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IX

— O sujeito se chama Paul e tem um sobrenome estranho, Stirmsson ou Stirmesson — disse Lituma. — Mas é mais conhecido pelo apelido: Escarlatina. Foi um dos que se salvaram por milagre quando os terrucos entraram em La Esperanza. Ele me disse que conhecia muito bem vocês. Lembram desse gringo?

— Um bisbilhoteiro que sempre queria saber tudo de tudo — assentiu dona Adriana, com uma expressão de poucos amigos. — Vivia com um caderno, escrevendo. Faz muito tempo que não aparece por aqui. Quer dizer que foi um dos que se esconderam no reservatório de água?

— Era um enxerido, estudava a gente como se fôssemos plantas ou animais. — Dionisio deu uma cusparada. — Ele me perseguia de alto a baixo dos Andes. Não lhe interessávamos por nós mesmos, só queria nos colocar nos seus livros. Ainda está vivo esse animal, o gringo Escarlatina?

— Ele também se surpreendeu quando soube que vocês estavam vivos — explicou Lituma. — Pensava que os terrucos já os tinham executado, acusando-os de antissociais.

Estavam conversando na porta da cantina, debaixo de um sol vertical e branquíssimo que reverberava no zinco dos barracões sobreviventes. Grupos de peões retiravam, usando tábuas, furadeiras, cordas, picaretas e pás, algumas pedras do huayco, tentando abrir um caminho por onde retirar do acampamento a maquinaria não amassada ou inutilizada pela avalanche. Apesar da azáfama no barracão onde haviam improvisado um escritório para substituir aquele que as pedras destruíram, Naccos parecia vazia. No povoado não restava nem um terço dos peões. E continuavam partindo; ali, por exemplo, na trilha que subia para o caminho de Huancayo, Lituma divisou três silhuetas se afastando em fila indiana com fardos nas costas. Caminhavam depressa e no mesmo compasso, como se não sentissem o peso que estavam levando.

— Desta vez aceitaram ir embora — disse, apontando para eles. — Sem greves nem protestos.

— Eles sabem que seria inútil — respondeu Dionisio, sem a menor emoção. — O huayco veio a calhar para a companhia. Faz tempo que ela queria interromper a obra. Agora tem o pretexto.

— Não é pretexto — disse o cabo. — Não está vendo como ficou isto aqui? Que estrada podem construir, depois da montanha que caiu em cima de Naccos? Não sei como não morreu ninguém, com um desmoronamento daqueles.

— É o que eu tento enfiar na cabeça desses índios teimosos — grunhiu dona Adriana, fazendo um gesto mal-humorado para os homens que empurravam as pedras. — Poderíamos ter morrido todos nós, esmagados feito baratas. E, em vez de dar graças por estar a salvo, ainda protestam.

— É que se salvaram do huayco, mas sabem que agora vão morrer aos poucos, de falta de trabalho e de fome — murmurou Dionisio, dando um risinho. — Ou de coisas piores. Deixe-os espernear, pelo menos.

— A senhora acha que a avalanche não nos enterrou porque os apus destas montanhas decidiram? — perguntou o cabo, procurando os olhos de dona Adriana. — Eu também tenho que agradecer a eles por ter me salvado?

Esperava que a mulher de Dionisio lhe respondesse rispidamente que ele já parecia um lunático, de tanto insistir na mesma história, mas dessa vez a bruxa ficou muda, sem olhar para ele. Com o cenho franzido e emburrada, mantinha o olhar meio perdido nos picos escarpados que cercavam o povoado.

— Conversei sobre os apus com Escarlatina, lá em La Esperanza — prosseguiu o cabo, após um momento. — Ele também acredita que as montanhas têm suas almas, dona Adriana, igual à senhora. Os apus. Uns espíritos sanguinários, pelo visto. Se um sábio que sabe tanto como esse gringo fala isso, deve ser mesmo verdade. Obrigado por me deixarem com vida, senhores apus de Junín.

— Não se pode dizer senhores apus — advertiu Dionisio. — Porque apu quer dizer senhor em quéchua. E toda repetição é uma ofensa, senhor cabo, como diz a valsa.

— Também não se deve dizer senhor cabo — replicou Lituma. — Cabo ou senhor, mas as duas coisas juntas é zombaria. Mas você sempre está caçoando das pessoas.

— Tento não perder o bom humor — reconheceu Dionisio. — Se bem que, com as coisas que acontecem, fica difícil não viver amargurado, como todo mundo.

E imediatamente começou a assobiar uma das toadas que também costumava sapatear, de noite, quando a bebedeira se generalizava na cantina. Lituma ouviu a melodia triste com o coração apertado. Parecia vir do fundo dos tempos, trazer um fiapo de outra humanidade, de um mundo enterrado naquelas montanhas maciças. Entrefechou os olhos e viu delinear-se à sua frente, um pouco borrada pela luminosidade branca do dia, a figurinha dócil e saltitante de Pedrito Tinoco.

— Estou sem ânimo para subir agora até o posto, com este sol — murmurou, tirando o quepe e limpando o suor da testa. — Posso me sentar um pouquinho com vocês?

Nem o cantineiro nem sua mulher responderam. Lituma sentou-se numa das pontas do banco ocupado por dona Adriana. Dionisio continuava em pé, fumando, com as costas apoiadas nas tábuas consteladas de cicatrizes da porta da cantina. Os gritos e exclamações dos peões que tentavam deslocar as pedras chegavam até eles de maneira esporádica, próximos ou remotos segundo as mudanças de direção do vento.

