CAPÍTULO 4

A MENTE COMO ARMA ERÓTICA

Xerazade é o nome persa da jovem noiva que conta as histórias de As Mil e Uma Noites. Estas histórias têm «diversas origens étnicas: indiana, persa e árabe»69. Símbolo do génio islâmico como religião e cultura pluralista, as fábulas abrangem um território que se estende do Mali e de Marrocos, na costa atlântica do Norte de África, até à Índia, Mongólia e China. Quando se entra nas histórias, navega-se num universo muçulmano que ignora as habituais fronteiras que separam culturas diversas e distantes. Por exemplo, em alguns contos os persas falam árabe e emergem como líderes em nações estranhas à sua herança cultural. Xerazade é a junção árabe de duas palavras persas, tchihr e âzâd, que significam «de nascimento aristocrático». Xariar, o marido, também é persa; o seu nome resulta da contração das palavras persas shahr e dar, que significam «Senhor do Reino»70. No entanto, no seu quarto, Xerazade não fala persa com o marido, um orgulhoso descendente da dinastia sassânida71. As fábulas são narradas em árabe e, embora Xariar fosse persa, «vivia e reinava sobre as ilhas da Índia e da Indochina»72. Todavia, a graça cosmopolita dos contos e a sua capacidade de transcender as fronteiras culturais não se estende às relação entre os sexos. Essa relação é descrita como uma fronteira abissal e inultrapassável, uma guerra sangrenta entre homens e mulheres.

As Mil e Uma Noites começam como uma tragédia de traição e vingança e acabam como um conto de fadas graças à capacidade intelectual de Xerazade para ler a mente do marido. No início dos contos, Xahzaman, o irmão mais novo de Xariar, reina feliz sobre a «Terra de Samarcanda». Um dia, ao regressar ao palácio, encontra a mulher nos braços de um «moço de cozinha»73. Mata os dois e decide abandonar o reino por um tempo, esperando assim curar as suas feridas. Parte então para visitar o irmão, Xariar.

Fugir da cena do crime só resulta por alguns dias, pois uma manhã, o deprimido Xahzaman olha para fora da janela, para o jardim do harém do irmão, e julga estar a ter uma alucinação:

 

 

«Enquanto agonizava sobre as suas desgraças, contemplando os céus e lançando um olhar distraído ao jardim, o portão privado do palácio do irmão abriu-se, e daí saiu, como uma gazela de olhos escuros, a senhora, a mulher do seu irmão, com vinte escravas, dez brancas e dez negras… Sentaram-se, despiram a roupa, e de súbito passou a haver dez escravas e dez escravos negros que primitivamente estavam vestidos com a mesma roupa das raparigas. Então os dez escravos negros montaram as dez raparigas, enquanto a senhora chamava: – Mas’ud, Mas’ud – e um escravo negro saltou de uma árvore para o chão, correu para ela, e, levantando-lhe as pernas, pôs-se entre as suas coxas e fez amor com ela. Mas’ud estava sobre a senhora enquanto os outros escravos negros estavam sobre as dez raparigas, e assim continuaram até ao meio-dia. Então os dez escravos vestiram outra vez as mesmas roupas, misturaram-se com as raparigas, e de novo parecia haver vinte escravas. Mas’ud saltou o muro do jardim e desapareceu, enquanto a senhora e as escravas se dirigiram para o portão privado, entraram e, fechando-o atrás de si, voltaram para as suas ocupações.»74

 

 

Em árabe, a traição sexual da mulher do rei Xariar reflete e equivale à traição política do senhor por parte do escravo. Em árabe, a frase «Mas’ud estava sobre a senhora» (wa mas‘ud fawqa a-sit)75, parece condensar a tragédia do harém: a necessidade fatal da mulher de subverter a hierarquia construída pelo marido que a mantém encerrada, deitando-se e copulando com o escravo-macho. A traição do marido por parte da mulher está implícita na própria estrutura do harém; são as hierarquias e fronteiras construídas pelos homens para dominarem as mulheres que pré-determinam o seu comportamento. Em As Mil e Uma Noites, as cenas de crimes relacionados com o adultério revelam que as fronteiras do harém são permeáveis e frágeis. Podem facilmente esfumar-se e anular-se: os homens podem facilmente vestir-se de mulheres e entrar sem serem notados.

