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VIII

— Passou um huayco em cima do senhor, e agora está aqui, vivinho da silva. — O cantineiro deu uma palmada no ombro de Lituma. — Parabéns, cabo!

Dionisio era o único que parecia conservar o bom humor no ambiente fúnebre da cantina. Estava lotada, mas os ­peões tinham cara de condenados. Divididos em grupos, de copos na mão, fumavam sem parar e cochichavam feito vespas. A insegurança transfigurava seus rostos e Lituma podia ver nos seus olhos o medo animal que os devorava por dentro. Com os estragos da avalanche, desta vez nada os livraria de ficar sem trabalho. Não era à toa que os serranos estavam tão lúgubres, puta merda.

— Nasci de novo lá em cima — reconheceu o cabo. — Não recomendo a ninguém essa experiência. Ainda sinto nos ouvidos o estrondo daquelas pedronas filhas da mãe rolando por todos os lados.

— Então, rapazes, um brinde pelo cabo — propôs Dionisio, levantando o copo. — Vamos agradecer aos apus de Naccos por salvarem a vida da autoridade!

“Esse veado ainda por cima debocha de mim”, pensou o cabo. Mas ergueu seu copo e agradeceu com um meio sorriso e uns gestos aos peões que brindaram por ele. O guarda Tomás Carreño, que tinha saído para urinar lá fora, voltou esfregando as mãos.

— Isso que lhe aconteceu nunca tinha acontecido com ninguém — exclamou, com a mesma expressão de alvoroço e pasmo de quando ouviu seu chefe contar a aventura. — Os jornais deviam escrever sobre isso.

— É pura verdade — disse um peão com o rosto marcado de varíola. — Desde a história de Casimiro Huarcaya, não se via nem ouvia aqui nada igual. Encarar um huayco e sair andando!

— Casimiro Huarcaya, o albino? — perguntou Lituma. — Aquele que desapareceu? O tal que se fazia passar por pishtaco?

O albino entrou tarde, quando todos na cantina, como sempre acontece na noite de sábado, já estavam de porre. Ele também; veio com os olhos vermelhos e assustadiços debaixo das suas pestanas tão alvas que chegavam a incomodar. E se anunciou da porta como costumava fazer, bêbado e provocativo: “Chegou o degolador, o nacaq, o pishtaco. Fiquem sabendo disso! E se não acreditam, caralho, então olhem.” Tirou do bolso traseiro uma pequena presilha e exibiu-a, levantando o pé direito e soltando uma gargalhada tranquilizadora. Depois, fazendo caretas de palhaço, foi cambaleando acotovelar-se no balcão, onde dona Adriana e seu marido se esfalfavam atendendo os fregueses. Batendo nas tábuas, pediu um copinho do forte. Lituma adivinhou nesse instante o que lhe ia acontecer.

— Quem, senão ele — respondeu o da varíola, confirmando. — Não sabia que os terrucos o executaram e depois ressuscitou, como Jesus Cristo?

— Eu não sabia de nada, aqui sou o último a saber das coisas — suspirou Lituma. — Executaram o homem e ele ressuscitou?

— Bem, o Pichincho está exagerando — adiantou-se um moreninho com um cabelo que parecia de farpas de porco-espinho. — Executaram de mentirinha, acho. Como é possível, então, que ele tenha levado um tiro e acordado sem uma feridinha?

— Pelo visto, agora todo mundo conhece a vida de Casimiro Huarcaya de cor e salteado — disse o guarda Carreño. — Posso saber por que disseram ao cabo e a mim que não sabiam nada sobre o albino, quando ele desapareceu?

— Isto é uma coisa que eu também gostaria de saber — murmurou Lituma.

Houve um silêncio apreensivo, e as caras de ângulos fortes, narizes chatos, grossos lábios tumefactos e olhinhos desconfiados que os cercavam se escudaram numa impenetrabilidade sideral que fazia o cabo sentir-se como um marciano em Naccos. Até que, após algum tempo, o serrano com cara de varíola mostrou uma fileira de grandes dentes brancos, num sorriso aberto.

— É que não tínhamos nenhuma confiança no cabo.

Houve alguns murmúrios de aprovação e o cantineiro se apressou a servir o albino, olhando-o com aquele sorrisinho vítreo e zombeteiro que nunca abandonava. Tinha o rosto mais inchado que de costume e, na fumaça dos cigarros, suas bochechas redondas mostravam um brilho rosáceo sob os pontos de barba. Estava maior e mais flácido que de outras vezes e suas extremidades, seus ombros, seus ossos, pareciam meio pendurados. Mas era muito forte. Lituma o tinha visto levantar um bêbado do chão e jogá-lo na rua; e não foi por briga, mas porque o homem começou a chorar; aqueles que, excitados pelo álcool, se metiam em encrencas, Dionisio deixava ficar na cantina e até incentivava os outros fregueses a comprarem a briga, como se essas escaramuças alcoólicas o divertissem até dizer chega. O albino bebia uns golinhos do seu copo e Lituma, angustiado, inquieto, esperava que ele voltasse a falar. E falou, encarando a compacta assistência de agasalhos e xales:

— Nenhum cigarrinho para o degolador? Seus miseráveis! Pães-duros!

Ninguém se virou para olhar, ninguém lhe prestou a menor atenção e ele fez uma careta, como se sentisse uma violenta cólica no estômago ou um ataque de raiva. Tinha o cabelo, as sobrancelhas e as pestanas muito brancas, mas o que mais desconcertava naquele homenzarrão era a brancura da penugem de sua pele e os alfinetinhos brancos da barba. Usava um macacão e um casaco de náilon com capuz, que deixava aberto exibindo uma moita de pelos grisalhos no meio do peito.

— Tome aqui, Casimiro — o cantineiro deu-lhe um cigarro. — A música está recomeçando, você vai poder dançar.

— Que bom — disse Lituma. — Quer dizer que finalmente vão me tratar como um serrano, e não como urubu na puna. Isto merece um brinde. Desça uma garrafinha, Dionisio, e sirva uma rodada para os amigos, por minha conta.

Houve grunhidos de agradecimento e, enquanto Dionisio abria a garrafa e dona Adriana dava copos aos que não tinham, o cabo e seu adjunto se misturaram à freguesia. Todos tinham se aproximado do balcão e estavam apertados, formando um cacho, como faziam para ver o final de uma partida de dados com uma aposta alta.

— Então os terrucos deram um tiro em Huarcaya e ele saiu ileso? — perguntou Lituma. — Contem-me como foi.

— Ele falava isso quando seu animal o visitava, ou melhor, quando a bebida lhe subia à cabeça — disse o homem de cabeça de porco-espinho. — Andava pela serra inteirinha procurando uma garota com quem tivera um filho. E uma noite chegou a um povoado, na província de La Mar, onde quase o lincharam pensando que era pishtaco. Foram os terrucos, que apareceram justamente nessa hora, que o salvaram. E quem era o chefe dos terrucos? A garota que ele estava procurando!

— Como, salvaram? — interrompeu Carreño. — Não é que o tinham executado?