— Finalmente o rádio da companhia funcionou esta manhã, finalmente pude mandar meu boletim para o comando de Huancayo — comentou o cabo. — Tomara que respondam logo. Não sei o que ainda estou fazendo aqui, meu adjunto e eu, além de esperar que nos matem ou sumam conosco, como fizeram com o mudinho. E vocês, o que pretendem fazer agora? Também vão embora de Naccos?

— Que remédio — disse Dionisio. — Nem os índios da comunidade querem viver mais em Naccos. A maior parte dos jovens emigrou para a costa e para Huancayo. Só restam uns poucos velhos que estão morrendo.

— Então só vão ficar os apus — sentenciou Lituma. — E os pishtacos e mukis. Servindo banquetes de sangue uns aos outros. Não é mesmo, dona Adriana? Não faça esta cara, é brincadeira. Já sei que não está para brincadeiras. Eu também não. Só falei porque, por mais que tente tirar da cabeça aquilo que a senhora sabe, não consigo. Esses três continuam envenenando a minha vida.

— E por que se importa tanto com esses infelizes? — Dionisio soltou uma baforada de fumaça. — Com tanta gente que desaparece ou morre diariamente, por que só eles? Por que não fica atormentado com aquele que mataram em La Esperanza, por exemplo? O senhor gosta de mistérios, já lhe disse uma vez.

— Esses desaparecimentos não são mais mistério para mim — declarou o cabo, virando-se de novo para olhar dona Adriana, mas tampouco dessa vez ela o encarou. — Descobri graças ao Escarlatina, ontem à noite. Juro que seria melhor não saber. Porque isso que aconteceu com eles é a mais estúpida e mais perversa de todas as coisas estúpidas e perversas que acontecem por aqui. E ninguém vai me tirar da cabeça que os grandes culpados foram vocês dois. Principalmente a senhora, dona Adriana.

Mas nem sequer agora a mulher de Dionisio respondeu. Continuou emburrada, olhando para os morros, como se não houvesse escutado ou estivesse tomada por um pensamento tão importante que não se interessava pelas ninharias que Lituma dizia.

— Fume um cigarro e tire essas minhocas da cabeça. — Dionisio ofereceu-lhe um maço de tabaco negro. — Pense que está indo embora, talvez para a sua terra, e que no futuro vai viver mais tranquilo do que em Naccos.

Lituma pôs um cigarro na boca. O cantineiro acendeu-o, com um velho isqueiro de pavio comprido cujo fogo esquentou a boca e o nariz do cabo. Aspirou uma grande baforada e expulsou-a com força, vendo as volutas de fumaça subirem no ar limpo e dourado do ardente meio-dia.

— Se eu sair vivo daqui, esses três vão atrás de mim aonde quer que eu vá — murmurou. — Principalmente o mudinho, que desapareceu quando veio aqui comprar cerveja naquela noite. Entende?

— Claro que ele entende, meu cabo. — Seu adjunto riu. — Uma cerveja cusquenha, bem gelada, e voando. Não é verdade que entendeu perfeitamente, mudinho?

Pedrito Tinoco assentiu várias vezes, com aqueles movimentos rápidos e idênticos que faziam Lituma pensar num frango bicando grãos de milho, pegou as notas que o cabo lhe deu e, fazendo uma última reverência, deu meia-volta e saiu do posto, desaparecendo na noite sem luar.

— Não devíamos mandá-lo nessa escuridão, a uma hora dessas — disse Lituma, fumegando pela boca e pelo nariz. — Vendo que demorava tanto, tínhamos que ter descido para ver o que estava acontecendo com ele, por que não voltava. Mas, como começou a chover, tivemos preguiça. Tomasito e eu começamos a conversar e o tempo foi passando.

Apesar da chuva, o mudinho descia bem depressa a ladeira, como se tivesse olhos de raposa ou soubesse de cor onde pisar, onde pular. Estava com o dinheiro na mão, apertado para não cair. Chegou encharcado à porta da cantina. Bateu duas vezes com os nós dos dedos, empurrou e entrou. Foi recebido por uma massa de silhuetas semidissolvidas em nuvens de fumaça. Seu nariz sentiu um cheiro de suor, álcool, tabaco, urina, excremento, sêmen, vômitos hediondos que davam enjoo. Mas não foram esses odores nem o silêncio sepulcral que sua chegada provocou que o deixaram na defensiva, alerta, receoso de um perigo iminente, e sim o medo que seu instinto detectou em toda parte, um medo espesso, vibrátil, que fazia as pupilas dos peões brilharem e parecia impregnar o ar, emanar das tábuas das paredes, do balcão e, principalmente, dos rostos tensos, deformados com expressões e gestos que não eram obra apenas da bebedeira. Ninguém se mexia. Todos haviam se virado para observá-lo. Intimidado, Pedrito Tinoco fez várias reverências.

— Aí está, aí chegou, ninguém melhor do que ele — irrompeu do balcão, pigarreando, a voz de além-túmulo de dona Adriana. — Eles o mandam, mandaram. Tem que ser ele. É ele, claro. O mudinho, quem melhor.

— É claro que discutiram — acrescentou Lituma. — É claro que alguns devem ter dito “concordo, que seja ele”, e outros, “não, coitado, o retardado não”. Imagino que, pelo menos, um ou outro menos bêbado tenha ficado com pena. E, enquanto isso, em vez de descer para ver por que ele não voltava, eu e Tomasito tínhamos ido dormir. Ou então estávamos conversando sobre a mulher que o deixou, na certa. Fomos cúmplices, também. Não inspiradores nem incitadores, como vocês. Mas cúmplices por omissão, fomos sim, de certa forma. Todos estavam muito bêbados e alguns cambaleando, encostados nas paredes ou abraçados para não cair. Aqueles olhos vítreos e brilhantes perfuravam as nuvens de fumaça e examinavam Pedrito Tinoco, que, confuso por sentir-se o centro dessa atenção coletiva, crispado pela ameaça obscura, incerta, que adivinhava, não se atrevia a avançar até o balcão. Então Dionisio foi ao seu encontro, pegou-o pelo braço, deu-lhe um beijo na bochecha, coisa que primeiro desconcertou e depois fez o mudinho soltar uma gargalhada nervosa, e pôs um copinho de pisco em sua mão.

