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III

— Casimiro Huarcaya deve ter desaparecido por querer bancar um pishtaco — disse o cantineiro Dionisio. — Era um boato que ele mesmo espalhava. Aqui mesmo, eu o ouvi mil vezes gritando feito um animal: “Sou pishtaco, e daí? Vou acabar cortando o sebo e chupando o sangue de todo mundo.” Devia estar meio tonto, mas já se sabe que os bêbados dizem a verdade. A cantina inteira ouviu. Aliás, em Piura também há pishtacos, senhor cabo?

Lituma ergueu o copinho de anisado que o cantineiro tinha acabado de encher, disse “saúde” para seu adjunto e bebeu tudo num gole só. O calor adocicado que desceu por suas tripas levantou-lhe o ânimo, que estivera no chão o dia todo.

— Eu, pelo menos, nunca soube que houvesse pishtacos em Piura. Despenadores, sim. Conheci um, em Catacaos. Eram chamados às casas onde havia almas penando para falar com elas, pedir que fossem embora. Claro que um despenador, comparado com um pishtaco, é café pequeno.

A cantina ficava no coração do acampamento, cercada pelos barracões onde os peões dormiam. Era uma construção de teto baixo, com bancos e caixotes em vez de cadeiras e mesas, piso de terra e imagens de mulheres nuas espetadas na parede de tábuas. De noite sempre ficava lotada, mas ainda era cedo — o sol acabava de se pôr — e, além de Lituma e Tomás, só havia quatro homens, usando cachecóis, dois deles de capacete; sentados em volta de uma mesa, bebiam cerveja. O cabo e o guarda, com um segundo copinho de anisado nas mãos, foram para a mesa vizinha.

— Já vi que a minha explicação de pishtaco não convence muito. — Dionisio riu.

Era um homem com o rosto encardido, como se tivesse passado carvão, gordinho e balofo, e um cabelo crespo e oleoso. Envergando um suéter azul, que nunca tirava, estava sempre com os olhos avermelhados e cintilantes por causa do álcool, pois bebia junto com os clientes. Mas sem chegar a se embebedar completamente, é verdade. Pelo menos, Lituma nunca o vira chegar àquele estado de maceração alcoólica que muitos peões atingiam nas noites de sábado. Costumava ouvir a Rádio Junín a todo volume, mas nessa noite ainda não tinha ligado o aparelho.

— Vocês acreditam em pishtacos? — perguntou Lituma aos ocupantes da mesa ao lado. Os quatro rostos que se viraram em sua direção, semiencobertos pelos xales, eram daqueles, saídos de um mesmo molde, que ele tinha dificuldade para individualizar: queimados pelo sol forte e pelo frio cortante, com uns olhinhos inexpressivos, fugidios, narizes e lábios arroxeados pela intempérie, cabelos indomáveis.

— Quem sabe — respondeu, por fim, um deles. — Talvez.

— Eu acredito, sim — disse, logo depois, um dos homens de capacete. — Se tanto falam, é porque devem existir.

Lituma baixou os olhos. Estava ali. Forasteiro. Meio gringo. À simples vista não dava para reconhecer, pois era igualzinho a qualquer cristão deste mundo. Vivia em cavernas e perpetrava suas maldades ao cair a noite. Apostado nos caminhos, atrás das pedras, encolhido entre os fardos de palha ou embaixo das pontes, esperava os viajantes solitários. Aproximava-se deles com manhas, fazendo amizade. Já levava preparados seus pozinhos de osso de defunto e, no primeiro descuido, soprava-lhes na cara. Podia, então, chupar sua gordura. Depois os deixava ir embora, vazios, pura pele e osso, condenados a consumir-se em poucas horas ou dias. Esses eram os benignos. Procuravam gordura humana para que os sinos das igrejas cantassem melhor, os tratores rodassem suavemente e até mesmo, por último, para que o governo pagasse a dívida externa com ela. Os malignos eram piores. Além de degolar, retalhavam a vítima como um boi, carneiro ou porco, e a comiam. Sangravam-na gota a gota e se embebedavam com o sangue. Os serranos acreditavam nessas coisas, puta merda. Seria mesmo verdade que aquela bruxa da dona Adriana tinha matado um pishtaco?

— Casimiro Huarcaya era albino — murmurou o peão que falara primeiro. — Pode ser verdade o que disse o Dionisio. Devem tê-lo confundido com um pishtaco e, antes que ele viesse fatiar-lhes a banha, deram cabo dele.

Seus companheiros de mesa aprovaram com murmúrios e risinhos. Lituma sentiu que seu pulso acelerava. Huarcaya tinha quebrado pedras, puxado a enxada e suado junto com eles na obra da estrada; agora, estava morto ou sequestrado. E aqueles merdas se davam ao luxo de inventar brincadeiras.

— Vocês estão cagando solenemente para o caso — repreendeu-os. — O que aconteceu com o albino pode acontecer com vocês também. E se os terroristas aparecerem esta noite aqui em Naccos e começarem a fazer julgamentos populares, como em Andamarca? Gostariam de ser mortos a pedradas, acusados de traidores da pátria ou de veados? Gostariam de ser chicoteados, acusados de bêbados?

— Não sendo bêbado, nem traidor da pátria, nem vea­do, não gostaria — disse o mesmo que falara antes.

Seus companheiros de mesa aprovaram com risinhos e cotoveladas.

— O que aconteceu em Andamarca foi uma coisa triste — disse, já sério, um deles que até então não se manifestara. — Pelo menos, todos ali eram peruanos. Foi pior o que houve em Andahuaylas. Aquele casalzinho de franceses, por exemplo, diga lá. Para que metê-los na briga? Nem os estrangeiros se livram.

— Eu acreditava em pishtacos quando era menino — interrompeu o guarda Carreño, dirigindo-se ao cabo. — Minha avó me assustava com eles, quando se zangava comigo. Cresci olhando de lado para qualquer pessoa esquisita que passasse por Sicuani.

— E você acha que o mudinho, Casimiro Huarcaya e o capataz foram secados e fatiados pelos pishtacos?

O guarda molhou os lábios no copinho de anisado.

— Já disse que, do jeito que as coisas vão, estou disposto a acreditar no que for, meu cabo. Mas, veja bem, prefiro lidar com pishtacos que com terrucos.