— Silêncio — ordenou Lituma. — Não interrompa.

— Salvaram de ser linchado pelos aldeãos que o acusavam de ser pishtaco, mas os terrucos fizeram um julgamento popular na mesma hora e o condenaram à morte — o porco-espinho complementou a história. — A própria garota foi encarregada de executá-lo. E, sem pestanejar, disparou seu projétil.

— Que história — disse Lituma. — E como chegou a Naccos, depois de morto?

O albino não respondeu, ficou um bom tempo tentando acender o cigarro; mas estava tão bêbado que a mão com o fósforo não conseguia pôr a chaminha onde devia. No rosto entre brilhante e desbotado de Dionisio, Lituma notou um olhar indefinível, sarcástico, regozijado, de quem sabe o que vai acontecer, e se deleita e desfruta com antecedência. Ele também sabia o que ia acontecer e sentia calafrios. Em compensação, os outros fregueses pareciam não perceber nada; alguns estavam sentados nas caixas, mas a maioria permanecia de pé, em grupos de dois ou três, com as garrafas de cerveja, pisco ou anisado nas mãos ou fazendo-as circular. Do rádio, instalado no alto, atrás do balcão, entre as interferências elétricas frequentes saíam a todo volume as canções alternadas do trópico e dos Andes que a Rádio Junín sempre tocava nas noites de sábado. Como que ferido em seu amor-próprio pela falta de reação dos outros, o albino tornou a desafiá-los, dando as costas ao cantineiro e mostrando aos presentes uns olhos de peixe recém-tirado da água.

— Ouviram que eu sou o degolador? O pishtaco ou, como dizem em Ayacucho, o nacaq. É assim que corto as minhas vítimas em fatias.

Voltou a ensaiar uns passes no ar com sua faca e repetiu as caretas de palhaço, quase implorando que lhe prestassem atenção, que o festejassem, que rissem dele ou o aplaudissem. Dessa vez tampouco ninguém deu sinais de notar sua presença. E, no entanto, Lituma sabia: todos eles estavam com seus cinco sentidos fixos em Casimiro Huarcaya.

— Esta, pelo menos, é a versão que ele conta do que aconteceu, não é? — perguntou o homem da varíola, e vários peões apoiaram. — Que a terruca o executou, disparando sua arma a um metro de distância. E que Huarcaya morreu.

— Sentiu que estava morrendo, Pichincho — corrigiu o porco-espinho. — Na verdade, desmaiou. De susto, é claro. E quando acordou não tinha ferida de bala, só os hematomas dos pontapés que levou dos que o acusaram de pishtaco. A terruca só quis assustá-lo, mais nada.

— Huarcaya disse que viu o tiro sair da escopeta, direto na cabeça dele — insistiu o homem da varíola. — A mulher o matou e ele ressuscitou.

— Que história — repetiu Lituma, espiando a reação de um e outro e o de mais à frente. — Ele se salvou de uma execução e veio até Naccos para acabar desaparecendo. Será que se salva desta vez, também?

Eles bebiam seus copinhos de pisco ou de anisado e passavam a garrafa e o copo de cerveja de mão em mão, fazendo um pequeno brinde: “Junto com você, irmão.” Fumavam, conversando, e cantarolavam a música do rádio entre os dentes. Um deles, mais bêbado que os outros, abraçando uma femeazinha invisível e de olhos fechados, dava uns passos de dança desajeitados com sua sombra na parede. Como sempre, Dionisio, naquele estado de efervescência que a noite lhe causava, animava: “Dancem, dancem, divirtam-se, não importa que aqui não haja saias, de noite todos os gatos são pardos.” Agiam como se Casimiro Huarcaya não estivesse ali, os hipócritas. Mas Lituma sabia muito bem que, mesmo disfarçando tanto, todos os peões observavam o albino de esguelha.

— O homem que sai das pontes, de trás das pedras, o homem que mora nas grutas, igualzinho ao tal que dona Adriana matou, esse sou eu! — gritava, com voz de trovão. — O homem que aparece no caminho e sopra os pós mágicos. A senhora sabe do que estou falando, não é, dona Adriana? Vamos ver, mate-me também, se puder, como mataram o Salcedo, a senhora e o narigudo. Já me mataram uma vez, nem os terrucos conseguiram. Caralho, sou imortal!

Voltou a encolher-se e seu rosto branquelo ficou transfigurado, como que atingido por aquela súbita cãibra na barriga, mas, um instante depois, recuperando-se, ele se ergueu e levou com ânsia o copo já vazio aos lábios. Sem perceber, continuou sorvendo e lambendo o copinho com verdadeiro deleite. Até que escapou dos seus dedos e rolou para o chão. Então Casimiro Huarcaya ficou quieto, carrancudo, com as mãos no rosto, olhando obsessivamente, com os olhos esbugalhados as ranhuras, as inscrições, as manchas, as queimaduras de cigarro nas tábuas do balcão. “Não vá, não vá”, sussurrava Lituma, sabendo que o albino não podia ouvi-lo. “Nem pense em sair da cantina agora. Fique por último, até que os outros tenham saído ou estejam tão bêbados que nem se lembrem mais de você.” Mas enquanto dava este conselho ouviu o risinho de víbora de Dionisio. Procurou-o e, de fato, embora aparentemente olhasse para os grupos de homens que enchiam o local e continuasse animando-os com gestos a dançarem, sua cara bochechuda estava rindo com a boca totalmente aberta. Lituma não teve a menor dúvida: estava zombando dos seus esforços para que as coisas não fossem como iam ser.

— Quem sabe também se salva desta — disse Pichincho, coçando as marcas de varíola como se estivessem ardendo. — Desde o que lhe aconteceu com a terruca, Huarcaya ficou meio perturbado. Não lhe contaram que ele teimava que era pishtaco? Ficou temático. Fazia o seu número aqui, toda noite. Pode ser que não tenha desaparecido, quem sabe resolveu se mudar de Naccos sem se despedir.

Falava com tanta falsidade que Lituma teve vontade de perguntar se pensava que ele e o seu adjunto eram tão imbecis ou tão irresponsáveis quanto ele. Mas foi Tomasito quem respondeu:

— Ir embora sem receber o salário? Isto é a melhor prova de que o albino não sumiu por vontade própria: não foi receber os últimos sete dias de trabalho. Ninguém dá uma semana de presente à companhia assim, à toa.

— Ninguém que não esteja meio perturbado — replicou Pichincho, sem a menor convicção, resignando-se a entrar no jogo. — Huarcaya ficou com um parafuso a menos desde o que lhe aconteceu com a terruca.

— E afinal, que importância tem que o homem haja desaparecido — disse outro, que até então não tinha falado: um corcundinha de olhos côncavos e dentes verdes de tanto mascar coca. — Não vamos todos desaparecer, por acaso?

— E depois desse huayco filho da mãe mais rápido do que você pensa — exclamou uma voz gutural, de alguém que Lituma não identificou.

