Eu e o Sam estamos deitados na jangada, com os rostos virados para o sol e os olhos fechados. Estou perdida num sonho — das suas mãos nas minhas ancas e dos seus dedos nos meus gémeos e do «Ainda és a mulher mais bonita que conheci» — quando ouvimos um grito que vem de terra.
— Mas que bela visão.
Sento-me, protegendo os olhos com a mão. O Charlie está na margem. Consigo ver as suas sardas dali e não consigo evitar sorrir de volta. Aceno-lhe.
— Miúdos, vocês têm fome? — pergunta. — Estou a pensar ligar o grelhador.
Olho para o Sam, que já está sentado ao meu lado.
— Não preciso de ficar — digo-lhe. Ele fita-me rapidamente.
— Não sejas estranha — responde. — Comida é uma ótima ideia — grita ele para o Charlie. — Já aí vamos.
O Charlie está no pátio a acender o grelhador quando nos aproximamos dele. Tenho uma toalha à volta dos ombros e o Sam esfrega o cabelo para o secar. Antes de o Charlie se virar para mim, observo os músculos do seu tronco. Quando se vira, os seus olhos iluminam-se como pirilampos. Tem o cabelo cortado muito rente, à escovinha. O seu maxilar quadrado parece feito de aço. Contrasta muito com a doçura das suas covinhas e dos seus bonitos lábios aveludados. Está descalço e veste uns calções verde-azeitona e uma camisa de linho branca, com as mangas enroladas e os três primeiros botões desapertados. Não é tão alto como o Sam, mas tem corpo de bombeiro, e não de banqueiro. Continua lindo como uma estrela de cinema.
«Os Rapazes do Verão cresceram excecionalmente bem.» O guincho da Delilah Mason retine nos meus ouvidos e arrepanha-me as entranhas.
O Charlie observa o Sam antes de me abraçar com força, aparentemente sem se preocupar com o meu biquíni molhado.
— Persephone Fraser — diz ele enquanto se afasta, sacudindo a camisa. — Já não era sem tempo, raios.
O Charlie grelha algumas salsichas que trouxe da Taberna e adiciona pimentos grelhados, couve, mostarda e uma salada grega que parece pronta a ser fotografada para uma revista de culinária. Há algo diferente no Charlie. Presta uma atenção ao Sam que nunca lhe dera quando éramos miúdos. De vez em quando, lança um olhar demorado ao Sam, como se estivesse a certificar-se de que ele está bem, e anda num vaivém entre nós os dois, como se fossemos algum tipo de enigma que tentasse decifrar. Os seus olhos ainda dançam como folhas de primavera ao sol e continua a ter um sorriso fácil, mas perdeu aquela leveza que tinha quando éramos mais novos. Parece triste e talvez um pouco no limite, o que faz sentido para mim, tendo em conta as circunstâncias.
— E então, Charlie? — começo, com um sorriso, enquanto comemos. — Já conheci a Taylor. Fala-me da mulher com quem andas este mês.
Na minha cabeça, pareceu-me algo divertido, mas o Charlie fixou um olhar tenso no Sam. Percebo que o irmão faz um movimento de cabeça impercetível ao Charlie, e este suaviza o maxilar.
— Só podes estar a brincar — murmura o Charlie.
Olham um para o outro em silêncio e, depois, o Charlie dirige-se a mim:
— Sem namorada de momento, Pers. Interessada?
Pisca-me o olho, mas a sua voz é inexpressiva. Sinto-me corar abruptamente.
— Claro. Deixa-me só beber mais 50 destas — respondo, pegando na minha garrafa de cerveja vazia. O rosto dele esboça um sorriso, um dos verdadeiros.
— Não mudaste nada, sabias? Até fico assustado.
— Vou aceitar isso como um elogio — digo, levantando a cerveja. — Quem quer outra?
— Eu quero — diz o Sam, mas ainda está a lançar um olhar fulminante ao Charlie.
