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II

“Os serranos estão pouco ligando para todas essas mortes”, pensou Lituma. Na noite anterior, na cantina de Dionisio, tinha ouvido a notícia do ataque ao ônibus de Andahuaylas e nem um só dos peões que estavam bebendo e comendo fizera o menor comentário. “Nunca vou entender porra nenhuma do que acontece aqui”, pensou. Esses três desaparecidos não fugiram das suas famílias, nem escaparam roubando alguma maquinaria do acampamento. Foram se alistar na milícia dos terroristas. Ou estes os tinham assassinado e enterrado em algum buraco dos morros. Mas se os senderistas já estavam aqui e tinham cúmplices entre os peões, por que não atacaram o posto? Por que não haviam executado Tomasito e a ele? Por serem sádicos, talvez. Queriam esfrangalhar seus nervos antes de cortá-los em pedacinhos com cargas de dinamite. Não lhes dariam tempo de pegar os revólveres embaixo do travesseiro, e menos de correr até o armário dos fuzis. Iriam se aproximando devagarzinho, pelos quatro lados do casebre, enquanto eles dormiam o sono cheio de pesadelos de toda noite, ou enquanto Tomás recordava seus amores e ele lhe servia de ombro amigo. Um estrondo, um clarão, o dia no meio da noite: arrancariam suas mãos e pernas e a cabeça ao mesmo tempo. Esquartejado como Túpac Amaru, compadre. Aconteceria a qualquer momento, talvez esta noite. E, na cantina de Dionisio e da bruxa, os serranos fariam as mesmas caras de desentendidos que fizeram na noite passada ao ouvir o caso do ônibus de Andahuaylas.

Suspirou e afrouxou o quepe. O mudinho costumava lavar a esta hora a roupa de Lituma e do seu adjunto. Trabalhava logo ali, a poucos metros, à maneira das índias: batendo cada peça numa pedra e escorrendo-a muito tempo na gamela. Lavava com muita consciência, ensaboando as camisas e cuecas uma e outra vez. Depois estendia a roupa em cima das pedras com a meticulosa diligência com que fazia tudo, o corpo e a alma concentrados na tarefa. Quando seus olhos se cruzavam com os do cabo, ficava rígido, alerta, esperando a ordem. E passava o dia inteiro batendo continências. O que os terroristas teriam feito com aquela alma de Deus.

O cabo acabava de passar duas horas realizando o mesmo percurso obrigatório — engenheiro, capatazes, pagadores, chefes de equipe e companheiros de turno do fulano — que tinha feito depois dos outros desaparecimentos. Com o mesmo resultado. Ninguém sabia grande coisa da vida de Demetrio Chanca, é claro. E menos do seu paradeiro atual, é claro. Agora sua mulher também tinha sumido. Como aconteceu com a que veio denunciar o desaparecimento do albino Casimiro Huarcaya. Ninguém sabia onde, quando nem por que haviam ido embora de Naccos.

— Não acha esquisitos esses desaparecimentos?

— É, muito esquisitos.

— Dá o que pensar, não é?

— Sim, dá o que pensar.

— Quem sabe foram os fantasmas que os levaram?

— Claro que não, cabo, quem vai acreditar nisso.

— E por que as duas mulheres também desapareceram?

— Por que será, hein.

Estariam caçoando dele? Às vezes parecia que por trás dessas caras inexpressivas, desses monossílabos pronunciados com relutância, como se estivessem fazendo um favor, desses olhinhos opacos, desconfiados, os serranos riam da sua condição de costeiro extraviado nestas punas, da agitação que a altura ainda lhe provocava, da sua incapacidade para resolver esses casos. Ou estariam mortos de medo? Um medo quase pânico, um medo feroz dos terrucos. Esta podia ser a explicação. Como era possível que, com tudo o que acontecia diariamente à sua volta, nunca os tivesse ouvido fazer um único comentário sobre o Sendero Luminoso? Como se não existisse, como se não houvesse tantas bombas e matanças. “Que gente”, pensou. Não conseguira fazer um único amigo entre os peões, apesar de já estar há tantos meses com eles, apesar de já ter deslocado duas vezes o posto para acompanhar o acampamento. Nem assim. Tratavam-no como se ele viesse de Marte. Divisou Tomás ao longe, aproximando-se. O guarda fora fazer investigações entre os camponeses da comunidade e a equipe que abria um túnel a um quilômetro de Naccos, na direção de Huancayo.

— E então? — perguntou, certo de que o veria passar um dedo pela garganta.

— Descobri uma coisa — disse o guarda, sentando-se ao seu lado numa das pedras que encrespavam a encosta. Estavam em cima de um promontório, no meio do caminho entre o posto e o acampamento esparramado ao longo da bocaina pela qual passaria a estrada, se algum dia a terminassem. Diziam que no passado Naccos tinha sido um pujante povoado mineiro. Agora, não existiria sem as obras da estrada. O ar do meio-dia estava morno e no céu, entre nuvens algodoadas e pançudas, brilhava um sol ofuscante. — Esse capataz teve uma briga com a bruxa, algumas noites atrás.

A bruxa era a senhora Adriana, mulher de Dionisio. Quarentona, cinquentona, sem idade, à noite ela ficava na cantina, ajudando o marido a dar bebida às pessoas e, se era verdade o que contava, vinha do outro lado do rio Mantaro, das vizinhanças de Parcasbamba, uma região entre montanhosa e selvática. De manhã preparava comida para alguns peões e, à tarde e à noite, adivinhava a sorte com baralhos, mapas astrais, lendo as mãos ou jogando folhas de coca para o ar e interpretando as figuras que elas formavam ao cair. Era uma mulher de olhos grandes, saltados e ardentes, e quadris amplos que ela balançava ao caminhar. Tinha sido uma verdadeira fêmea, ao que parece, e se contavam muitas histórias sobre o seu passado. Que foi mulher de um mineiro narigudo, e até que matara um pishtaco. Lituma desconfiava que, além de cozinheira e adivinha, de noite também era outra coisa.

— Não me diga que a bruxa também é terrorista, Tomasito.

— Demetrio Chanca pediu que ela jogasse as folhas de coca. E não deve ter gostado do que ouviu, porque não quis pagar. Discutiram aos gritos. Dona Adriana estava furiosa e tentou arranhá-lo. Quem me contou foi uma testemunha ocular.

— E, para se vingar do calote, a bruxa mandou um passezinho de mágica e o fez evaporar — suspirou Lituma. — Você a interrogou?