— Você tem razão em ser crédulo — concordou o cabo. — Para entender essas coisas que acontecem por aqui, só acreditando nos diabos.

Aqueles francesinhos em Andahuaylas, por exemplo. Tirados do ônibus e com os rostos amassados como pasta, segundo a Rádio Junín. Para que tanta fúria? Por que não matá-los simplesmente com um tiro?

— Já nos acostumamos com a brutalidade — disse Tomasito, e Lituma notou que seu adjunto estava pálido. Os copinhos de anisado tinham acendido seus olhos e afrouxado sua voz. — Falo por mim mesmo, de peito aberto. O senhor ouviu falar do tenente Pancorvo?

— Nunca vi mais gordo, nem ouvi falar.

— Eu estava na patrulha dele, naquele caso das vicunhas, em Pampa Galeras. Pegamos um sujeito e ele não queria abrir a boca. “Pare de se fazer de santinho, não olhe para mim como se não estivesse entendendo”, dizia o tenente. “Porque, se começar o tratamento, você vai falar feito um papagaio.” E fizemos o tratamento nele.

— Qual era? — perguntou Lituma.

— Queimá-lo com fósforos e isqueiros — explicou Carreño. — Começando pelos pés e subindo, pouco a pouco. Com fósforos e isqueiros, isso mesmo. Tudo bem lento. A carne cozinhava, começou a ter cheiro de torresmo. Eu ainda não estava acostumado, meu cabo. Tive ânsia de vômito e quase desmaiei.

— Imagine o que os terroristas vão fazer conosco se nos pegarem vivos — disse Lituma. — E você também participou do tratamento? E depois disso ainda vem fazer estardalhaço porque o Chancho deu umas chicotadas na tal piurana em Tingo María?

— E ainda não ouviu o pior. — Tomasito, agora lívido, tinha a língua um pouco mais travada. — Acontece que o homem nem mesmo era terrorista, era um retardado mental. Não falava porque não podia. Não sabia falar. Alguém de Abancay o reconheceu. “Olhe, meu tenente, é o retardado da minha aldeia, ele não vai falar, Pedrito Tinoco nunca deu um pio na vida toda.”

— Pedrito Tinoco? Quer dizer, o nosso Pedrito Tinoco? O mudo? — O cabo tomou num só gole outro copinho de anisado. — Está de gozação, Tomasito? Puta merda, puta merda.

— Ele era o cuidador da reserva, parece — confirmou Tomás, bebendo também; segurava o copo com mãos trêmulas. — Fizemos uns curativos como pudemos. Depois juntamos uns trocados com uma coleta na patrulha. Todos nós nos sentimos mal, até o tenente Pancorvo. E eu, mais do que todos os outros juntos. Foi por isso que o trouxe para cá. Nunca viu as cicatrizes nos pés dele, nos tornozelos? Foi quando perdi a inocência, meu cabo. Depois disso, não me assusto nem tenho pena de nada. Estou calejado, como todos. Não lhe contei até hoje porque tinha vergonha. E sem o anisado também não teria contado esta noite, não.

Para não pensar no mudinho, Lituma tentou imaginar os rostos dos três desaparecidos transformados numa pasta sanguinolenta, os olhos arrebentados, os ossos pulverizados, como aqueles francesinhos, ou queimados a fogo lento, como Pedrito Tinoco. Não conseguia pensar em outra coisa, puta merda.

— É melhor ir embora. — Bebeu o resto do anisado e se levantou. — Antes que o frio piore.

Quando saíram, Dionisio soprou-lhes um beijo pelo ar. O cantineiro circulava entre as mesas, já cheias de peões, fazendo as palhaçadas de toda noite: passos de dança, dar ele mesmo de beber aos clientes os copos de pisco ou as tulipas de cerveja e incentivá-los, já que não havia mulheres, a dançar entre homens. Seus trejeitos e frescuras irritavam Lituma e, quando o cantineiro começava a fazer seu número, ele ia embora. Despediram-se de dona Adriana, que atendia no balcão. Ela lhes fez um cumprimento exagerado, um pouco sarcástico. Acabara de sintonizar a Rádio Junín e se ouvia um bolero, que Lituma identificou: Rayito de luna. Tinha visto um filme com esse título, com uma loura de pernas compridas dançando: Ninón Sevilla. Lá fora, acabavam de ligar o motor que dava luz para os barracões. Algumas silhuetas encasacadas ou usando ponchos iam e vinham pelos arredores e respondiam com um grunhido ou uma inclinação de cabeça ao boa-noite dos policiais. Lituma e Carreño taparam a boca e o nariz com os cachecóis e encasquetaram os quepes, para que o vento não os levasse. Ventava com um assobio lúgubre que ricocheteava nos morros e eles avançavam meio inclinados, com as cabeças agachadas. De repente, Lituma parou:

— Isso me dá um nó nas tripas, puta merda! — exclamou, indignado.

— Por quê, meu cabo?

— Por terem torturado o pobre mudo, lá, em Pampa Galeras — elevou a voz, buscando o rosto do adjunto com a luz da lanterna. — Essa barbaridade não lhe dói na consciência?

— Nos primeiros dias pesava muito — murmurou Carreño, cabisbaixo. — Por que acha que eu o trouxe para Naccos? Aqui fui lavando o remorso. Por acaso tive culpa pelo que lhe aconteceu? E nós o tratamos bem aqui, demos a ele comida e teto, não foi, meu cabo? Pode ser que tenha me perdoado. Pode ser que entenda que se ficasse lá na puna já o teriam liquidado.

— Na verdade, prefiro que me conte as suas aventuras com Mercedes, Tomasito. A história do mudinho me deixou muito contrariado.

— Eu também queria apagá-la da memória, garanto.

— Que coisas fiquei sabendo em Naccos — resmungou Lituma. — Ser guarda civil em Piura e em Talara era moleza. A serra é infernal, Tomasito. Não é de admirar, com tanto serrano por aqui.

— Por que detesta tanto os serranos, posso saber?

Haviam começado a subir a encosta rumo ao posto e, como precisavam ir inclinados, tiraram os fuzis do ombro e os levavam nas mãos. À medida que se afastavam do acampamento, mergulhavam na escuridão.

