10

Verão, Catorze Anos Antes

Foi fácil convencer a Sue a deixar-me trabalhar na Taberna. Mas os meus pais deram mais luta. Não percebiam por que razão queria passar as noites a trabalhar num restaurante, visto que o dinheiro não era um problema para mim. Disse-lhes que queria ganhar o meu próprio dinheiro e, erro de principiante, que queria passar mais tempo com o Sam. Considerando todo o tempo que já passávamos juntos, acharam esta informação perturbadora, e, sendo um casal de doutorados astutos, aproveitaram a viagem do início do verão para Barry’s Bay para preparar uma intervenção.

Eu devia ter percebido que se passava alguma coisa quando o meu pai voltou da paragem para descansar com uma embalagem de vinte bolinhos Timbits (uma concessão rara), cobertos de chocolate glaceado (o meu preferido) e me passou a embalagem inteira para eu a levar. (Alerta vermelho! Alerta vermelho!)

Os meus pais davam-me tão poucos sermões que se notava o desconforto com que começaram aquele. Foi um clássico.

Pai: «Persephone, sabes o quanto gostamos do Sam. Ele…»

Mãe: «É um miúdo amoroso. Nem imagino como tem sido para a Sue criar aqueles dois filhos sozinha, mas tem feito um trabalho impressionante.»

Pai: «Pois. Sim. É um ótimo miúdo. E estamos contentes por teres um amigo na cabana, miúda. É importante que alargues os teus círculos sociais para lá da classe média alta de Toronto.»

Mãe: «Não que haja alguma coisa de errado com o nosso círculo. Sabes, os pais da Delilah dizem que o Buckley Mason é um rapaz com um futuro muito promissor.»

Pai: «Embora eu não saiba nada sobre jogadores de hóquei.»

Mãe: «A questão é que estamos preocupados por passares tanto tempo com o Sam. Vocês parecem gémeos siameses, e agora com o restaurante… Não queremos que vocês…»

Pai: «Se comprometam numa idade tão jovem.»

Respondi-lhes que o Sam era o meu melhor amigo, que me compreendia melhor do que qualquer outra pessoa e que ia ficar para sempre na minha vida, por isso, era melhor que eles se habituassem. Disse-lhes que ter um emprego ia ensinar-me a ser mais responsável. Não mencionei a parte da minha paixão não correspondida.

Trabalhar no restaurante era como fazer parte de uma dança altamente coreografada, com todos os participantes a executarem uma coreografia quase perfeita, que parecia muito mais fácil do que na realidade era. A Sue era uma ótima chefe. Era direta, mas não condescendente nem impaciente. Ria-se com facilidade, conhecia pelo menos metade dos clientes pelo nome e geria as enchentes com grande facilidade.

O Julien controlava a parte de trás da casa com um poder silencioso e um olhar que podia gelar-nos, mesmo no inferno da cozinha. Era mais novo do que a Sue, talvez no início da casa dos 30, mas tinha as costas desgraçadas devido a anos a carregar pernis de porco e barris de cerveja polaca. Eu tinha medo dele até ao dia em que o ouvi a meter-se com o Charlie, na sua pausa para fumar depois da hora do jantar.

«Ainda bem que, em breve, vais para a faculdade, porque faltam-te cerca de três raparigas para esgotares esta cidade toda.»

Para mim, qualquer pessoa que gozasse com o Charlie só podia ser boa.

O Julien e o Charlie tomavam conta dos fogões, grelhadores e fornos. Tinham uma forma silenciosa de comunicar, respondendo aos pedidos através de um sistema que o Julien tinha aprendido com o pai do Charlie. Ao princípio, foi estranho ver como o Charlie era no restaurante, esforçado e sério, a testa franzida de concentração. De vez em quanto, os nossos olhares cruzavam-se, ele esboçava um sorriso rápido, mas, de forma igualmente rápida, voltava a concentrar-se na comida.

O Sam, sendo o mais novo dos irmãos, tinha sido relegado para o lava-louça e para preparar os pedidos. Passava os pedidos ao Julien, este gritava o nome dos pratos e o Sam preparava os ingredientes necessários para cada um deles, correndo até à cave para os ir buscar sempre que era necessário.

A melhor parte era que a Sue me tinha posto a fazer os mesmos turnos que o Sam: quintas, sextas e sábados ao jantar. Eu gostava de olhar para ele quando trazia a louça suja e gostava de como o vapor da cozinha lhe transformava o cabelo ondulado em caracóis. E gostava de fazer a limpeza do fim da noite com ele, embora os dotes do Sam para lavar louça significassem, muitas vezes, ter de pôr a mesma louça a lavar na máquina duas vezes. Mas eu também gostava disso: o Sam era perfeito em quase tudo, menos na lavagem da louça.

*

Foi um verão seco, com fogos espalhados por todo o país, e eu era como um elástico demasiado apertado dentro da minha energia sexual frustrada adolescente. O Sam vinha buscar-me a casa para irmos nadar, depois da sua corrida matinal, como no ano anterior, e, no caminho até sua casa, eu não conseguia parar de observar como a t-shirt suada se agarrava ao seu tronco ou as gotas de suor que lhe corriam pela testa e pelo pescoço.

Agora que já tinha 16 anos, o Sam já podia conduzir o Barco Banana e, num fim de tarde do princípio de julho, levámo-lo até à doca da vila para comermos gelados. Sentámo-nos num banco junto à água a acabar os nossos cones, debatendo as vantagens da dissecação animal nas aulas de Biologia, quando o Sam se inclinou e passou a língua à volta do meu cone, apanhando as gotas azuis e cor-de-rosa. No verão anterior, tinha feito o mesmo, mas aquilo era a coisa mais sexy que eu já tinha visto.

— Tens as papilas gustativas de uma criança de 5 anos — disse, enquanto eu o olhava, com os olhos esbugalhados.

Lambeste o meu gelado.

— Sim… qual é o problema? — Ficou admirado.

— Usaste a tua língua. Tens de parar de fazer isso.

— Porquê? Tens medo de que o teu namorado se chateie ou algo assim? — Parecia um pouco zangado. A Delilah é que me tinha convencido a continuar a andar com o Mason, dizendo que não valia a pena esperar que a minha Paixão de Verão percebesse alguma coisa. Mas eu já tinha explicado ao Sam, em várias ocasiões, que o Mason não era meu namorado, que saíamos juntos, mas não era nada sério. Nem o Sam nem o Mason pareciam compreender essa diferença.

— Pela milionésima vez, o Mason não é meu namorado.

— Mas vocês beijam-se — replicou.