— Mandei-a vir aqui, meu cabo.

Lituma não conhecera Demetrio Chanca, pensava. O albino, vagamente, porque o rosto da fotografia que a mulher que fez a queixa deixou lembrava alguém com quem tinha trocado algumas palavras, uma vez, na casa de Dionisio. O primeiro, Pedrito Tinoco, pelo contrário, tinha morado com eles neste mesmo barraco e o cabo não conseguia tirá-lo da cabeça. O guarda Carreño o encontrara pedindo esmola nas punas e o trouxe para trabalhar no posto, em troca de comida e uns trocados. Foi utilíssimo. Ajudou-os a reforçar a viga do teto do barraco, a prender as telhas de zinco, a pregar o tabique que estava desmoronando e a fazer o parapeito de sacos para o caso de um ataque. Até que um belo dia o mandaram comprar cerveja e ele desapareceu, sem deixar pistas. Assim começou esta estupidez, pensou Lituma. Como iria terminar.

— Dona Adriana está subindo — avisou o adjunto.

A silhueta estava meio dissolvida na luz branca, ao longe. O sol reverberava no zinco, lá embaixo, e o acampamento parecia uma fileira de lagoas, um espelho fragmentado. Sim, era a bruxa. Chegou ofegando um pouco e respondeu ao cumprimento do cabo e do guarda com um gesto seco, sem mexer os lábios. Seu peito grande, maternal, subia e descia harmoniosamente, e seus grandes olhos observavam ora um, ora o outro, sem piscar. Não havia um pingo de inquietação naquele olhar fixo, de uma intensidade que chegava a incomodar. Por alguma razão, ela e o bêbado do seu marido sempre faziam Lituma sentir-se pouco à vontade.

— Obrigado por vir, minha senhora — disse. — Como já deve saber, continua desaparecendo gente aqui em Naccos. Agora são três. Muitos, não acha?

Ela não respondeu. Gorda, tranquila, boiando num suéter remendado, com uma saia esverdeada presa por uma fivela grossa, parecia muito segura de si mesma ou dos seus poderes. Bem plantada nos seus sapatões de homem, aguardava impassível. Teria mesmo sido a beleza que diziam? Difícil imaginar diante de um espantalho daquele.

— Chamamos a senhora para nos contar a discussão que teve com Demetrio Chanca na outra noite. Aquele capataz que também desapareceu.

A mulher fez que sim. Tinha uma cara redonda e avinagrada e uma boca que parecia uma cicatriz. Seus traços eram indígenas, mas sua pele era branca e seus olhos, muito claros, como os daquelas mulheres morochucas que Lituma tinha visto uma vez, no interior de Ayacucho, galopando como o vento nuns cavalos baixinhos e peludos. Seria puta, de noite?

— Não tive nenhuma discussão com esse homem — afirmou, cortante.

— Temos testemunhas, dona — interveio o guarda Carreño. — A senhora quis arranhá-lo, não negue.

— Tentei tirar o chapéu dele para receber o que me devia — ela retificou, sem se alterar. — Esse homem me fez trabalhar de graça e isso eu não aceito de ninguém.

Tinha uma voz um pouco arrastada, como se, ao falar, subissem pedrinhas do fundo do seu corpo até a língua. Lá no norte, em Piura e Talara, Lituma nunca acreditou em bruxas nem em bruxarias, mas aqui, nas montanhas, já não tinha tanta certeza. Por que se sentia apreensivo diante desta mulher? Que porcarias ela e Dionisio faziam na cantina, de madrugada, com os peões bêbados, quando Lituma e seu adjunto iam dormir?

— Ele não deve ter gostado do que a senhora leu na coca — disse Tomás.

— Na mão — corrigiu a mulher. — Também sou quiromante e astróloga. Mas estes índios não confiam nas cartas, nem nas estrelas, nem mesmo nas próprias mãos. Só na coca. — Engoliu saliva e acrescentou: — E nem sempre as folhas falam claro.

O sol batia nos seus olhos, mas ela não piscava; pareciam alucinados, saltavam das órbitas e Lituma imaginou que podiam até falar. Se fazia mesmo de noite aquilo que ele e Tomás suspeitavam, os homens que montavam nela tinham que enfrentar aqueles olhões no meio da escuridão. Ele não conseguiria.

— E o que viu na mão dele, minha senhora?

— Tudo o que lhe aconteceu — respondeu, com naturalidade.

— Leu nas mãos dele que ia desaparecer? — Lituma examinou-a, aos pouquinhos. À sua direita, Carreño esticava o pescoço.

A mulher assentiu, imperturbável.

— Cansei um pouco com a subida — murmurou. — Vou me sentar.

— Conte-nos o que disse a Demetrio Chanca — insistiu Lituma.

Dona Adriana bufou. Havia desabado em cima de uma pedra e se abanava com o chapelão de palha que acabara de tirar. Seu cabelo era liso, sem fios brancos, esticado e preso na nuca com uma fita colorida, como as que os índios amarram nas orelhas das lhamas.

— Disse o que vi. Que ele ia ser sacrificado para aplacar os malignos que causam tantos danos na região. E que foi escolhido porque era impuro.

— E pode-se saber por que era impuro, dona Adriana?

— Porque tinha trocado de nome — explicou a mulher. — Trocar o nome que lhe deram ao nascer é uma covardia.

— Agora entendo por que Demetrio Chanca não quis lhe pagar — sorriu Tomasito.

— Quem ia sacrificá-lo? — perguntou Lituma.

A mulher fez um gesto que podia ser de tédio ou de desprezo. Abanava-se devagar, bufando.

— O senhor quer que eu responda “os terrucos, o pessoal do Sendero”, não é verdade? — Tornou a bufar e mudou de tom: — Isso não estava em suas mãos.

— E quer que eu me satisfaça com uma explicação dessas?

— O senhor pergunta e eu respondo — disse a mulher, muito tranquila. — Foi isso que eu vi na mão dele. E se cumpriu. Ele não desapareceu, por acaso? Foi sacrificado, ora.

Deve estar louca, na certa, pensou Lituma. A senhora Adriana bufava como um fole. Com sua mão gorducha levantou a barra da saia até o rosto e assoou o nariz, deixando à mostra duas canelas grossas e branquelas. Assoou novamente, fazendo barulho. Apesar do seu mal-estar, o cabo deu uma risadinha: que maneira de limpar as melecas.