— Bem, você é serrano e não o detesto. A gente se dá muito bem.

— Obrigado pela consideração. — O guarda riu. E, um instante depois: — Não pense que o pessoal do acampamento trata o senhor com frieza porque é costeiro. É por ser policial. Eles também me olham de lado, apesar de ser cusquenho. Não gostam de gente fardada. Têm medo de serem executados como dedos-duros pelos terrucos se forem vistos conosco.

— Na verdade, é preciso ter pouco juízo para virar guarda civil — murmurou Lituma. — Você ganha uma miséria, ninguém vai com a sua cara, e está na primeira fila para ir pelos ares com dinamite.

— É que alguns abusam da farda e isso desprestigia o conjunto.

— Em Naccos não há nem mesmo como abusar da farda — queixou-se Lituma. — Pobre Pedrito Tinoco, merda. E na semana em que ele sumiu ainda não tínhamos dado seus trocados.

Parou para pegar um cigarro. Ofereceu outro ao adjunto.

Para acendê-los, tiveram que fazer uma barreira com os corpos e os quepes porque a ventania apagava os fósforos. Corria e ululava por toda parte, como lobos famintos. Os guardas voltaram a andar lentamente, testando as pedras escorregadias com a ponta das botas antes de apoiar o pé.

— Tenho certeza de que, lá na cantina, quando nós dois saímos, começa todo tipo de veadagem — disse Lituma. — Não acha?

— Sinto tanto nojo que nem gosto de vir — respondeu o adjunto. — Mas qualquer um morreria de tristeza trancado no posto o tempo todo, sem tomar um gole de vez em quando. Claro que acontecem barbaridades lá. Dionisio deve deixar todo mundo bêbado de cair e, depois, na certa eles ficam se enrabando. Quer saber de uma coisa, meu cabo? Eu não me incomodo quando o Sendero executa uma bichona.

— O curioso é que, na verdade, eu tenho um pouco de pena de todos esses serranos, Tomasito. Apesar de serem tão complicados, me dão pena. Têm uma vida triste, não é? Trabalham feito mulas e mal ganham para comer. Que se divirtam um pouco, se puderem, antes que os terrucos cortem o saco deles ou apareça um tenente Pancorvo para dar-lhes um tratamento.

— E a nossa vida, por acaso não é triste, meu cabo? Mas nós não ficamos enchendo a cara feito gambás nem deixamos aquele depravado nos bolinar.

— Espere uns meses, e quem sabe, Tomasito.

A terra estava cheia de poças depois da chuva daquela tarde. Eles avançavam bem devagar. Caminharam um bom tempo em silêncio.

— Você vai dizer que eu não devo me meter onde não sou chamado, Tomasito — disse Lituma de repente. — Mas, como tenho simpatia por você e o anisado solta a minha língua, vou lhe dizer uma coisa. Esta noite ouvi você chorar.

Notou que o rapaz alterava o ritmo da marcha, como se houvesse tropeçado. Iam iluminando o caminho com as lanternas.

— Homem também chora, quando é preciso — continuou Lituma. — Não precisa ter vergonha. Umas lágrimas não fazem ninguém desmunhecar.

Continuaram subindo a colina, sem que o guarda mais jovem abrisse a boca. De vez em quando o cabo voltava a falar.

— Às vezes, quando penso: “Você não vai sair vivo de Naccos, Lituma”, fico desesperado. Eu também queria cair no choro. Não sinta vergonha. Não falei para deixar você constrangido. É que não foi a primeira vez. Na outra noite também ouvi, por mais que você chorasse apertando o rosto no colchão. Mas me dá não sei quê ver você sofrendo dessa maneira. É porque não quer morrer neste vilarejo? Se for isso, eu entendo. Mas será que não lhe faz mal ficar lembrando tanto de Mercedes? Você me conta os seus amores, eu sirvo por alguns minutos como confidente, mas depois o vejo arrasado. Talvez fosse melhor não falar mais disso, esquecê-la, Tomasito.

— Mas eu desabafo quando falo de Mercedes — disse, afinal, a voz confusa do adjunto. — Quer dizer que eu choro dormindo? Ora, então não estou tão bem preparado como pensava.

— Vamos apagar as lanternas — sussurrou Lituma. — Sempre pensei que, se quiserem nos emboscar, vai ser nesta curvinha.

Entraram em Andamarca pelos dois caminhos por onde se pode chegar ao povoado — os que subiam do rio Negromayo, os que tinham vadeado o Pumarangra e se desviado de Chipao — e por um terceiro, aberto pelos que vinham da comunidade rival de Cabana, escalando a bocaina do riacho que canta (este é o nome, no quéchua arcaico que se fala no lugar). Aconteceu ao raiar das primeiras luzes, antes que os camponeses fossem cuidar dos seus roçados, os pastores fossem pastorear seus rebanhos e os comerciantes de passagem fossem continuar sua travessia rumo a Puquio ou a San Juan de Lucanas, pelo sul, ou Huancasancos e Querobamba. Tinham viajado a noite inteira, ou pernoitado nos arredores, esperando que houvesse um pouco de luz para invadir a vila. Queriam evitar que, aproveitando a escuridão, algum dos que estavam na lista escapasse.

Mas um deles escapou, um dos que eles mais queriam executar: o tenente-governador de Andamarca. E de uma forma tão absurda que mais tarde as pessoas teriam dificuldade para acreditar: graças a uma diarreia enlouquecida que fez don Medardo Llantac passar a noite toda saindo às pressas do único dormitório da casa que dividia com a mulher, a mãe e seis dos seus filhos, na prolongação do jirón Jorge Chávez, para se acocorar no murinho de fora da casa, contíguo ao cemitério. Estava ali, fazendo força, derramando-se numa pestilência aguada e amaldiçoando a sua barriga, quando os ouviu. Abriram a porta com um chute, perguntaram por ele aos berros. Sabia quem eram e o que queriam. Esperava-os desde que o subprefeito da província, quase que à força, o nomeara tenente-governador de Andamarca.