— Sim, mas isso não é nada de especial — disse eu, sem perceber bem aonde ele queria chegar.

Ele deu uma trinca no seu próprio gelado e, depois, semicerrou os olhos na minha direção.

— Não acharias nada de especial se eu te dissesse que tinha beijado alguém?

O meu coração explodiu em pedaços minúsculos.

— Beijaste alguém? — murmurei.

Percebi que ele estava nervoso porque desviou o olhar e fixou-o na baía.

— Sim, a Maeve O’Connor, no baile do fim de ano — respondeu.

Eu odiava a Maeve O’Connor. Queria assassinar a Maeve O’Connor.

— Maeve é um nome bonito — disse, meio asfixiada.

Os seus olhos azuis voltaram aos meus e ele afastou o cabelo da cara.

— Não foi nada de especial.

*

Naquele verão, o Civic Holiday1 apresentou-se em grande. Pela primeira vez, os meus pais iam deixar-me sozinha na cabana. Também era o fim de semana que eu tinha escolhido para tentar atravessar o lago outra vez. Os meus pais não queriam perder o meu feito atlético, que passara a ser um evento anual, mas iam a uma festa em Prince Edward County, onde um dos reitores da universidade tinha comprado uma quinta, que transformara numa casa vinícola. Era um evento imperdível e praticamente não falaram de outra coisa até ao momento em que se despediram no sábado de manhã cedo.

O ar estava pesado, prometendo uma chuva que provavelmente não cairia, se a primeira metade do verão fosse um barómetro. A relva em volta da casa dos Floreks já estava castanha há algum tempo, mas a Sue continuava determinada a manter os canteiros floridos. Apareceu no restaurante mais cedo do que era costume para fazer fornadas extra de pierogies para as multidões do fim de semana prolongado, e eu, o Charlie e o Sam fomos recrutados para regar todos os canteiros à hora de maior calor, antes de irmos para os nossos turnos.

Como na maior parte dos dias, fomos no Barco Banana até à doca da vila e depois fomos a pé para o restaurante. Eu vestia o costume — uma saia de ganga escura e uma blusa sem mangas — e estava toda transpirada quando lá chegámos. Molhei a cara com água fria na casa de banho, refiz o rabo de cavalo, alisei a franja que tinha ficado ondulada com a humidade e apliquei um pouco de rímel e batom cor-de-rosa, a minha rotina de maquilhagem habitual.

As mesas encheram assim que abrimos as portas, e, à hora em que os últimos clientes foram servidos, a Sue já estava exausta. O Julien disse-lhe que ela estava com um aspeto horrível e obrigou-a a ir-se embora, enquanto nós os quatro acabávamos de fechar.

— Sinto que estive dentro da água de cozer pierogies durante a noite inteira — disse eu ao Sam e ao Charlie quando terminei e me juntei a eles nas traseiras, onde me esperavam, sentados contra a parede, depois de terem terminado tudo na cozinha. Entreguei-lhes a parte deles das gorjetas.

— E eu estive em cima da água dos pierogies toda a noite — respondeu o Charlie, levantando-se para guardar o dinheiro no bolso e puxando pela t-shirt para me mostrar quão ensopada estava. —Não tens razão de queixa. Assim que chegarmos a casa, vou dar um mergulho no lago.

Não estava a brincar. Assim que atracámos o barco, saltou para a doca, desapertou os calções e tirou a t-shirt. A Sue tinha deixado a luz do alpendre acesa, mas na água estava escuro, e a lua tinha uma luminosidade pálida, apenas suficiente para eu ter um relance do traseiro do Charlie quando ele tirou os boxers e saltou para o lago.

— Credo, Charlie — disse o Sam, quando a cabeça dele veio à superfície. — Podes ao menos dar-nos um aviso?

— Estou só a fazer um favor à Percy. — Soltou uma gargalhada. — Vocês vêm, miúdos?

Eu já tinha nadado nua em noites muito, muito quentes, quando não conseguia adormecer, mas sempre sozinha. Cheirava a salsichas e couves e tinha a roupa colada ao corpo. Dar um mergulho parecia-me maravilhoso.

— Eu vou — afirmei, desapertando a camisa e ignorando o nó na barriga. — Virem-se enquanto eu me dispo.

Atirei a saia para o chão da doca. O Charlie nadou para mais longe, e, quando olhei para trás, vi o Sam a olhar embasbacado para o meu soutien branco.

— Desculpa — murmurou, virando-se e tirando também a t-shirt.

Afastei a saia, tirei as cuecas, desapertei o soutien e mergulhei na água. O Sam mergulhou segundos depois, numa visão de membros brancos. Mantivemos uma certa distância uns dos outros, mas eu nadei para um pouco mais longe e fiquei a boiar, de pernas e braços esticados, flutuando debaixo do céu noturno. Os meus pés formigavam de alívio. Com a água a ondular à minha volta, comecei a sentir os olhos pesados. A certa altura, alguém me atirou água e ouvi o Charlie dizer:

— Acho que está na hora de a Percy ir para a cama.

Foi a correr até casa em boxers e voltou com toalhas. O Sam acompanhou-me até casa.

— Preparada para nadar até ao outro lado amanhã? — perguntou, ao chegarmos aos degraus do alpendre.

Eu acenei e respondi:

— Talvez seja melhor ligares-me para me acordares.

Disse-lhe boa-noite, entrei na cabana e atirei-me nua para cima da minha cama.

*

De manhã, acordei com o som de alguém a bater à porta. Olhei de relance para o relógio: 08h01.

— Bastava um telefonema — resmunguei, depois de ter vestido um robe de algodão e ter descido as escadas para abrir a porta. O Sam esboçou um meio sorriso culpado e eu afastei-me para ele entrar.

— Achei que um alarme em pessoa seria mais eficaz. Ontem à noite parecias mesmo cansada. — E encolheu os ombros. Vestia uns calções de banho e uma camisola com capuz. O cabelo castanho-claro caía-lhe para a cara em desordem.

— Sabes, para alguém tão organizado como tu, tens um cabelo muito fora de controlo — resmunguei outra vez.

— Alguém acordou com os pés de fora — respondeu-me, descalçando as sapatilhas.

— Acabei de acordar e preciso mesmo de fazer chichi — repliquei, a caminho da casa de banho. — Se ainda não comeste nada, há cereais no armário e baguetes na caixa do pão.

Quando ainda estava na casa de banho, ouvi o telefone começar a tocar.

— Importas-te de atender? — gritei ao Sam. — Deve ser a minha mãe ou o meu pai.