Junto os pratos sujos, passo-os por água e meto-os na máquina. A casa continua praticamente igual a quando eu era adolescente: as paredes foram pintadas e há algumas peças novas de mobiliário, mas é só isso. Continua a ter a cara da Sue. Continua a ter o cheiro da Sue. Pego em mais três cervejas e, no momento em que me preparo para regressar lá fora, ouço o Charlie a levantar a voz.
— Nunca aprendes, Sam! É outra vez a mesma porcaria.
O Sam murmura qualquer coisa de forma dura e, quando o Charlie volta a falar, fala mais baixo. Não consigo perceber o que diz, mas está claramente enervado. Deixo as cervejas em cima do balcão e esgueiro-me para a casa de banho. Não sei o que se passa, mas é óbvio que não é suposto eu ouvir. Passo a cara por água, conto até 30 e volto à cozinha. O Charlie está a pegar na carteira, que está em cima do frigorífico.
— Já te vais embora? — pergunto. — Disse alguma coisa que não devia?
O Charlie dá a volta ao balcão e aproxima-se de mim.
— Não, tu és perfeita, Pers.
Os seus olhos verde-claros passeiam pelo meu rosto e sinto a cabeça um pouco à roda. Ele pega numa madeixa do meu cabelo e prende-a atrás da orelha. — Já tenho planos para ver alguns velhos amigos. Não venho cá tantas vezes como gostaria.
— O Sam diz que vives em Toronto. Nunca me procuraste.
Ele abana a cabeça.
— Não me pareceu que isso fosse uma boa ideia. — Olha para trás, para a porta de batente que dá acesso ao pátio. — Sei que parece que o Sam agora tem tudo sob controlo, mas não deixes que aquele grande cérebro te engane. Durante a maior parte do tempo, ele é um palerma.
— Falas como um verdadeiro irmão — respondo, sem perceber bem aonde ele quer chegar. — Mas, olha, antes de ires embora, quero só agradecer-te por me teres ligado.
— Como te disse, achei que devias cá estar. Pareceu-me a coisa certa a fazer. — Encaminha-se para a porta, mas depois vira-se. — Vemo-nos amanhã, sim? Vou guardar-te um lugar.
— Oh — respondo, apanhada de surpresa. — Não é preciso.
Não devia sentar-me junto da família Florek. Não sou da família. Talvez tivesse sido um dia, mas agora não sou.
— Não sejas pateta. Além disso, preciso de um amigo. O Sam vai ter a Taylor.
Pestanejo, pela força com que aquela frase me atinge, mas depois aceno em concordância.
— Sim, claro que sim.
Depois de o Charlie fechar a porta da rua atrás de si, saio para o pátio com duas cervejas na mão. Estamos no fim da tarde e o sol começa a sua lenta descida no céu a ocidente. O Sam está de pé, os braços apoiados na vedação, olhando fixamente para a água.
— Estás bem? — pergunto, pondo-me ao lado dele e entregando-lhe a cerveja.
— Estou. Acredites ou não — responde, fitando-me pelo canto do olho —, eu e o Charlie damo-nos muito melhor agora do que antigamente. Mas ele continua a saber como me provocar.
Acabamos de beber as cervejas em silêncio. O sol já chegou aos montes do lado mais distante do lago e espalha uma luz dourada mágica. Solto um suspiro — quando estava na cabana, esta era sempre a minha altura do dia preferida. Um barco cheio de adolescentes alegres passa em alta velocidade a puxar uma rapariga em esquis aquáticos. Uns segundos depois, as ondas do lago abatem-se contra a margem.
— Não tenho dormido — diz o Sam, ainda a olhar em frente.
— Já tinhas dito — respondo. — É normal, estás a passar por muita coisa neste momento.
— Estou habituado a funcionar com pouco sono, devido ao meu trabalho, mas conseguia adormecer em qualquer lado, assim que podia. Agora, fico ali, totalmente acordado, apesar de me sentir exausto. Alguma vez sentiste isso?
Penso em todas as noites em que fiquei deitada na cama, a pensar no Sam durante horas a fio. Perguntando-me onde ele estaria. Com quem estaria. Contando os anos e os dias desde a última vez que o vira.
