixaram cinquenta dólares no seu bolso. Fizeram buscas, como em Ayacucho, quando começaram os rumores de invasão de pishtacos. Lima, Chiclayo e Ferreñafe contagiadas com as superstições dos serranos. Igualzinho a Naccos. É uma espécie de epidemia, não acha?
— Para ser franco, estou pouco ligando, meu cabo. Porque, neste exato momentinho, eu sou feliz.
O trem chegou à estação de Desamparados por volta das seis da tarde. Começava a escurecer, mas as luzes ainda não estavam acesas, de maneira que Carreño e Mercedes atravessaram o alto vestíbulo na escuridão. Não havia policiais por ali nem na saída, além dos que estavam de guarda junto às grades do Palácio de Governo.
— É melhor que agora cada um vá para o seu lado, Carreñito — disse Mercedes, já na rua.
— Está pensando ir para a sua casa? Deve estar tão vigiada como a minha. Vai ser melhor nos esconder uns dias na casa da minha mãe.
Tomaram um táxi e, depois de dar um endereço em Breña, o rapaz inclinou-se e sussurrou no ouvido de Mercedes:
— Quer dizer que queria se livrar de mim?
— Vamos deixar as coisas bem claras — disse ela, em voz baixa, para que o motorista não ouvisse. — Aconteceu o que aconteceu, tudo certo. Mas eu lutei muito para ter uma vida independente. Não faça ideias falsas. Não vou ser rabicho de um guarda civil.
— De um ex-guarda civil — interrompeu o rapaz.
— Só vamos ficar juntos até sairmos desta confusão em que você nos meteu, ok, Carreñito?
— Não posso deixar de associar tudo isso com Dionisio e a bruxa — disse Lituma. — É como se aqueles dois selvagens tivessem razão e os civilizados, não. Saber ler e escrever, usar paletó e gravata, ter ido ao colégio e morar na cidade, isso não adianta nada. Só os bruxos entendem o que está acontecendo. Sabe o que Dionisio disse agora de tarde, na cantina? Que para ser sábio você tem que ser filho incestuoso. Toda vez que essa bicha abre a boca me dá calafrios. Em você, não?
— Eu também estou com calafrios agora, mas de outro tipo, meu cabo. Porque estou começando minha acidentada lua de mel.
Em Breña, quando desciam pela avenida Arica, as luzes esmaecidas da rua foram acesas. O táxi contornou o colégio La Salle, passou por uma ruela e ia virar onde o rapaz lhe indicara quando este lhe deu a contraordem:
— Siga em frente. Mudei de ideia. Vamos para os Bairros Altos.
Mercedes virou-se para ele, surpresa, e viu que Carreño estava com o revólver na mão.
— O diabo e a loucura se apoderando do Peru e você só fala nessa mulher. É verdade, não há ninguém mais egoísta que um apaixonado, Tomasito.
— Vi um sujeito encostado num poste, em frente à casa, e não gostei — explicou o rapaz. — Podia ser mera apreensão, mas eu não ia arriscar.
Nos Bairros Altos, mandou o motorista deixá-los em frente ao asilo de idosos e esperou o táxi partir para puxar Mercedes pelo braço por dois quarteirões, até uma casinha com portas e janelas gradeadas, no térreo de um edifício descolorido de três andares. A porta se abriu imediatamente. Uma mulher de roupão e chinelos, com um lenço na cabeça, os examinou de cima a baixo, sem alegria.
— As coisas devem andar mal, se aparece por aqui — disse ela à guisa de cumprimento. — Há mil anos que você não vem.
— É, tia Alicia, as coisas estão meio mal no momento — reconheceu Tomás, beijando a mulher na testa. — Está livre o quartinho que você aluga?
A mulher examinou Mercedes, da cabeça aos pés. Assentiu, a contragosto.
— Pode me alugar por uns dias, tia Alicia?
Ela se afastou, para deixá-los entrar.
— Vagou ontem — disse. Quando passou ao seu lado, Mercedes murmurou “boa-noite” e a mulher respondeu com um zumbido.