Ao chegar à cozinha, ele estendeu-me o auscultador.

— Estou?

— Percy? É o Mason.

Os meus olhos fixaram-se no Sam.

— Olá. Não sabia que acordavas tão cedo — respondi, enquanto o Sam se virava para ver a torradeira. Não havia privacidade no piso térreo da cabana e o Sam ia ouvir a conversa toda.

— É hoje que vais nadar, não é? Queria desejar-te boa sorte.

O Mason ligava para a cabana cerca de uma vez por semana. Se não o fizesse, acho que me teria esquecido quase completamente dele, da mesma forma que, quando estava no lago, me esquecia de quase todas as coisas que estavam relacionadas com a minha vida na cidade.

— É, sim. O dia está um bocado cinzento — respondi, espreitando lá para fora. — Mas não parece haver vento, por isso, deve correr bem.

— Quem é que atendeu o telefone?

— Oh, foi o Sam. — E o Sam olhou por cima do ombro. Já tinha falado dele ao Mason, e ele sabia que éramos amigos. Só não lhe tinha dito que éramos melhores amigos e que eu alimentava uma paixão significativa por ele. — É ele que vai acompanhar-me enquanto eu nado, lembras-te?

O Sam apontou para si próprio como quem diz «Quem, eu?», e eu tive de conter o riso.

— Chegou cedo.

Não era uma acusação. O Mason era demasiado seguro de si mesmo para sentir ciúmes.

— Pois. — Ri-me, nervosa. — Queria ter a certeza de que eu saía da cama. Ontem tivemos uma noite movimentada.

— Bem, não te chateio mais. Só queria falar contigo antes de ires. E — pigarreou — dizer-te que tenho saudades tuas. Mal posso esperar para te ver, quando voltares. Quero abraçar-te, Percy.

Olhei para o Sam a espalhar queijo creme numa baguete. Tinha os braços musculados e cobertos de pelo claro e fino, que brilhava ao sol. Parecia grande na nossa pequena cozinha. Não havia nele nada do rapaz desajeitado de 13 anos que eu conhecera há três anos.

— Eu também — respondi, sentindo-me culpada por mentir assim que abri a boca. A verdade é que não tinha tido saudades nenhumas do Mason.

Quando desliguei, o Sam passou-me a baguete num prato.

Agradeci-lhe e sentei-me num banco a comer, enquanto ele preparava o seu pão. Quando terminou, encostou-se do outro lado do balcão, deu uma dentada na baguete e fitou-me enquanto mastigava.

— Era o famoso Buckley? — perguntou, de boca cheia. Olhei-o, inexpressiva.

— Mason.

— Liga-te muito?

Dei uma grande dentada no pão, para empatar.

— Todas as semanas — respondi, ao fim de um minuto. — Provavelmente, faz bem, caso contrário, poderia esquecer-me de que ele existe.

O Sam parou de mastigar e arqueou as sobrancelhas, surpreendido.

— Que cara é essa? — perguntei.

Ele engoliu e pigarreou antes de responder.

— Nada. Mas parece que não gostas assim tanto dele.

— Não é que não goste dele. Ele é muito querido.

— Ainda bem, Percy. Tem mesmo de ser — disse ele, com um toque de exasperação.

— Eu sei, a questão não é essa. — E olhei para baixo, para a minha baguete meio comida. — Já te disse antes. Gosto mais de outra pessoa.

— O mesmo de quem falaste no e-mail? — perguntou o Sam, baixinho, enquanto eu movia as sementes de sésamo do meu prato de um lado para o outro. — Percy?

— Sim, esse mesmo — repliquei, sem levantar os olhos.

— E ele sabe?

Fitei-o. Não conseguia perceber se ele sabia que estávamos a falar dele. Tinha uma expressão impassível.

— Não tenho a certeza. Ele pode ser difícil de ler.

Acabámos o pequeno-almoço em silêncio e eu fui vestir um fato de banho de natação que a minha mãe me tinha comprado. Ela decidira que a natação era o passatempo ideal para mim e queria que eu fizesse a prova na equipa de natação da escola, no outono. Eu estava a considerar fazê-lo.

Não se podia dizer que estivesse um dia bom — estava nublado e abafado, mas, pelo menos, o lago estava calmo.

— Pareces menos nervoso do que no ano passado — disse eu, quando chegámos à doca dos Floreks.

— É verdade que tive pesadelos durante uma semana antes de teres feito aquela travessia — respondeu ele. — Achei que te ias afogar e que eu não ia conseguir salvar-te. Mas agora já sei que consegues fazê-lo sem pestanejar.

Tirou os sapatos e despiu a camisola pela cabeça, deixando-os na doca. Rodou os ombros para trás em círculos durante uns instantes.

— E agora também tens isso tudo — disse eu, fazendo um gesto em direção ao seu tronco, onde as sombras lhe definiam as curvas do peito e da barriga. Ele riu-se.

— Então, e se primeiro fizermos algumas voltas de aquecimento juntos e depois tu continuas?

— Como queiras, senhor treinador.

A certa altura, quando estávamos dentro de água, a Sue e o Charlie apareceram na doca com os seus cafés. Acenei-lhes enquanto o Sam preparava o barco. Depois, erguendo os polegares um para o outro, partimos.

Não foi fácil, mas também não foi tão difícil como no ano anterior. Não tive de mudar de estilos nem de abrandar — nadei de uma maneira firme e ritmada. Tinha as pernas cansadas, mas não as sentia como se estivessem prestes a arrastar-me para o fundo do lago com o seu peso, e os meus ombros doíam-me, mas não de forma insuportável. Quando cheguei à praia, sentei-me à beira-mar a recuperar o fôlego, enquanto o Sam puxava o barco para terra.

— Sete minutos mais rápida do que no ano passado! — anunciou, saindo do barco com uma geleira, que pousou na areia, e sentando-se ao meu lado. Tinha a pele húmida de suor. — Acho que a tua mãe tem razão, devias entrar na equipa de natação. Nem sequer paraste para recuperar o fôlego!

— Diz o tipo que praticamente corre uma maratona todas as manhãs — arfei.

— Exato. — Ele riu-se. — É por isso que sei.

Passou-me uma garrafa de água fria e engoli metade, deixando o resto para ele. O vento começou a levantar-se e o ar parecia ficar mais condensado.

— Parece que vai finalmente chover — disse eu, vendo a brisa dançar entre as folhas de um choupo.

— Tem ar disso. A minha mãe diz que deve vir aí uma grande tempestade — disse ele, pondo os braços em volta dos joelhos. — É pena ela precisar de mim para um turno extra, senão, esta noite, podíamos ver um filme de terror.