Mas voltando a Xerazade, a nossa heroína chegou ao palácio de Xariar alguns anos após este incidente do jardim. Entretanto, Xariar matara não só a mulher e o escravo Mas’ud, como tinha decapitado sistematicamente centenas de virgens inocentes, casando com cada uma à noite e matando-as ao amanhecer. «E continuou assim até fazer desaparecer todas as raparigas, as mães delas carpiam e crescia um clamor entre os pais e as mães…»76 Nesta situação é visível, uma vez mais, como o sexo e a política se interligam nas Noites. O que começara como uma guerra entre os sexos, estava a tornar-se num trágico tumulto político, com os pais entristecidos sublevando-se contra o rei. Agora só um pai privilegiado (o vizir do rei, que executara as sentenças de morte) tem ainda duas filhas virgens: Xerazade e a sua irmã mais nova, Doniazade.

Enquanto o vizir tenta afanosamente planear uma maneira de salvar as filhas, Xerazade insiste em se sacrificar e enfrentar o rei para tentar pôr fim a tão grande matança. É por esta razão que, no mundo islâmico, Xerazade pode ser considerada uma heroína política, uma libertadora.

«Pai», diz ao atormentado vizir, «gostaria que me casasses com o rei Xariar para que eu consiga ou salvar o povo, ou perecer e morrer como as outras»77. Xerazade tem em mente um esquema que se revelará bem-sucedido: contar histórias fascinantes que possam cativar o rei, deixando-o ansioso por ouvir mais, e salvar assim a sua vida.

Alterar a mente de um criminoso pronto a matar, contando-lhe histórias, é um feito extraordinário. Para ter êxito, Xerazade tem de possuir três dons estratégicos: o de controlar uma vasta reserva de informação, o de compreender em profundidade a mente do criminoso e a determinação para agir com sangue-frio.

O primeiro dom é de natureza intelectual; requer um vasto conhecimento e a enciclopédica erudição de Xerazade é descrita nas primeiras páginas do livro: «Xerazade lera livros de literatura, filosofia e medicina. Conhecia poesia de cor, estudara narrativas históricas, e tinha um conhecimento profundo dos provérbios dos homens e das máximas dos sábios e reis. Era inteligente, bem informada, sábia e requintada. Tinha lido e aprendido.»78 Mas o conhecimento por si só não dá a uma mulher a possibilidade de influenciar os homens no poder: basta ver a enorme quantidade de mulheres de cultura superior que militam no Ocidente em movimentos de caráter social, e que apesar disso continuam a não ser capazes de refrearem os modernos Xariar. Daí o interesse em analisar a história, tão bem sucedida, de Xerazade.

O segundo dom da nossa heroína é de natureza psicológica: a capacidade de transformar a mente de um criminoso apenas com palavras. Usar o diálogo para dissuadir um assassino é uma estratégia ousada e, para atingir o seu fim, a vítima tem de estar bem consciente dos prováveis movimentos do criminoso e de os integrar, como numa partida de xadrez, nos acontecimentos que possam vir a desenrolar-se. Não devemos esquecer que o rei, o agressor, no início não fala com Xerazade. Durante os primeiros seis meses mantém-se em silêncio e escuta as histórias dela sem articular uma palavra; por isso Xerazade não tem maneira de saber o que lhe vai na mente, a não ser observando as suas expressões faciais e linguagem corporal. Como continuar a falar na noite sem cometer um erro fatal de cálculo psicológico? Tal como um estratega militar usa o seu saber para prever acontecimentos futuros, Xerazade tem de adivinhar, e adivinhar com exatidão, pois o mais pequeno erro será fatal.