Sem atinar nem a levantar as calças, don Medardo se jogou no chão, arrastou-se como uma minhoca até o cemitério e se meteu dentro de uma cova aberta na véspera, tirando e voltando a fechar sobre si a pedra que servia de lápide. Encolhido em cima dos restos gelados de don Florisel Aucatoma, seu primo, passou a manhã e a tarde sem ver nada, mas ouvindo muito do que acontecia naquele povoado do qual, teoricamente, ele era a suprema autoridade política.

Os membros da milícia conheciam o lugar ou tinham sido bem assessorados por seus cúmplices locais. Puseram sentinelas em todas as saídas, enquanto colunas sincronizadas percorriam as cinco faixas paralelas de barracos e casinhas esparramadas em quarteirões quadrangulares em volta da igreja e da praça principal. Alguns estavam de tênis, outros de sandália e alguns descalços, e não se ouviam seus passos nas ruas de Andamarca, asfaltadas ou de terra, com a exceção da principal, o jirón Lima, de paralelepípedos irregulares. Em grupos de três e de quatro, foram acordar imediatamente os que estavam na lista. Capturaram o prefeito, o juiz de paz, o chefe de correios, os donos das três adegas e suas mulheres, dois desmobilizados do Exército, o farmacêutico e prestamista don Sebastián Yupanqui, e os dois técnicos enviados pelo Banco Agrário para capacitar os lavradores em rega e adubos. Foram todos levados aos empurrões e pontapés até a praça da igreja, onde o resto da milícia tinha reunido o povo.

A essa altura, o dia havia clareado e já se podiam ver seus rostos. Estavam descobertos, menos os de três ou quatro que conservavam os passa-montanhas. Em seus quadros dominavam os jovens e os homens, mas também havia mulheres e crianças, entre as quais algumas que não deviam chegar a doze anos. Os que não estavam com metralhadoras, fuzis ou revólveres empunhavam velhas espingardas de caça, porretes, facões, facas, estilingues e a tiracolo, como os mineiros, cartuchos de dinamite. Também trouxeram bandeiras vermelhas com a foice e o martelo, que içaram no campanário da igreja, no mastro da casa distrital e na copa de um pisonay de flores vermelhas que dominava a vila. Enquanto transcorriam os julgamentos — eles agiam com ordem, como se tivessem feito aquilo outras vezes — alguns picharam nas paredes de Andamarca vivas à luta armada, à guerra popular, ao marxismo-leninismo-pensamento — guia do presidente Gonzalo e abaixos ao imperialismo, ao revisionismo e aos traidores e delatores do regime genocida e antioperário.

Antes de começar, cantaram hinos à revolução proletária, em espanhol e em quéchua, anunciando que o povo estava rompendo os seus grilhões. Como os moradores não sabiam as letras, misturavam-se com eles, fazendo-os repetir os versos e assobiando as melodias.

Depois, começaram os julgamentos. Além dos que estavam na lista, outros também tiveram que se submeter ao tribunal — que era toda a aldeia —, acusados de roubar, abusar dos fracos e dos pobres, ser adúlteros e praticar vícios individualistas.

Alternavam-se para falar, em espanhol e em quéchua. A revolução tinha um milhão de olhos e um milhão de ouvidos. Ninguém podia agir às escondidas do povo e se livrar do castigo. Aqueles cães fedorentos tentaram, e agora estavam ali, de joelhos, implorando misericórdia aos que tinham apunhalado pelas costas. Essas hienas trabalhavam para o governo títere que assassinava camponeses, atirava em operários, vendia o país ao imperialismo e ao revisionismo e trabalhava dia e noite para que os ricos ficassem mais ricos e os pobres mais pobres. Esses excrementos não tinham ido a Puquio pedir às autoridades que mandassem a Guarda Civil para, diziam, proteger Andamarca? Não tinham incitado os moradores a delatarem os simpatizantes da Revolução às patrulhas militares?

Alternavam-se e, com paciência, explicavam os crimes, reais ou virtuais, que aqueles servos de um governo manchado de sangue até os ossos, que aqueles cúmplices da repressão e da tortura tinham feito a todos e a cada um dos presentes, aos seus filhos e aos descendentes dos seus filhos. Assim os ins­truíam e estimulavam a participar, a falar sem temor a represálias, pois o braço armado do povo os protegia.

Pouco a pouco, vencendo o acanhamento, a perplexidade, incitados por seu próprio medo, pelo clima exaltado e por obscuras motivações — velhas brigas, soterrados ressentimentos, invejas surdas, ódios familiares —, os moradores foram se animando a pedir a palavra. Certo, don Sebastián era mesquinho com quem não podia pagar-lhe os remédios na hora. Se não trouxessem o dinheiro no mesmo dia, ficava com o objeto deixado em garantia, por mais que implorassem. Por exemplo, com ele, aquela vez... Por volta de meio-dia, muitos andamarquinos já se aventuravam a ir até o centro da praça para manifestar suas queixas, fazer suas recriminações e apontar os maus vizinhos, os maus amigos, os maus parentes. Eles se inflamavam quando faziam seus discursos; suas vozes vibravam ao se lembrar dos filhos que tinham perdido, dos animais mortos pela seca e das pragas, e de como a cada dia havia menos compradores, mais fome, mais doentes, mais crianças no cemitério.

Todos foram condenados, por um bosque de mãos. Muitos familiares dos acusados não levantaram as suas na hora de votar, mas, assustados com a exasperação e a hostilidade que tinham sido fermentadas, tampouco se atreveram a defendê-los.

Foram executados de joelhos, apoiando as cabeças no broquel do poço d’água. Eles os mantinham bem imobilizados enquanto os moradores, passando em fila, trituravam suas cabeças com pedras que recolhiam de uma obra, ao lado da casa distrital. A milícia não participou das execuções. Não se disparou um tiro. Não se espetou uma faca. Não se deu uma machetada. Só usaram mãos, pedras e paus, pois achavam um desperdício gastar a munição do povo com ratos e escorpiões.

Agindo, participando, fazendo a justiça popular, os andamarquinos iriam tomando consciência do seu poder. Era um destino sem volta. Eles não eram mais vítimas, começavam a ser libertadores.

Depois, veio o julgamento dos maus cidadãos, dos maus maridos, das más esposas, dos parasitas sociais, dos tarados, das putas, dos veados, das indignidades de Andamarca, detritos putrefatos que o regime capitalista feudal, sustentado pelo imperialismo americano e o revisionismo soviético, fomentava para adormecer o espírito combativo das massas. Isso também mudaria.