— Pedrito Tinoco e o albino Huarcaya também foram sacrificados para o diabo?

— Para eles não joguei as cartas, nem vi suas mãos, nem fiz o mapa astral. Posso ir embora?

— Um minutinho — Lituma a deteve.

Tirou o quepe e enxugou o suor da testa. O sol estava no meio do céu, redondo e cintilante. Fazia um calor do norte. Mas em quatro ou cinco horas ia começar a esfriar e por volta das dez da noite seus ossos estariam rangendo de frio. Só os serranos podiam entender este clima tão arrevesado. Voltou a se lembrar de Pedrito Tinoco. Quando ele terminava de lavar e enxaguar a roupa, ficava sentado numa pedra, imóvel, olhando para o vazio. Permanecia assim, quieto, ensimesmado, pensando sabe-se lá o quê, até que a roupa secasse. Então a dobrava cuidadosamente e vinha entregar ao cabo, batendo continência. Puta merda. Lá embaixo, no acampamento, entre os brilhos e clarões do zinco, via os peões se movimentando. Umas formiguinhas. Os que não estavam dinamitando o túnel ou trabalhando com a pá faziam agora um descanso; deviam estar comendo suas marmitas.

— Eu tento fazer o meu trabalho, dona Adriana — disse de repente, surpreendendo-se com seu tom confidencial. — Desapareceram três sujeitos. Os parentes vieram registrar a ocorrência. Os terroristas podem tê-los matado. Ou recrutado à força para sua milícia. Ou sequestrado. Temos que investigar. É para isso que estamos aqui em Naccos. É para isso que existe este posto da Guarda Civil. Ou para quê, então?

Tomás tinha apanhado umas pedrinhas no chão e mirava nos sacos da paliçada. Quando acertava, ouvia-se um barulhinho desafinado.

— Está me culpando? A culpa é minha se existem terroristas nos Andes?

— A senhora é uma das últimas pessoas que viu Demetrio Chanca. Teve uma briga com ele. Que história é essa de que mudou de nome? Dê uma pista. Será que é muito difícil?

A mulher bufou de novo, fazendo um sonzinho pedregoso.

— Já contei o que sei. Mas vocês não acreditam em nada do que ouvem, acham que são histórias de bruxa. — Procurou os olhos de Lituma e este sentiu que aquele olhar o acusava. — Por acaso acredita em alguma coisa do que eu digo?

— Eu tento, minha senhora. Há quem acredite e há quem não acredite no além. Agora não interessa. Eu só quero descobrir o que houve com esses três. O Sendero Luminoso já está em Naccos? É melhor saber. O que aconteceu com eles poderia acontecer com qualquer outro. Com a senhora mesma e com seu marido, dona Adriana. Não ouviu que os terroristas castigam os vícios? Que espancam os beberrões? Imagine o que fariam com Dionisio e a senhora, que vivem embebedando as pessoas. Estamos aqui para proteger vocês, também.

Dona Adriana esboçou um sorriso zombeteiro.

— Se eles quiserem nos matar, ninguém vai impedir — murmurou. — Da mesma forma que querem executar vocês, naturalmente. O senhor sabe disso muito bem, cabo. Vocês e nós somos iguais nisso, estamos vivos por puro milagre.

Tomasito estava com a mão levantada para jogar outra pedra, mas não jogou. Baixou o braço e dirigiu-se à mulher:

— Estamos preparados para recebê-los, dona. Dinamitando a metade do morro. Antes de o primeiro botar os pés no posto, vai haver fogos de artifício de senderistas em cima de Naccos. — Piscou um olho para Lituma e tornou a dirigir-se a dona Adriana: — O cabo não fala com a senhora como suspeita. Fala como amiga. Portanto, corresponda à sua confiança.

A mulher tornou a bufar e a se abanar, antes de assentir.

Levantando a mão lentamente, indicou os picos que se sucediam, afiados ou rombudos, com seus capuzes de neve, plúmbeos, esverdeados, maciços e solitários, embaixo da abóbada azul.

— Todos estes morros estão cheios de inimigos — disse suavemente. — Vivem lá dentro. Ficam urdindo suas maldades noite e dia. Fazem estragos e mais estragos. Este é o motivo de tantos acidentes. Os desmoronamentos nas socavas. Os caminhões que perdem os freios ou saem da pista nas curvas. As caixas de dinamite que explodem levando pernas e cabeças.

Falava sem levantar a voz, de maneira mecânica, como as ladainhas das procissões ou o queixume das carpideiras nos velórios.

— Se todo o mal é coisa do diabo, não há acasos no mundo — comentou Lituma, com ironia. — Aqueles dois francesinhos que iam para Andahuaylas, foi Satanás quem matou a pedradas, dona? Porque esses inimigos são diabos, não são?

— Também empurram os huaycos — concluiu ela, apontando para as montanhas.

Os huaycos! Lituma tinha ouvido falar deles. Não havia ocorrido nenhum por aqui, felizmente. Tentou imaginar aqueles desprendimentos de neve, rochas e lama que, do alto da cordilheira, desciam como uma tromba de morte, arrasando tudo, crescendo com as encostas que arrancavam, carregando pedras, sepultando plantações, animais, aldeias, lares, famílias. Caprichos do diabo, os huaycos?

Dona Adriana tornou a apontar para os picos:

— Quem poderia desprender essas rochas? Quem iria levar o huayco justamente por onde pode causar mais estragos?

Calou-se e bufou novamente. Falava com tanta convicção que, por alguns instantes, Lituma ficou alarmado.

— E esses desaparecidos, minha senhora? — insistiu.

Uma pedrinha de Tomás acertou no alvo e fez um som metálico que o eco prolongou montanha abaixo. Lituma viu seu adjunto inclinando-se para apanhar outro punhado de projéteis.

— Não se pode fazer quase nada contra eles — prosseguiu dona Adriana. — Pouca coisa. Acalmá-los, distraí-los. Não com as oferendas dos índios, nas trilhas. Esses montinhos de pedras, essas florzinhas, esses bichinhos não servem para nada. Nem esses jorrinhos de chicha que derramam para eles. Nessa comunidade aqui ao lado às vezes matam um carneiro, uma vicunha. Bobagens. Deve funcionar em tempos normais, não nestes. Eles gostam é de gente.

Lituma pensou que seu adjunto estava segurando o riso. Mas não sentiu vontade de rir do que a bruxa dizia. Ouvindo falar essas coisas, por mais que fossem bobagens de uma farsante ou delírios de uma louca, ele ficava assustado.