Nesse instante percebeu que, cambaleando, o albino se dirigia para a porta. Os homens se afastavam para deixá-lo passar, ainda sem vê-lo, ainda simulando que Casimiro Huarcaya não estava ali nem existia. Antes de cruzar a porta e desaparecer no frio e na escuridão, o albino desafiou-os pela última vez, com a garganta rachada de raiva ou de cansaço:

— Vou degolar uns e outros. Há! Com a gordura, frito as fatias que vou comer. Estas são as noites boas do degolador. Morram, seus merdas!

— Não reclame, afinal de contas o huayco não matou ninguém — disse dona Adriana, do outro extremo do balcão. — Não houve sequer um ferido. Até o cabo, que se meteu no trajeto das pedras, se salvou. Dê graças a Deus! Dance num pé só em vez de ficar reclamando, seu ingrato!

Saiu e encaminhou-se direto para os barracões, suavemente iluminados por umas lâmpadas de luz amarela que, aos sábados, a companhia mantinha acesas até as onze, uma hora a mais que no resto da semana. Mas, depois de dar uns passos, Huarcaya tropeçou e caiu no chão, como um fardo. Ficou um bom tempo jogado ali, amaldiçoando-se, protestando e fazendo uns esforços complicados para se levantar. Foi conseguindo, aos poucos, primeiro um pé, depois o joelho da perna contrária, depois os dois pés, depois um grande impulso com as duas mãos até conseguir se levantar. Para poder avançar sem cair de novo, encolheu-se como símio, balançando os braços com força para manter o equilíbrio. Iria em direção ao barracão? As luzinhas amarelas se moviam como vaga-lumes, mas ele sabia que não eram, porque na serra, nestas alturas da Cordilheira, por acaso havia vaga-lumes? Eram as lâmpadas do barracão. Subiam, desciam, corriam para a direita e para a esquerda e se aproximavam e se afastavam. Soltando uma gargalhada, Casimiro ficou uns instantes tentando pegá-las. Ao vê-lo fazer essas palhaçadas, Lituma também ria, mas estava suando gelo e tiritando. Conseguiria chegar ao barracão, onde tinha à sua espera seu estrado de madeira, com um colchão de palha e uma manta? Dava voltas, avançava, recuava, girava, sempre tentando manter o rumo que lhe apontavam aquelas luzinhas fugidias que, de segundo em segundo, enlouqueciam cada vez mais. Estava tão cansado que não tinha forças sequer para xingá-las. Mas, de repente, já dentro do barracão, de gatinhas, estava tentando subir em seu catre. Conseguiu, batendo o rosto num travessão e sentindo que arranhara a testa e os braços. Encolhido, de bruços, os olhos fechados, sentiu ânsias de vômito e tentou vomitar, mas não conseguiu. Então quis fazer o sinal da cruz e rezar, mas o cansaço não lhe permitiu levantar o braço e, além do mais, não se lembrava do pai-nosso nem da ave-maria. Caiu numa letargia ácida, com tremores, arrotos e uma dor migrante que lhe percorria a barriga e o peito antes de martirizá-lo nas axilas, pescoço e coxas. Saberia que viriam buscá-lo em breve?

— De que adianta ter-nos salvado se o huayco nos deixou sem trabalho, mamay — replicou o corcundinha a dona Adriana. — Não viu como esmigalhou as pás, os tratores, a niveladora?

— E isso é motivo para comemorar, dona Adriana? — perguntou o porco-espinho. — Gostaria que alguém me explicasse isso, porque não entendo.

— Não nos deixou sem teto? Não soterrou uns cem metros já prontinhos para o asfalto? — ecoou outro peão, de uma das rodinhas de fregueses. — Agora já têm o pretexto que queriam para parar a obra. Não há mais dinheiro! Acabou-se! Apertem os cintos, e que se danem!

— Isto aqui poderia muito bem ser agora um apocalipse, portanto não chorem — replicou dona Adriana. — Vocês poderiam estar agora sem pernas, sem mãos, sem olhos, com todos os ossos quebrados, condenados a viver se arrastando como vermes. E esses piolhentos mal-agradecidos ainda choram!

— Cante e não choooore! — interrompeu-a Dionisio, em altos brados. — Vamos, vai ser melhor afogar as mágoas dançando um huaynito à maneira de Sapallanga, senhores.

Estava no centro da cantina, empurrando os homens, tentando formar um trenzinho para dar voltas e mais voltas ao compasso da muliza que o rádio tocava. Mas Lituma percebeu que nem os mais bêbados se animavam a acompanhá-lo. O álcool, desta vez, em lugar de ajudar a esquecer um futuro sinistro, ainda o enegrecia mais. Os pulos e cantorias do cantineiro deram uma ligeira vertigem em Lituma.

— Está sentindo alguma coisa, meu cabo? — Tomasito segurou-o pelo braço.

— O álcool subiu — gaguejou Lituma. — Já vai passar.

Já haviam desligado o motor do acampamento e faltavam algumas horas para o amanhecer. Mas eles tinham lanternas e se deslocavam com desenvoltura nas trevas perfuradas por cilindros amarelos. Eram tantos que mal cabiam no espaço estreito, mas não se empurravam nem estorvavam um ao outro, não se apressavam nem pareciam assustados, enfurecidos, e muito menos nervosos ou inseguros. Pareciam tranquilos e confiantes, e, o mais estranho, pensava Lituma, sem o menor cheiro de álcool no hálito frio que traziam do exterior. E se moviam com uma tranquila determinação, sabendo o que faziam, o que iam fazer.

— Quer ajuda para vomitar? — perguntou Tomasito.

— Ainda não — respondeu o cabo. — Mas se eu começar a dançar feito esses veados, então me segure e não deixe.

Quem foi buscar o albino o fez tocando em seu ombro, sem censura e com certa delicadeza:

— Vamos, Huarcaya, vamos. Levante-se de uma vez.

— Ainda está escuro — protestou o albino, a meia-voz. E, na sua confusão, acrescentou uma coisa que para Lituma era uma estupidez: — Hoje é domingo, só trabalham os vigias.

Ninguém riu. Ficaram imóveis e calados e, no silêncio pesado, o cabo pensou que todos ouviam os saltos ferozes do seu coração.

— Chega, Huarcaya — ordenou o porco-espinho?, o da varíola?, o corcundinha? — Não seja frouxo, levante-se.

Na escuridão, várias mãos se estenderam para o estrado e ajudaram o albino a sentar-se e a levantar. Permanecia ereto com muita dificuldade; sem tantos braços segurando, teria se desconjuntado como um boneco de pano.

— Não consigo nem me levantar — protestou. E, mesmo sem resquícios de ódio, nem de vontade, como se fosse uma questão de princípio, ainda tentou insultá-los: — Seus merdas!

— É o porre, Huarcaya — consolou-o alguém, de boas maneiras.

— Está se sentindo assim porque você não é mais você.

— Não consigo nem andar, porra — protestava o albino, entristecido. Sua voz estava muito diferente de antes, quando se gabava na cantina de ser o degolador. Agora parecia a voz de um homem resignado, pensou Lituma, de alguém que conhece a sua sorte e a aceita.

— É a bebedeira, repetiu outro — animando-o. — Não se preocupe, Huarcaya, vamos ajudar você.