O último dom de Xerazade é o sangue-frio, a capacidade de controlar o próprio medo o suficiente para pensar com lucidez e ser ela, e não o agressor, a conduzir a dinâmica de interação. Xerazade só sobrevive porque é uma superestratega do intelecto. Se se tivesse despido como as vamps de Hollywood ou as odaliscas de Matisse, e estendido passivamente sobre a cama do rei, teria sido morta, porque aquele homem não precisava de sexo, precisava de uma psicoterapeuta. Xariar sofria de uma forma aguda de autorrejeição, como nos acontece a todos quando descobrimos que estamos a ser «enganados». Estava furioso porque não compreendia o outro sexo, nem a razão pela qual a mulher o traíra.

Apesar de estar numa posição de impotência, Xerazade consegue, através da leitura atenta de uma situação complexa, subverter o equilíbrio do poder e vencer. É por este motivo que ainda hoje muitas mulheres como eu, que se sentem politicamente impotentes, admiram Xerazade. Alguns ocidentais, que não sabem interpretar a história de Xerazade e a reduzem a uma frívola entertainer, podem considerá-la um mau modelo de comportamento para as mulheres modernas. Pessoalmente, julgo que se a situarmos no seu contexto político, a sua pertinência como modelo de comportamento torna-se evidente. Xerazade salva-se não só a si própria mas a todo um reino, agindo gradualmente sobre o principal responsável pelas decisões, o rei. A escritora inglesa A. S. Byatt observa com exatidão ao dizer que, embora à primeira vista a história «possa parecer contra as mulheres» pela enorme desigualdade entre Xerazade e o marido, no final, a mulher controla completamente a situação»79.

Não só a sua estratégia funciona, uma vez que o rei renuncia ao macabro projeto de decapitar as noivas ao romper do dia, como, através da subtil influência de Xerazade sobre as suas convicções, motivações e psique profunda, ele reconhece que estava totalmente errado na sua cólera contra as mulheres: «Oh, Xerazade, fizeste-me duvidar do meu poder real (zahadtani fi mulki), arrepender-me da violência que usei para com as mulheres, e da matança das raparigas.»80

A última frase, em que um déspota reconhece que dialogar com a mulher mudou completamente a sua visão do mundo, inspirou muitos escritores árabes famosos do século XX, que atribuíram a Xerazade, e através dela a todas as mulheres, o estatuto de agentes civilizadores. Segundo o influente pensador egípcio Taha Hussein, a paz e a serenidade substituirão a violência nas intenções e nas ações dos homens, se eles foram redimidos pelo amor de uma mulher. No seu livro Os Sonhos de Xerazade (Ahlam Scheherazade), publicado em 1943, a narradora transforma-se em símbolo dos muitos inocentes envolvidos na Segunda Guerra Mundial, uma guerra que, embora provocada pelo Ocidente, afetou também todos os árabes e, a bem dizer, todos os habitantes do planeta81. No livro de Hussein, o rei Xariar simboliza a incompreensível e trágica necessidade que os homens têm de matar. Só depois de escutar durante muitos anos a sua prisioneira é que Xariar consegue aperceber-se de que ela é depositária de um precioso segredo. Se ao menos percebesse quem ela é e o que pretende, poderia atingir um crescimento emocional e a serenidade:

 

Xariar – Quem és tu, e o que desejas?

Xerazade – Quem sou eu? Sou a Xerazade, que te ofereceu o prazer de escutar os seus contos durante anos porque estava cheia de medo de ti. Agora, atingi um estado em que posso dar-te amor porque me libertei do medo que me inspiravas. O que desejo? Desejo que o meu Senhor, o Rei, saiba o que é a serenidade. Que experimente a alegria de viver num mundo livre de ansiedade82.