— E na mão de Demetrio Chanca a senhora leu que...?

— Eu o avisei porque quis. — Ela encolheu os ombros. — O que está escrito se cumpre de qualquer maneira.

O que diriam as autoridades, lá, em Huancayo, se enviasse pelo rádio do acampamento este informe sobre o que tinha acontecido:

“Sacrificado de maneira ainda não identificada para aplacar malignos dos Andes, ponto. Escrito nas linhas de sua mão, diz testemunha, ponto. Caso encerrado, ponto. Saudações, Chefe do Posto, ponto. Cabo Lituma, ponto.”

— Eu falando e o senhor rindo — disse com ironia a mulher, com a voz abafada.

— Estou rindo do que os meus chefes diriam, em Huancayo, se eu repetisse a explicação que a senhora me deu — disse o cabo. — Obrigado, de qualquer maneira.

— Posso ir embora?

Lituma confirmou. Dona Adriana levantou sua volumosa presença com esforço e, sem despedir-se dos guardas, começou a descer a encosta, em direção ao acampamento. De costas, com seus sapatões sem forma, bamboleando as cadeiras amplas de maneira que fazia sua saia verde revoar, com o chapelão de palha balançando, parecia um espantalho. Uma diaba, ela também?

— Você viu um huayco alguma vez, Tomasito?

— Não, meu cabo, nem gostaria. Mas, quando era menino, nos arredores de Sicuani estive onde um havia caído uns poucos dias antes, abrindo uma vala descomunal. Via-se direitinho, montanha abaixo como um tobogã. Destruiu casas, árvores e, claro, pessoas. Arrastou umas pedras enormes. O terral continuou branqueando tudo durante vários dias.

— Você acredita que dona Adriana pode ser cúmplice dos terroristas? Que está nos fazendo de bobos com essa história dos diabos dos morros?

— Eu acredito em qualquer coisa, meu cabo. A vida me tornou o homem mais crédulo do mundo.

Desde criança Pedrito Tinoco era chamado de lunático, tolo, avoado, bobo e, como sempre estava de boca aberta, papa-moscas. Não se zangava com esses apelidos porque nunca se zangava com nada, nem com ninguém. E o povo de Abancay tampouco se zangava com ele porque, com seu sorriso agradável, seu espírito serviçal e sua simplicidade, terminava conquistando todo mundo.

Diziam que não era de Abancay, que sua mãe o trouxera com poucos dias de nascido, que ela só ficou na cidade o tempo necessário para deixar aquele filho não desejado, dentro de uma trouxinha, na porta da igreja da Virgem do Rosário.

Boato ou verdade, ninguém em Abancay soube mais nada de Pedrito Tinoco, além disso. Os habitantes do lugar lembravam que desde pequeno ele dormia com os cachorros e as galinhas do padre (as más línguas também diziam que era seu pai), para quem varria a igreja e servia de sineiro e coroinha até que o cura morreu. Então, já adolescente, Pedrito Tinoco se mudou para as ruas de Abancay, onde foi carregador, engraxate, varredor, ajudante e substituto de vigias, carteiros, lixeiros, cuidador de barracas no mercado e lanterninha do cinema e dos circos que chegavam para as festas patrióticas. Dormia todo enovelado nos estábulos, nas sacristias ou sob os bancos da Praça de Armas e comia graças aos favores de moradores caridosos. Andava descalço, com umas calças imundas e folgadas amarradas com barbante, um poncho esfiapado, e não tirava da cabeça um chapéu pontiagudo de cujos contornos escapavam umas mechas lisas jamais tocadas por tesoura ou pente.

Quando levaram Pedrito Tinoco, alguns moradores tentaram mostrar aos soldados que aquilo era injusto. Como podia fazer serviço militar uma pessoa que à simples vista se notava que era idiota, alguém que nem sequer tinha aprendido a falar, só a sorrir com uma cara de meninão que não sabe o que estão lhe dizendo, nem quem é ou onde está? Mas os soldados não deram o braço a torcer e o levaram, junto com os jovens capturados a laço nas cantinas, nas tavernas, nos cinemas e no estádio da cidade. No quartel, rasparam seu cabelo, tiraram sua roupa, com a mangueira lhe deram o primeiro banho completo da vida e o meteram num uniforme cáqui e numas botinas a que não se acostumou porque nas três semanas que ficou lá seus companheiros o viram andar como se fosse manco ou paralítico. Ao começar sua quarta semana de recruta, fugiu.

Ficou perambulando pelas serranias inóspitas de Apurímac e de Lucanas, em Ayacucho, evitando as estradas e as aldeias, comendo folhas e procurando tocas de vizcacha de noite para se proteger dos redemoinhos do vento glacial.

Quando os pastores o encontraram, havia emagrecido até virar puro osso, pele, e um olhar enlouquecido de fome e de medo. Uns punhados de mote, um pouco de charque e um golinho de chicha o reanimaram. Os pastores o levaram para Auquipata, uma antiga comunidade de terras altas, gado e pequenos lotes com roçados empobrecidos onde só cresciam batatas escuras e uns ollucos raquíticos.

Pedrito se acostumou com Auquipata e os camponeses o deixaram ficar. Lá também, como na cidade, seu espírito serviçal e a frugalidade da sua vida conquistaram a aceitação das pessoas. Seu silêncio, seu sorriso eterno, sua permanente disposição para fazer o que lhe pediam, seu jeito de já estar no mundo dos desencarnados lhe davam uma auréola de santo. Os camponeses o tratavam com respeito e distância, conscientes de que, por mais que ele compartilhasse seus trabalhos e suas festas, não era um deles.

Algum tempo depois — Pedrito não poderia dizer quanto, porque em sua existência o tempo não fluía da mesma maneira que na dos outros — ocorreu uma invasão de forasteiros. Chegaram e partiram e voltaram e houve muitas horas de debates para discutir as propostas. Os recém-chegados se vestiam do mesmo jeito que a memória insegura de Pedrito recordava que os outros se vestiam, lá, antes. Os varayoks explicaram que a reserva de vicunhas que o governo queria criar não iria invadir as terras legalizadas e que, pelo contrário, seria útil para Auquipata, pois os camponeses poderiam vender seus produtos aos turistas atraídos pelas vicunhas.