— Eu também estou caindo, meu cabo — declarou Tomasito, sem soltar o seu braço. — Só que em mim ninguém nota, o porre fica lá por dentro. E não é para menos, devemos ter tomado uns cinco piscos, não foi?

— Viu como eu tinha razão? — Lituma virou-se e viu o adjunto lá longe, apesar de sentir sua mão apertando-lhe o braço. — Aqueles serranos sabiam mil coisas sobre o albino e nos fizeram de bobos. Aposto que também sabem onde ele está.

— Estou tão enjoado que esta noite não vou poder pensar em você — disse Tomás. — Não é que esteja festejando nada, é que um huayco passou em cima do meu cabo e não o matou. Imagine, Merceditas! Imagine como ia ser ficar sozinho no posto de Naccos, sem ter com quem falar de você. Foi só por isso que me embebedei, amorzinho.

Eles o puxavam pelos braços rumo à porta do barracão, sem maltratá-lo, sem obrigá-lo a se apressar. O movimento de tantas silhuetas naquele espaço estreito fazia a dupla fileira de beliches de madeira ranger e mover-se. Nos cones de luz das lanternas surgiam por instantes, furtivos, semiocultos pelos xales ou pelos capacetes de metal ou pelos chullos de lã puxados até as orelhas, os rostos dos recém-chegados. Lituma os reconhecia e os esquecia.

— Que anisado venenoso esse filho da puta do Dionisio me serviu — o albino se queixou debilmente, tentando em vão se enfurecer. — Que beberagem aquela bruxa da dona Adriana colocou no meu copo. Acabaram comigo.

Todos permaneciam calados, mas aquele silêncio agourento era loquaz para Lituma. O cabo estava ofegante, com a língua de fora. Era isso. Os escândalos, as bravatas e loucuras do albino não eram dele, eram das imundícies que, sabe-se lá com que manhas, lhe deram de beber na cantina. Era por isso que falava aquelas barbaridades, era por isso que estava tão excitado. Foi por isso que fizeram pouco caso quando os desafiou. Com toda razão, com toda razão: como podiam se ofender se eles mesmos o tinham deixado naquele estado. Já consideravam Casimiro Huarcaya meio morto.

— Deve estar fazendo um frio do cacete lá fora — lamentou-se Tomasito.

— Não, nem tanto — respondeu alguém do grupo. — Agorinha mesmo saí para mijar e não estava.

— É que com o calorzinho da bebida não se sente, compadre.

— Com este porre, não vai sentir frio nenhum, Huarcaya.

Levavam-no, guiavam-no, seguravam-no, passando-o de mão em mão, e Lituma perdeu-o de vista, momentaneamente, na grande mancha de sombras animadas que os esperava fora do barracão. Estavam se mexendo e murmurando, mas quando o albino surgiu entre eles e o viram, sentiram ou adivinharam, todos emudeceram e ficaram imóveis, como quando, pensou Lituma, na porta da igreja, carregados nos ombros da irmandade, aparecem o Cristo, a Virgem, o santo padroeiro, e começa a procissão. Nas trevas geladas da noite alta, sob milhões de estrelas reverentes, entre os vultos das colinas e dos barracões, reinavam agora a solenidade intensa e a expectante devoção daquelas missas de Semana Santa que Lituma lembrava da sua infância. Estavam muito longe, como o rosto congestionado de Tomasito. Aguçando os ouvidos, conseguiu escutar Casimiro Huarcaya, de quem a espessa multidão já o afastara um bom trecho:

— Não sou inimigo de ninguém e não quero ser. Foi o veneno que Dionisio me deu! A poção que a mulher dele preparou! Eles me fizeram falar bobagens, agorinha mesmo.

— Nós sabemos disso, Huarcaya — tranquilizavam-no, com palmadinhas no ombro. — Não se preocupe. Ninguém aqui é seu inimigo, compadre.

— Estamos todos muito agradecidos a você, irmão — disse uma voz, tão suavezinha que poderia ser de mulher.

“Sim, sim”, repetiram vários, e Lituma imaginou que muitas dezenas de cabeças confirmavam, demonstrando silenciosamente ao albino seu reconhecimento, seu afeto. Sem necessidade de qualquer ordem, sabendo o que cada um devia fazer, a multidão começou a avançar e, embora ninguém falasse, nem cochichasse, ouvia-se como avançava, compacta, sincrônica, comovida até os ossos, trêmula, a caminho das colinas. “A mina abandonada, onde era Santa Rita”, pensou Lituma. “Estão indo para lá.” Ficou escutando o rumor de tantas pisadas nas pedras, o chapinhar nas poças, o suave deslizar dos corpos, o rumor dos toques e, quando calculou que já havia passado bastante tempo sem ouvir o albino protestar, perguntou em voz baixa a um homem ao seu lado:

— Casimiro Huarcaya já está morto?

— É melhor não falar disso.

Mas o que estava à sua esquerda se apiedou da sua ignorância e lecionou, numa voz pouco audível:

— Para ser bem recebido, ele tem que chegar vivo lá embaixo.

Iam jogá-lo pela boca da mina abandonada ainda consciente. Subiriam até lá em procissão, calados, concentrados, transidos, segurando-o pelos braços, levantando-o cada vez que tropeçava, acalmando-o, estimulando-o, dizendo-lhe que não o odiavam, que o apreciavam muito, que agradeciam o que ia fazer por eles, e quando chegassem àquele boqueirão que as lanternas iluminariam, onde o vento estaria assobiando, então se despediriam dele, empurrariam, e o ouviriam cair com um ganido prolongado, e se espatifar com uma remota pancada seca, e o adivinhariam em pedaços nas pedras do fundo do socavão, ao chegar a esse encontro.

— Ele já não sente nem entende nada — disse alguém às suas costas, como se estivesse lendo seus pensamentos. — O cabo Lituma está nocauteado.

 

Timoteo Fajardo não foi bem meu primeiro marido, meu único marido completo foi Dionisio. Eu e Timoteo nunca nos casamos, só nos juntamos. Minha família o tratou muito mal e o povo de Quenka, pior. Apesar de tê-los livrado do pishtaco Salcedo, ninguém o ajudou a convencer meu pai a permitir que se casasse comigo. Pelo contrário, faziam intrigas contra Timoteo, dizendo: “Como vai deixar que esse morochuco narigudo leve a sua filha, esse pessoal não tem fama de ladrão de gado?” Foi por isso que fugimos e viemos para Naccos. Quando saíamos, na bocaina de onde se divisa o povoado, rogamos uma praga contra aqueles ingratos. Nunca mais voltei nem voltarei a Quenka.

