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O CAVALO DE TAMU
O harém da quinta estava instalado numa gigantesca construção de um único andar em forma de T, rodeado por jardins e lagos. A ala direita da casa pertencia às mulheres; a esquerda aos homens; e um delicado biombo de bambu de dois metros de altura marcava a hudud (fronteira) entre ambas. As duas partes da casa eram na realidade dois edifícios similares construídos costas contra costas, com fachadas simétricas e galerias com arcadas que mantinham os salões e os quartos mais pequenos frescos mesmo quando estava calor lá fora. As galerias eram perfeitas para jogar às escondidas e as crianças da quinta eram muito mais atrevidas do que as de Fez. Subiam para as colunas descalças e saltavam do alto como acrobatas. Não tinham medo dos sapos, das lagartixas e dos pequenos animais voadores que pareciam saltar continuamente sobre quem atravessasse os corredores. O chão era pavimentado com azulejos brancos e pretos e as colunas estavam revestidas com uma estranha combinação de mosaico amarelo e dourado escuro que o meu avô adorava e que nunca vi em nenhum outro sítio. Os jardins estavam rodeados por altas grades de ferro forjado com portas arqueadas que pareciam sempre fechadas; mas bastava empurrá-las para se sair para o campo. O jardim dos homens tinha algumas grades e muitos arbustos de flores bem cuidados, mas o das mulheres era outra história. Estava repleto de árvores estranhas, de plantas bizarras e de animais de todas as espécies, porque cada coesposa reclamava uma parcela de terreno para a transformar no seu jardim pessoal, onde plantava hortaliças e criava galinhas, patos e pavões. Não se podia dar um passeio pelo jardim das mulheres sem invadir o território de alguém, e os animais começavam a seguir o intruso mesmo debaixo das arcadas, fazendo uma grande algazarra que contrastava com o silêncio sepulcral do jardim dos homens.
Para além do edifício principal da quinta havia alguns pavilhões anexos. À direita via-se apenas o de Yasmina, que insistira para que assim fosse: segundo explicara ao avô, tinha de estar o mais longe possível de Lalla Thor. Lalla Thor tinha o seu próprio palácio independente no edifício principal, com espelhos de parede a parede e madeira talhada policromada nos tetos, nos rebordos dos espelhos e nos candelabros. O pavilhão de Yasmina, por seu lado, era um quarto grande, muito simples e sem luxos, pois não se preocupava com essas coisas, desde que não tivesse de se aproximar do edifício principal e dispusesse de espaço suficiente para fazer experiências com árvores e com flores e criar todo o tipo de patos e pavões. O pavilhão de Yasmina também tinha um segundo andar, que fora construído para Tamu quando esta escapara da guerra deslocando-se das montanhas do Rif para norte. Yasmina tomara conta de Tamu quando ela estivera doente e as duas haviam-se tornado amigas íntimas.
Tamu chegou à quinta em 1926, depois da derrota de Abdelkrim pelos exércitos espanhóis e franceses. Apareceu numa madrugada, no horizonte da planície do Gharb, montada num cavalo espanhol selado e vestida com uma capa branca de homem e uma touca de mulher para que os soldados não disparassem contra ela. Todas as mulheres do meu avô gostavam de descrever a sua chegada à quinta, que era tão interessante como os contos de As Mil e Uma Noites, ou mais ainda, porque Tamu estava ali para ouvir, sorrir e ser a estrela. Na manhã em que chegara tinha pesados braceletes berberes de prata com pontas salientes, o tipo de braceletes que se podia usar em autodefesa se fosse necessário. Também tinha um khandjar, ou punhal, pendurado na coxa direita e uma autêntica espingarda espanhola escondida na sela, debaixo da capa. Tinha um rosto triangular, com uma tatuagem verde no queixo afilado, olhos negros e penetrantes que olhavam sem pestanejar e uma comprida trança acobreada que lhe pendia sobre o ombro esquerdo. Deteve-se a poucos metros da quinta e perguntou pelo dono da casa.
Naquela manhã ninguém o sabia ainda, mas a vida na quinta nunca mais voltaria a ser a mesma. Porque Tamu era uma rifenha e uma heroína de guerra. Todo o Marrocos admirava o povo do Rif, os únicos que haviam continuado a lutar contra os estrangeiros muito tempo depois de o resto do país se ter rendido; e ali estava aquela mulher, vestida como um guerreiro, atravessando a fronteira Arbaua para entrar na zona francesa, completamente só e em busca de auxílio. E como era uma heroína de guerra, certas regras não se lhe aplicavam. Comportava-se mesmo como se ignorasse a tradição.