 

A redenção, nas reflexões de Taha Hussein, começa quando se estabelece um diálogo entre os poderosos e os que não têm poder. A civilização florescerá quando os homens aprenderem a ter um diálogo íntimo com os seres humanos que lhe estão mais próximos, as mulheres com quem partilham a cama. Taha Hussein, que era cego, inválido e incapaz de participar nas guerras – tal como as mulheres –, reacendeu nos anos 40 o simbolismo inerente aos contos medievais de Xerazade – a ligação entre humanismo e feminismo. Qualquer reflexão sobre a modernidade como oportunidade para eliminar a violência despótica no mundo muçulmano de hoje passa, inevitavelmente, por uma tomada de posição a favor do feminismo. Seja qual for o lugar onde se está, na Indonésia, no Afeganistão, na Turquia ou na Argélia, fazendo um pouco de zapping pelas televisões muçulmanas ou passando os olhos pela imprensa, apercebemo-nos de que qualquer debate sobre a democracia rapidamente resvala para o debate sobre os direitos das mulheres e vice-versa. O misterioso elo entre pluralismo e feminismo no conturbado mundo islâmico de hoje foi misteriosa e vivamente prenunciado nos contos de Xerazade e Xariar.

Em As Mil e Uma Noites, Xariar admite oficialmente que um homem deve usar as palavras em vez da violência para resolver as suas disputas. Para transformar a sua situação, Xerazade comanda palavras, não exércitos, e isso confere uma nova dimensão aos contos, como um mito da civilização moderna: são um símbolo do triunfo da razão sobre a violência.

Isso leva-me a salientar um aspeto fundamental completamente ausente nas fantasias dos artistas ocidentais sobre Xerazade. No Oriente, servir-se apenas do corpo, ou seja, sexo sem intelecto, nunca ajuda a alterar a situação de uma mulher. A primeira mulher do rei falha lamentavelmente porque a sua rebelião se limitava à política do corpo – entregar-se a um escravo. Ser infiel ao marido serve apenas para enredar a mulher numa teia suicida. Mas Xerazade ensina que uma mulher pode efetivamente entrar em rebelião desenvolvendo o seu intelecto, adquirindo saber, e ajudando os homens a libertarem-se da necessidade narcisista de uma homogeneidade simplista. Ela ensina que há necessidade de se confrontar com o outro, diferente, e de insistir no reconhecimento e respeito dos limites, para que o diálogo possa ter lugar. Aprender a apreciar a fluidez de um diálogo é experimentar situações em que o resultado da batalha não está rigidamente fixado, onde vencedores e vencidos não estão pré-determinados.

Abdesslam Cheddadi, um dos historiadores marroquinos mais perspicazes na análise do Islão atual, afirma que a primeira mensagem-chave de As Mil e Uma Noites é que «Xariar descobre e fica convencido de que é impossível obrigar uma mulher a obedecer à lei marital»83. Mas, acrescenta Cheddadi, por mais revolucionária que esta convicção seja, é menos subversiva do que a segunda mensagem dos contos: se admitirmos que Xariar e Xerazade representam o conflito cósmico entre o Dia (o masculino enquanto ordem objetiva, o reino da Lei), e a Noite (o feminino enquanto ordem subjetiva, o reino do Desejo), então o facto de o rei não matar a rainha deixa os homens muçulmanos numa intolerável insegurança relativamente ao resultado final da batalha. «Permitindo que Xerazade permaneça viva, o rei suspende a lei que ele próprio estabeleceu», escreve Cheddadi84. Paradoxalmente é Xariar, o homem, quem fica paralisado, concedendo a Xerazade o direito a viver, falar e prosperar. «Lei e desejo equilibram-se, ficando numa espécie de imobilidade suspensa, mas sem qualquer garantia que, de um momento para o outro, cada um deles não retome a seu próprio curso»85. No final dos contos, os homens no mundo muçulmano só podem estar seguros de uma coisa: a batalha entre os sexos, como representação da batalha entre emoção e razão, não tem fim.

Para Cheddadi, a oposição entre a narradora e o rei também reflete e exacerba o conflito explosivo na cultura muçulmana entre a Shari‘a, a Verdade sagrada, e a Ficção. O triunfo de Xerazade é o triunfo do wahm (imaginação) sobre a legitimidade dos detentores de çidq (verdade) e corrói a sua credibilidade86. Cheddadi comenta então o triste destino dos quççaç (os contadores de rua), dos quais Salman Rushdie é um herdeiro moderno, e explica que a sua expulsão das mesquitas ocorreu porque a distinção entre a sua ficção e a «Verdade» é complexa e enganadora.

