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O HARÉM FRANCÊS

O portão de nossa casa era uma hudud, ou fronteira bem definida, porque era necessária uma autorização para entrar e sair. Havia que justificar cada movimento e até o próprio facto de nos aproximarmos do portão despoletava todo um processo complicado. Se se vinha do pátio, primeiro havia que atravessar um corredor interminável e depois dava-se de caras com Ahmed, o porteiro, que costumava estar sentado no seu divã-trono, sempre com a bandeja de chá ao lado para oferecer ao primeiro que aparecesse. Como o direito de passagem implicava invariavelmente um processo de negociação bastante complexo, convidava as pessoas que queriam sair a sentar-se junto dele no seu imponente divã, ou à sua frente, devidamente relaxadas num inverosímil «fauteuil d’França», uma espécie de cadeira dura, velha e almofadada, que ele mesmo tinha escolhido numa pouco habitual visita ao jutya, a feira de antiguidades local. Ahmed costumava ter ao colo o mais novo dos seus cinco filhos, porque tomava conta deles quando Luza, a sua mulher, ia trabalhar. Luza era uma cozinheira de primeira e aceitava trabalhos ocasionais fora da nossa casa quando lhe pagavam bem.

O portão da nossa casa era uma gigantesca arcada de pedra com imponentes portas de madeira trabalhada, separando o harém das mulheres de todos os estrangeiros de sexo masculino que passassem na rua (a honra e o prestígio do meu tio e do meu pai dependiam daquela separação, diziam-nos). As crianças podiam sair sempre que os pais lhes dessem autorização, mas as mulheres adultas não.

– Eu acordaria de madrugada – dizia a minha mãe de vez em quando – se pudesse sair para passear de manhã cedo quando as ruas estão desertas. A essa hora a luz deve ser azul, ou talvez cor-de-rosa, como durante o crepúsculo. De que cor será a manhã nas ruas silenciosas e desertas?

Ninguém respondia às perguntas da minha mãe. Num harém as perguntas não implicam necessariamente obter respostas. Faz-se perguntas apenas para se compreender o que está a acontecer. Deambular livremente pelas ruas era o sonho de todas as mulheres. A história mais popular da tia Habiba, que ela contava apenas em ocasiões especiais, falava da «mulher com asas», uma mulher que podia sair a voar do pátio sempre que queria. Cada vez que a tia Habiba nos contava esta história, as mulheres do pátio enfiavam os cafetãs no cinto e dançavam com os braços estendidos como se fossem levantar voo. A minha prima Chama, que nessa altura tinha dezassete anos, confundiu-me durante anos, porque me convenceu de que todas as mulheres tinham asas invisíveis, e que as minhas também cresceriam quando eu fosse maior.

O portão da nossa casa também nos protegia dos estrangeiros que estavam a poucos metros de distância, numa outra fronteira igualmente concorrida e perigosa: a que separava a nossa cidade antiga, a Medina, da nova cidade francesa, a Ville Nouvelle. Por vezes, quando Ahmed estava a falar com alguém ou a dormir uma sesta, os meus primos e eu escapulíamo-nos pelo portão para dar uma espreitadela aos soldados franceses: vestiam uniformes azuis, levavam espingardas ao ombro e tinham pequenos olhos cinzentos sempre alerta. Tentavam frequentemente falar connosco porque os adultos nunca falavam com eles, mas tinham-nos ordenado que nunca lhes respondêssemos. Sabíamos que os franceses eram gananciosos e que tinham percorrido um longo caminho para conquistar a nossa terra, embora Alá já lhes tivesse dado uma bonita terra, com cidades buliçosas, florestas frondosas, belos campos verdes e vacas muito maiores do que as nossas e que davam quatro vezes mais leite. Mas por alguma razão os franceses precisavam de obter mais.