— Saúde, saúde — incitou-o a brindar com ele. — Venha se juntar ao pessoal, mudinho.

— É inocente, é puro, é forasteiro, foi marcado pelo que lhe aconteceu em Pampa Galeras — recitou, rezou, salmodiou dona Adriana. — Mais cedo ou mais tarde os terrucos o executariam. Se vai morrer de qualquer maneira, melhor que seja por uma coisa que valha a pena. Vocês não valem a pena? Tanta gente inconsciente, dormindo aí nos barracões, tanta gente quase morta de cansaço de tanto dar duro na estrada, não vale? Façam as contas e decidam.

À medida que o calorzinho ardente descia peito abaixo e lhe fazia cócegas no estômago, Pedrito Tinoco começou a sentir que, sob suas sandálias de pneu enlameadas e seus pés cheios de crostas, o chão ficava mole e se movia. Como um pião. Ele tinha aprendido, algum dia, em algum lugar, a fazer os piões dançarem, enrolando-os num barbante e soltando-os numa destra chicotada com o braço: giravam no alto até suas cores se confundirem, até parecerem beija-flores imóveis no ar batendo as asas, uma bolinha subindo em direção ao sol e depois caindo. Sua ponta feita de prego aterrissava na pedra da canaleta, dava um saltinho na beirada do banco, aquietava-se no umbral da casa ou onde mais ele tivesse posto o olho e sua mão dado a ordem ao barbante. Ali ficava dançando um bom tempo, pulando e zumbindo, piãozinho feliz. Dona Adriana falava e várias cabeças concordavam. Abrindo passagem com os cotovelos, alguns se aproximavam do mudinho e tocavam nele. Não tinham perdido o medo, pelo contrário. Pedrito Tinoco não se sentia mais tão envergonhado como estava ao chegar. Ainda apertava as notas na mão e, obscuramente, em lampejos, tinha um sobressalto, pensando: “Preciso voltar.” Mas não sabia como ir embora. Cada vez que tomava um golinho de pisco, o cantineiro aplaudia, batia em suas costas e, vez por outra, num arroubo de entusiasmo, beijava-o na bochecha.

— Deviam ser beijos de Judas esses que o senhor dava — disse Lituma. — E, enquanto isso, eu estava roncando, ou ouvindo os casos do Tomasito com a tal fulana. Vocês tiveram sorte, Dionisio, dona Adriana. Se eu aparecesse na cantina e os pegasse com a mão na massa, não sei o que aconteceria, juro.

Disse isto sem raiva, com fatalismo e resignação. Dona Adriana continuava distraída, desinteressada dele, observando os peões que retiravam os escombros. Mas Dionisio voltou a rir, de boca aberta. Estava de cócoras, e o cachecol de lã aumentava monstruosamente o seu pescoço. Olhava para Lituma, divertido, abrindo e fechando seus olhos saltados, menos vermelhos que de costume.

— O senhor daria um bom contador de histórias — afirmou, muito seguro do que dizia. — Tive alguns na minha companhia, quando era jovem. Quando ia de vila em vila, de feira em feira. Dançarinos, músicos, equilibristas, mágicos, fenômenos, havia de tudo. E também contadores de histórias. Tinham muito sucesso, as crianças e adultos os escutavam embevecidos e faziam a maior algazarra quando chegava o final. “Continue, continue, por favor.” “Outra, outra, mais uma.” O senhor poderia ter sido uma das minhas estrelas, com a fantasia que tem. Quase tão bom como Adriana, senhor cabo.

— Não consegue mais beber, já está grogue. Não desce nem uma gota a mais — cantarolou alguém.

— Enfie na marra e se vomitar, que vomite — implorou uma voz muito assustada. — Que não sinta nada, que se esqueça de quem é e onde está.

— Falando em mudinhos, numas vilas da província de La Mar, em Ayacucho, obrigam as pessoas que não sabem falar a comer língua de papagaio — disse Dionisio. — Assim se curam da mudez. Aposto que o senhor não sabia, senhor cabo.

— Não é verdade que vai nos perdoar, paizinho? — sussurrou, em quéchua, um homem rouco e varado de consternação, cujas palavras mal saíam. — Vai ser o nosso santo, será lembrado na festa como o salvador de Naccos.

— Mais bebida para ele, seus filhos da mãe, chega de frescura — ordenou um valentão. — Se é para fazer as coisas, vamos fazer bem-feitas.

Em vez da quena ou da flauta de outras vezes, Dionisio começara a tocar uma gaita. Essa vozinha metálica aguda irritava os nervos do mudinho, que muitas mãos sustentavam pelos braços e pelas costas, impedindo-o de desabar. Suas pernas pareciam de pano, seus ombros, de palha, seu estômago, um lago com patos e a cabeça, um redemoinho de luzeiros fosforescentes. As estrelas cintilavam e havia repentinos arco-íris colorindo a noite. Se tivesse forças, apenas esticando a mão teria tocado num astro do céu. Devia ser suave, tenro, cálido, amistoso como o pescoço de uma vicunha. Sentia náuseas sem parar, porém não tinha mais nada para vomitar. Sabia que se forçasse a vista e limpasse as lágrimas que a nublavam, veria flutuando na imensidão do céu, acima das montanhas nevadas, trotando em direção à lua, a alegre manada das vicunhas.