No incêndio purificador da pradaria que era a Revolução, o individualismo egoísta burguês arderia em chamas e despontariam o espírito coletivista e a solidariedade de classe.

Os moradores aparentavam escutar mais do que escutavam, entender mais do que entendiam. Mas, depois de tudo o que acontecera essa manhã, estavam suficientemente agitados, aturdidos e transtornados para participar sem objeções dessa segunda cerimônia, que ficaria em sua memória e na dos seus filhos e netos como a mais tormentosa da história de Andamarca.

A primeira a levantar um dedo acusador, estimulada pelas exortações das mulheres e homens armados que se sucediam no uso da palavra, foi dona Domitila Chontaza.

Toda vez que seu marido tomava uns tragos, ele a fazia rolar pelo chão dando-lhe pontapés e chamando-a de “cocô do diabo”. Ele, um corcundinha com uma mecha de porco-espinho no crânio, jurou que era mentira. Depois, contradizendo-se, choramingou que, quando bebia, um mau espírito se apoderava do seu corpo, vinha uma raiva, e só batendo conseguia livrar-se dela. As quarenta chicotadas deixaram sanguinolentas e tumefactas suas costas encurvadas. Mais que dor física, era medo o que transmitiam suas juras de que nunca mais voltaria a beber uma gota de álcool e seus abjetos “obrigado, muito obrigado” dirigidos aos moradores que o chicoteavam com látegos de couro e de tripa. Sua mulher levou-o arrastado, para aplicar uns emplastros.

Uns vinte homens e mulheres foram julgados, sentenciados, açoitados ou multados, obrigados a devolver o que tinham adquirido indevidamente, a indenizar os que haviam obrigado a trabalhar além da conta ou enganado com falsas promessas. Quantas acusações eram verdadeiras, quantas eram inventos ditados pela inveja e pela mágoa, produtos da efervescência na qual todos se sentiam forçados a competir, revelando as crueldades e injustiças de que tinham sido vítimas? Nem eles mesmos poderiam responder, quando, já no meio da tarde, julgaram don Crisóstomo, o velho sineiro — no tempo em que a torre da igrejinha de Andamarca tinha sino e a igreja, padre, coisa que já era história antiga —, acusado por uma mulher de ter sido surpreendido arriando as calças de um menino nos arredores da aldeia. Outros confirmaram a denúncia. Certo, era um assanhado, vivia passando a mão nos rapazes e tentando levá-los para a sua casa. Um homem, com a voz cortada de emoção, em meio a um silêncio elétrico, confessou que, quando criança, don Crisóstomo o usara como se usam as mulheres. Nunca teve coragem de falar, por vergonha. Outros, aqui mesmo, podiam contar histórias parecidas. O sineiro foi executado com pedradas e pazadas, e seu cadáver ficou misturado com os da lista.

Já estava escurecendo quando os julgamentos terminaram. Foi o momento que don Medardo Llantac aproveitou para empurrar a pedra do túmulo do seu primo Florisel, arrastar-se para fora do cemitério e começar a correr através do campo, como alma que o diabo quer levar, em direção a Puquio. Chegou à capital da província um dia e meio depois, esgotado e com os olhos ainda cheios de espanto, para contar o que havia acontecido em Andamarca.

Cansados, confusos, sem se olhar nos rostos, os moradores de Andamarca sentiam-se como no dia seguinte à festa do santo padroeiro, após beber tudo o que se podia beber, e comer, dançar, sapatear, brigar, rezar, sem dormir durante três dias e três noites, quando era preciso um grande esforço para imaginar que aquela explosão de aturdimento e de irrealidade tinha acabado e era hora de voltar às rotinas cotidianas. Mas agora seu desconcerto era ainda maior, um mal-estar mais profundo, diante desses cadáveres insepultos, cheios de moscas, que começavam a apodrecer debaixo dos seus narizes, e das costas lanhadas dos que tinham sido açoitados. Todos intuíam que Andamarca nunca mais seria a mesma.

Os milicianos continuavam, incansáveis, se revezando no uso da palavra. Agora, organizar-se. Não havia vitória popular sem uma participação férrea, indestrutível, das massas. Andamarca seria uma base de apoio, um elo a mais na corrente que já percorria toda a Cordilheira dos Andes e avançava seus ramais pela costa e pela selva. As bases de apoio eram a retaguarda da vanguarda. Importantes, úteis, indispensáveis, existiam, como seu nome indicava, para apoiar os combatentes: alimentá-los, curá-los, escondê-los, vesti-los, armá-los, informar sobre o inimigo, e para ir substituindo os que pagavam sua cota de sacrifício. Todos tinham uma função a cumprir, uma contribuição a dar. Deviam subdividir-se por áreas, multiplicar-se por ruas, quarteirões, famílias, somar outros olhos e ouvidos, e pernas, braços e cérebros, ao milhão que o Partido já tinha.

Já era noite quando os moradores escolheram os cinco homens e quatro mulheres que seriam os encarregados da organização. Para assessorar a população e servir de contato com a direção, permaneceram em Andamarca a camarada Teresa e o camarada Juan. Deviam assimilá-los, agir como se eles houvessem nascido aqui e seus mortos estivessem entre os defuntos do povoado.

Depois, cozinharam e comeram e se dividiram pelas casas e dormiram junto com os residentes, muitos dos quais passaram essa noite em claro, perturbados, incrédulos, inseguros, assustados com o que tinham feito, visto e ouvido.

Ao amanhecer, reuniram-se todos outra vez. Entre os mais jovens, escolheram alguns rapazes e moças para a milícia. Cantaram seus hinos e, com seus gritos de vitória, fizeram ondular as bandeiras vermelhas. Depois, todos se distribuíram nos destacamentos em que tinham chegado, e os moradores os viram separar-se, afastar-se, alguns vadeando o rio Negromayo e outros, na direção de Chipao e Pumarangra, ir desaparecendo entre os plantios verdes dos terraços escalonados, sob o ocre plúmbeo das montanhas.