— O Projeto Blair Witch! — sugeri.

— Isso! Como é que nunca o vimos?

— Claro que eu já vi, muitas vezes — respondi.

— Obviamente.

— Mas contigo nunca.

— Uma grande falha.

— Enorme.

Um sorriso rasgado aflorou-nos aos lábios.

Estava quase catatónica quando cheguei à cabana, a barriga a rebentar depois de um dos pequenos-almoços épicos da Sue, e o corpo esgotado. Adormeci profundamente no sofá e só acordei depois das cinco, o que queria dizer que o Sam já devia estar na Taberna, enquanto eu tinha a noite de folga. Na cidade, os meus pais deixavam-me sozinha em casa muitas vezes, mas, no lago, estavam sempre por perto. Na noite anterior, tinha adormecido tão depressa que mal tinha notado a sua ausência. Mas agora não tinha a certeza do que fazer sozinha.

Ensonada, fui à casa de banho passar a cara por água e depois bebi-a com as mãos em concha. Fui até ao lago com um caderno na mão e sentei-me numa das espreguiçadeiras no início da doca. Desde a manhã, o vento tinha aumentado e já criava ondas de espuma branca na água cinzenta. Escrevi no papel algumas ideias para a minha próxima história, mas, pouco depois, começaram a cair pingas de chuva no caderno e tive de fugir para casa.

Fiz um cachorro-quente para o jantar e juntei-lhe arroz e salada de feijão, que a minha mãe tinha deixado feitos. Entediada, dei uma volta à coleção de DVD até encontrar o Projeto Blair Witch.

Foi uma péssima escolha. Ficara assustada de todas as vezes que o vira, e nunca o tinha visto sozinha. Numa cabana. No meio do bosque. Numa noite escura e tempestuosa. A meio do filme, parei-o, fui trancar as portas e fiz uma vistoria à cabana, verificando os armários, atrás das camas e atrás da cortina do duche. Assim que voltei a carregar no comando, soou um trovão fortíssimo que fez tremer a cabana, e, logo de seguida, viram-se os relâmpagos. A cada um que brilhava, eu esperava ver uma cara horrível colada à janela da porta das traseiras. Quando o filme acabou, a tempestade já tinha amainado, mas continuava escuro e a chover, e eu estava a passar-me completamente.

Fiz pipocas e pus O Meu Tio Solteiro, na esperança de que uma comédia me distraísse, mas nem o John Candy e o Macaulay Culkin conseguiram acalmar-me. O vento também não ajudava, atirando ramos e pedaços de casca de árvore contra o telhado, numa sinfonia de estrondos maiores e menores. Ainda por cima, credo, eu nunca tinha reparado que a cabana estalava tanto. Já passava das onze quando não aguentei mais e liguei para casa dos Floreks.

O telefone mal tinha tocado quando o Sam atendeu.

— Olá. Desculpa estar a ligar tão tarde, mas estou a passar-me um bocado. O vento não para de fazer barulhos esquisitos e eu acabei de ver o Blair Witch sozinha, o que foi bastante estúpido. Nunca vou conseguir dormir aqui sozinha. Posso dormir aí?

— Podes dormir ao pé de mim. Ou debaixo de mim — disse uma voz arrastada do outro lado. — O que tu quiseres, Pers.

— Charlie? — pergunto.

— É o próprio — respondeu ele. — Desiludida?

— Nada disso — repliquei. — Nunca me senti tão excitada.

— És uma mulher cruel, Percy Fraser. Deixa-me acabar a minha outra chamada e já chamo o Sam.

O Sam chegou à minha porta em menos de cinco minutos, debaixo de um chapéu de chuva. Agradeci-lhe por me ter vindo buscar e pedi desculpa por ser tão infantil.

— Não me importo nada, Percy. — E pegou na mochila para onde eu tinha atirado a escova dos dentes e um pijama.

Revirou os olhos quando lhe perguntei se tinha trazido uma lanterna, porque «desde quando é que ele precisava de uma lanterna?», e, quando partimos, dei-lhe o braço e mantive-me o mais perto dele possível. Quase gritei quando ouvi um restolhar no bosque e, depois, um ramo a partir-se. Pus o braço livre em volta da sua cintura e colei-me ao seu corpo.

— Provavelmente, é um porco-espinho ou um guaxinim — disse ele, a rir-se, mas eu permaneci fortemente agarrada a ele até chegarmos ao alpendre.

— Temos de ser silenciosos — murmurou, enquanto nos esgueirávamos lá para dentro. — A minha mãe já está a dormir. Foi uma noite movimentada.

— Não vais trancá-la? — perguntei, apontando para a porta que ficou atrás de nós quando nos dirigimos à cozinha.

— Nunca a trancamos. Nem quando saímos todos — respondeu, mas, ao ver o terror sincero nos meus olhos, voltou atrás e deu a volta à chave.

O piso térreo estava às escuras e o som longínquo do Charlie a ver televisão na cave subia pelas escadas. O Sam serviu dois copos de água e eu estudei as sombras que preenchiam as cavidades do seu rosto. Não conseguia lembrar-me de quando se tinham tornado tão visíveis.

— Eu fico cá em baixo no sofá e tu podes ficar na minha cama — afirmou, passando-me um dos copos.

— Eu não quero mesmo dormir sozinha — sussurrei. — Não podemos dormir os dois no teu quarto?

O Sam passou a mão pelo cabelo, a pensar.

— Sim. Temos um colchão de praia algures na cave. Demora um pouco a encher, mas vou buscá-lo.

Era tarde e eu não queria chatear o Sam mais do que já tinha feito até então, mas, quando sugeri que partilhássemos a sua cama, ele pareceu atrapalhado.

— Juro que não dou pontapés — prometi. Ele cerrou o maxilar e mexeu outra vez no cabelo.

— Pronto, está bem — concordou, mas tinha ficado desconfortável. — Mas tenho de ir tomar banho. Cheiro a cebola e óleo de fritar.

*

Lavei os dentes na casa de banho do piso térreo, vesti os calções e o top que normalmente usava como pijama, penteei o cabelo numa trança grossa e, depois, fiquei à espera do Sam no seu quarto, que estava arrumado e organizado, embora ele não soubesse que ia ter convidados. A nossa fotografia continuava na sua secretária e o jogo Operação estava colocado no topo da prateleira, perto de uma fotografia dele com o pai. Eu tinha-me ajoelhado para ver melhor a sua coleção do Tolkien quando ele entrou e fechou suavemente a porta.