Provavelmente o meu avô apaixonou-se por Tamu logo que a viu, mas as circunstâncias do seu encontro foram tão complexas que só se apercebeu disso ao fim de alguns meses. Tamu tinha ido à quinta com uma missão: o seu povo caíra numa emboscada da guerrilha na zona espanhola e tinha de lhes levar ajuda. De forma que o meu avô lhe deu a ajuda de que necessitava, assinando um rápido contrato de casamento para justificar a sua presença na quinta caso a polícia francesa aparecesse à sua procura. Depois Tamu pediu-lhe que a ajudasse a levar alimentos e remédios ao seu povo. Havia muitos feridos, e com a derrota de Abdelkrim cada aldeia tinha de sobreviver por sua conta. O avô deu-lhe as provisões e Tamu partiu durante a noite com dois carros que desceram lentamente, sem luzes, pela berma da estrada. À frente, montados em burros, iam dois camponeses da quinta, que se faziam passar por vendedores e serviam de batedores aos carros com lanternas.
Uns dias depois, Tamu regressou à quinta num dos carros, levando quatro cadáveres cobertos com hortaliças. Eram os corpos do seu pai, do seu marido e dos seus dois filhos, um rapaz e uma rapariga. Enquanto os descarregavam, ela manteve-se à distância, em silêncio. As mulheres do avô trouxeram-lhe um tamborete para se sentar e ela ficou ali a olhar enquanto os homens cavavam as covas e depositavam os cadáveres cobrindo-os com terra. Tamu não chorou. Depois, os homens plantaram flores para ocultar as sepulturas. Quando terminaram, Tamu não conseguia aguentar-se de pé; o avô chamou Yasmina, que a agarrou pelo braço e a levou para o seu pavilhão para a deitar na cama. Tamu passou muitos meses sem falar e todos pensavam que havia perdido a capacidade para o fazer.
Mas gritava regularmente em sonhos, enfrentando agressores invisíveis nos seus pesadelos. Mal fechava os olhos era assaltada por imagens de guerra; então punha-se em pé de um salto ou ajoelhava-se, suplicando misericórdia em espanhol. Precisava que a ajudassem a superar a dor sem lhe fazerem perguntas inconvenientes nem revelar nada aos soldados espanhóis e franceses que, segundo parecia, procediam a investigações do outro lado do rio. Yasmina era a pessoa indicada para o fazer e cuidou de Tamu no seu pavilhão durante meses, até que esta recuperou. Depois, uma bela manhã, viram Tamu acariciar um gato e pôr uma flor no cabelo; nessa mesma noite Yasmina organizou uma festa para ela. As mulheres reuniram-se no pavilhão de Yasmina e cantaram para que Tamu se sentisse como em sua casa. Nessa noite sorriu algumas vezes e depois pediu um cavalo para montar no dia seguinte.
Tudo na quinta mudou com a simples presença de Tamu. O seu corpo minúsculo parecia refletir as mesmas convulsões violentas que dilaceravam o seu país e era acometida de desejos incontroláveis de montar cavalos velozes e realizar acrobacias. Era a sua forma de combater a dor e encontrar um efémero significado para a vida. Em vez de ter ciúmes dela, Yasmina e as outras mulheres do meu avô começaram a admirá-la porque, entre outras coisas, ela tinha muitos talentos que as outras mulheres normalmente não tinham. Quando Tamu se restabeleceu completamente e voltou a falar, descobriram que sabia disparar uma espingarda, falava espanhol fluentemente, dava grandes saltos no ar e cambalhotas sem ficar tonta e até injuriava em vários idiomas. Nascida numa região montanhosa constantemente atravessada por exércitos estrangeiros, tinha chegado a confundir a vida com a luta e o descanso com a corrida. A sua presença na quinta, com as tatuagens, o punhal, os braceletes defensivos e as permanentes cavalgadas, mostrou às outras mulheres que havia muitas formas de ser bela. Lutar, injuriar e ignorar a tradição podiam tornar uma mulher irresistível. Tamu tornou-se numa lenda desde o momento em que apareceu e fez com que toda a gente na quinta tomasse consciência da sua própria força interior e da sua capacidade para enfrentar qualquer destino.
Durante a doença de Tamu, o avô visitara o pavilhão de Yasmina diariamente para saber da sua saúde. Mas quando melhorou e pediu um cavalo, ficou nervoso, com medo de que ela o deixasse. Embora encantado com a beleza que ela aparentava – novamente desafiadora e plena de vida, com a sua trança acobreada, os seus penetrantes olhos negros e o queixo com a tatuagem verde –, não estava certo dos sentimentos que ela nutria em relação a ele. Na realidade, não era sua mulher, já que o casamento fora apenas um acordo legal e, ao fim e ao cabo, ela era uma guerreira que a qualquer momento podia afastar-se, cavalgando para norte e perdendo-se no horizonte. Por isso o avô convidou Yasmina para um passeio com ele pelo campo e explicou-lhe os seus temores. Yasmina também ficou muito nervosa, porque admirava muito Tamu e não suportava a ideia de a ver partir. Por isso sugeriu ao avô que perguntasse a Tamu se queria passar a noite com ele.