— Eram outros tempos, melhores que estes por muitos motivos — continuou Dionisio, pesaroso. — Principalmente porque as pessoas queriam se divertir. Sabiam se divertir. Eram tão pobres como agora, e também havia desgraças em muitos lugares. Mas, aqui nos Andes, o povo ainda tinha o que agora perdeu: o entusiasmo para se divertir. A vontade de viver. Agora, por mais que se movam e falem e se embebedem, todos parecem meio mortos. Não reparou, senhor cabo?

Se via estrelas, não estava mais na cantina de Dionisio. Fora levado para o ar livre e por isso, embora houvesse diminutas fogueiras crepitando no interior do seu corpo, esquentando seu sangue, na superfície do seu rosto, na ponta do nariz, em suas mãos e nos pés que tinham perdido as sandálias sentia a noite gélida. Estaria geando? Em vez do fedor que havia antes, seu nariz respirava um limpo aroma de eucaliptos, de milho torrado, de água cantarina e fresquinha de manancial. Tinha sido carregado? Estava num trono? Era o santo padroeiro da festa? Havia um padre rezando aos seus pés, ou era a reza da santeira que dormia nas portas do matadouro de Abancay? Não. Era a voz de dona Adriana. Devia haver também um coroinha, meio apertado na multidão, tocando um sininho prateado e balançando o incensório cuja fragrância inundava a noite. Pedrito Tinoco sabia fazer isso, já fizera na paróquia da Virgem do Rosário, na época em que suas mãos hábeis soltavam pião: espalhar o incenso de maneira que subisse até os rostos de todos os santos do altar.

— Até nos velórios todos se divertiam, bebendo, comendo e contando histórias — continuou Dionisio. — Íamos muito aos enterros, com a companhia. Os velórios duravam dias e noites, e os garrafões se esvaziavam sem parar. Agora, quando as pessoas se vão deste mundo, os parentes se despedem sem cerimônia, como de cachorros. Nisso também há uma decadência, não acha, senhor cabo?

De repente, uma exclamação ou um soluço cortava o silêncio reverente da procissão em que o levavam morro acima. O que temiam? Por que choravam? Aonde iam? Seu coração começou a bater com muita força e subitamente o mal-estar físico desapareceu. Iam juntá-lo de novo com suas amigas, claro. Claro. Elas estavam à sua espera, lá aonde o levavam. Uma intensa emoção o assaltou. Se tivesse forças começaria a uivar, a pular, a agradecer com reverências até o chão. Transbordava de felicidade. Elas ficariam tensas ao sentir que estava se aproximando, esticariam os pescoços compridos, seus focinhos úmidos tremeriam, seus grandes olhos o observariam com surpresa e, reconhecendo seu cheiro, a manada inteira se alegraria como ele se alegrava agora, antecipando o encontro. Então se tocariam, se abraçariam, se enlaçariam e se esqueceriam, elas e ele, do mundo, brincando e festejando o fato de estar juntos.

— Vamos acabar com isso de uma vez, seus filhos da mãe — implorou o valentão, já sem a segurança de antes, começando também a hesitar e a ficar assustado. — Com o ar frio, o porre passou e ele vai entender tudo. Assim não, porra.

— Se o senhor acreditasse em um décimo de tudo isso, já teria nos levado presos para Huancayo — interrompeu dona Adriana, saindo do seu ensimesmamento. Fitava Lituma com pena. — Portanto, chega de conversa, cabo.

— Vocês e esses serranos supersticiosos sacrificaram o mudinho para os apus — disse o cabo, levantando-se. Estava abatido, sentia um cansaço enorme. Continuou falando enquanto colocava o quepe. — Acredito nisso tanto como que me chamo Lituma. Mas não posso provar e, mesmo que pudesse, ninguém me levaria a sério, a começar pelos meus chefes. De modo que vou ter que morder a língua e levar o segredo comigo. Quem vai acreditar em sacrifícios humanos nesta época, não é mesmo?

— Eu acredito — despediu-o dona Adriana, franzindo o nariz e dando adeus com a mão.

Sei que parece esquisito que nós tenhamos ficado em Naccos em vez de escolher outro povoado da serra. Mas, quando o tempo das aventuras acabou e a velhice nos deixou encalhados neste canto, Naccos ainda não era a ruína que se tornou depois. Não parecia estar morrendo minuto a minuto. Embora a mina Santa Rita já estivesse fechada, era um lugar de passagem, tinha uma comunidade rural pujante e uma das melhores feiras de Junín. Aos domingos, esta rua ficava cheia de negociantes de toda parte, índios, mestiços e até cavalheiros, comprando e vendendo lhamas, alpacas, ovelhas, porcos, teares, lã tosquiada ou sem tosquiar, milho, cevada, quinua, coca, saias, chapéus, coletes, sapatos, ferramentas, lampiões. Aqui comprava-se e vendia-se de tudo o que homens e mulheres precisavam. Na época havia mais fêmeas do que machos em Naccos, fiquem com água na boca, seus sacanas. Este lugar tinha dez vezes mais movimento que agora. Dionisio descia até a costa uma vez por mês para comprar garrafões. O ganho dava para pagar dois tropeiros para arrear as mulas e carregar e descarregar a mercadoria.