— Nunca li nada disto — disse eu, sem olhar para ele. Ele ajoelhou-se ao meu lado e tirou O Hobbit. Tinha o cabelo húmido e cheirava a sabonete.

— Tenho a certeza absoluta de que vais odiá-lo, mas não me importo de to emprestar. — Entregou-me o livro. — Há muita cantoria.

— Hum… vou experimentar, obrigada — respondi. Levantámo-nos ao mesmo tempo, o Sam mais alto do que eu. Quando olhei para ele, tinha a cara com um tom cor-de-rosa bastante avermelhado.

— Costumas dormir com esse top vestido? — perguntou. Baixei o olhar, confusa. — É um pouco decotado, vendo daqui. — Engasgou-se.

O top era branco, com alças finas, e, pensando bem, era uma peça de roupa altamente reveladora. Um calor assanhado subiu-me pelo peito e pelo pescoço.

— Resolvias esse problema se não olhasses daí — respondi baixinho, embora uma parte de mim, uma grande e esfomeada parte, estivesse entusiasmada.

Ele passou a mão pelo cabelo, despenteando-o.

— Sim, desculpa. Elas estavam… mesmo aí.

Observei o seu pijama confortável. Parecia-me demasiada roupa para uma noite de verão tão quente.

— É isso que normalmente usas para dormir?

— Sim… no inverno, sim.

— Mas sabes que estamos a meio do verão, certo?

Ele mudou o peso do corpo de um pé para o outro. Foi aí que me apercebi de que o Sam podia estar nervoso. O Sam quase nunca ficava nervoso.

— Sei, sim. Quando faz mais calor, eu… hum. — Esfregou o pescoço — Eu normalmente durmo de boxers, sabes…

— Pooois — murmurei. — De pijama, então.

Olhámos os dois para a cama de solteiro.

— Isto não vai ser esquisito, pois não? — perguntei.

— Não — respondeu ele, sem confiança nenhuma.

O Sam puxou o lençol azul-marinho e eu entrei. Não tinha a certeza de qual seria o protocolo ali. Devia virar-me para a parede? Ou isso seria má educação? Se calhar, devia ficar de costas. Ainda não me tinha decidido quando o Sam se sentou ao meu lado e os nossos corpos se tocaram do ombro à anca. Conseguia cheirar o seu hálito a pasta de dentes de menta.

— Queres a luz acesa para ler? — perguntou, olhando para o livro que eu ainda segurava.

— Na verdade, ainda estou bastante cansada da natação de hoje — disse, passando-lhe o livro. Ele pousou-o na mesa de cabeceira e apagou a luz.

Decidi que ficar deitada de costas era o melhor e escorreguei pela cama até pousar a cabeça na almofada. O Sam fez o mesmo. Estávamos apertados um contra o outro. Permaneci deitada de olhos abertos durante uns bons dez minutos, com o coração aos saltos e a pele arrepiada em todos os pontos onde tocava na pele dele.

— Estou mesmo com calor — sussurrou ele. Pelos vistos, nenhum de nós estava a dormir.

— Então tira o pijama — sibilei. — Está tudo bem. Eu já te vi de calções. Os boxers não são muito diferentes.

Ele hesitou durante alguns segundos, depois, tirou as calças e puxou a camisola por cima da cabeça. Não tinha a certeza, mas pensei que ele tinha dobrado a roupa antes de a pousar no chão. Continuávamos acordados quando o Sam virou a cabeça para mim, com a sua respiração a tocar-me na cara.

— Ainda bem que isto não é esquisito — afirmou. Eu desatei a rir. Ele tentou silenciar-me, enquanto também se ria, mas isso só piorava as coisas para mim. Ele virou-se na cama para o meu lado e pôs-me a mão sobre a boca. Todas as células do meu corpo paralisaram.

— Vais acordar a minha mãe e, acredita, não queres que isso aconteça — murmurou. — Estava tão cansada que até levou o copo de vinho para a cama com ela.

Tirou lentamente a mão da minha boca e eu lutei contra a vontade de voltar a pô-la no mesmo sítio. Ficámos deitados em silêncio, com ele virado para mim, até que ele falou novamente.

— Percy? — chamou ele. E eu virei-me para o lado dele. Mal conseguia aperceber-me da forma do seu corpo; as noites no Norte davam um novo significado à palavra escuridão.

— Lembras-te de quando te contei que tinha beijado a Maeve?

Senti o coração a vibrar como uma bateria.

— Sim — disse baixinho, sem ter a certeza se queria ouvir o resto.

— Não significou nada. Quer dizer, não gosto mesmo dela.

A pergunta saiu-me como um reflexo:

— Então, porque é que a beijaste?

— Fomos juntos ao baile de fim de ano e a última balada da noite começou a tocar… e, não sei, pareceu-me o gesto esperado.

— Foste tu a convidá-la para o baile?

Ele contara-me que tinha ido ao baile, mas não dissera que tinha ido acompanhado.

— Ela é que me convidou — esclareceu. — Sei que não te disse, mas como nós nem costumamos falar destas coisas... Não tinha a certeza.

Matutei naquilo um bocado e depois perguntei:

— Foi esse o teu primeiro beijo? — O Sam ficou calado. — Não vais contar-me? Estavas lá quando foi o meu primeiro.

— Não — retorquiu.

— Não, não foi o teu primeiro beijo ou não, não me vais contar?

— Não foi o meu primeiro beijo. Já tenho 16 anos, Percy.

— Quando foi? — questionei, com a voz rouca.

— De certeza que queres saber? — retorquiu ele. — É que pareces um pouco estranha.

— Sim — sibilei, mas só me apetecia gritar. — Diz-me.

— Foi no ano passado. Com uma miúda da escola. Ela convidou-me para irmos andar de skate, depois puxou-me para as bancadas e beijou-me. Foi um bocado louco.

— Parece psicótica.

— Sim, não voltámos a sair juntos — respondeu ele, e fez uma pausa. — Mas saí umas quantas vezes com a Olivia, amiga da irmã do Jordie.

A irmã do Jordie é um ano mais velha do que nós.

— E beijaste-a? — A minha voz saía estrangulada. E tinha a cabeça a andar à roda. Três raparigas. O Sam tinha beijado três raparigas. Tinha beijado uma rapariga do 11.º ano. Não devia estar surpreendida. Ele era lindo, simpático e inteligente, mas também era meu, meu, todo meu. A ideia de ele conviver com outra rapariga e, mais ainda, beijá-la, deixava-me nauseada.

— Hum, sim. Beijámo-nos — concordou, hesitante. — E curtimos algumas vezes.