A patrulha de guardas republicanos e guardas civis chegou a Andamarca quarenta e oito horas depois que os senderistas partiram. Era comandada por um alferes jovem, costeiro, bem barbeado, musculoso e de óculos escuros, que seus homens só chamavam pelo apelido: Rastilho. Com eles vinha o tenente-governador, don Medardo Llantac, que ganhara anos e perdera quilos.

Os cadáveres continuavam na praça, insepultos. Tinham feito uma fogueira para afastar as aves de rapina, mas, apesar das chamas, dúzias de urubus montavam guarda ali em volta, e havia mais moscas que no matadouro nos dias em que se carneava uma vaca. Quando don Medardo e o alferes perguntaram por que não tinham enterrado os mortos, não souberam responder. Ninguém tinha se atrevido a tomar a iniciativa, nem mesmo os parentes das vítimas, paralisados por um temor supersticioso de atrair a milícia outra vez ou desatar mais uma catástrofe se tocassem, mesmo que fosse para enterrá-los, nesses moradores cujas cabeças, rostos e ossos tinham acabado de triturar, como se fossem inimigos mortais.

Como não havia juiz — tinha sido um dos executados —, o alferes fez com que o próprio tenente-governador lavrasse uma ata e vários moradores assinassem como testemunhas. Depois, levaram os mortos para o cemitério, cavaram túmulos e os enterraram. Só então os parentes reagiram com a dor e a cólera que eram de esperar. Choravam as viúvas, os filhos, os irmãos, os sobrinhos e os enteados; todos se abraçavam e, maldizendo, com as mãos para o céu, pediam vingança.

Uma vez desinfetado o lugar com baldes de creolina, o alferes começou a pedir explicações. Não em público; trancado na casa distrital e chamando as famílias uma por uma. Pusera sentinelas nas saídas de Andamarca com ordens estritas de que ninguém saísse do povoado sem sua autorização. (Mas o camarada Juan e a camarada Teresa escaparam assim que se avistou a patrulha chegando pelo caminho de Puquio.)

Os parentes entravam e quinze minutos, meia hora depois, saíam cabisbaixos, chorosos, confusos, incomodados, como se tivessem falado mais ou menos do que deviam e agora estivessem arrependidos. Na vila havia uma atmosfera lúgubre e um silêncio tétrico. Os moradores lutavam para ocultar o medo e a incerteza fechando o rosto e o bico, mas eram denunciados pela maneira sonâmbula de andar com que, até altas horas, percorriam as ruazinhas retas de Andamarca. Muitas mulheres passaram o dia todo cantando ladainhas na igreja sem teto da praça, cujo telhado caíra no chão durante o último tremor de terra.

O alferes interrogou as pessoas o dia inteiro e parte da noite, sem descansar nem para almoçar — pediu um prato de sopa com charque, que tomou enquanto prosseguia as investigações —, e uma das poucas coisas que os moradores souberam, ao longo desse extraordinário segundo dia, foi que don Medardo Llantac continuava ao seu lado, frenético, dando informações ao oficial sobre os que vinham prestar depoimento e metendo a colher nos interrogatórios, exigindo nomes, minúcias.

Nessa noite, a falsa convivência de Andamarca se quebrou. Nas casas, esquinas, ruas, nos arredores da praça aonde todos se dirigiam para espiar quem saía do salão distrital, explodiram discussões, brigas, acusações, insultos, ameaças. Houve empurrões, arranhões e socos. Os republicanos e os guardas civis não intervinham, porque assim tinham sido instruídos ou porque, carentes de ordens, não sabiam como reagir ante aquela hostilidade desenfreada de todos contra todos. Desdenhosos ou indiferentes, eles viam os moradores chamar-se uns aos outros de assassinos, cúmplices, terroristas, caluniadores, traidores, covardes, e chegar às vias de fato, sem levantar um dedo para separá-los.

Os interrogados devem ter contado tudo, preservando a própria responsabilidade da melhor maneira que puderam — ou seja, agravando a responsabilidade dos outros —, e o alferes pôde reconstruir, grosso modo, o que havia ocorrido nos julgamentos, porque, no dia seguinte, os cinco homens e as quatro mulheres designados como dirigentes da base de apoio foram trancafiados na casa distrital.

No meio da manhã, o alferes reuniu os moradores na pracinha de Andamarca — havia ainda urubus rondando o canto das execuções — e se dirigiu a eles. Nem todos entendiam o espanhol costeiro apocopado e veloz do oficial, mas mesmo os que perdiam boa parte do seu discurso entenderam que os estava repreendendo. Por colaborar com os terroristas, por prestar-se a uma paródia de julgamento, por levar a cabo aquela matança grotesca e criminosa.

“Toda Andamarca deveria ser julgada e castigada”, repetiu várias vezes. Depois, com paciência, mas sem dar sinais de compreensão, ouviu os moradores que se atreviam a formular desculpas esfarrapadas: não era verdade, ninguém tinha feito nada, tudo foi obra dos terrucos. Fazendo ameaças, senhor. Tinham sido forçados, com metralhadoras e pistolas nas cabeças, ouvindo que iam degolar as crianças feito porcos se não pegassem as pedras. Afinal se contradiziam, interrompiam, dissentiam, e terminavam se acusando e se xingando. O alferes olhava-os com pena.

A patrulha passou esse dia em Andamarca. De tarde e de noite, os guardas republicanos e os guardas civis fizeram buscas e confiscaram broches, enfeites, objetos que pareciam de valor, além das sacolas e amarrados de dinheiro que encontraram escondidos nos colchões e fundos falsos de baús e armários. Mas nenhum morador denunciou esses furtos ao alferes.

Na manhã do segundo dia, quando a patrulha se preparava para partir levando os detentos, don Medardo Llantac discutiu com o oficial, na frente dos moradores. O tenente-governador queria que alguns homens da patrulha ficassem na vila. Mas o alferes tinha ordem de regressar com todos eles à capital da província. Os próprios residentes deveriam organizar sua proteção, fazendo rondas de vigilância.

— Com que armas, alferes — se esganiçava Medardo Llantac. — Nós com paus e eles com fuzis? Quer que lutemos assim?

O alferes respondeu que ia falar com seus superiores. Tentaria convencê-los a reabrir o posto da Guarda Civil desativado havia quase um ano. Depois se foi, levando os prisioneiros amarrados em fila indiana.