Uma família foi contratada para tomar conta das vicunhas quando começaram a conduzi-las para um altiplano meio perdido entre as montanhas, entre os rios Tambo Quemado e San Juan, a um dia de caminho do centro da comunidade. Havia ichu, lagoas, riachos, tocas nos morros, e as vicunhas logo se aclimataram ao lugar. Eram trazidas de regiões longínquas da Cordilheira, em caminhões, até a bifurcação da trilha para San Juan, Lucanas e Puquio, e dali os pastores de Auquipata as tocavam. Pedrito Tinoco foi morar com os cuidadores. Ajudou-os a construir um refúgio e a fazer uma rocinha de batatas e um curral para cuyes. Foram avisados que de tanto em tanto tempo as autoridades viriam trazendo mantimentos, mobiliário para a moradia, e que lhes pagariam um salário. E, de fato, vez por outra aparecia alguma autoridade, numa caminhonete vermelha. Fazia perguntas e deixava dinheiro ou provisões. Depois pararam de vir. E passou tanto tempo sem que ninguém aparecesse na reserva que, um dia, os cuidadores fizeram uma trouxa com seus pertences e voltaram para Auquipata. Pedrito Tinoco ficou com as vicunhas.

Havia estabelecido uma relação mais íntima com esses delicados animais do que a que já mantivera com qualquer ser da sua espécie. Passava os dias observando as vicunhas, investigando seus hábitos, seus movimentos, suas brincadeiras, suas manias, com uma atenção meio abobalhada, quase mística, dobrando-se de rir quando as via correr, mordiscar-se, rolar entre as palhas, ou se entristecendo quando alguma caía num barranco e quebrava as patas, ou uma fêmea se esvaía em sangue por causa de um parto difícil. Tal como o povo de Abancay e os camponeses de Auquipata, as vicunhas também o adotaram. Viam-no como uma figura benfeitora, familiar. Deixavam Pedrito chegar perto sem se assustar e, às vezes, as mais carinhosas lhe esticavam o pescoço, pedindo com seus olhos inteligentes que afagasse suas orelhas, coçasse o lombo e a barriga ou esfregasse seu nariz (era do que mais gostavam). Mesmo os machos, na época do cio, quando ficavam muito ariscos e não deixavam ninguém chegar perto da sua manada de quatro ou cinco concubinas, permitiam que Pedrito brincasse com as fêmeas, sem tirar, porém, seus olhaços de cima, prontos para interferir em caso de perigo.

Às vezes apareciam forasteiros na reserva. Vinham de longe, não falavam nem quéchua nem espanhol, e sim uns sons que Pedrito Tinoco achava tão estranhos como suas botas, cachecóis, casacões e chapéus. Tiravam fotografias e faziam longas caminhadas, estudando as vicunhas. Mas estas, apesar dos esforços de Pedrito, não permitiam que se aproximassem. Ele os alojava no seu refúgio e os ajudava. Ao partir, deixavam latas de conserva, alguns trocados.

Essas visitas eram as únicas anomalias na vida de Pedrito Tinoco, feita de rotinas que se adaptavam aos ritmos e fenômenos da natureza: as chuvas e granizos das tardes e noites e o sol inclemente das manhãs. Preparava armadilhas para as vizcachas, mas comia quase sempre batatas da sua pequena plantação e, de quando em quando, matava e cozinhava um cuy. E salgava e secava à intempérie pedaços de carne das vicunhas que morriam. Ocasionalmente descia para alguma feira dos vales onde trocava batatas e ollucos por um pouco de sal e um saquinho de folhas de coca. Às vezes chegavam pastores da aldeia até os limites da reserva. Faziam uma parada no refúgio de Pedrito Tinoco e davam notícias de Auquipata. Ele ouvia muito atento, esforçando-se para se lembrar de que e de quem estavam falando. O lugar de onde eles vinham era um sonho nebuloso. Os pastores remexiam em fundos perdidos da sua memória, imagens fugidias, rastros de outro mundo e de uma pessoa que não era mais ele. Tampouco entendia aquelas histórias de que a terra estava agitada, que caíra uma maldição, que estavam matando gente.

Na noite daquele amanhecer houve uma tempestade de granizo. Esses temporais sempre abatiam algumas vicunhas jovens. Ficou pensando quase toda a noite, encolhido sob seu poncho, no refúgio, nas que morreriam enregeladas ou queimadas pelo raio, enquanto se filtravam pancadas de chuva pelas frestas do teto. Dormiu quando já começava a amainar. Acordou ouvindo vozes. Levantou-se, saiu e lá estavam eles. Eram uns vinte, mais gente do que Pedrito já tinha visto chegar junta na reserva. Homens, mulheres, jovens e crianças. Sua cabeça os associou com o confuso quartel, porque estes também tinham espingardas, metralhadoras e facas. Mas não se vestiam como soldados. Tinham feito uma fogueira e estavam cozinhando. Deu boas-vindas a eles, sorrindo com sua cara abobada, fazendo reverências, inclinando a cabeça em sinal de respeito.

Falaram primeiro em quéchua e depois em espanhol.

— Você não deve se agachar desta maneira. Não deve ser servil. Não nos cumprimente como se fôssemos “senhores”. Nós somos seus iguais. Somos como você.

Era um jovem de olhar duro, com a expressão de alguém que sofreu muito e que odeia muito. Como podia, sendo quase um menino? Será que tinha dito, feito, alguma coisa que o ofendeu?

Para reparar seu erro, Pedrito Tinoco correu até o refúgio e lhe trouxe um saquinho com batatas secas e umas tiras de carne seca. Ofereceu-as, fazendo uma reverência.

— Você não sabe falar? — perguntou em quéchua uma das garotas.

— Deve ter esquecido — disse outro, examinando-o de cima a baixo. — Nestas paragens solitárias nunca deve aparecer ninguém. Entende pelo menos o que dizemos?

Ele se esforçava para não perder uma palavra e, sobretudo, para adivinhar como servi-los. Eles perguntaram sobre as vicunhas. Quantas havia, até onde chegava a reserva para lá, e para lá, e para lá, onde costumavam beber água, onde dormiam. Fazendo muitos gestos e repetindo duas, três, dez vezes cada palavra, pediram-lhe que os guiasse até onde estavam, para ajudar a reuni-las. Pulando, imitando os movimentos dos animais quando cai um aguaceiro, Pedrito explicou que estavam nas cavernas. Tinham passado a noite lá, emboladas, umas em cima das outras, esquentando-se, tremendo com os trovões e os raios. Ele sabia, tinha compartilhado muitas horas lá dentro com elas, abraçando-as, sentindo seu medo, também arrepiado de frio e repetindo com sua garganta os sons com que elas conversavam entre si.