Como nós vivíamos na fronteira entre a cidade antiga e a nova, podíamos ver como a Ville Nouvelle francesa era diferente da nossa Medina. A Ville Nouvelle tinha ruas grandes e a direito, iluminadas à noite por luzes brilhantes (o meu pai dizia que desperdiçavam a energia de Alá, porque as pessoas não precisavam de tantas luzes brilhantes numa cidade segura). Também tinham carros velozes. As ruas da nossa Medina eram estreitas, escuras e sinuosas, com tantas voltas e reviravoltas que os carros não podiam entrar, e quando os estrangeiros se aventuravam nelas não conseguiam encontrar o caminho de volta. Esta era a verdadeira razão pela qual os franceses tiveram de construir uma nova cidade: tinham medo de viver na nossa.

Na Medina quase toda a gente andava a pé. O meu pai e o meu tio tinham mulas, mas os pobres como Ahmed apenas tinham burros, e as crianças e as mulheres tinham de andar a pé. Os franceses tinham medo de andar a pé. Andavam sempre de carro. Quando as coisas se tornavam complicadas, nem sequer os soldados se atreviam a sair dos seus carros. O medo deles surpreendia-nos porque nos apercebemos de que os adultos podiam ter tanto medo como nós. E aqueles adultos que tinham medo estavam no exterior, e eram supostamente livres. Os poderosos que haviam criado a fronteira eram também os que tinham medo. A Ville Nouvelle era como o seu harém: também eles não podiam andar livremente pela nossa Medina, tal como as mulheres. No fundo, uma pessoa podia ter muito poder e não obstante ser prisioneira de uma fronteira.

Embora a maioria das vezes os soldados franceses parecessem extremamente jovens, assustados e solitários nos seus postos, aterrorizavam a Medina inteira. Tinham poder e podiam fazer-nos mal.

A minha mãe contava-nos que num dia de janeiro de 1944 o rei Mohammed V, apoiado por nacionalistas de todo o Marrocos, tinha ido ver o administrador colonial francês mais importante, o Résident General, para lhe apresentar um pedido formal de independência. O Résident General ficara muito aborrecido. «Como é que vocês, marroquinos, se atrevem a pedir a independência?!», deve ter gritado; e, para nos castigar, enviou os seus soldados para a Medina. Os carros blindados abriram caminho pelas ruas sinuosas tão depressa quanto puderam. As pessoas voltaram-se para Meca para rezar. Milhares de pessoas recitaram a oração da ansiedade que consiste na repetição de uma única palavra durante horas quando uma pessoa enfrenta algum desastre: «ya latif, ya latif, ya latif!» (oh Misericordioso!). Ya latif é uma das centenas de nomes que damos a Alá, e a tia Habiba costumava dizer que era o mais belo de todos porque descreve Alá como uma fonte de terna compaixão, que sente a nossa dor e nos pode ajudar. Mas os soldados franceses vinham armados e ao verem-se encurralados nas estreitas ruas da Medina, rodeados pelos cânticos de Ya latif repetidos milhares de vezes, ficaram nervosos e perderam o controlo, começando a disparar contra a multidão de fiéis. Em poucos minutos os cadáveres amontoavam-se à porta da mesquita, enquanto os cânticos continuavam lá dentro. A minha mãe contou-nos que quando isto aconteceu Samir e eu tínhamos apenas quatro anos e que ninguém reparara que estávamos junto ao portão a observar enquanto os cadáveres ensanguentados, todos vestidos com a djellaba branca cerimonial, eram transportados para suas casas.

– Samir e tu tiveram pesadelos durante meses – disse a minha mãe – e cada vez que vias algo encarnado corrias para te esconderes. Tivemos de te levar ao santuário de Mulay Driss muitas sextas-feiras seguidas para que os sharifs (homens sagrados) celebrassem ritos protetores para ti, e durante um ano tive de pôr um amuleto corânico debaixo da tua almofada, até voltares a dormir normalmente.

Depois daquele dia trágico, os franceses andavam sempre armados por toda a parte, enquanto o meu pai teve de pedir autorização a diferentes autoridades só para poder conservar a sua espingarda de caça, e mesmo assim tinha de a levar escondida, exceto na floresta.