Tempos depois, os parentes dos nove presos foram a Puquio e as autoridades não souberam dar a menor pista. Em nenhum posto policial, nem no escritório do comando político-militar, figurava que houvesse chegado um grupo de prisioneiros procedente de Andamarca. Quanto ao jovem alferes de apelido Rastilho, provavelmente tinha sido transferido para outro destino, já que não era nenhum dos oficiais presentes e já que em Puquio ninguém o conhecia. Na mesma época, don Medardo Llantac e sua mulher sumiram da vila, sem dizer nem sequer à sua mãe ou aos filhos para onde se mudaram.

— Já sei que está acordado e morrendo de vontade de me contar — disse Lituma. — Bem, Tomasito, conte.

O caminhão entrou em Huánuco ao entardecer, vinte horas depois de ter saído de Tingo María. Na estrada esburacada pelas chuvas estouraram dois pneus e Tomás desceu para ajudar o caminhoneiro, um huancaíno que não fazia perguntas indiscretas. Nos arredores de Acomayo, numa barreira de controle, no meio dos sacos de frutas entre os quais estavam escondidos, ouviram que ele respondia “Nenhum” ao guarda civil que perguntou quantos passageiros levava. Pararam duas vezes mais, para tomar café da manhã e para almoçar, em vendas do caminho, e Tomás e Mercedes também desceram, mas sem trocar uma palavra com o motorista. Ele os deixou em frente ao Mercado Central.

— Agradeci por não nos delatar na barreira de Acomayo — disse Tomás. — Deixamos ele pensar que estávamos fugindo de um marido ciumento.

— Se estão fugindo de alguma outra coisa, não fiquem por aqui — aconselhou o motorista, na despedida. — Como toda a coca da floresta passa por esta estrada, Huánuco está cheia de enxeridos atrás de traficantes.

Deu adeus com a mão e se foi. Estava escuro, mas ainda não haviam ligado as luzes da rua. Muitos postos do mercado estavam fechados; nos abertos, havia gente comendo à luz de velas mortiças. Tudo cheirava a azeite, a fritura e a bosta de cavalo.

— Estou como se tivessem moído os meus ossos e meus músculos — disse Mercedes. — Sinto cãibras, muito sono. Mas, acima de tudo, estou com fome.

Bocejava, esfregando os braços. Seu vestido florido estava todo empoeirado.

— Vamos procurar onde dormir — disse Carreño. —Também estou meio morto.

— Caramba, que gostoso — sussurrou Lituma. — Era para dormir ou outra coisa, Tomasito?

Pedindo informações às pessoas que engoliam fumegantes pratos de sopa, descobriram o endereço de uma pensão e de um hotelzinho. Tinham que pisar com cuidado porque o chão estava cheio de mendigos e vagabundos dormitando, e das ruas escuras surgiam cães furiosos latindo para eles. Descartaram a Pensão Lucinda, que ficava perto de uma delegacia de polícia. Três ruas adiante, numa esquina, apareceu o Hotel Leoncio Prado. Com dois andares, paredes de barro e teto de zinco, o hotel tinha umas varandinhas de brinquedo. No térreo havia um bar-restaurante.

— A recepcionista me pediu o título de eleitor, mas não o de Mercedes, e exigiu pagamento adiantado — disse Tomás, detendo-se nos detalhes. — Não achou estranho que estivéssemos sem bagagem. Enquanto preparava o quarto, pediu para esperar no corredor.

— O quarto? — exaltou-se Lituma. — Uma caminha só para os dois?

— O bar-restaurante estava vazio — continuou o rapaz, sem ouvir, esticando a história. — Pedimos refrigerantes e uma sopa. Mercedes bocejava e esfregava os braços o tempo todo.

— Sabe o que eu mais lamentaria se os terrucos nos matassem esta noite, Tomasito? — interrompeu Lituma. — Sair desta vida sem voltar a ver uma fêmea peladinha. Desde que botei os pés em Naccos, eu me sinto capado. Você não parece muito interessado nessas coisas, bastam as lembranças da piurana, não é?

— Só me faltava ficar doente — resmungou Mercedes.

— Isso era pretexto — protestou Lituma. — Lógico que você não acreditou.

— Deve ter sido o desconforto do caminhão. A sopa e um bom sono vão lhe fazer bem — alentou o rapaz.

Ela murmurou “Tomara”. E ficou de olhos fechados, tiritando, até que trouxeram a comida.

— Assim eu podia olhá-la à vontade — disse Tomasito.

— Ainda não consigo imaginá-la — disse Lituma. — Não consigo vê-la. Não me ajuda nada que você diga “Um mulherão”, “É incrível”. Conte detalhes de como ela é, pelo menos.

— Um rosto cheinho, pômulos como duas maçãs, lábios grossos e um nariz bem-desenhado — recitou Tomás. — Um narizinho que pulsava quando ela falava, farejando como um cachorrinho. O cansaço lhe desenhara umas olheiras azuis, debaixo das pestanas espessas.

— Puxa, você estava mesmo gamado por ela — admirou-se Lituma. — E continua estando, Tomasito.

— Mesmo despenteada, mesmo tendo perdido todo o batom, apesar da ventania da viagem, ela não tinha enfeado — insistiu o rapaz. — Continuava lindíssima, meu cabo.

— Pelo menos você tem essas lembranças de Mercedes para se consolar — queixou-se Lituma. — Eu não tenho ninguém em Piura. Nenhuma piurana ou talarenha com saudade de mim, nenhuma mulher no mundo de que eu possa ter saudade.

Tomaram a sopa, em silêncio, e depois trouxeram um pastelão com arroz, que não haviam pedido. Mas comeram mesmo assim.

— De repente, meus olhos se encheram de lágrimas, apesar do esforço que eu fazia para não chorar — disse Tomás. — Estava tremendo, e sabia que era pelo que poderia nos acontecer. Queria consolá-la, mas não sabia como. O futuro também me parecia negro.

— Pule essa parte e vamos chegar à cama de uma vez — pediu Lituma.

— Enxugue os olhos. — Carreño passou-lhe o lenço. — Não vou deixar que aconteça nada de mau, prometo.