Nem nego nem confirmo, e se fico absorta olhando os morros com os lábios franzidos, não é porque as perguntas me incomodem. E sim porque passou muito tempo. Já nem tenho certeza se fomos felizes ou infelizes. Felizes, talvez, nos primeiros tempos, enquanto eu pensava que o tédio e a rotina eram a felicidade. Timoteo arranjou trabalho na mina Santa Rita e eu cozinhava, lavava sua roupa e todos nos consideravam marido e mulher. Ao contrário de agora, naquele tempo havia muitas mulheres em Naccos. E quando Dionisio passava por aqui com seus dançarinos e suas loucas, elas também ficavam meio doidas. Maridos e pais lanhavam seus lombos a chicotadas para não perderem o juízo, mas mesmo assim corriam atrás dele. O que ele tinha para que se deixassem enfeitiçar assim por um bêbado gorducho? Fama, lenda, mistério, alegria, dom profético, garrafões de pisco perfumado de Ica e um tremendo pirocão. Querem mais do que isso? Era conhecidíssimo em toda a serra, não havia feira nem festa nem velório de autoridade sem ele nos povoados de Junín, Ayacucho, Huancavelica e Apurímac. Melhor dizendo, sem eles. Porque nessa época Dionisio andava com um grupo de músicos e bailarinos huancaínos e jaujinos que não se desgrudavam dele por nada desse mundo. E aquela turma de vadias que de dia cozinhavam e de noite endoidavam e faziam barbaridades.

Enquanto a tropa de Dionisio não despontava na entrada do povoado, fazendo ribombar seus tambores, assobiar suas flautas, soar seus charangos e retumbando o chão com seus sapateados, a festa não começava. Mesmo que já tivessem soltado os foguetes e o padre proferido suas rezas, sem Dionisio não havia festa. Eram contratados em toda parte, estavam sempre indo e voltando de um lugar para o outro, apesar da má fama que tinham. Má fama de quê? De fazer coisas sujas e ser crias de Satanás. De queimar igrejas, descabeçar santos e virgens e de roubar recém-nascidos. Eram as más línguas dos padres, principalmente. Tinham ciúme de Dionisio e se vingavam da sua popularidade caluniando-o.

Na primeira vez que o vi, fiquei fervilhando da cabeça aos pés. Ele estava ali, vendendo o pisco que trazia numas vasilhas penduradas em mulas, no que era então a pracinha de Naccos, onde fica hoje o escritório da companhia. Tinha colocado umas tábuas em cima de dois cavaletes e um cartaz: “Esta é a cantina.” “Não tomem cerveja nem aguardente, rapazes. Aprendam a beber!”, pregava para os mineiros. “Saboreiem o pisco purinho de uva de Ica, ajuda a esquecer as mágoas e faz aparecer o homem feliz que está dentro da gente.” “Visitem o seu animal!” Era época das Festas Pátrias e havia bandas de música, concursos de fantasia, mágicos e acrobatas. Mas eu não conseguia aproveitar nenhuma das diversões; por mais que eu não quisesse, meus pés e minha cabeça se desviavam na sua direção. Ele era mais jovem, mas não muito diferente de agora. Meio gordinho, um pouco molenga, olhos bem pretos, cabelo crespo e esse jeito de andar meio pulando, meio tropeçando, que ainda tem. Servia os clientes e começava a dançar e contagiava sua alegria a todo mundo, “Agora uma muliza”, e o seguiam, “O pasillo”, e obedeciam, “Desta vez o huaynito”, e sapateavam, “O trenzinho” e formavam uma fila comprida atrás dele. Cantava, saltava, pulava, tocava o charango, soprava a quena, brindava, gritava, estalava os pratos, batia o tambor. Horas e horas, sem cansar. Horas e horas, colocando e tirando as máscaras do Carnaval de Jauja, até Naccos inteira virar um redemoinho de gente bêbada e feliz: ninguém sabia mais quem era quem, onde começava um e onde terminava o outro, quem era homem, quem era animal, quem era humano, quem era mulher. Quando, num momento da festa, fui dançar com ele, Dionisio me apertou, me apalpou, me fez sentir sua vara dura em minha barriga e me fez engolir sua língua que chispava como fritura na panela. Nessa noite, Timoteo Fajardo me tirou sangue aos pontapés, dizendo: “Se ele pedisse, você ia embora, não é, sua puta?”

Não pediu, mas talvez eu tivesse mesmo ido com ele se me pedisse, mais uma da tropa de Dionisio, outra vadia seguindo-o pelos povoados e distritos da serra, viajando por todos os caminhos dos Andes, subindo até as punas frias, descendo aos vales quentes, andando debaixo da chuva, andando sob o sol, cozinhando, lavando sua roupa, obedecendo aos seus caprichos e, nas feiras de sábado, alegrando os feirantes e até sendo puta para satisfazer sua vontade. Diziam que, quando eles desciam até a costa para renovar a provisão de pisco, naqueles areais perto do mar, as vadias e os bailarinos dançavam pelados nas noites de lua cheia e que Dionisio invocava o demônio vestido de mulher.

Falavam todas as coisas havidas e por haver sobre ele, com medo e admiração. Mas na verdade ninguém sabia grande coisa da sua vida, só fofocas. Que a mãe tinha sido carbonizada por um raio num temporal, por exemplo. Que foi criado pelas mulheres de uma comunidade de iquichanos, ainda idólatras, nos altos de Huanta. Que enlouquecera, quando jovem, numa missão dos padres dominicanos e quem lhe devolveu a razão foi o diabo, com quem fez um pacto. Que morara na selva, entre os chunchos canibais. Que descobrira o pisco viajando pelos desertos da costa e que, a partir de então, percorria a serra vendendo. Que tinha mulheres e filhos em toda parte, que havia morrido e ressuscitado, que era pishtaco, muki, desencarnador, bruxo, astrólogo, rabdomante. Não havia mistério ou barbaridade que não lhe atribuíssem. Ele gostava da sua má fama.

Era mais que um mascate de pisco, claro, qualquer um se dava conta disso; mais que empresário de músicos e bailarinos folclóricos, mais que animador e também mais que patrão de um bordel ambulante. Sim, sim, claríssimo. Mas o que mais? Demônio? Anjo? Deus? Timoteo Fajardo lia nos meus olhos que eu estava pensando em Dionisio e partia raivoso para cima de mim. Os homens sentiam ciúmes, mas todos reconheciam: “Sem ele, não há festa.” Assim que aparecia e armava a sua banca, iam correndo comprar garrafas de pisco e brindar com ele. “Eu os eduquei”, dizia Dionisio. “Antes se intoxicavam com carne, cerveja ou aguardente e agora com pisco, a bebida dos anjos e dos serafins.”