— Naqueles morros — entendeu, por fim, um deles. — Devem dormir lá.

— Leve-nos — ordenou o jovem de olhar duro. — Venha conosco, faça também a sua parte, mudinho.

À frente do grupo, ele os guiou através do campo. Já não chovia. O céu estava limpo e azul, e o sol dourava os morros dos arredores. Pelo ar molhado subia da relva palhiça e da terra enlameada, cheia de poças, um aroma picante, que deixava Pedrito alegre. Abrindo o nariz, aspirou essa fragrância de água, terra e raízes que, depois de um temporal, parecia aliviar o mundo, tranquilizar todos os que tinham temido, debaixo das trombas-d’água e dos trovões, que a vida acabasse num cataclismo. Tiveram que caminhar muito tempo porque o chão estava escorregadio e os pés afundavam até os tornozelos. Precisaram tirar os sapatos, os tênis, as sandálias. Ele tinha visto soldados, policiais?

— Não entende — diziam. — É retardado.

— Entende, mas não consegue se expressar — diziam. — Tanta solidão, viver entre as vicunhas. Virou um bicho do mato.

— Só pode ser isso — diziam.

Quando chegaram ao sopé dos morros, apontando, pulando, fazendo gestos, caretas, Pedrito Tinoco deu a entender que, para não espantá-las, tinham que ficar bem quietinhos entre os matagais. Sem falar, sem se mexer. Elas tinham ouvido fino, vista longa e eram desconfiadas e medrosas. Começavam a tremer assim que farejavam forasteiros.

— Para esperarmos aqui, para ficarmos quietos — disse o menino de olhos duros. — Espalhem-se, sem fazer barulho.

Pedrito Tinoco viu-os parar, dispersar-se, abrir-se em leque e, bem separados uns dos outros, se encolher entre os penachos de ichu.

Esperou que se instalassem, que se ocultassem, que abafassem os ruídos que faziam. Nas pontas dos pés, avançou até as tocas. Logo distinguiu os brilhos dos seus olhaços. As que estavam nas entradas, vigiando, o observavam aproximar-se. Mediam-no, com as orelhas já levantadas, aguçando suas narinazinhas frias para confirmar o cheiro familiar, um cheiro sem ameaças, para machos ou fêmeas, para adultos ou crias. Aumentando a cautela, a calma dos seus passos para não alarmar a suscetibilidade doentia que elas tinham, Pedro Tinoco começou a estalar a língua, a fazê-la vibrar baixinho contra o céu da boca, imitando-as, falando com elas nessa linguagem que, esta sim, tinha aprendido a falar.

Ele as tranquilizava, anunciava sua presença, chamava. Então viu correr uma exalação cinzenta entre seus pés: uma vizcacha. Tinha levado seu estilingue e poderia tê-la caçado, mas não o fez para não assustar as vicunhas. Sentia nas costas o peso dos olhares dos forasteiros.

Começaram a sair. Não uma a uma, mas, como sempre, em famílias. O macho com suas quatro ou cinco ­fêmeas cuidando dele, e a mãe com a cria recente se enredando em suas patas. Sentiam a umidade no ar, investigavam a terra remexida, a palha derrubada, farejavam a relva que o sol começava a secar e que iriam comer agora. Mexiam as cabeças à direita e à esquerda, para cima e para baixo, as orelhas esticadas, seu corpo vibrando com uma desconfiança que era o traço dominante da sua natureza. Pedro Tinoco as via passar, roçar no seu corpo, espreguiçar-se quando dava um puxão no ninho quente das orelhas ou enfiava os dedos no meio da sua lã para beliscá-las.

Quando os tiros espoucaram, pensou que eram trovões, outro temporal que se aproximava. Mas viu um terror apavorado nos olhos das vicunhas que estavam mais perto e viu como elas desembestavam e se atropelavam, girando sobre si mesmas, caindo, estorvando-se, cegas e aturdidas pelo pânico, hesitando entre fugir em direção ao campo aberto ou voltar para as tocas, e viu as primeiras que, gemendo, caíam sangrando, os lombos abertos, os ossos rachados, e focinhos, olhos, orelhas arrancados pelos projéteis. Algumas caíam e se levantavam e voltavam a cair e outras ficavam petrificadas, esticando os pescoços como se quisessem elevar-se e fugir pelo ar. Algumas fêmeas, inclinadas, lambiam as crias feridas. Ele também estava paralisado, olhando, tentando entender, sua cabeça girando de um lado para o outro, seus olhos arregalados, sua boca muito aberta, suas orelhas martirizadas pelos disparos e os gemidos piores que os das fêmeas quando pariam.

— Não acertem nele — rugia, de vez em quando, o menino-homem. — Com cuidado, com cuidado!

Além de alvejá-las, alguns corriam ao encontro das que tentavam escapar, cercando-as, encurralando-as, e as matavam com coronhadas e facadas. Pedro Tinoco afinal teve uma reação. Começou a pular, a rugir com o peito e o estômago, a girar os braços como hélices. Avançava, retornava, interpunha-se entre as armas e as vicunhas, implorando com suas mãos e seus gritos e com o escândalo estampado em seus olhos. Eles não pareciam vê-lo. Continuavam atirando e perseguindo aquelas que tinham conseguido escapar e se afastavam pela vegetação seca, em direção ao barranco. Quando chegou perto do menino-homem, ajoelhou-se e tentou beijar sua mão, mas ele o empurrou, furioso:

— Não faça isso — repreendeu. — Fora, afaste-se.

— É uma ordem da direção — disse outro, que não demonstrava raiva. — Isto é uma guerra. Você não pode entender, mudinho, não consegue entender.

— Chore pelos seus irmãos, chore pelos que sofrem — aconselhava uma garota, consolando-o. — Pelos assassinados e os torturados. Pelos que foram para a cadeia, pelos mártires, pelos que se sacrificaram.

Indo de um para o outro, Pedrito continuava tentando beijar suas mãos, implorando, ajoelhando-se. Alguns o repeliam com boas maneiras, outros com nojo.

— Tenha um pouco de orgulho, tenha mais dignidade — diziam. — Pense em você mesmo antes de pensar nas vicunhas.