— Sim, já senti isso — replico, olhando-o de relance. O pôr do sol bate-lhe nas maçãs do rosto e nas pontas das pestanas.
— Eu achava que era por não ter a minha cama antiga, mas tenho dormido nela neste último ano.
— Espera aí. A mesma cama que tinhas antes? Deve ter metade do teu tamanho!
Ele ri-se suavemente.
— Não é assim tão má. Há uns meses, pensei mudar-me para o quarto da minha mãe, quando se tornou claro que ela não voltaria do hospital, mas essa ideia deprimiu-me logo.
— E o quarto do Charlie?
Em miúdo, o Charlie tinha uma cama de casal.
— Estás a brincar? Sei perfeitamente quantas raparigas ele teve naquele quarto. Aí é que eu não conseguiria dormir, de certeza.
— Bem, suponho que os lençóis tenham sido lavados pelo menos uma vez na última década — respondo enquanto me rio e observo a esquiadora a dar mais uma volta ao lago. Consigo sentir o seu olhar pousado em mim.
— Em que estás a pensar? — pergunto-lhe, sem afastar os olhos da água.
— Tenho uma ideia — diz. — Vem comigo. — A sua voz é baixa e doce.
Sigo-o através da porta de batente que leva à cozinha e, a seguir, ele abre a porta que dá para a cave e acende a luz das escadas. Estende o braço, convidando-me a descer primeiro. Desço as escadas que rangem e, ao chegar ao fim, paro de repente.
À exceção de uma televisão nova, está tudo exatamente igual. O mesmo sofá axadrezado vermelho, o mesmo cadeirão de pele castanha, a mesma mesinha de apoio, está tudo nos mesmos sítios. A manta de xadrez também está pendurada nas costas do sofá, e o chão está coberto pela mesma carpete de sisal áspero. Nas paredes, continuam as fotografias de família. A Sue e o Chris no dia do seu casamento. O Charlie bebé. O Charlie criança com o Sam bebé. Os dois rapazes sentados numa bola de neve gigante, as bochechas e os narizes vermelhos devido ao frio. Existem ainda várias fotografias esquisitas na escola.
Atrás de mim, o Sam para de andar, e a sua proximidade deixa-me arrepiada.
— Isto é alguma máquina do tempo?
— Algo desse género — diz, contornando-me e agachando-se junto a uma caixa de cartão, arrumada num canto da divisão. — Não sei se vais achar isto incrível ou achar que sou doido.
— Talvez ambos? — perguntei, ajoelhando-me ao seu lado.
— É mesmo ambos — concordou. Levanta a ponta da tampa e depois para, olhando-me nos olhos. — Acho que comprei isto tudo para ti.
Abre os quatro fechos da tampa e afasta-a, para eu poder olhar lá para dentro. Ergo o olhar para o Sam.
— Isto são tudo…
— Sim — diz, antes de eu terminar a pergunta.
— São dezenas.
— Noventa e três, para ser mais preciso.
Começo a tirar os DVD. Há o Carrie, o Shinning e o Aliens. As versões americana e japonesa do The Ring. A Noite dos Mortos-Vivos. Misery. Poltergeist. Gritos. O Monstro da Lagoa Negra. O Silêncio dos Inocentes. Pesadelo em Elm Street. O Duende. Terra dos Mortos. It. O Intermediário do Diabo.
— E nunca os viste?
— Eu avisei-te que ias pensar que sou doido.
Não é isso que estou a pensar. Estou a pensar que, se calhar, o Sam sentiu tanto a minha falta como eu senti a dele.
— Acho que te influenciei, Sam Florek.
— Nem imaginas como — responde.
— Acho que imagino.
Pego no primeiro e segundo filmes da saga Halloween e sorrio. Ele ri-se e esfrega a testa.
— É a tua vez de escolheres — anuncia.
— Queres ver um agora? — Fiquei espantada. Não estava à espera daquilo.
— Sim, pensei que podíamos ver um. — Tem os olhos semicerrados.
— Mas agora mesmo?
Aquilo parecia-me ainda mais íntimo do que o que tinha acontecido no barco.