Soube mais alguma coisa sobre ele conversando com uma ayacuchana de Huancasancos. Tinha sido uma das suas vadias e depois o abandonou. Veio para cá como mulher de um chefe de equipe da mina Santa Rita, mais ou menos na época em que aquele pishtaco secou Juan Apaza. Ficamos amigas, íamos juntas lavar roupa no rio e um dia lhe perguntei por que tinha tantas cicatrizes. Então, ela me contou. Havia passado bastante tempo correndo o mundo com a tropa de Dionisio, dormindo à intempérie onde a noite os apanhava, uns em cima dos outros para enfrentar o frio, de feira em feira e de mercado em mercado, vivendo da caridade dos festeiros. Quando festejavam entre si, longe dos olhares dos outros, os membros daquela tropa enlouqueciam. Ou, como diz Dionisio, visitavam o seu animal. Passavam do amor às brigas entre as vadias. Dos carinhos aos arranhões, dos beijos às mordidas, dos abraços aos empurrões, sem parar de dançar. “E não lhe doía, mamita?” “Doía depois, mamay; mas, com a música, a dança e a tontura, era gostoso. As preo­cupações sumiam, o coração palpitava forte e você se sentia falcão, molle, costa, condor, rio. Íamos às estrelas, dançando, amando ou batendo.” “Por que, se você gostava tanto, se afastou deles?” Porque seus pés inchavam e ela não conseguia mais segui-los nas suas andanças. Eram muitos, e nem sempre tinham um caminhão para levá-los. Faziam suas viagens a pé, dias para ir, semanas para voltar. Naquela época ainda se podia fazer isso, não havia terrucos nem sinchis nos Andes. Por isso, afinal, a moça de Huancasancos se resignou a casar-se com o chefe de equipe e a viver sossegada aqui em Naccos. Mas vivia sonhando com suas antigas aventuras, cheia de saudade das viagens e dos vícios. Entoava uns huaynitos tristes, recordando, e suspirava: “Eu fui, ai, feliz.” Passava a mão nas cicatrizes com nostalgia.

De tal maneira que, inoculada de curiosidade, inquieta desde que dançamos e ele passou as mãos em mim naquelas Festas Pátrias, quando Dionisio voltou a Naccos e perguntou se queria me casar com ele, eu disse que sim. A mina estava desabando. O metal tinha acabado em Santa Rita e o Padrillo, depois de secar Sebastián, o amigo de Timoteo, estava apavorando todo mundo. Dionisio não me pediu para juntar-me às vadias, que me tornasse mais uma da sua turma. Pediu que eu me casasse com ele. Estava apaixonado desde que soube como ajudei Timoteo a caçar o pishtaco Salcedo, nas cavernas de Quenka. “Você está predestinada a mim”, afirmou. Depois as estrelas e as cartas confirmaram que estava mesmo.

Nós nos casamos na comunidade de Muquiyauyo, onde ele era muito bem-recebido desde que curou todos os jovens colonos de uma epidemia nas partes. Sim, de caralhite. Tinha atacado num verão chuvoso. Era para gargalhar, sim, mas eles choravam, desesperados. Desde que abriam os olhos, com o cantar do galo, o negócio estava inchado, todo vermelho e ardendo feito pimenta. Não sabiam mais o que fazer. Lavavam com água fria, e nada, apertavam e o pau se empertigava feito um boneco de molas. E enquanto ordenhavam ou plantavam ou podavam e faziam o que tinham que fazer, continuava gordo e pesadão entre as pernas, como um esporão ou o badalo de um sino. Trouxeram um padre do convento de San Antonio de Ocopa que rezou uma missa e exorcizou com incenso. Nem assim: continuava despontando e crescendo até rasgar as braguilhas e sair para ver o sol. Então, chegou Dionisio. Contaram-lhe o que estava acontecendo e ele organizou uma procissão alegre, com muita dança e música. Em vez de santo, levaram no andor um caralho de argila que o melhor oleiro de Muquiyauyo tinha modelado. A banda tocou um hino marcial, e as moças o enfeitaram com grinaldas de flores. Seguindo suas instruções, afinal o jogaram no Mantaro. Os jovens atacados pela epidemia também pularam no rio. Quando saíram para se enxugar, já estavam normais, com o negócio todo enrugadinho e adormecido outra vez.

O padre de Muquiyauyo não queria nos casar, a princípio. “Esse aí não é católico, é pagão, selvagem”, dizia, repelindo-o com a mão. Mas, depois de tomar umas e outras, afinal amoleceu e nos casou. As festas duraram três dias, dançando e comendo, dançando e bebendo, dançando e dançando até perder a razão. Ao anoitecer do segundo dia, Dionisio pegou minha mão, subimos juntos uma ladeira e ele apontou para o céu. “Vê aquele grupinho de estrelas, ali, formando uma coroa?” Elas se destacavam muito bem de todas as outras. “Sim, estou vendo.” “São meu presente de casamento.”

Mas não podia me possuir, porque antes tinha que cumprir uma promessa. Longe de Muquiyauyo, na outra banda do Mantaro, subindo as serras de Jauja, no distrito de Yanacoto, onde Dionisio havia passado a infância. Quando sua mãe desapareceu, queimada pelo raio, ele não se conformou com essa morte. E começou a procurá-la, certo de que a encontraria em algum lugar. Virou andarilho, viveu feito alma-perdida, indo e vindo para todos os cantos até que, nas fazendas de Ica, descobriu o pisco e tornou-se comerciante e divulgador. Um dia ele viu num sonho: sua mãe marcava um encontro com ele, domingo de Carnaval à meia-noite, no cemitério de Yanacoto. Lá foi, emocionado. Mas o zelador do local, um aleijado com o nariz comido pela uta chamado Yaranga, só queria deixá-lo entrar se antes baixasse as calças. Discutiram e chegaram a um acordo: Yaranga o deixava entrar agora, com a condição de que voltasse e se agachasse para ele antes de consumar seu casamento. Dionisio entrou, falou com a mãe, despediu-se dela, e depois, na sua festa de casamento, quinze anos mais tarde, eu tive que acompanhá-lo para cumprir a promessa.

Levamos dois dias para subir até Yanacoto, o primeiro de caminhão e o segundo em lombo de mulas. Havia neve na puna e as pessoas estavam com os lábios roxos e as caras cortadas pelo frio. O cemitério não tinha mais o murinho que Dionisio recordava, nem zelador. Perguntando, soubemos que Yaranga tinha morrido havia vários anos, maluco. Dionisio não parou de investigar, até que lhe mostraram o seu túmulo. Então, essa noite, quando a família que nos hospedava já estava dormindo, pegou minha mão e levou-me até onde Yaranga estava enterrado. Eu o tinha visto o dia inteiro muito atarefado lavrando alguma coisa com uma presilha, num galho de salgueiro. Um caralho bem duro, era isso. Untou com óleo de vela, fincou no túmulo de Yaranga, arriou as calças e se sentou em cima, dando um uivo. Depois, apesar do gelo, tirou minha calcinha, deitou-me no chão e me possuiu pela frente e por trás, várias vezes. Embora eu não fosse mais virgem, dei mais uivos que ele, acho, até perder os sentidos. Foi assim a nossa noite de núpcias.

Na manhã seguinte começou a me ensinar a sabedoria. Eu tinha boa disposição para distinguir os ventos, ouvir os sons do interior da terra e me comunicar com o coração das pessoas tocando em seus rostos. Achava que sabia dançar, e ele me ensinou a entrar na música e a metê-la dentro de mim e fazer com que ela me dançasse em vez de eu a ela. Achava que sabia cantar, e ele me ensinou a deixar-me dominar pelo canto e a ser escrava das canções que cantava. Pouco a pouco fui aprendendo a ler as linhas da mão, a decifrar as figuras das folhas de coca quando pousam no chão depois de revoar no ar, a localizar os males passando um cuy vivo no corpo dos doentes. Continuávamos viajando, descendo até a costa para renovar o carregamento de pisco, animando muitas festas. Até que as estradas começaram a ficar perigosas com tantas matanças e os povoados se esvaziaram e se isolaram numa desconfiança feroz contra os de fora. As vadias foram embora, os músicos nos abandonaram, os dançarinos viraram fumaça. “É hora de você e eu também criarmos raízes”, disse um dia Dionisio. Tínhamos ficado velhos, parece.