Gostávamos de que Naccos fosse lugar de passagem. Sempre estavam indo e vindo por aqui forasteiros que subiam para as punas da Cordilheira ou desciam até a selva ou rumavam em direção a Huancayo e à costa. Aqui nos conhecemos, aqui Dionisio se apaixonou por mim e aqui começamos a nossa relação. Sempre se falou de uma estrada que substituiria a trilha de muares. Falaram disso anos e anos, antes de decidirem construí-la. Pena que quando as obras começaram e vocês apareceram com suas picaretas, pás e furadeiras, já era tarde. A morte tinha vencido a luta contra a vida. Estava escrito que a estrada nunca seria terminada, e por isso não me preocupo com esses boatos que deixam vocês sem dormir e os trazem aqui para se embebedar. Que vão interromper as obras e despedir todo mundo são coisas que há muito tempo vejo em transe. Também as ouço, no coração que bate dentro da árvore e da pedra, e leio nas vísceras do falcão e do cuy. A morte de Naccos está decidida. Os espíritos já decidiram, e vai acontecer. A menos que... Repito o que se disse tantas vezes: para grandes males, grandes remédios. Esta é a história do homem, diz Dionisio. Ele sempre teve o dom da profecia; ao seu lado eu também o adquiri, ele me passou.

Além do mais, graças a tais montanhas, Naccos tinha aura, força mágica. Isto é positivo para Dionisio e para mim. O perigo sempre nos atraiu. Ele representa a vida de verdade, a vida que vale a pena. Em contrapartida, a segurança é o tédio, a imbecilidade, a morte. Não foi por acaso que tivessem vindo para cá pishtacos como o que secou Juan Apaza e Sebastián. O Padrilho, sim. Foram atraídos pela decomposição de Naccos e pela vida secreta das huacas. Estas montanhas estão cheias de túmulos antiquíssimos. Sem essas presenças, não habitariam tantos espíritos nesta comarca dos Andes. Deu muito trabalho travar relações com eles. Graças a eles aprendemos muito, mesmo Dionisio, que já sabia tanto. Levou muito tempo, foi preciso um esforço enorme para eles se manifestarem. Para reconhecer quando o condor que aparecia era um mensageiro e quando era um simples animal faminto em busca de sua presa. Agora eu não falho, já distingo de primeira um do outro, se duvidam façam-me um teste. Só os espíritos das montanhas mais altas e maiores, essas que têm neve o ano inteiro, que perfuram as nuvens, encarnam em condores; das pequenas, em abutres ou falcões, e os de uns morrinhos raquíticos, em estorninhos. Esses espíritos são fracos e não podem causar catástrofes. No máximo, maldades, como desgraçar uma família. Para eles, bastam as oferendas de bebida e alimentos que os índios fazem quando atravessam as bocainas.

Aqui aconteceram milhares de coisas, no passado. Muito antes de Santa Rita existir, quero dizer. O dom da profecia permite tanto ver para trás como para a frente, e eu vi o que era Naccos antes de se chamar Naccos e antes que a decadência vencesse a luta contra a vontade de viver. Aqui houve muita vida porque também houve muita morte. Sofria-se e aproveitava-se muito, como tem que ser; o problema é quando, como acontece agora em Naccos, em toda a cordilheira e, talvez, no mundo inteiro, só se faz sofrer e ninguém mais se lembra do que era aproveitar a vida. Antigamente o povo tinha coragem de enfrentar os grandes males com expiações. Assim se mantinha o equilíbrio. A vida e a morte como uma balança de dois sacos com o mesmo peso, como dois carneiros com a mesma força que se empurram sem que nenhum deles avance ou recue.

O que faziam para que a morte não derrotasse a vida? Apertem a barriga, não é hora de começar a vomitar. Estas não são verdades para calças fracas e sim para saias fortes. As mulheres assumiam a responsabilidade. Elas, escutem bem. E resolviam. Em compensação, o macho que o povo escolhia em assembleia para se encarregar das festas do ano seguinte tremia. Ele sabia que só seria chefe e autoridade até lá; depois, para o sacrifício. Não corria, não tentava fugir depois da festa que presidia, da procissão, dos bailes, da comilança e da bebedeira. Nada disso. Ficava até o final, satisfeito e orgulhoso de fazer um bem para o seu povo. Morria herói, querido e reverenciado. Isto é o que ele era: um herói. Enchia a cara, tocava charango, ou quena, ou harpa, ou tesouras de tosquia, ou o instrumento que conhecesse, e dançava, sapateando e cantando dia e noite para afogar as mágoas, para esquecer, para não sentir, para entregar a vida sem medo e com vontade. Só as mulheres saíam para caçá-lo, na última noite da festa. Embriagadas também, descontroladas também, como as vadias da turma de Dionisio, sem tirar nem pôr. Mas aquelas de então nem os maridos nem os pais tentavam parar. Eles afiavam as facas e os facões, incentivando: “Busque-o, encontre-o, cace-o, morda-o, sangre-o, para que tenhamos um ano com paz e boas colheitas.” Caçavam-no como no chako que os índios da comunidade faziam para apanhar pumas e veados, quando ainda havia pumas e veados nestas serras. Era igualzinha a caçada do encarregado. Formavam um círculo e o encerravam dentro dele, cantando, sempre cantando, dançando, sempre dançando, umas incitando as outras com gritos quando o sentiam por perto, sabendo que o encarregado da festa já estava cercado, que não poderia escapar. O círculo ia se fechando, fechando, até que o pegavam. Seu reinado acabava em sangue. E, na semana seguinte, numa grande assembleia, escolhia-se o encarregado do próximo ano. Assim compravam a felicidade e a prosperidade que havia em Naccos. Todo mundo sabia disso, e ninguém roía a corda. Só a decadência, como a dos tempos de hoje, é de graça. Vocês não têm que pagar nada a ninguém para viver inseguros e atemorizados e para serem as ruínas que são. Isso se tem de graça. A obra vai parar e deixar todo mundo sem trabalho, os terrucos vêm fazer uma carnificina, o huayco vai cair e apagar tudo aqui do mapa. Os malignos sairão das montanhas para festejar dançando um cacharpari de despedida à vida e haverá tantos condores revoando que o céu vai ficar encoberto. A menos que...