— É essa a ideia — diz, e acrescenta: — A distração fazia-me bem.
— E tens algum aparelho onde se possam ver estas coisas? — Ele aponta para a PlayStation. Fico calada. Bem, parece que vamos ver um filme. — Tens pipocas?
— Claro. — E esboça um sorriso.
— Muito bem. Vai fazer pipocas enquanto eu escolho o filme.
Dou-lhe aquela ordem, soando confiante, mas, na verdade, só preciso de um momento a sós, longe do Sam. Porque me sinto como se tivesse sido passada por um ralador de queijo.
Assim que ele sobe as escadas, tiro o telemóvel do bolso de trás das calças. Há uma chamada não atendida da Chantal e várias mensagens dela a querer saber como foi o meu encontro com o Sam. Encolho-me, guardo o telemóvel outra vez no bolso e passo o caixote de DVD a pente fino.
Eu consigo fazer isto, penso. Consigo ser amiga do Sam. Já não sei como é que isso se faz, mas estou decidida a não me ir embora na segunda-feira e a nunca mais o ver. Mesmo que signifique ter de lidar com ele enquanto está numa relação com outra pessoa. Mesmo que signifique planear o raio do seu casamento.
Quando o Sam regressa à cave, com uma taça enorme de pipocas numa mão e mais duas cervejas na outra, estou em frente da televisão e seguro o filme atrás das costas.
— Queres adivinhar que filme escolhi?
O Sam pousa as pipocas e as cervejas na mesinha de apoio e olha-me, com as mãos na cintura. Os olhos percorrem o meu rosto e depois um sorriso aflora-lhe os lábios.
— Nem pensar — digo, antes de ele falar.
— A Noite dos Mortos-Vivos.
— Estás a gozar comigo? — Aceno com o DVD no ar. — Como é que fizeste isso?
O Sam contorna a mesinha de apoio na minha direção, e eu afasto o filme para cima da cabeça, fora do alcance dele. Ele tenta chegar-lhe, pondo os braços levantados à minha volta, e, ao fazê-lo, toca com o seu peito no meu. Agarra no DVD e no meu braço ao mesmo tempo, puxando-os para o lado, com os dedos por cima dos meus. Estamos a milímetros de distância. Tudo o resto fica desfocado, à exceção da cara do Sam. Consigo ver os pontos de azul mais escuro que lhe pontuam as íris e as olheiras por baixo dos olhos. Desço o olhar para os seus lábios e vejo a ruga que lhe divide o lábio inferior. Amigos. Amigos. Amigos.
— Velhos hábitos, hum? — pergunta-me ele, a sua voz soando a veludo.
— O quê? — replico, fitando-o.
— O filme. Queres vê-lo por causa dos bons velhos tempos.
— Pois — respondo e largo o DVD.
— Estavas a falar a sério hoje à tarde? — pergunta ele. — Quando disseste que não queres saber de mim e da Taylor? Respeito isso, se for algo de que não queiras falar. O Charlie tem outra opinião, mas… — Hesita. — Percy?
Fecho os olhos, preparando-me para o impacto. Na minha cabeça, consigo ouvi-lo a dizer que está noivo, tão claramente que até parece que não é uma novidade.
— Podes falar comigo — afirmo, olhando-o. — Podemos falar disso… dela.
Os seus ombros parecem relaxar um pouco, e gesticula para eu me sentar no sofá. Insere o DVD na PlayStation, diminui a intensidade as luzes e senta-se no sofá, colocando as pipocas entre nós. Estamos enrolados nos nossos lugares de sempre, um em cada ponta.
— Bem, estamos juntos há pouco mais de dois anos — afirma.
— Dois anos e meio — corrijo, sabe-se lá por que raio de razão, e, mesmo com a luz fraca, consigo ver o canto da sua boca levantar-se um bocadinho.