Conduziu-os por um corredor estreito, cheio de fotos nas paredes, abriu uma porta e acendeu a luz: era um dormitório com uma cama só, coberta com uma colcha cor-de-rosa, e um baú que ocupava a metade do quarto. Havia uma pequena janela sem cortinas e, acima da cabeceira, um crucifixo de madeira.
— Esta noite não tem comida, e já é tarde para comprar alguma coisa — avisou a mulher. — Posso preparar um almoço, amanhã. Só que, embora o quarto tenha uma cama só, como vocês são dois...
— Vou lhe pagar em dobro — aceitou o rapaz. — O que é justo é justo.
Ela concordou e fechou a porta quando saiu.
— Essa história de que você é um santinho deve ser conversa — comentou Mercedes. — Nunca trouxe mulheres aqui? Aquela antipática nem se alterou quando me viu.
— Até parece que você está com ciúmes — assobiou ele.
— Ciúmes?
— Sei que não — disse Carreño. — Era só para ver se, fazendo uma brincadeira, melhorava esta sua cara de susto. Eu nunca trouxe ninguém aqui. E Alicia não é minha tia. Todo mundo a chama assim. Este era o meu bairro, numa época. Vamos nos lavar e sair para comer.
— Quer dizer que, segundo aquele veado, os sábios são filhos de irmão com irmã, ou de pai com filha, selvagerias assim — divagava Lituma. — Essas coisas que ouço em Naccos, nunca tinha ouvido em Piura. Dionisio pode ser um filho incestuoso, claro. Não sei por que ele e a bruxa me intrigam tanto. No fundo, são eles que mandam aqui. Você e eu nem apitamos. Tento arrancar informações sobre eles dos peões e capatazes e colonos, mas ninguém solta um pio. E, ainda por cima, acho que caçoam de mim. Sabe o que o huancaíno da niveladora me disse sobre Dionisio? Que seu apelido em quéchua era...
— Comedor de carne crua — interrompeu o adjunto. — Ora, meu cabo, vai me contar também que um raio matou a mãe do cantineiro?
— São coisas importantes, Tomasito — resmungou Lituma. — Para entender sua idiossincrasia.
Mercedes estava sentada na cama e olhava para Carreño de um jeito que o rapaz sentiu como condescendente.
— Não quero enganar você — disse outra vez, de maneira amistosa, tentando não feri-lo. — Não sinto por você o que você sente por mim. É melhor dizer, não é? Não vou morar com você, não vou ser sua mulher. Meta isso na cabeça, Carreñito. Só vamos ficar juntos até sairmos desta encrenca.
— Até lá, há tempo de sobra para você se apaixonar por mim — ronronou ele, acariciando seus cabelos. — Além do mais, agora você não poderia me deixar nem se quisesse. Quem vai tirar você desta encrenca, a não ser eu? Ou melhor, quem a não ser meu padrinho pode nos tirar desta confusão?
Os dois se lavaram num banheiro minúsculo, que parecia de brinquedo, e foram para a rua. Carreño conduziu Mercedes pelo braço, num passo seguro, por umas ruas em penumbra cheias de turminhas de rapazes fumando nas esquinas, até uma chifa, com reservados protegidos por biombos gordurosos. O local estava cheio de fumaça, cheirando a fritura, e um rádio a todo volume espalhava música de rock pelo ambiente. Sentaram-se perto da porta e, além de vários pratos para dividir, o rapaz pediu uma cerveja gelada. Junto com a música ouviam palavrões e um ritmo de caixa.
— Uma vez me apostaram nos dados, sabe, Carreñito. — Mercedes olhava para ele sem sorrir. Estava abatida, com umas olheiras profundas; seus olhos já não brilhavam como em Tingo María ou em Huánuco. — O maldito azar me persegue desde que nasci, não há o que fazer.
— Apostaram nos dados? — Lituma ficou interessado, pela primeira vez na noite. — Conte como foi isso, Tomasito.