Ficaram atirando, correndo atrás delas, liquidando as agonizantes. Pedro Tinoco pensou que a noite nunca mais chegaria. Um deles destroçou dois filhotes que tinham ficado parados ao lado da mãe morta, explodindo um cartucho de dinamite. O ar se inundou de cheiro de pólvora. Pedro Tinoco ficou sem forças para continuar chorando. Caído no chão, boquiaberto, olhava para um, olhava para outro, ainda tentando entender. Algum tempo depois, o menino de expressão cruel se aproximou dele.

— Nós não gostamos de fazer isto — disse, modulando a voz e pondo a mão no seu ombro. — É uma ordem da direção. Esta é uma reserva do inimigo. Nosso e seu inimigo. Uma reserva inventada pelo imperialismo. Dentro da sua estratégia mundial, este é o papel que impuseram aos peruanos: criar vicunhas. Para que os cientistas deles as estudem, para que os turistas deles tirem fotos. Para eles, você vale menos que estes animais.

— Você precisa ir embora daqui, tio — aconselhou uma das garotas, em quéchua, abraçando-o. — A polícia vai chegar, um monte de soldados. Vão espancar você e cortar seus colhões antes de lhe meter uma bala na cabeça. Vá para longe, bem longe.

— Talvez assim ele entenda o que não entende agora — voltou a explicar o menino-homem, enquanto fumava, olhando para as vicunhas mortas. — Isto é uma guerra, ninguém pode dizer que não tem nada a ver comigo. Tem a ver com todo mundo, mesmo os mudos e os surdos e os abobados. Uma guerra para acabar com os “senhores”. Para que ninguém mais se ajoelhe nem beije as mãos ou os pés de ninguém.

Ficaram ali o resto da tarde e a noite inteira. Pedrito Tinoco viu-os preparando comida, colocando sentinelas nas encostas que davam para o caminho. E ouviu-os dormir, enrolados em seus ponchos e mantas, apertados uns contra os outros, nas cavernas do morro, como faziam as vicunhas. Na manhã seguinte, quando partiram, repetindo que ele devia ir embora se não quisesse que os soldados o matassem, conti­nuava no mesmo lugar, boquiaberto, molhado pelo orvalho da manhã, sem entender aquele novo mistério incomensurável, rodeado de vicunhas mortas sobre as quais se atiravam as aves de rapina e os bichos rasteiros.

— Que idade você tem? — perguntou-lhe de repente a mulher.

— É uma curiosidade minha, também — exclamou Lituma. — Você nunca me contou. Que idade você tem, Tomasito?

Carreño, que estava começando a adormecer, acordou totalmente. Agora não estavam dando tantos solavancos, mas o motor ainda roncava como se fosse estourar em qualquer curva da estrada. Continuavam subindo a Cordilheira, com morros de vegetação alta à direita e, à esquerda, umas encostas meio peladas ao pé das quais roncava o rio Huallaga. Estavam sentados no meio de sacos e caixas de mangas, lúcumas, frutas-do-conde e maracujás cobertos com pedaços de plástico, na carroceria de um caminhão muito velho e sem lona para a chuva. Mas, nas duas ou três horas em que vinham se afastando da selva, subindo os Andes rumo a Huánuco, o aguaceiro não caíra sobre eles. A noite ficava mais fria com a altitude. O céu fervilhava de estrelas.

— Meu Deus, deixe-me trepar com uma mulher ­antes que venham nos matar, só uma vezinha mais — implorou Lituma. — Desde que cheguei a Naccos estou vivendo feito um eunuco, puta merda. E suas histórias com essa piurana me deixam em brasa, Tomasito.

— Ainda é bem pirralho, imagino — acrescentou a mulher, depois de uma pausa, como se estivesse falando consigo mesma. — Por mais que banque o pistoleiro e ande com malfeitores, você não sabe nada de nada, Carreño. É este o seu nome, não é? O gordo o chamava de Carreñito.

— As mulheres que eu conhecia até então eram tímidas, medrosas, mas essa, que descarada — o adjunto se exaltou. — Depois do susto que levou em Tingo María, ela recuperou rapidinho o autocontrole. Antes de mim, acredite. Foi ela quem convenceu o caminhoneiro a nos levar até Huánuco, e pela metade do que ele tinha pedido. Discutindo o preço de igual para igual.

— Desculpe eu mudar de assunto, mas acho que esta noite eles aparecem, Tomasito — disse Lituma. — É como se os visse descer o morro agora mesmo. Não ouviu alguma coisa lá fora? Vamos dar uma olhada?

— Tenho vinte e três — disse ele. — Sei de tudo o que há para saber.

— Não sabe que os homens às vezes recorrem a certos truques para sentir prazer — replicou ela, num tonzinho desafiante. — Quer que lhe conte uma coisa que vai revirar seu estômago, Carreñito?

— Não se preocupe, meu cabo. Tenho um ouvido muito fino, garanto que ninguém está vindo pelo morro.

O rapaz e a mulher estavam lado a lado, apertados entre os sacos de frutas. O perfume das mangas crescia com a noite. O ronco e os espasmos do motor abafavam os zumbidos de insetos; tampouco se ouvia o estalar da folhagem ou o cantar do rio.

— As sacudidas do caminhão nos jogavam um contra o outro — recordou o adjunto. — Cada vez que eu sentia o corpo dela, tremia.

— Agora chamam isso de tremedeira? — brincou Lituma. — Antes se chamava tesão. Você está certo, não se ouve nada, é puro receio meu. Veja só, eu estava começando a ficar excitado com sua história, e o tal barulhinho me brochou.

— Ele nem me batia de verdade — murmurou a mulher, e Carreño se assustou. Teve a impressão de que ela sorriu, porque viu seus dentes brilharem. — Você pensou que ele estava me batendo por causa dos palavrões que dizia e das minhas súplicas e prantos. Não percebeu que era para se excitar? Que era para excitá-lo? Como você é inocente, Carreñito.

— Cale a boca, senão faço você descer do caminhão — cortou ele, indignado.

— Ainda bem que não disse: “Cale a boca, senão lhe dou uma surra”, “cale a boca, senão arrebento você de pancada” — interrompeu Lituma. — Seria engraçado, Tomasito.

— Foi o que ela falou, meu cabo. E nós dois caímos na gargalhada. Continuamos rindo, contagiados. Quando ficávamos sérios, o riso voltava.