Curtiste com uma miúda do 11.º ano? — guinchei.

— Sim, Percy. Ficas muito surpreendida? — Parecia ofendido. — Tu não curtes com o teu namorado?

Respirei fundo.

— Ele. Não. É. Meu. Namorado — sussurrei, como se gritasse. Empurrei o seu ombro uma vez, depois outra, e ele agarrou-me no pulso, segurando-o contra o seu peito nu.

— E tu não curtes com o teu não namorado? — insistiu.

— Preferia curtir com outra pessoa. — Mal as palavras saíram da minha boca, arrependi-me imediatamente do que tinha dito.

— Quem? — perguntou ele. Senti a pele a queimar de adrenalina, mas mantive-me de boca fechada. Ele apertou-me levemente o pulso, e eu interroguei-me se ele conseguiria sentir a minha pulsação rápida. — Quem, Percy? — questionou de novo. Resmunguei.

— Não me obrigues a dizer — respondi tão baixinho que não tive a certeza de ter falado, mas, então, senti o hálito quente do Sam na cara e senti-o pressionar a testa contra a minha.

— Diz-me, por favor — suplicou suavemente. Eu estava assoberbada pela sua proximidade: o cheiro do champô, o cabelo húmido, o calor que emanava do corpo dele.

Engoli em seco e depois sussurrei:

— Acho que já sabes.

O Sam ficou calado, com a boca a centímetros da minha, mas começou a mover o polegar pelo meu pulso.

— Quero ter a certeza — murmurou.

Fechei os olhos, respirei fundo e deixei que as palavras saíssem da minha boca.

— Preferia beijar-te a ti.

Assim que o admiti, os lábios do Sam colaram-se aos meus, com força e urgência. Senti-me a saltar de um penhasco para dentro de mel quente. Com a mesma rapidez, afastou-se, mantendo a testa colada à minha e respirando de forma rápida e leve.

— Tudo bem? — perguntou.

Abanei a cabeça.

— Mais.

Ele aproximou-se de mim, dando-me beijos suaves e doces nos lábios, mas não estava suficientemente perto e, quando me largou o pulso, pus-lhe a mão no cabelo, puxando-o para mim. Passei a língua pela ruga do seu lábio inferior e depois puxei-a para a boca. Ele gemeu e, de repente, as suas mãos estavam por todo o lado ao mesmo tempo, nas minhas costas, nas minhas ancas, na minha barriga. E então a sua língua encontrou-se com a minha, mentolada e endiabrada. Enrolei uma perna na perna dele e juntei as nossas ancas. Um gemido doloroso e desesperado saiu do fundo da garganta do Sam, e ele agarrou-me de lado, criando um espaço entre nós.

— Estás bem? — perguntei. Ele não respondeu. — Sam?

— Estou a acenar — disse ele.

— Desculpa — sussurrei. — Entusiasmei-me um pouco.

— Não peças desculpa, eu gostei — afirmou, respirando fundo. Depois, fez uma pausa e acrescentou: — Mas acho que é melhor tentarmos dormir. Senão sou eu que me entusiasmo.

Acenei com a cabeça.

— Percy? — chamou ele.

— Estou a acenar.

Ele beijou-me outra vez. Ao princípio, devagar, a língua quente e sugando suavemente. Gemi, a querer mais, mais, mais, e as minhas mãos percorreram as suas costas, até ao cós dos boxers. Em resposta, ele agarrou-me o rabo e encostou-me a ele. Senti a sua excitação e colei-me a ela. Ele inspirou e ficou paralisado.

— Temos de parar, Percy — disse. Antes que eu pudesse perguntar se tinha feito algo de errado, ele rouquejou: — Estou mesmo perto.

Suspirei de alívio.

— Está bem.

Ele acariciou a minha cara com as pontas dos dedos.

— Então… dormimos?

— Ou algo parecido. — Ri-me baixinho. Depois, virei-me para a parede, com um sorriso na cara. Acabei por adormecer e, antes de perder a consciência, ouvi o Sam murmurar:

— Também prefiro beijar-te a ti.

*

De repente, alguma coisa me acordou. Abri os olhos, sem saber bem onde estava, sentindo um peso ao meu lado. Virada para a parede, pestanejei algumas vezes antes de me recordar.

Estava na cama do Sam.

Com o Sam.

Que me tinha beijado.

Que tinha um braço à minha volta.

Ouviram-se duas batidas fortes na porta. Engasguei-me. A mão do Sam tapou-me a boca.

— Sam, são nove horas — chamou a Sue. — Só quero ter a certeza de que não queres ir correr.

— Obrigado, mãe. Vou já descer — respondeu ele. Ficámos sossegados até os passos da Sue se afastarem da porta, e, depois disso, o Sam afastou a sua mão da minha boca, mas manteve o braço a rodear-me. Voltei a enroscar-me nele e senti-o duro contra as minhas costas.

— Desculpa — sussurrou. — Costuma acontecer quando acordo.

— Então, não tem nada que ver comigo? O meu ego é capaz de ficar ofendido com isso.

— Desculpa — repetiu.

— Para de pedir desculpa — sibilei-lhe.

— Está bem, desc… — Encostou a cabeça às minhas costas e abanou-a. — Estou nervoso.

As palavras ficaram abafadas na minha pele.

— Eu também — concordei. — Mas não me importo. Até me sabe bem.

— A sério?

— A sério. — Pressionei-me outra vez contra ele. Ele praguejou baixinho.

— Percy — disse, agarrando-me as ancas e afastando-as dele. — Temos de ir tomar o pequeno-almoço com a minha mãe, e vou precisar de um minuto.

Sorri para mim própria e encarei-o. Tinha o cabelo mais despenteado do que o habitual e os seus olhos azuis estavam toldados de sono. Estava giro. O Sam também me estudou, movendo os olhos pelo meu rosto e, depois, rapidamente, até ao meu peito.

— Bom dia — disse-lhe.

— Gosto desta camisola. — Ele riu-se, passando o dedo por uma das alças.

— Tarado. — Ri-me também, e ele deu-me um beijo forte, longo e profundo, que me deixou sem fôlego quando se afastou.

— Este é para o caminho — disse e, de seguida, acrescentou: — Vou arranjar-te uma camisola. O Charlie não precisa de apreciar o teu pijama.

Desci as escadas atrás do Sam, vestindo uma das camisolas dele, que me chegava a meio das pernas. A Sue estava sentada no seu lugar, à mesa da cozinha, num robe floral, o cabelo estava apanhado num rabo de cavalo no alto da cabeça, a beber café e a ler um romance. Tinha um leve sorriso nos lábios. Que desapareceu assim que nos viu entrar pela porta da cozinha.