Não é verdade que Timoteo Fajardo me abandonou porque lhe faltou coragem. É falso que o narigudo me encontrou, na manhã seguinte à festa do santo, na entrada da mina Santa Rita, com os colhões do encarregado na mão e, com medo de ser escolhido para encarregado no ano seguinte, fugiu de Naccos. São falatórios, tal como a história de que Dionisio o matou para ficar comigo. Enquanto essas coisas que estou contando aconteciam em Naccos, eu ainda estava flutuando entre as estrelas, imaterial, espírito puro, esperando minha hora de encarnar em um corpo de mulher.

Como o pisco, a música ajuda a entender as verdades amargas. Dionisio passou a vida instruindo as pessoas e não adiantou grande coisa, a maioria tapa as orelhas para não ouvir. Eu aprendi com ele tudo o que sei sobre música. Cantar um huaynito com sentimento, abandonando-se, deixando-se levar, perdendo-se na canção, até sentir que já é ela, que é a música que canta você e não você que a canta, é o caminho da sabedoria. Sapatear, sapatear, girar, ir embelezando o movimento, fazendo e desfazendo sem perder o ritmo, esquecendo, indo, até sentir que a dança já está dançando você, que se infiltrou no seu interior, que ela manda e você obedece, é o caminho da sabedoria. Você não é mais você, eu não sou mais eu, sou todos os outros. Assim se sai da prisão do corpo e se entra no mundo dos espíritos. Cantando. Dançando. Também bebendo, naturalmente. Com a bebida você viaja, diz Dionisio, você visita o seu animal, joga fora a preocupação, descobre o próprio segredo, afinal se iguala. No resto do tempo fica preso, como os cadáveres nas huacas antigas ou nos cemitérios de agora. Sempre é escravo ou servo de alguém. Dançando e bebendo, não há índios, mestiços nem cavalheiros, ricos nem pobres, homens nem mulheres. As diferenças se apagam e nos tornamos como os espíritos: índios, mestiços e cavalheiros ao mesmo tempo; ricos e pobres, mulheres e homens ao mesmo tempo. Nem todo mundo viaja dançando, cantando ou bebendo, só os superiores. É preciso ter disposição e perder o orgulho e a vergonha, descer do pedestal em que as pessoas se encarapitam. Quem não põe o pensamento para dormir, quem não se esquece de si mesmo, não se livra das vaidades e orgulhos, esse não vira música quando canta, nem dança quando baila, nem porre quando se embebeda. Esse aí não sai da sua prisão, não viaja, não visita o seu animal nem sobe até espírito. Esse aí não vive: é decadência e está morto-vivo. Nem serviria para alimentar os espíritos das montanhas. Eles querem seres de categoria, libertos da escravidão. Muitos, por mais que se embebedem, não conseguem vir a ser o porre. Nem o canto e a dança, por mais que se esgoelem e tirem faíscas do chão sapateando. O serventezinho dos policiais, sim. Embora seja mudo, embora seja abobado, ele sente a música. Ele sabe. Eu o vi dançar, sozinho, subindo ou descendo o morro, quando vai fazer seus serviços. Fecha os olhos, se concentra, começa a andar com ritmo, a dar passinhos nas pontas dos pés, a mexer as mãos, a pular. Está ouvindo um huayno que só ele ouve, que cantam só para ele, que ele mesmo canta sem som, dentro do coração. Ele se perde, sai dali, viaja, vai, chega próximo dos espíritos. Os terrucos não o mataram daquela vez, em Pampa Galeras, porque os espíritos das montanhas na certa o estavam protegendo. Ou, talvez, o destinavam a qualquer coisa superior. Seria recebido de braços abertos, como aqueles encarregados de antigamente que as mulheres lhes entregavam, os que dormem nas huacas. Mas vocês, apesar das calças e dos colhões que usam para tantas bravatas, se cagam de medo. Preferem ficar sem trabalho, acabar ressecados e fatiados pelos pishtacos, incorporados à milícia dos terrucos, machucados pelas pedradas, qualquer coisa menos assumir uma responsabilidade. Não é de se estranhar que Naccos tenha ficado sem mulheres. Eram elas que resistiam às investidas dos maus espíritos, eram elas que mantinham a vida e a prosperidade do povoado. Desde que foram embora, começou a decadência e vocês não têm coragem de detê-la. Deixam que a vida vá escorrendo e a morte preenchendo os espaços vazios. A menos que...

— A história dos dólares não me incomodou nem um pouco, eram dela — disse Tomasito, com absoluta convicção. — Mas saber que ela foi embora, pensar que nunca mais veria Mercedes, que ia ser mulher de outro, ou de outros, nunca mais minha, foi um golpe duríssimo. Fiquei arrasado, meu cabo. Até pensei em me matar, juro. Mas nem para isso tive forças.

— Não era para menos — observou Lituma. — Agora o entendo melhor, Tomasito. Esse choro quando está dormindo, por exemplo. Agora entendo. E também que você fique monotemático, não fale de outra coisa. O difícil de entender é que, depois de uma cachorrada dessas, depois de Mercedes dar o fora apesar de tudo o que você fez por ela, ainda a ame. Deveria mais é odiá-la do fundo da alma.