Mercedes secou o rosto e permaneceu calada até terminarem de comer. O quarto ficava no segundo andar, ao fundo de um corredor, e as camas eram separadas por um banquinho de madeira, à guisa de criado-mudo. Um lustre balançava pendurado num fio cheio de teias de aranha, iluminando precariamente as paredes desbotadas e rachadas e umas tábuas que rangiam sob seus pés.

— A gerente me deu duas toalhas e um sabonete. — Tomasito continuava fazendo mistério. — Avisou que se quiséssemos tomar banho devíamos ir logo, porque durante o dia a água não chegava até o andar de cima.

Saiu e Mercedes seguiu atrás dela, com a toalha no ombro.

Voltou um bom tempo depois, e o rapaz, que tinha se deitado na cama e estava tenso feito uma corda de violão, se assustou ao ouvi-la no quarto. Ela vinha com a toalha enrolada na cabeça, como um turbante, o vestido desabotoado e os sapatos na mão.

— Chuveirada gostosa — ouviu-a dizer. — A água fresquinha me ressuscitou.

Ele pegou a toalha e foi tomar um banho, também.

— Você é idiota? — indignou-se Lituma. — Mas o que estava esperando? E se a piurana adormecesse?

Era um simples jorro, mas caía com força e, de fato, a água estava fria. Tomás se ensaboou, esfregou o corpo e sentiu que o cansaço tinha desaparecido. Enxugou-se, vestiu a cueca e pôs a toalha em cima, amarrada na cintura. Encontrou o quarto em sombras. Deixou a roupa em cima de uma cômoda, onde Mercedes havia dobrado a sua. Foi tateando até a cama vazia e se enfiou embaixo do cobertor. Seus olhos se acostumaram pouco a pouco com a escuridão. Ansioso e agitado, forçou os ouvidos, tentando escutar alguma coisa. Ela respirava a intervalos longos, profundamente. Já estava dormindo? E teve a impressão de sentir o cheiro do seu corpo, ali, tão próximo. Inquieto, respirou fundo. Iria ver seu padrinho, tentaria explicar-lhe? “É assim que me paga por tudo que eu fiz por você, seu grande filho da puta.” Teria que fugir para o estrangeiro, do jeito que fosse.

— Pensava em tudo e em nada, meu cabo — tremeu a voz do adjunto. — Senti vontade de fumar, mas não me levantei para não acordá-la. Que estranho estar deitado ao seu lado. Que estranho pensar “Se eu esticar a mão, toco nela”.

— Continue, vamos — ralhou Lituma. — Você me deixa impaciente, Tomasito.

— Fez isso porque gostou de mim? — perguntou Mercedes, de repente. — Quando foi me buscar no aeroporto de Tingo María, com o gordo? Reparou em mim?

— Já tinha visto você antes — sussurrou Carreño, sentindo a boca doer quando falava. — No mês passado, quando foi a Pucallpa passar a noite com o Chancho.

— Era você que fazia a segurança em Pucallpa? Bem que sua cara me pareceu conhecida quando o vi em Tingo María.

— Na verdade, ela tampouco se lembrava de que tinha sido eu quem foi buscá-la também na primeira viagem — disse o adjunto. — Nem que fui eu quem ficou de guarda naquela casa de Pucallpa, entre o rio e a madeireira, a noite inteira. Ouvindo como ele a surrava. Ouvindo-a suplicar.

— Se isso não acabar numa trepada, bato em você — avisou Lituma.

— Claro, é por isso que achei seu rosto conhecido, é óbvio — continuou ela. — Mas, então, esse ataque que você teve não foi por asco nem por causa de religião. Você já tinha reparado em mim. Foi porque gostou de mim. Foi por ciúme. Não foi por isso que você atirou, Carreñito?

— A vergonha queimava a minha cara, meu cabo. Se ela continuar falando essas coisas, eu fecho essa boca com uma bofetada, pensava.

— Você se apaixonou por mim — afirmou Mercedes, entre zangada e apiedada. — Estou entendendo. Os homens, quando se apaixonam, fazem qualquer loucura. Nós, mulheres, somos mais frias.

— Você se sente superior porque correu o mundo, viveu tantas coisas — reagiu, afinal, o rapaz. — Não gosto de ser tratado como se usasse calça curta.

— É isso o que você é, Carreñito. Um pirralho de calça curta. — Riu e logo ficou séria. Prosseguiu, articulando as palavras: — Mas se gostou de mim, se você se apaixonou, por que não me falou nada. Tendo-me aqui ao seu lado, quero dizer.

— Estava com toda a razão do mundo — exclamou Lituma. — Por que você não fez nada? O que estava esperando, Tomasito?

Uns latidos frenéticos, na rua, fizeram com que ela se calasse. Ouviu-se um “shhttt, merda” e o impacto de uma pedra. Os cachorros se acalmaram. O rapaz, suando da cabeça aos pés, percebeu que ela se levantara e se movimentava em volta da cama. Segundos depois, a mão de Mercedes se enredou nos seus cabelos. Começou a revolvê-los, suavemente.

— O que está dizendo? — engasgou-se Lituma.

— Por que não veio direto para a minha cama ao voltar do banho, Carreñito? Não era isso que você queria? — A mão de Mercedes desceu da sua cabeça para o rosto, roçou nas bochechas e chegou até seu peito. — Como bate! Pum, pum, pum. Você é estranho. Ficou com vergonha? Tem algum problema com mulher?

— Que-que-quê? — repetiu Lituma, erguendo-se na escuridão, espiando Tomasito.

— Eu nunca me aproveitaria de você, eu nunca bateria em você — balbuciou o rapaz, segurando a mão de Mercedes, beijando-a. — E, além do mais...

— Você está mentindo — repetia Lituma, incrédulo. — Não é possível, não é possível.

— Nunca estive com uma mulher — confessou afinal o rapaz. — Pode rir, se quiser.

Mercedes não riu. Carreño sentiu que ela se erguia, levantava o cobertor e ficava de lado para dar-lhe lugar. Quando a sentiu apertada contra o seu corpo, abraçou-a.

— Virgem aos vinte e três? — perguntou Lituma. — Não sei o que você faz na Guarda Civil, garotinho.

Enquanto a beijava, no cabelo, no pescoço, nas orelhas, ouviu-a dizer, entre os dentes:

— Finalmente acho que estou entendendo, Carreñito.