— Certo. Mas a verdade é que não estivemos juntos durante todo esse tempo. Estivemos separados durante cerca de seis meses. E eu sentia que tinha acabado. Eu sabia que tinha acabado, mas a Taylor é boa a convencer-nos das coisas. Provavelmente, é por isso que é tão boa advogada. Enfim, retomámos as coisas há cerca de um mês, mas não funcionou. Não estava a funcionar. — Faz uma pausa e passa a mão pelo cabelo. — Não quero que penses que aquilo que aconteceu no barco… — Para e depois recomeça: — O que estou a tentar dizer é que já não estamos juntos.
— E ela sabe disso? — pergunto. — Ontem à noite, ela apresentou-se como tua namorada — recordei-lhe.
— Sim, nessa altura, era — responde o Sam. — Mas agora já não é. Acabámos. Terminei tudo. Depois de te termos deixado.
— Ah. — É tudo o que consigo dizer, devido ao ruído que me invade a cabeça.
Será por minha causa? Não pode ser por minha causa.
Por muito que eu queira insinuar-me uma vez mais na vida do Sam, como se os últimos doze anos não tivessem acontecido, como se eu não o tivesse traído completamente, sei que não mereço isto. Olho fixamente para a taça de pipocas. Ele espera que eu diga mais alguma coisa, mas não consigo agarrar nenhuma das palavras que me giram na cabeça, nem transformá-las numa frase.
— Ela vai lá estar amanhã — diz. No funeral, quer ele dizer. — Não quero que tenhas uma ideia errada. Só queria ser sincero contigo.
Mantenho o rosto impassível, para que ele não perceba que me atingiu com um golpe certeiro, acertando no meu ponto mais fraco com precisão. Continua a falar.
— Queria que soubesses que hoje, no barco, eu não estava a ser totalmente inapropriado. — Arrisco relancear para ele. — Talvez tenha ultrapassado um pouco os limites — diz, com um meio sorriso, mas tem os olhos muito abertos, à espera de um sinal de tranquilização. E eu, no mínimo, devo-lhe isso, portanto, tento fazer uma piada.
— Já percebi. Estás obcecado por mim. — Só que isto não tem graça quando sai da minha boca, não mostra o sarcasmo que eu queria.
Ele pestaneja. Se a televisão não projetasse um tom azulado pela sala, estou certa de que o teria visto corar.
Abro a boca para pedir desculpa, mas ele agarra no comando.
— Começamos? — pergunta.
Durante o filme, tento constantemente olhá-lo de soslaio em vez de ver o filme. Ao fim de uma hora, ele começa a bocejar. Muito. Coloco a taça de pipocas na mesinha de apoio e tiro a almofada que tenho nas costas.
— Ei. — Toco-lhe no pé com o meu. — Porque é que não te esticas e fechas os olhos durante um bocadinho? — Ele olha para mim com os olhos a quererem fechar. — Toma isto — digo, dando-lhe a almofada.
— Está bem — concorda. — Só durante um bocadinho. — Mete o braço debaixo da almofada e vira-se de lado, com as pernas esticadas para o meu lado do sofá e os pés encostados aos meus. — Está bem assim? — sussurra.
— Claro — respondo, puxando depois a manta para cima das nossas pernas e até à cintura dele. Aninho-me também no sofá.
— Boa noite, Sam — murmuro.
— É só um bocadinho — responde num sussurro.
E então adormece.
*
Quando acordo, eu e o Sam somos um emaranhado de pernas e braços. Continuamos nos nossos cantos do sofá, mas tenho a perna em cima da perna dele, e ele tem a mão à volta de um dos meus tornozelos. Dói-me o pescoço, mas não quero mexer-me. Quero ficar aqui o dia todo, com o Sam a dormir profundamente e com um leve sorriso desenhado nos seus lábios. Mas o funeral é hoje, às onze da manhã, e a luz já entra pelas pequenas janelas da cave. São horas de acordar.
Desenvencilho-me dele e sacudo-lhe suavemente os ombros. Ele resmunga com o incómodo e eu sussurro o seu nome. Ele pestaneja, confuso, e depois um pequeno sorriso abre-se lentamente nos seus lábios.
— Olá — rouqueja.
— Olá. — Sorrio-lhe de volta. — Dormiste.