– Se a resposta for sim – alvitrou Yasmina –, é porque não tenciona ir-se embora. Se for não, é porque se vai.
O avô voltou ao pavilhão e falou com Tamu em privado enquanto Yasmina aguardava no exterior. Quando por fim saiu, Yasmina compreendeu pelo seu sorriso que Tamu havia aceitado a proposta de se tornar sua mulher. Meses depois, o avô construiu um pavilhão novo para Tamu por cima do de Yasmina e a partir de então a sua casa de dois andares separada do edifício principal transformou-se na sede oficial das corridas de cavalos de Tamu e da solidariedade feminina.
Uma das primeiras coisas que Yasmina e Tamu fizeram quando o segundo pavilhão ficou pronto, foi criar uma bananeira para que Yaya, a coesposa negra estrangeira, se sentisse em casa. Yaya, a mais tranquila das esposas do meu avô, era uma mulher alta e esbelta, que parecia terrivelmente frágil no seu cafetã amarelo. Tinha um rosto de traços finos, o olhar sonhador e mudava de turbante segundo os seus estados de espírito, embora a sua cor preferida fosse o amarelo («Como o sol. Ilumina-te»). Yaya era propensa a constipações, falava árabe com sotaque e não frequentava a companhia das outras coesposas, por isso ficava tranquilamente no seu quarto. Tinha um ar tão frágil que pouco tempo depois da sua chegada as outras coesposas decidiram dividir entre si o trabalho que lhe competia. Em troca, Yaya prometeu contar-lhes uma vez por semana uma história sobre a vida na sua aldeia natal no Sul, no Sudão, a terra dos negros, onde não cresciam laranjeiras nem limoeiros, mas abundavam os coqueiros e as bananeiras. Yaya não se lembrava do nome da sua aldeia, mas isso não a impediu de se tornar na contadora oficial de histórias do harém, tal como a tia Habiba o era no de Fez. O avô ajudava-a a repor a sua reserva de contos lendo-lhe em voz alta passagens de livros de histórias sobre o Sudão, os reinos de Songhoy e Gana, os portões dourados de Tombuctu e todas as maravilhas das selvas do Sul que escondem o sol. Yaya dizia que os brancos eram vulgares (encontravam-se em toda a parte nos quatro cantos do universo), mas os negros eram uma raça especial porque só existiam no Sudão e nas terras vizinhas, a sul do deserto do Sara.
Na noite em que Yaya contava uma história, as mulheres reuniam-se todas no seu quarto e serviam chá enquanto ela falava da sua maravilhosa pátria. Ao fim de alguns anos as outras mulheres conheciam a vida de Yaya tão detalhadamente que podiam ajudá-la quando ela hesitava ou começava a duvidar da fidelidade da sua memória. E um dia, depois de ouvi-la descrever a sua aldeia, Tamu disse-lhe:
– Se a única coisa de que precisas para te sentires em casa é de uma bananeira, plantaremos uma para ti aqui mesmo.
A princípio ninguém acreditava que fosse possível plantar uma bananeira no Gharb, onde sopravam os ventos do norte vindos de Espanha e chegavam as nuvens espessas do Oceano Atlântico11. Mas o mais difícil foi encontrar a árvore. Tamu e Yasmina explicaram repetidamente a todos os comerciantes nómadas que passavam nos seus burros como eram as bananeiras, até que finalmente um lhes levou uma bananeira da região de Marraquexe. Yaya ficou tão excitada ao vê-la que cuidou dela como se fosse uma criança, e quando soprava um vento frio corria a cobri-la com um grande pano branco. Anos mais tarde, quando a bananeira deu os primeiros frutos, as coesposas organizaram uma festa e Yaya vestiu três cafetãs amarelos, enfeitou o turbante com flores e afastou-se a dançar até ao rio, embriagada de felicidade.
O que as mulheres podiam fazer na quinta não tinha realmente limites. Podiam cultivar plantas raras, montar a cavalo, entrar e sair livremente, ou pelo menos assim parecia. Em comparação, o nosso harém de Fez era como uma prisão. Yasmina dizia mesmo que a pior coisa que podia acontecer a uma mulher era separá-la da Natureza.
– A Natureza é a melhor amiga de uma mulher – dizia frequentemente. – Se tens problemas, banha-te no tanque, estende-te num campo, ou contempla as estrelas. É assim que uma mulher cura os seus medos.
11 Isto passava-se na década de 40. Atualmente, graças à tecnologia moderna, cultivam-se bananas e outros frutos equatoriais em toda a planície do Gharb.