Não sei o que aconteceu com Timoteo Fajardo, nunca soube. Dos boatos, tomei conhecimento. Eles me perseguiram por toda parte como minha própria sombra durante anos e anos. Você botou veneno no seu prato de sopa e o matou para fugir com o gordinho pinguço? Foi ele quem o matou, de conluio com o muki? Deu-o de presente ao pishtaco? Levaram o narigudo para as suas bruxarias no alto do morro, e lá as vadias de porre o despedaçaram? E depois o comeram, bruxilda? Já tinham começado a me chamar de bruxa e de dona, a essa altura.

— Fiz você sofrer de propósito, não quis responder às suas ligações nem marcar o encontro que me pedia — o comandante disse a Carreño, à guisa de saudação. — Para deixar você aflito. E porque queria planejar seu castigo com toda a crueldade, seu grandíssimo filho da puta.

— Puxa, afinal apareceu o famoso padrinho — exclamou Lituma. — Eu estava só esperando, ele é o que mais me interessa na sua história. Quem sabe assim me esqueço um pouco do maldito huayco. Continue, continue, Tomasito.

— Certo, padrinho — assentiu Carreño, humildemente. — O senhor é quem sabe.

O gordo Iscariote, para não ter que olhá-lo nos olhos, mantinha o rosto enterrado na milanesa com ovos estrelados, batata frita e arroz branco. Mastigava com fúria e, entre uma mordida e outra, tomava goles de cerveja. O comandante estava à paisana, com um xale de seda no pescoço e óculos escuros. Na penumbra recortada pelos tubos espaçados de luz fluorescente, seu crânio calvo cintilava. Um cigarro aceso lhe pendia dos lábios e um copo de uísque balançava na mão direita.

— Matar o Chancho foi uma falta de respeito comigo, pois mandei você a Tingo María para cuidar dele — disse o comandante. — Mas não é isso o que mais me aborrece da sua imbecilidade. Sabe o que é? O seu motivo para fazer o que fez. Vamos lá, por que agiu assim, seu babaca?

— O senhor sabe muito bem, padrinho — murmurou o rapaz, baixando os olhos com humildade. — O Iscariote não lhe disse, por acaso?

— Estavam num bordel? — perguntou Lituma. — Com música e putas em volta da mesa? Lá seu padrinho era como um rei?

— Meio discoteca, meio bar e meio lenocínio — esclareceu Tomasito. — Sem quartos para os casais. Os caras tinham que levar as piranhas para o hotel em frente. Meu padrinho era sócio, acho. Eu não prestava atenção em nada daquilo, estava com o cu na mão, meu cabo.

— Quero ouvir da sua própria boca, seu filho da puta — ordenou o comandante, com um gesto de imperador.

— Eu o matei porque o Chancho estava batendo nela para ter prazer — sussurrou o rapaz, cabisbaixo, com um fiozinho de voz. — O senhor já sabia, Iscariote já lhe contou.

O comandante não riu. Ficou muito quieto, olhando-o por trás dos seus óculos escuros, assentindo ligeiramente. Acompanhava o ritmo da salsa batendo na mesa com o copo de uísque. Até que, afinal, sem se virar, segurou o braço de uma mulher de blusa furta-cor que vinha passando. Obrigou-a a aproximar-se, a inclinar-se e lhe perguntou à queima-roupa:

— Você gosta que seus machos lhe deem umas porradas, sim ou não?

— Gosto de tudo o que você me fizer, papacito. — A mulher riu, beliscando-lhe o bigode. — Vamos dançar?

O comandante mandou-a de volta para a pista com um empurrãozinho gentil. E avançou a cabeça na direção de Carreño, que permanecia rígido na cadeira:

— As mulheres gostam de um pouco de castigo na cama, seu idiota, e você não tinha a menor ideia de nada. — Fez um gesto de desagrado. — O que me irrita é ter confiado num paspalhão sem experiência de vida. Você mereceria que eu o matasse, não por ter liquidado o Chancho, mas por ser estúpido. Está arrependido, pelo menos?

— Estou arrependido de ter ficado mal com o senhor, a quem eu e a minha mãe tanto devemos — balbuciou o rapaz. E juntando forças, acrescentou: — Mas me perdoe, padrinho, pela morte do Chancho não estou. E o mataria de novo, se ressuscitasse.

— Ah, é? — exclamou o comandante, surpreso. — Ouviu só o que ele disse, Iscariote? Acha que ficou ainda mais idiota do que era quando entrou? Viu a raiva que ele tem do pobre Chancho, só porque deu uns tapas na sua puta?

— Não era puta dele, era só amiga, padrinho — interrompeu Carreño, suplicante. — Não fale assim dela, por favor, porque agora é minha mulher. Quer dizer, logo vai ser. Mercedes e eu vamos nos casar.

O comandante olhou para ele um instante e, por fim, começou a rir.

— Minha alma voltou ao corpo, meu cabo — disse Tomasito. — Aquela risada queria dizer que, apesar de ter xingado tanto a minha mãe, estava começando a me perdoar.

— Ele não era mais que seu padrinho, Tomasito? — perguntou Lituma. — Não seria seu pai, por acaso?

— Eu também me fiz muitas vezes essa pergunta, meu cabo. É uma dúvida que convive comigo desde criança. Mas parece que não. Minha mãe foi empregada na casa dele durante mais de vinte anos, em Sicuani, em Cuzco e em Lima. Vestiu, deu banho e alimentou a mãe do meu padrinho, que era inválida. Enfim, não sei, talvez seja meu pai. Minha mãezinha nunca quis me dizer quem a engravidou.

— Na certa é — disse Lituma. — Depois do que você fez com o Chancho, não merecia ser perdoado. Poderia ter comprometido o seu padrinho, criado encrenca com os traficantes. Se ele o perdoou, deve ser seu pai. Essas coisas só se perdoam aos filhos.

— Bem, fiquei mal com ele, mas também lhe fiz um favor — disse Tomasito. — Graças a mim, melhorou sua folha de serviços na corporação e até lhe penduraram uma condecoração no peito. Ficou famoso por ter acabado com esse traficante.

— Para você se apaixonar assim, essa Mercedes deve ter um rabo fenomenal — disse o comandante, ainda um pouco risonho. — Você já experimentou, Iscariote?

— Não, chefe, não. Mas não pense que ela é tão sensacional como diz o Carreñito. Está gamado e a idealiza. É uma moreninha com boas pernas, só isso.

— Você pode entender muito de comida, mas não de mulheres, gordo, portanto continue com essa milanesa e cale essa boca — disse Carreño. — Não ligue para ele, padrinho. Mercedes é a mulher mais bonita do Peru. O senhor tem que me entender, já deve ter se apaixonado alguma vez.