— Isso mesmo — disse ela, lúgubre. — Uns bêbados e vagabundos da pior espécie. Nos dados. Foi daí que eu saí, daí venho. E me fiz sozinha, ninguém me ajudou. E estava conseguindo sair do buraco, até que você apareceu no meu caminho. Você me empurrou de novo para o fundo, Carreñito.
— Ora, finalmente fiz o senhor se esquecer dos pishtacos, dos rouba-olhos e de dona Adriana e Dionisio, meu cabo.
— É que, anos atrás, vi uma coisa parecida e fiquei impressionado — respondeu Lituma. — A aposta foi na terra dela, em Piura?
— Não me disse onde nem como foi. Só falou isso, e eu fiquei de queixo caído. Apostá-la nos dados, como uma coisa! O meu amor!
— Não contou se foi num barzinho de uma mulher que chamavam de Chunga, ali perto do Estádio de Piura?
— Não quis me falar mais nada. Só isso, para me mostrar como tinha subido na vida desde que começou. E que eu a fizera retroceder matando o Chancho.
— Que curioso — disse Lituma. — Nesse bar vi um amigo meu, um daqueles inconquistáveis de que já falei, vendendo sua femeazinha à Chunga, para continuar jogando pôquer. E se as piuranas da sua história e da minha fossem a mesma? Tem certeza de que o amor da sua vida se chama Mercedes, e não Meche?
— Bem, as Mercedes costumam ser chamadas de Meche, meu cabo.
— É por isso que também detesto a ideia de viver me escondendo — disse ela. — Para mim, tudo isso tinha ficado para trás. Quero ir para a minha casa, tomar banho no meu banheiro, que está sempre limpinho. Mudar de roupa e limpar esta sujeira que se acumula no meu corpo há cinco dias.
Ia dizer mais alguma coisa, porém nesse momento o garçom da chifa entrou com os pratos e Mercedes se calou. Quando ele perguntou se iam comer com talheres ou com pauzinhos, Carreño respondeu com pauzinhos.
— Vou ensiná-la a comer feito os chineses, amor. É facílimo. Depois que aprende, faz com os pauzinhos as mesmas coisas que faz com faca e garfo.
— Tudo ia muito bem na minha vida — disse ela, enquanto comiam. — Estava economizando para ir para os Estados Unidos. Uma amiga de Miami ia me arranjar um trabalho lá. E, agora, de novo com uma mão atrás e outra na frente.
— Meche, Mercedes, que coincidência, o senhor tem razão — disse Tomasito. — Podiam ser a mesma pessoa, por que não. Uma coincidência dessas é para fazer acreditar em milagres. Ou em pishtacos. Só que agora o senhor vai ter que me dizer...
— Calma, eu nunca trepei com a Meche, Tomasito. Infelizmente. Era a mulher mais linda de Piura, juro.
— Se você quer ir para os Estados Unidos, vamos para lá — prometeu o rapaz. — Sei como entrar sem visto, pelo México. Um cara que eu conheço está ficando milionário com esse negócio.
— Pode-se saber qual é o salário de um guarda civil? — disse ela, olhando-o com compaixão. — Um pouquinho mais do que eu pago à minha empregada, imagino.
— Talvez menos que isso. — Ele riu. — Por que acha que eu tenho que fazer meus biscates, protegendo esses porcos enquanto eles caem na farra com suas mulheres em Tingo María?
Comeram por algum tempo em silêncio e acabaram com a garrafa de cerveja. Depois pediram sorvetes e o rapaz acendeu um cigarro. Fumou fazendo círculos, que disparava para o teto.
— O engraçado de tudo isto é que você parece contente — disse ela.
— Estou contente — respondeu ele, mandando-lhe um beijinho pelo ar. — Quer saber por quê?
Meio a contragosto, Mercedes sorriu.
— Já sei o que vai me dizer. — Fitou-o com um olhar que Carreño não conseguia decifrar se era de pena ou de desdém e acrescentou: — Apesar de você ter ferrado a minha vida, não consigo sentir raiva.
— Melhor do que nada — alegrou-se ele. — Assim se começa, depois você acaba se apaixonando.