— Sou serrano, meu cabo, não se esqueça — brincou o rapaz. — Não dizem que para nós não há amor sem sofrimento? “Quanto mais me bate, mais me ama”, não dizem que dizemos? No meu caso o ditado é verdadeiro.

— Para dores de amor, o melhor remédio é outro amor — animou-o Lituma. — Em vez de chorar tanto pela piurana, arranje logo outra fêmea. Assim esquece a ingrata.

— A mesma receita do meu padrinho — disse Tomasito.

— Não há mal de pica que dure cem anos nem corpo que resista — afirmou o comandante. E deu uma ordem: — Vá agora mesmo até o Dominó e coma a magrela espevitada da Lira, ou Celestina, a peitudinha. E, se aguentar, as duas juntas. Vou telefonar para lhe darem um desconto. Se esse par de bundas rebolando em cima de você não tirarem Mercedes da sua cabeça, podem me arrancar um galão.

— Quis obedecer e fui — lembrou o rapaz, com um risinho forçado. — Não sentia vontade, estava um trapo, fazia o que me mandassem. Fui lá e levei uma putinha para o hotelzinho em frente ao Dominó, para ver se assim começava a esquecê-la. E foi pior. Enquanto a mulher me fazia agrados, eu só ficava lembrando de Mercedes, comparando o que estava na minha frente com o corpinho do meu amor. Nem levantou, meu cabo.

— Você me confessa cada intimidade que nem sei o que dizer — Lituma parecia confuso. — Não tem vergonha de me contar essas coisas tão pessoais, Tomasito?

— Não contaria para qualquer um — esclareceu o adjunto. — Mas confio no senhor ainda mais que no gordo Iscariote. O senhor para mim é como o pai que não tive, meu cabo.

— A tal Mercedes era mulher demais para você, rapaz — afirmou o comandante. — Você iria passar o diabo com ela. Essa mulher é dessas que apostam alto, mesmo o Chancho era pouco para ela. Não viu como foi abusada comigo, na noite em que você veio apresentá-la? Até me chamou de gatinho, aquela metida.

— Para mantê-la sempre ao meu lado, eu roubaria e mataria outra vez — disse Carreño, com a voz quebrada. — Qualquer coisa. E quer que lhe diga uma coisa ainda mais íntima? Nunca mais vou ter outra mulher. Elas não me interessam, não existem. Se não for Mercedes, nenhuma.

— Puta merda — comentou Lituma.

— Para ser sincero, eu bem que teria comido a tal Mercedes, teria mesmo — pigarreou o comandante. — Até propus, quando dancei com ela no Dominó. Para testar, já lhe contei isso. Sabe o que ela fez, afilhado? Segurou a minha braguilha com o maior descaramento e disse: “Com você, nem por todo o ouro do mundo. Nem que me pusesse uma pistola no peito. Você não é o meu tipo, gatinho.”

Estava de uniforme, sentado na pequena escrivaninha do seu escritório, no primeiro andar do Ministério. Entre as pilhas de pastas, viam-se uma pequena bandeira peruana e um ventilador desligado. Carreño estava à paisana e permaneceu de pé, em frente a uma foto do presidente da República que parecia olhar para ele com ironia, na parede. O comandante, sempre com seus eternos óculos escuros, brincava com um lápis e um apontador.

— Não me diga uma coisa dessas, padrinho. Isso me deixa mais arrasado ainda.

— Digo para que saiba que aquela mulher não era para o seu bico — o comandante tentava animá-lo. — Teria chifrado você até com padres e veados. Era uma liberada, a coisa mais perigosa que uma mulher pode ser. Foi uma sorte ter se livrado dela, mesmo que tenha sido contra a sua vontade. E, agora, não percamos mais tempo. Vamos tratar da sua situação. Não esqueceu que está numa puta encrenca com a história de Tingo María, certo?

— Só pode ser seu pai, Tomasito — sussurrou Lituma. — Tem que ser.

O comandante buscou na escrivaninha e apanhou uma pasta no alto de uma pilha. Balançou-a na frente de Carreño.

— Vai dar trabalho limpar sua folha de serviços. Se não, essa mancha o persegue a vida inteira. Já encontrei um jeito, graças a um advogadozinho desocupado, chapa meu. Sabe o que você é? Desertor arrependido, isso é o que você é. Fugiu, percebeu seu erro, reconsiderou e agora está de volta para pedir perdão. Como prova da sua sinceridade, você se oferece como voluntário para ir à área de emergência. Vai caçar delinquentes subversivos, rapaz. Assine aqui.

— Como eu gostaria de conhecer seu padrinho — Lituma interrompeu, admirado. — Que sujeito, Tomasito.

— Seu pedido foi aceito e você já tem destino — prosseguiu o comandante, soprando a tinta onde Carreño havia assinado. — Andahuaylas, às ordens de um oficial que tem colhões. O tenente Pancorvo. Ele me deve favores, vai tratá-lo bem. Você fica na serra por alguns meses, um ano. Sai de circulação até que se esqueçam do caso e sua folha de serviços fique limpa. Depois de tudo ungido e sacramentado, eu lhe arranjo um destino melhor. Não me agradece?

— O gordo Iscariote também se portou muito bem comigo — disse Tomás. — Até eu tomar o ônibus para Andahuaylas, ele foi a minha sombra. Tinha medo de que me suicidasse, acho. Para ele, as tristezas de amor se curam comendo, morre pela boca, já lhe contei.

— Pamonha, espetinhos, torresmo com batata-doce, cebiche de corvina, rocotos recheados, mexilhões à parmegiana, causa à limenha e cerveja em temperatura polar — listou o gordo Iscariote, com um gesto magnífico. — Isto é o começo. Depois, ají de galinha com arroz branco e um seco de cabrito. E, para arrematar, mazamorra morada com torrone de dona Pepita. Alegre-se, Carreñito.