— Eu não me apaixono, só trepo, e por isso sou feliz — afirmou o comandante. — Matar por amor nestes tempos! Caralho, você devia ser exibido numa jaula de circo. Não me deixa experimentar aquele rabo, para saber se valia mesmo a pena fazer a besteira que fez?

— Não empresto minha mulher a ninguém, padrinho. Nem mesmo ao senhor, por mais respeito que lhe tenha.

— Não pense que só porque faço umas piadinhas você está perdoado — disse o comandante. — Sua gracinha com o Chancho pode me custar o belo par de ovos que Deus me deu.

— Mas se o senhor foi até condecorado pela morte desse traficante — alegou, debilmente, Carreño. — Agora é um herói nacional da luta contra o narcotráfico. Não me diga que lhe fiz um mal. Reconheça que foi um favor, padrinho.

— Tive que transformar um mal em um bem, seu imbecil — replicou o comandante. — De qualquer forma, você me comprometeu e posso ter problemas. Se o pessoal do Chancho quiser vingança, vão ficar contra quem? Quem eles vão querer foder? Um joão-ninguém feito você, ou a mim? Será que vai sentir remorsos, pelo menos, se me mandarem para o cemitério?

— Eu nunca me perdoaria por isso, padrinho. E juro que iria dar o troco até o fim do mundo se alguém tocasse em um fio do seu cabelo.

— Porra, vou acabar chorando de emoção com tanto carinho que você sente por mim — disse o comandante, bebendo um trago de uísque e estalando a língua. E, sem intervalo, de um modo que não admitia réplica, ordenou: — Antes de continuar conversando, e para ver que punição vou lhe dar, vá, traga essa Mercedes. Agorinha mesmo. Quero ver com meus próprios olhos se esse traseiro justifica tanta confusão.

— Caramba — exclamou Lituma. — Já estou vendo aonde esse sacana queria chegar.

— Eu fiquei aterrorizado, meu cabo — confessou Tomasito. — O que podia fazer, o que ia fazer se o meu padrinho se engraçasse com a Mercedes.

— Puxar sua pistolinha e despachar ele também — disse o cabo.

— O que podia fazer — repetiu o adjunto, virando-se angustiado no catre. — Dependíamos dele para tudo. Para o título de eleitor da Mercedes, para ajeitar a minha situação. Eu era, tecnicamente, um desertor da Guarda Civil, imagine só. Passei maus momentos, verdade.

— Acha que eu tenho medo dele? — Mercedes riu.

— É um sacrifício que temos que fazer para sair desta, meu amor. Vai ser um mau pedaço, mas de meia horinha só. Ele já está se acalmando, já começou a fazer brincadeiras. Ficou curioso e quer conhecer você. Não vou permitir que lhe falte com o respeito, juro.

— Sei me defender sozinha, Carreñito — disse Mercedes, arrumando o cabelo, a saia. — Nem os comandantes nem os generais me faltam com o respeito. E então? Aprovada no exame, cavalheiro?

— Com louvor — pigarreou o comandante. — Concordo, concordo. Estou vendo que você é despachada, filhinha. Melhor assim. Gosto de mulherzinhas respondonas.

— Quer dizer que vamos falar sem cerimônia? — disse Mercedes. — Pensei que teria que chamá-lo de padrinho, também. Bom, então podemos nos tratar de você, gatinho.

— Você tem boa cara, bom corpo e boas pernas, concedido — disse o comandante. — Mas isso não basta para transformar um rapaz em assassino. Você deve ter algo a mais, para ter virado a cabeça do meu afilhado desse jeito. Posso saber o que foi que fez com ele?

— O pior é que não fiz nada — disse Mercedes. — Fui a primeira a se surpreender com a loucura dele. Não lhe contou? Primeiro matou e depois veio me dizer que tinha feito aquilo por mim, que estava apaixonado. Eu não podia acreditar, ainda não posso. Não foi assim, Carreñito?

— Sim, padrinho, foi isso mesmo — disse o rapaz. — Mercedes não teve culpa de nada. Eu a meti nesta confusão. O senhor vai nos ajudar? Vai conseguir um título de eleitor para Mercedes? Queremos ir para os Estados Unidos, começar vida nova.

— Você deve ter feito alguma coisa de muito especial com este rapaz para deixá-lo em tal estado de paixão — disse o comandante, aproximando o rosto da cara de Mercedes e segurando seu queixo. — Acendeu um fogo nele, filhinha?

— Por favor não falte com o respeito a Mercedes — disse o rapaz. — Pelo que é mais sagrado, padrinho. Nem ao senhor vou permitir isso.

— Seu padrinho sabia que Mercedes era a primeira mulher com quem você foi para a cama? — perguntou Lituma.

— Não, nem ele nem ninguém — respondeu o adjunto. — Teria me espancado até morrer se eu dissesse. Só Mercedes e o senhor sabem, meu cabo.

— Obrigado pela confiança, Tomasito.

— Mas esse não foi o pior momento da noite. O pior foi quando meu padrinho tirou-a para dançar. Eu sentia que a raiva subia pelo meu corpo e que a qualquer momento ia explodir.

— Fique calmo, fique calmo e não seja bobo, Carreñito. — O gordo Iscariote deu-lhe uma palmada no braço. — Não importa que dance com ela e a aperte um pouquinho. Está fazendo você pagar a penitência, provocando ciúme. No fundo já o perdoou e vai solucionar os seus problemas. Tudo está saindo como eu previ em Huánuco. Pense só nisso.

— Mas eu pensava, está todo encostado no corpo dela e passando a mão — a indignada voz de Tomasito vibrou na sombra. — Nem que eu me desgrace de uma vez, vou acabar com a macheza desse abusado.

Mas nesse momento o comandante trouxe Mercedes para a mesa, morrendo de rir.

— É uma mulher de arrasar quarteirões, quero lhe dar parabéns, rapaz — disse, com um amável cascudo na cabeça de Tomás. — Fiz uma proposta do caralho para ela vir lhe botar chifres comigo, e não aceitou.

— Eu sabia que você estava me testando outra vez, por isso lhe dei o fora, gatinho — disse Mercedes. — Além do mais, você seria a última pessoa com quem enganaria o Carreñito. Vai nos ajudar, então?

— Uma mulher como você é melhor ter como amiga que como inimiga — disse o comandante. — Que fêmea você está levando, rapaz.

— E nos ajudou — suspirou Tomás. — No dia seguinte Mercedes estava com um título novo. E, nessa mesma noite, deu o fora.

— Quer dizer que assim que arranjou os papéis ela o deixou, Tomasito?

— Levando os quatro mil dólares que lhe dei de presente — murmurou lentamente o adjunto. — Eram dela, eu lhe dera. Deixou uma carta, repetindo o que já tinha dito tantas vezes. Que ela não era mulher para mim, que aquilo ia passar, a conversa de sempre.

— Então foi assim a história — disse Lituma. — Puxa, Tomasito.

— Sim, meu cabo — disse o adjunto. — Assim foi a história.