— A Percy dormiu cá esta noite — explicou o Sam. — Ligou depois de tu já teres ido dormir. Ficou em pânico depois de se pôr a ver filmes de terror sozinha em casa.

— Espero que não haja problema, Sue. Não queria mesmo ficar sozinha lá em casa.

A Sue olhou de um para o outro.

— E onde é que ela dormiu?

— Na minha cama — respondeu o Sam. Em vez de admitir que um rapaz tinha dormido na minha cama, eu teria mentido aos meus pais. Mas o Sam não costumava mentir.

— Sam, prepara lá duas taças de cereais — pediu a Sue. Ele obedeceu e eu sentei-me à frente dela, desconfortável, a fazer conversa sobre a viagem dos meus pais. Quando o Sam veio para a mesa, ela preparou-se para falar.

— Percy, sabes que és sempre bem-vinda aqui. E tu, Sam, sabes que confio em ti. No entanto, tendo em conta a quantidade de tempo que passam juntos, e agora que estão a ficar mais velhos, acho que está na altura de termos uma conversa séria.

Olhei de relance para o Sam. Estava de boca aberta. Retorci a pulseira por baixo da mesa.

— Mãe, a sério que não há necessi… — começou o Sam, mas a Sue cortou-lhe a frase.

— Vocês são demasiado novos para isto tudo — disse ela, olhando para nós. — Mas quero ter a certeza de que se alguma coisa acontecer entre vocês, ou com outras pessoas — acrescentou, levantando as mãos quando o Sam tentou interrompê-la —, acontecerá em segurança e com respeito mútuo.

Fitei a taça de cereais. Não havia nada de que discordar.

— Percy, o Sam disse-me que andas a sair com um rapaz mais velho, em Toronto.

Levantei os olhos e olhei para ela.

— Sim, mais ou menos — murmurei.

A Sue contraiu os lábios, com alguma desilusão a bailar-lhe nos olhos.

— Gostas desse rapaz?

— Mãe! — exclamou o Sam, vermelho de vergonha.

A Sue calou-o com um olhar e depois virou-se para mim. Eu também conseguia sentir os olhos do Sam em mim.

— Ele é simpático — concedi, mas a Sue ficou à espera de mais. — Tenho quase a certeza de que ele gosta mais de mim do que eu gosto dele.

A Sue estendeu a mão e pô-la sobre a minha, fixando o olhar em mim. Percebi onde é que o Sam tinha ido buscar aquele olhar.

— Não me admira. És uma rapariga querida e inteligente. — Depois, apertou-me a mão e inclinou-se para trás. Continuou a falar, com uma voz mais grave: — Não quero que sintas, nunca, que tens de fazer alguma coisa que não queres com um rapaz, seja ele quem for, por mais simpático que seja. Não há pressa. E alguém que queira apressar as coisas não vale essa pressa. Faz sentido?

Respondi-lhe que sim.

— Não aceites tretas de nenhum rapaz, nem dos meus próprios filhos, está bem?

— Está bem — sussurrei.

— E tu — disse ela, virando-se para o Sam —, vale a pena esperar pelas melhores raparigas. A confiança e a amizade vêm primeiro, depois vem o resto. Só tens 16 anos, estás prestes a começar o 11.º ano. E a vida, com sorte, é longa. — Um sorriso triste aflorou-lhe aos lábios. — Pronto, já chega de conversa de mãe — concluiu, pondo as mãos sobre a mesa e levantando-se da cadeira. — Ah, mais uma coisa! Se a Percy quiser dormir cá outra vez, tu, meu querido filho, vais para o sofá.

*

Os meus pais regressaram, tal como os dias quentes, tornando o ar fino e poeirento. Um pequeno fogo florestal começou no pico rochoso do outro lado da cabana. Vimos o fumo a subir do arvoredo e, depois, vimos pessoas de barco aproximarem-se para ajudarem a debelá-lo. Eu, o Sam e o Charlie e eu fomos até lá no Barco Banana e ancorámos junto à margem. Fiquei à espera enquanto os rapazes se juntavam à cadeia de baldes de água. As chamas só tinham a altura dos tornozelos, mas quando o Sam e o Charlie voltaram ao barco, depois de o fogo estar extinto, vinham tão empolgados consigo próprios que parecia que tinham salvado um bebé de um edifício em chamas.

Eu e o Sam nadámos, trabalhámos e falámos de quase tudo — do quanto ele estava cansado da vida e do pensamento daquele lugar pequeno, de eu estar a pensar em entrar na equipa de natação, dos pontos mais interessantes dos filmes da saga Saw —, mas nunca falámos da noite em que nos beijáramos. Eu não tinha a certeza de como abordar o assunto. Esperava pelo momento perfeito.

O Mason ligava de vez em quando para o telefone fixo da cabana, mas só falávamos durante alguns minutos, até a conversa morrer. Depois de uma das nossas conversas, o meu pai olhou para mim por cima dos óculos e disse:

— Sempre que falas com esse rapaz, parece que estás a tentar fazer algo na casa de banho depois de teres comido demasiado queijo.

Que nojo. Mas ele tinha razão. Só que eu não queria acabar com o Mason por telefone. Estava à espera de voltar à cidade.

O tempo mudou na terceira semana de agosto. Uma espessa camada de nuvens escuras espalhou-se pela zona e as suas formas inchadas encharcaram tudo, desde Algonquin Park até Otava. Os veraneantes das cabanas fizeram as malas e regressaram à cidade. Uma leve neblina cobriu o lago, fazendo com que tudo parecesse ser a preto-e-branco. Até os montes verdes do outro lado do lago pareciam cinzentos, como se tivessem sido enrolados em gaze. O meu pai não apreciava as atividades ao ar livre e ficou contente por nos ter a todos dentro de casa, onde mantinha a lareira acesa para afastar a humidade. Eu e a minha mãe enrolávamo-nos no sofá. Eu trabalhava na minha história, enquanto ela analisava meia dúzia de livros que considerava acrescentar à lista de leitura do seu curso de Relações de Género. O Sam e o meu pai estavam sentados à mesa, e ele entretinha-se com o seu puzzle de mil peças sobre iscos de pesca, enquanto o meu pai lhe falava animadamente sobre Hipócrates e a antiga medicina grega. Eu desliguei da conversa, mas o Sam sentia-se cativado. Tal como trabalhar num restaurante me tinha dado um sabor de liberdade, sob a forma de um salário, parecia-me que falar com o meu pai abria ao Sam uma janela para um mundo maior de possibilidades. Acho que, de certa maneira, eu também lhe dei isso. Ele adorava quando eu lhe falava da cidade e dos sítios diferentes que visitara: os museus, as grandes salas de teatro e os auditórios para concertos.