Na Bagdade medieval, os contadores de histórias de rua eram frequentemente apontados como instigadores à rebelião e, tal como hoje acontece com os jornalistas de esquerda, eram censurados e proibidos de falarem em público. No ano 279 da Hégira (século X d.C.), narra Tabari na History of Nations and Kings: «O Sultão deu ordem para informar a população da Cidade da Paz (um dos nomes de Bagdade), que nenhum contador de histórias será autorizado a sentar-se na rua ou na Grande Mesquita…»87 E Cheddadi explica que a sistemática «caça às bruxas» aos contadores de histórias se devia ao facto de o palácio não ter outra alternativa senão silenciar os mais perigosos de todos os criadores: «A partir da segunda metade do primeiro século do Islão (século VII da era cristã), vemos Ali (o quarto califa ortodoxo) expulsar os contadores de histórias da mesquita de Baçorá. No Oriente, a perseguição dos quççaç só terminou com a sua completa extinção…, quando são substituídos pelos pregadores (mudhakkirun ou wu‘az). Foi a única solução para estabelecer um limite claro entre o que devia ser considerado como verdadeiro e autêntico e o que pertencia ao mundo da ficção, da invenção e da mentira.»88

É óbvio que o conflito entre a Verdade e a Ficção no mundo muçulmano é justificado por um outro conflito, que nos leva uma vez mais ao conflito entre Xariar e Xerazade: se a Verdade é o reino da lei e das suas restrições, a Ficção é o mundo do prazer e do divertimento. E para tornar toda esta questão ainda mais insuportável aos fanáticos, sejam eles tradicionalistas ou modernos, Xerazade, como recorda Cheddadi, tem uma característica incómoda: «Xerazade é-nos apresentada, desde a sua primeira aparição no livro, com as credenciais de um perfeito e completo Faquih, uma autoridade religiosa muçulmana»89. O seu saber inclui um vasto conhecimento de história, um impressionante domínio da literatura sagrada incluindo o Corão, a Shari’a, e os textos das várias escolas de interpretação religiosa. É esta singular combinação de grande saber – adquirido através da leitura de mais de mil livros – e do objetivo aparentemente ingénuo de permanecer no mundo da noite e da ficção, que torna Xerazade particularmente suspeita e explica um outro estranho fenómeno: durante séculos, as elites árabes desdenharam os seus contos e nem se deram ao trabalho de os passar à escrita.

Para compreender a emergência da narradora como símbolo dos direitos humanos no Oriente moderno, não devemos esquecer que durante séculos as elites conservadoras, com algumas exceções, desprezaram As Mil e Uma Noites como uma subprodução popular sem qualquer valor cultural, por serem contos transmitidos oralmente90. As elites masculinas consideravam a tradição oral como símbolo das massas iletradas. Seria pelo facto de as histórias serem na sua maior parte narradas por mulheres no espaço privado da família? Embora não exista uma conclusão científica que comprove esta análise, é conveniente tê-la presente se estamos a tentar avaliar o papel especial de As Mil e Uma Noites como componente «feminina» da tão «masculina» tradição muçulmana.

O argelino Bencheikh, um estudioso contemporâneo dos contos de Xerazade, pergunta-se se o denegrir das fábulas anterior aos tempos modernos, etiquetando-os de Khurafa (delírio de um cérebro perturbado), não seria atribuível ao facto de as mulheres serem muitas vezes descritas como mais astutas do que os homens91. Na lógica dos contos, o juiz está errado e a vítima tem razão. «O rei é não só julgado por Xerazade, a vítima, como é condenado por ela a mudar a sua maneira de pensar de acordo com os desejos dela. É o mundo virado do avesso. É um mundo onde o juiz… não escapa à sua vítima»92. É um mundo onde os valores são os da Noite. Basta recordar o refrão que fecha cada uma das histórias:

 

 

A manhã surpreendeu Xerazade, (wa adraka shahrazad aç-çabah) e ela mergulhou no silêncio. (fasakatat‘ani l‘kalami l‘mubah).