— Sim, seria engraçado se eu batesse em você — reconheceu o rapaz. — Às vezes sinto vontade, confesso, quando reclama por eu ter querido lhe fazer um bem. Vou lhe dizer uma coisa. Não sei o que vai ser da minha vida, agora.

— E da minha? — replicou ela. — Você pelo menos fez essa besteira porque quis. Mas me meteu nessa encrenca sem pedir minha opinião. Vão nos perseguir, quem sabe para nos matar. E ninguém vai acreditar no que realmente aconteceu. Vão dizer que você trabalha para a polícia, que eu era sua cúmplice.

— Então ela não sabia que você era guarda civil? — Lituma se espantou.

— Eu nem mesmo sei como você se chama — lembrou o rapaz.

Houve um silêncio, como se tivessem apagado o motor, mas logo depois voltou a roncar, a ferver. Tomás pensou que aquelas luzinhas, lá em cima, eram um avião.

— Mercedes.

— É o seu nome verdadeiro?

— Só tenho um — zangou-se ela. — E, é bom saber, não sou puta. Eu era amiga dele. Tinha me tirado de um show.

— Do Vacilón, uma boate no centro de Lima — explicou o guarda. — Ela era uma das tantas. O Chancho tinha um monte de amantes. Iscariote conheceu umas cinco.

— Quem me dera ser como ele — suspirou Lituma. — Cinco de uma vez! Trocar de fêmea todo dia, toda noite, como se troca de cueca ou de camisa. E nós dois aqui, de mãos abanando, Tomasito.

— Minhas costas doíam, todos os ossos — prosseguiu o adjunto, imerso na lembrança. — Não houve jeito de convencer o caminhoneiro a nos deixar viajar na cabine. Tinha medo de que fôssemos assaltá-lo. Estávamos moídos. E a dúvida me atormentava, pensando no que Mercedes tinha dito. Seria verdade que toda aquela choramingação era só um teatro para deixá-lo excitado? O que acha, meu cabo?

— Não sei o que dizer, Tomasito. Talvez fosse teatro. Ele fazia de conta que batia, ela, que chorava, e então ele ficava excitado e gozava. Há sujeitos assim, dizem.

— Que porco asqueroso — grunhiu o adjunto. — Ainda bem que está morto, porra.

— E, apesar de tudo, você se apaixonou pela Mercedes. Como é complicado o amor, Tomasito.

— Eu que o diga — murmurou o guarda. — Se não fosse por causa do amor, eu não estaria nesta puna perdida, esperando que uns fanáticos filhos da puta se dignem a vir nos matar.

— Está ouvindo alguma coisa? Vou dar uma olhada, por via das dúvidas. — Lituma se inquietou. Levantou-se com o revólver na mão e foi até a porta da cabana. Espiou em todas as direções. Voltou para o catre, rindo. — Não, não são eles. Tive a impressão de ver o mudinho cagando à luz da lua.

O que ia ser dele, agora? Melhor nem pensar. Tinha que chegar a Lima, lá veria. Como encarar seu padrinho, depois daquilo? Esta seria a parte mais difícil, naturalmente. Ele sempre o tratou como um cavalheiro e você corresponde assim. Isto é o que se chama fazer uma grossa besteira, Carreño. Sim, mas não estava ligando. Sentia-se melhor agora, balançando com os solavancos e se encostando nela de vez em quando; muito melhor que lá em Tingo María, tremendo, suando, se sufocando, apoiado nos tabiques daquela casa, ouvindo suas sacanagens. Todos aqueles gemidos, súplicas, pancadas, ameaças, puro teatro, pura mentira? Falso. Ou, de repente, eram mesmo.

— Eu não estava sentindo o menor remorso, meu cabo, esta é a verdade — afirmou Tomás. — Tanto fazia o que fosse me acontecer. Porque eu já estava doido por ela, como o senhor adivinhou.

Os dois caíram na modorra com o bamboleio e o cheirinho adocicado das mangas. Mercedes tentava apoiar a cabeça num saco, mas os pulos do caminhão não deixavam. Carreño ouviu-a resmungar, viu-a pôr o rosto entre as mãos, mexer-se e remexer-se procurando uma posição.

— Vamos fazer um trato — ouviu-se dizer, afinal, tentando parecer natural. — Encoste-se um pouco no meu ombro. Depois eu me encosto no seu. Se não dormirmos um pouco vamos chegar mortos em Huánuco.

— Ora, a coisa estava ficando interessante — comentou Lituma. — Conte de uma vez a primeira trepada que deram, Tomasito.

— Ao mesmo tempo estiquei o braço, oferecendo-lhe um lugarzinho — disse Tomás, deliciado. — Senti o corpo dela se juntando ao meu, senti sua cabeça se apoiar no meu ombro.

— E, é claro, ficou logo de pau duro — disse Lituma.

O rapaz também não se deu por aludido dessa vez.

— Passei o braço por trás, encostei a mão nela — explicou. — Mercedes estava transpirando. Eu também. Seu cabelo roçava no meu rosto, entrava pelo nariz. Senti a curva do quadril dela coladinho no meu. Quando ela falava, seus lábios tocavam no meu peito e, através da camisa, eu sentia o calorzinho do seu hálito.

— Quem está ficando de pau duro agora sou eu, puta merda — disse Lituma. — E agora o que faço, Tomasito? Vou ali me esvaziar?

— Vá urinar, meu cabo, e com o frio lá de fora amolece.

— Você é muito religioso? Muito católico? Não pode aceitar que um homem e uma mulher façam certas coisas? Foi por causa do pecado que o matou, Carreñito?

— Eu estava me sentindo feliz, tendo-a tão perto de mim — cantava o adjunto. — De boca bem fechada, quietinho, ouvindo o caminhão sofrer para subir a Cordilheira, eu reprimia a vontade de beijá-la.

— Não se zangue com as minhas perguntas — insistiu Mercedes. — É que estou tentando entender por que você o matou, e não consigo.

— Durma e não pense mais nisso — pediu o rapaz. — Faça como eu. Já nem lembro, já me esqueci do Chancho e de Tingo María. Não meta a religião nessas coisas.

Era noite espessa nas montanhas dos Andes que, a cada curva do caminho, pareciam mais e mais altas. Mas, lá embaixo, na selva que estavam deixando para trás, uma pequena fenda entre azulada e branca despontava no horizonte.

— Está ouvindo? Está ouvindo? — Lituma sentou-se no catre, de repente. — Pegue o revólver, Tomasito. São passos no morro, juro.