Depois de seis dias seguidos de chuva forte, acordei com o sol a brilhar através dos triângulos de vidro do teto do meu quarto, e o reflexo do lago a bailar nas paredes e no teto. O Sam levou-me para uma caminhada pelo bosque, seguindo o leito de um riacho que tinha estado seco durante todo o verão, mas que agora borbulhava por entre as rochas e os ramos que se atravessavam no seu caminho. O tempo estava mais fresco depois da chuva, e eu vestira calças de ganga e a minha camisola da Universidade de Toronto. O Sam tinha vestido uma camisa axadrezada e arregaçado as mangas por cima dos cotovelos. O solo estava húmido e os cogumelos tinham nascido por todo o lado na floresta, uns com chapéus alegres, amarelos e brancos, e outros lisos como panquecas.

— Cá estamos — anunciou o Sam, depois de termos atravessado uma vegetação densa durante cerca de 15 minutos. Espreitei em volta por cima do seu ombro e vi que a encosta suave que tínhamos acabado de subir se transformava num terreno plano, onde brilhava um pequeno lago. No meio dele, estava caída uma árvore coberta de musgo de um tom esmeralda e líquenes pálidos.

— Gosto de vir aqui na primavera, quando a neve acabou de derreter — disse ele. — Nem imaginas o rugido que a água deste regato faz.

Trepou para cima da árvore e sentou-se, alisando o lugar ao lado dele. Baloicei até chegar lá e ficámos sentados, com as pernas a abanarem por cima da água.

— É lindo — afirmei. — Estou quase à espera de que saia dali um gnomo ou uma fada.

Apontei para um toco de árvore, grosso e apodrecido, com cogumelos castanhos na base. O Sam riu-se.

— Nem acredito que, para a semana, já vamos voltar à cidade — disse eu, baixinho. — Não me quero ir embora.

— Também não quero que vás.

Ficámos a ouvir o gorgolejar do ribeiro e a enxotar mosquitos, até que o Sam falou de novo.

— Estive a pensar — começou, com a voz trémula e baixa, mas os olhos firmes.

Já sabia o que aí vinha. Talvez até já estivesse à espera. Baixei a cabeça para que o cabelo escuro me cobrisse o rosto e estudei os nossos pés.

— Sobre nós. Estive a pensar sobre nós — continuou, e empurrou o meu pé com o dele. Espreitei para ele, a humidade tinha-lhe encaracolado o cabelo nas pontas, e sorri fracamente. — Não imaginas quantas vezes tenho pensado em como te beijei naquela noite, no meu quarto.

Fez-me um olhar tímido e eu voltei a olhar para baixo.

— Achas que foi um erro, não achas?

— Não! Não é nada disso — respondeu, e pôs a mão sobre a minha, enlaçando os nossos dedos. — Foi incrível. Sei que isto soa foleiro, mas foi a melhor noite da minha vida. Penso nisso a toda a hora.

— Eu também — murmurei, fitando o nosso reflexo no lago, lá em baixo.

— Eu e tu somos especiais — afirmou. — Não há outra pessoa com quem eu queira estar da forma como quero estar contigo. Não há outra pessoa com quem eu queira falar. E não há outra pessoa que eu queira beijar. — Fez uma pausa e a minha barriga deu uma volta. — Mas és mais importante para mim do que só beijar. E preocupa-me que, se apressarmos esse lado da coisa, acabemos por destruir tudo o resto.

— Então, o que queres dizer? — perguntei, observando-o. — Queres que sejamos só amigos?

Ele respirou fundo.

— Acho que não estou a dizer isto bem. — Soou frustrado consigo próprio. — Eu quero dizer que tu não és só uma amiga para mim… és a minha melhor amiga. Mas estamos meses sem nos vermos e somos muito novos, e eu nunca tive uma namorada. Não sei estar numa relação e não quero estragar tudo contigo. Quero ser tudo, Percy. Mas só quando estivermos prontos.

Tive de lutar contra as picadas nos olhos. Eu estava pronta. Eu queria tudo, naquele momento. Aos 16 anos, o Sam era tudo o que eu queria. Sabia-o na altura e acho que também o sabia naquela noite, três anos antes, quando eu e o Sam nos sentáramos no chão do meu quarto a comer Oreos e ele me pedira para lhe fazer uma pulseira. Fitei o pulso dele.

Ele afastou-me o cabelo da cara e eu fechei os olhos com força.

— Podes olhar para mim, por favor? — Abanei a cabeça. — Percy — pediu ele, enquanto eu limpava uma lágrima com a manga. — Não quero colocar em cima de nós uma pressão que não consigamos aguentar. Ambos temos grandes planos. O 11.º e o 12.º anos vão decidir para que universidades podemos ir e se vou conseguir uma bolsa de estudo ou não.

Eu sabia que ter boas notas era importante para o Sam, o quanto o seu curso seria caro e que ele contava ter um prémio académico para o ajudar com as propinas.

— Então, voltamos a ser amigos como se não tivesse acontecido nada e, depois, o quê? Arranjamos outros namorados e namoradas? — questionei-o, olhando-o de relance. Vi o sofrimento e a preocupação espalharem-se pelo seu rosto, mas estava zangada e envergonhada, embora, lá no fundo, soubesse que o que ele dizia fazia sentido. Eu também não queria estragar a nossa relação. Só achei que conseguíamos lidar com tudo aquilo. O Sam era o rapaz mais maduro que eu conhecia. Era perfeito.

— Não vou procurar uma namorada — respondeu, o que me fez sentir ligeiramente melhor. — Mas sei que seria um grande idiota se te dissesse que acho que não devemos estar juntos nesta altura e, de seguida, te pedisse para não andares com ninguém.

— De qualquer forma, és um grande idiota — declarei. Queria fazer uma piada, mas soube-me a café queimado na língua.

— Estás a falar a sério?

Abanei a cabeça, tentando sorrir.

— Acho que és o máximo — respondi, com a voz embargada. O Sam envolveu-me com os braços e abraçou-me com força. Cheirava a amaciador de roupa, a terra húmida e a chuva.

— Juras? — perguntou, com as palavras abafadas pelo meu cabelo. Procurei a sua pulseira às cegas e apertei-a. — Também te acho o máximo — murmurou ele. — Nem imaginas quanto.