 

 

Quando comparadas com a envolvente escuridão da noite, a corte do rei e o seu sistema de justiça parecem uma miragem tão frágil quanto a luz do dia. Não é de surpreender que as elites culturais árabes, muitas vezes encorajadas e financiadas pelos despóticos governantes, condenassem As Mil e Uma Noites à transmissão oral durante séculos, impedindo-as de adquirir as credenciais de um património escrito. Só no século XIX, cem anos mais tarde do que os europeus (que possuíam o texto escrito desde 1704), os contos foram finalmente publicados em árabe! E nenhum dos primeiros editores era árabe!

A primeira edição do texto árabe foi publicada em Calcutá em 1814 por um muçulmano indiano, o Xeque Ahmad Shirawani, professor de árabe no Fort William College de Calcutá. A segunda edição do texto árabe é de Breslau (Alemanha), 1874, e o editor é Maximilian Habicht. Dez anos mais tarde, os editores árabes começaram a ganhar dinheiro com a versão escrita das Noites, na edição egípcia Bulaq, dada à estampa no Cairo em 183493.

É interessante constatar que o primeiro editor árabe de As Mil e Uma Noites sentiu necessidade de interferir na versão Bulaq, «melhorando a linguagem, produzindo um trabalho que era, na sua opinião, de qualidade literária superior ao original»94.

O que é surpreendente, diz Bencheikh, refletindo sobre a especial importância de As Mil e Uma Noites no património muçulmano, é que a narradora não nega o kayd das mulheres, ou seja, a vontade de sabotar os homens. Na sua opinião, isso poderia explicar a recusa da elite árabe em passar o texto à escrita. «A narradora, cujo dever era obter a graça do soberano ‘enganado’, empregou todo o talento em criar histórias que confirmavam os seus sentimentos de desconfiança em relação às mulheres»95. Toda a série de contos não é mais do que a ilustração real do quanto as mulheres do harém são sexualmente incontroláveis, e esperar que obedeçam quando a desigualdade é imposta como lei, é completamente absurdo.

Os homens podem ler o seu trágico destino em cada uma das histórias, diz Bencheikh. «Sabemos que este terror de serem traídos tem raízes profundas e está presente em culturas mais antigas que o exprimiram mais ou menos do mesmo modo… Mas aqui, estamos a trabalhar num texto escrito em língua árabe…»96 O uso da língua árabe acentua as tensões porque é a língua do Corão, o texto sagrado. Passar as lendas à escrita equivale a conferir-lhes uma credibilidade «académica» escandalosamente perigosa. A modernidade trouxe Xerazade para o centro da cena intelectual árabe do século XX, porque há muitos anos, na Bagdade do século IX, ela já colocava claramente questões políticas e filosóficas fundamentais para as quais os nossos líderes políticos atuais ainda não encontraram resposta:

Porque deve uma lei injusta ser obedecida? Porque foi escrita pelos homens?

Se a Verdade é tão evidente, porque não são a ficção e a imaginação autorizadas a florescer?

O milagre no Oriente é ser a excessiva ponderação de Xerazade, associada ao seu interesse por questões filosóficas e políticas mais vastas, que a tornava tão espantosamente atraente. E o único modo que Xariar tinha de assegurar que era toda sua, era fazer amor com ela. O sexo hábil era o único instrumento que possuía para a fazer esquecer o mundo durante algumas horas.

Para seduzir uma mulher inteligente preocupada com o mundo, um homem tem de se tornar mestre na arte erótica. Na companhia de Xerazade, a arte de fazer amor de Xariar atinge o seu potencial máximo, o que nos faz voltar ao início: o que acontece à nossa rainha quando vai para o Ocidente?

Que alterações lhe infligem os artistas ocidentais para a adaptar às suas fantasias quando ela atravessa as fronteiras?

De que armas de sedução a dotam os artistas ocidentais?

Tornar-se-á ela mais ou menos poderosa nas suas fantasias? Mantém ou perde o estatuto de rainha?