Ela riu, com mais entusiasmo que antes.
— Já se apaixonou outras vezes?
— Nunca como agora — afirmou o rapaz, com segurança. — Nunca me apaixonei por ninguém como agora por você. Bem, mas tampouco tinha conhecido uma mulher tão linda, até hoje.
— Pode ser Mechita, a vida tem essas coincidências. Trouxe uma foto dela?
— Não tivemos tempo nem para tirar uma foto juntos — lamentou o guarda. — Não sabe como me arrependo. Seria muito bom, além de recordá-la, poder vê-la.
— Eu o tinha conhecido poucas semanas antes. Numa peña típica de Ravina. Ele foi assistir ao show. Depois me levou para a sua casa, em Chacarilla del Estanque. Que casa! Me deu presentes. Quis me instalar num apartamento. O ouro e o mouro. Tudo, com a condição de que eu só ficasse com ele. Assim começou a maldita viagem a Pucallpa. Vem passar o fim de semana comigo, você vai conhecer a selva. E fui. E, para meu azar, voltei para Tingo María.
O rapaz ficou muito sério.
— E desde a primeira vez que foi para a cama com o Chancho, ele bateu em você?
Arrependeu-se de ter falado no mesmo instante.
— Você está me controlando? — perguntou ela, contrariada. — Cismou mesmo que agora é meu amante ou meu marido?
— Estamos tendo a nossa primeira briga — disse o rapaz, tentando ajeitar as coisas. — Acontece com todos os casais. Não vamos falar mais desse assunto. Está bem?
Ficaram calados por um tempo e Carreño pediu duas xícaras de chá. Enquanto bebiam, Mercedes voltou a falar. Sem raiva, mas com firmeza:
— Apesar de tê-lo visto matar um sujeito, você parece boa pessoa. E por isto lhe digo pela última vez, Carreñito. Lamento que tenha se apaixonado por mim. Mas não posso corresponder. É minha maneira de ser. Decidi há muito tempo que não podia me amarrar em ninguém. Por que acha que nunca me casei, então? Por isso. Só tive amigos, sem compromisso, como o Chancho. Todas as minhas relações foram assim. E assim vão continuar...
— Até irmos para os Estados Unidos — interrompeu ele.
Mercedes acabou sorrindo.
— Nunca fica zangado?
— Com você não vou zangar nunca. Pode continuar me dizendo as coisas mais horríveis.
— Para dizer a verdade, você merece — reconheceu ela.
O rapaz pagou a conta. Quando saíram, Mercedes disse que queria telefonar para o seu apartamento.
— Emprestei para uma amiga, enquanto estava na selva.
— Não diga de onde está falando, nem dê detalhes de quando vai voltar.
O telefone estava ao lado da caixa e Mercedes teve que passar sob o balcão. Enquanto falava, mesmo sem ouvir o que ela dizia, Carreño percebeu que recebia más notícias. Voltou transfigurada, com o queixo tremendo.
— Dois sujeitos foram à minha casa perguntando por mim e exigiram que minha amiga dissesse onde eu estava. Eram da polícia, mostraram os documentos.
— O que você disse?
— Que estava ligando de Tingo María, que depois eu explicava — disse Mercedes. — O que vou fazer agora, meu Deus.
— E o que houve com a tal Meche, que seu amigo vendeu à sapatona para continuar jogando pôquer? — perguntou Tomás.
— Sumiu, nunca mais se soube dela — respondeu Lituma. — Um mistério que intrigou toda Piura.
— Agora você vai dormir e esquecer tudo isso — disse o rapaz. — Ninguém vai nos procurar na casa da tia Alicia. Fique tranquila, amorzinho.
— E a Chunga nunca quis nos dizer uma palavra sobre o destino de Mechita.
— Pelo visto os desaparecidos o perseguem, meu cabo. Não ponha a culpa só em Dionisio ou em dona Adriana, nem nos terrucos nem nos pishtacos. Pelo que vejo, o culpado por esses desaparecimentos poderia muito bem ser o senhor.