Todos estes acontecimentos me desconcertaram e falei muitas vezes deles com Yasmina, a minha avó materna, que vivia numa bonita quinta, rodeada de vacas e ovelhas e infindáveis prados de flores, uma centena de quilómetros a oeste, entre Fez e o oceano. Íamos visitá-la uma vez por ano e eu falava com ela de fronteiras, de medos, de diferenças e do porquê de tudo isto. Yasmina sabia muito acerca do medo, de todos os tipos de medos.

– Sou uma perita em medo, Fatima – dizia-me, acariciando-me a testa enquanto eu brincava com as suas pérolas e contas cor-de-rosa. – Quando fores mais velha, explicar-te-ei as coisas. Vou ensinar-te a vencer os medos.

Muitas vezes não conseguia dormir nas primeiras noites que passava na quinta de Yasmina, porque lá as fronteiras não estavam suficientemente definidas. Não havia portões fechados em lado nenhum, apenas campos planos e imensos onde as flores cresciam e os animais passeavam tranquilamente. Mas Yasmina explicou-me que a quinta era parte da terra original de Alá, que não tinha fronteiras, apenas vastas extensões sem barreiras nem limites e que eu não devia ter medo. Mas como podia eu passear pelo descampado sem ser atacada?, perguntava incessantemente. E então Yasmina, para me ajudar a dormir, inventou um jogo que eu adorava: chamava-se mshia-f-lekhla (o passeio pelos campos). Abraçava-me com força quando me deitava e eu segurava nas mãos as contas dos seus colares, fechava os olhos e imaginava-me a passear por um infindável campo florido.

– Anda com cuidado – dizia-me Yasmina – para poderes ouvir a canção das flores. Estão a murmurar «saiam, saiam» (paz, paz).

Então eu repetia o canto das flores tão depressa quanto conseguia, o perigo desaparecia e eu adormecia. «Salam, salam», murmuravam as flores, Yasmina e eu. E no instante seguinte era já de manhã e eu estava na enorme cama de ferro de Yasmina, com as mãos cheias de pérolas e contas cor-de-rosa. Lá de fora chegava a música da brisa que acariciava as folhas e dos pássaros que falavam uns com os outros; e não se via vivalma, à exceção do Rei Faruk, o pavão, e Thor, o pato branco rechonchudo.

Na verdade, Thor também era o nome da coesposa do meu avô que Yasmina mais detestava, embora eu só pudesse chamar-lhe assim em pensamentos. Quando pronunciava o seu nome em voz alta, tinha de dizer Lalla Thor. Lalla é o tratamento respeitoso que damos a todas as mulheres importantes, tal como Sidi é o tratamento de respeito que damos a todos os homens importantes. Na minha condição de criança, tinha de chamar Lalla e Sidi a todos os adultos importantes, e beijar-lhes a mão ao pôr do sol, quando se acendiam as luzes e dávamos as msakum (boas noites). Todas as noites Samir e eu tínhamos de beijar a mão a todos os presentes o mais rapidamente possível se queríamos continuar com os nossos jogos sem ouvir a desagradável observação de que a tradição estava a perder-se. Fazíamo-lo tão bem que conseguíamos realizar todo o ritual a uma velocidade incrível, mas por vezes corríamos tanto que chocávamos um com o outro e caíamos no colo das pessoas importantes ou até mesmo no tapete. Nessas alturas todos desatavam a rir. A minha mãe ria até ter lágrimas nos olhos.

– Coitadinhos – dizia –, já estão fartos de beijar mãos, e ainda agora começaram.

Mas, na quinta, Lalla Thor nunca ria, tal como Lalla Mani também não o fazia em Fez. Estava sempre muito séria e era extremamente formal e correta. Como primeira mulher do avô Tazi, ocupava uma posição muito importante na família. Era muito rica e em casa não tinha obrigações, dois privilégios que Yasmina não aceitava.

– Pouco me importa que seja muito rica – dizia Yasmina –, mas deveria trabalhar como todas nós. Somos muçulmanas ou não? Se o somos, todas deveríamos trabalhar. Alá assim o disse. E o mesmo pregou o seu profeta.

Yasmina dizia-me que eu nunca deveria aceitar a desigualdade porque não era lógica. Por isso tinha dado ao seu pato rechonchudo o nome de Lalla Thor.