Uma coisa é certa: conhecemos com exatidão a data em que Xerazade atravessou a fronteira para o Ocidente. Foi em 1704, e o seu primeiro destino foi Paris.

69 Introdução a The Arabian Nights, traduzido do árabe para inglês por Husain Haddawy, baseado no texto editado por Muhsin Mahdi, Norton and Co., Nova Iorque, 1990, p. xi.

70 Hiam Aboul-Hussein e Charles Pellat, Cheherazade, Personnage Littéraire, Société Nationale d’édition et de Diffusion, 1976, p. 18.

71 Os Sassânidas eram uma prestigiosa dinastia persa que estabeleceu um poderoso império entre 226 e 641, até à conquista da Pérsia pelo Islão. Quando o Islão apareceu, os Sassânidas e os Bizantinos eram as potências predominantes no Próximo e Médio Oriente.

72 Literalmente, bi jazair al Hind wa Çin a Çin, p. 56 do já citado original árabe de As Mil e Uma Noites de Muhsin Mahdi. A tradução inglesa é de Husain Haddawy, op. cit., p. 3.

73 Literalmente, wajada zawjatahu naima wa ila janibiha rajulan min çybiyan al matbakh, p. 57 do original árabe e p. 3 da tradução de Haddawy já citada.

74 Haddawy, op. cit., p. 5.

75 Haddawy, op. cit., p. 59.

76 Haddawy, op. cit., p. 9.

77 Haddawy, op. cit., p. 11.

78 Haddawy, op. cit., p. 11.

79 A. S. Byatt, Narrate or die:Why Sheherazade Keeps on Talking, in The New York Times Magazine, 18 de abril de 1999, pp. 105-107.

80 «A História dos Pássaros», aqui traduzida, não faz parte da versão de Al-Mahdi das Mil e Uma Noites, mas existe numa das versões mais baratas e populares dos contos de Xerazade, à venda nos souks de Marrocos. Al-maktaba ach-cha’biya, Beirute, Vol. II, p. 43.

81 Aboul-Hussein e Pellat, Cheherazade, Personnage littéraire, p. 36.

82 Aboul-Hussein e Pellat, op. cit., p. 114.

83 Abdesslam Cheddadi, Le conte-cadre des Mille et Une Nuits comme récit de Commencement. Contributo para o «IV Colóquio de Escritores Hispano-Árabes», Almeria, Espanha, 26-29 de abril, 1988; p. 11 do manuscrito que o autor cedeu amavelmente antes da sua publicação.

84 Cheddadi, op. cit., p. 12.

85 Ibidem, p. 19.

86 Ibidem, p. 2.

87 Tabari,Tarikh al Umam wa-l-Muluk, Dar al-Fikr, 1979, Vol. VI, p. 340.

88 Cheddadi, op. cit., p. 4.

89 Ibidem.

90 As duas exceções em que historiadores medievais mencionaram os contos e lhes dedicaram alguns parágrafos (mesmo que só para recordar aos árabes a sua origem persa), foram Mas’udi e Ibn Nadim. Mas’udi, do século IX, explicou na Pradaria de Ouro (Muruj Dahab) que os contos eram originariamente conhecidos pelo seu título persa, Hazar Afsane, literalmente «os mil contos». Ibn Nadim, do século X, diz no Fihirst que «Os primeiros a criar esses contos…foram os persas da Primeira Dinastia… Os árabes traduziram estes contos, e homens talentosos com dom para a literatura recriaram novos e tornaram mais elegantes os antigos». In Fihirst, Edição Flugel, 1871, p. 304, e p. 422 da edição do Cairo de 1929.

91 Jamel Eddin Bencheikh, Les 1001 Nuits ou la Parole Prisonnière, Paris: Ed. Gallimard, 1998, p. 26.

92 Bencheikh, op. cit., p. 34.

93 Hussain Hahdawi, introdução às Mil e Uma Noites, op. cit., xiv.

94 Ibidem.

95 Bencheikh, op. cit., p. 29.

96 Bencheikh, op. cit., p. 32.