— Se comermos a metade disso, caímos mortos, gordo.

— Só se for você — disse Iscariote. — Para mim, uma comilança dessas me renova. Isto é que é viver. Antes de chegar ao seco de cabrito, você esquece a Mercedes para sempre.

— Nunca vou me esquecer dela — afirmou o rapaz. — Ou melhor, não quero me esquecer dela. Nunca imaginei que se pudesse ser tão feliz, meu cabo. Talvez tenha sido melhor as coisas acabarem assim. Nossa história ter durado pouco. Porque, se tivéssemos nos casado e continuado juntos, também começaria entre nós tudo o que envenena os casais. Em vez disso, hoje todas as minhas lembranças dela são boas.

— Mas ela deu o fora com os seus quatro mil dólares depois de você matar um sujeito por sua causa e conseguir-lhe um título de eleitor novo, e você só pensa maravilhas da piurana — Lituma se escandalizou. — Você é masoquista, Tomasito.

— Já sei que não vai me dar a menor bola — disse de repente o gordo Iscariote: estava suando e ofegante, e toda a sua grande massa de carne pulsava, ávida; mantinha o garfo no ar, cheio de arroz, e o balançava ao ritmo de suas palavras. — Mas me deixe lhe dar um conselho de amigo. Sabe o que eu faria se fosse você?

— O quê?

— Eu me vingaria. — Iscariote levou o garfo à boca, mastigou baixando os olhos, como se estivesse em êxtase, engoliu, tomou cerveja, limpou os grossos lábios com a língua e continuou: — Ela deveria pagar pela cachorrada que fez.

— Como? — perguntou o rapaz. — Por mais que eu esteja amargurado e com indigestão, você me faz rir, gordo.

— Sacaneando essa dona onde mais lhe possa doer — ofegou Iscariote. Havia tirado do bolso um grande lenço branco com listas azuis e enxugava o suor com as duas mãos. — Mandando-a para a cadeia, como cúmplice do Chancho. É fácil, basta meter uma denúncia contra ela no processo. E, enquanto a investigassem e todos os procedimentos com o juiz, ela ficaria em Chorrillos. Não tinha terror de ir para a cadeia de mulheres? Passaria um tempinho lá, aquela ingrata.

— Eu poderia resgatá-la de noite, com escadas e cordas. Estou ficando mais interessado, gordo.

— Em Chorrillos, dou um jeito de que a ponham no pavilhão das caboclas lésbicas — explicou Iscariote, de supetão, como se tivesse um plano muito bem estudado. — Iam fazê-la ver as estrelas e a lua, Carreñito. Estão meio sifilíticas, de modo que também a contagiariam.

— Isso já me agrada menos, gordo. O meu amor, sifilítica? Eu arrebentaria com minhas próprias mãos cada uma dessas sapatonas.

— Há outra possibilidade. Nós a procuramos, achamos, levamos para a delegacia de Tacora onde tenho um compadre. Lá ela passaria a noite na cela dos malucos, drogados e depravados. Na manhã seguinte, não se lembraria nem do próprio nome.

— Eu iria até a cela só para me ajoelhar e adorá-la. — O rapaz riu. — Ela é minha Santa Rosa de Lima.

— Foi por isso que o deixou. — O gordo Iscariote tinha começado a atacar as sobremesas e falava de boca cheia, engasgando. — As mulheres não gostam de tanta consideração, Carreñito. Ficam entediadas. Se a tivesse tratado como o Chancho, agora estaria mansinha ao seu lado.

— Eu gosto dela como é — disse o rapaz. — Abusada, metida, tarimbada. Com a personalidade de merda que ela tem, gosto dela. Tudo o que é e faz me agrada. Mesmo que não acredite, meu cabo.

— Por que não acreditaria que você também tem sua loucura? — disse Lituma. — Todos não têm sua loucura aqui? Os terrucos não são loucos? Dionisio, a bruxa, não estão pirados? Não era doido aquele tenente Pancorvo que queimava um mudo para fazê-lo falar? Quer gente mais maluca que estes serranos assustados com mukis e degoladores? Não têm um parafuso a menos essas pessoas que fazem os outros desaparecerem para acalmar os apus das montanhas? A sua loucura de amor, pelo menos, não faz mal a ninguém, só a você mesmo.

— Em compensação, o senhor conserva a cabeça fria neste manicômio, meu cabo — disse o adjunto.

— Deve ser por isso que me sinto tão desambientado em Naccos, Tomasito.

— Bem, eu me rendo, então não vamos nos vingar, Mercedes que continue enchendo o mundo de amantes mortos e apaixonados feridos — disse o gordo Iscariote. — Pelo menos melhorei o seu humor. Vou sentir sua falta, Carreñito, já estava acostumado a trabalhar com você. Espero que se dê bem na área de emergência. Não deixe que os terrucos lhe arranquem o saco. Cuide-se e me escreva.

— Deve ser por isso que não vejo a hora de sair daqui — acrescentou Lituma. — Bem, vamos dormir, já deve estar amanhecendo. Sabe de uma coisa, Tomasito? Você me contou a sua vida toda. Já sei o resto. Foi para Andahuaylas, esteve com Pancorvo, foi transferido para cá, trouxe Pedrito Tinoco, nós nos conhecemos. De que vamos falar nas noites que nos restam?

— De Mercedes, de quem pode ser — decretou o adjunto, categórico. — Eu lhe conto outra vez o meu amor, desde o começo.

— Puta merda — bocejou Lituma, fazendo o catre ranger. — Outra vez, desde o começo?