— Dormi — repete, esfregando a cara.
— Não queria acordar-te, mas achei que era melhor, para não teres de andar a correr antes do funeral.
O sorriso desvanece-se e o Sam senta-se, inclinando-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos.
— Posso fazer alguma coisa para ajudar? Posso ir à Taberna para preparar coisas ou… não sei…
O Sam endireita-se e depois pousa a cabeça no sofá. Sento-me, de pernas cruzadas, a olhar para ele.
— Está tudo tratado. O Julien estará na Taberna durante a manhã a preparar as coisas. Disse-nos para não aparecermos lá até a cerimónia acabar. — Belisca a ponta do nariz. — Mas obrigado. O melhor é deixar-te no motel.
O Sam prepara o café e enche duas canecas para nós. Tento fazer conversa de circunstância, mas ele responde com monossílabos, por isso, quando entramos na carrinha, decido ficar calada. Não falamos durante o curto trajeto até ao motel, mas reparo na tensão no seu maxilar. São quase oito horas quando chegamos ao parque de estacionamento, que, à exceção de alguns carros, está deserto. Tiro o cinto, mas não me mexo. Sei que se passa alguma coisa.
— Estás bem? — pergunto.
— Acredites ou não — começa, olhando pelo para-brisas —, tinha alguma esperança de que o dia de hoje nunca chegasse.
Estendo a mão e coloco-a em cima da dele, fazendo-lhe festas com o polegar. Aos poucos, ele vira a mão e entrelaça os seus dedos nos meus.
Ficamos sentados em silêncio, e, quando olho para o Sam, ele continua a olhar fixamente para lá do vidro, e as lágrimas correm-lhe pela cara. Aproximo-me dele, ponho as nossas mãos entrelaçadas no meu colo e coloco a mão livre sobre elas. O seu corpo treme com soluços silenciosos. Dou-lhe um beijo no ombro e aperto-lhe mais a mão.
Quero dizer-lhe que vai ficar tudo bem, reconfortá-lo, mas, em vez disso, deixo que o desgosto seja exteriorizado. Acompanho-o nisso. Assim que o seu corpo se acalma e a respiração estabiliza, levanto a cabeça e limpo-lhe as últimas lágrimas.
— Desculpa — murmura tão baixo que quase não o ouço. Olho-o nos olhos.
— Não tens de pedir desculpa.
— Estou sempre a pensar que tenho quase a idade que o meu pai tinha quando morreu. Sempre pensei que teria os genes da minha mãe, que não seria amaldiçoado com o coração fraco e a vida curta do meu pai. Mas a minha mãe nem sequer tinha 50 anos quando ficou doente. — A sua voz falha e ele engole em seco. — Nem acredito que estou a pensar nestas coisas quando o funeral dela é hoje. Mas não quero isso. Sinto que ainda nem sequer comecei a viver. Não quero morrer novo.
— E não vais — interrompo-o, mas ele continua.
— Mas posso. Tu não…
Tapo-lhe a boca com a minha mão.
— Não vais — insisto, mais firme. — Estás proibido. — Abano a cabeça, sentindo os olhos marejados.
Ele pestaneja, olha para a minha mão por cima da sua boca e de novo para os meus olhos. Fixa-me durante vários segundos, o olhar escurece-lhe, as pupilas pretas sobrepõem-se ao azul. Não consigo mexer-me. Ou não quero mexer-me. Não sei bem. Ambas as minhas mãos, a que lhe aperta uma mão e a que lhe tapa a boca, parecem ter sido mergulhadas em gasolina e ateadas com fogo. O peito do Sam sobe e desce em respirações rápidas. Eu nem sequer tenho a certeza se estou a respirar.
O Sam agarra-me o pulso e penso que vai afastar a minha mão da sua boca, mas não. Fecha os olhos. Depois, beija-me a palma da mão. Uma vez. E mais outra.
Abre os olhos e fita-me enquanto me beija a palma da mão de novo e, de seguida, passa a ponta da língua até ao centro da minha mão, provocando uma onda de lava que percorre o meu corpo até ao meio das minhas pernas. O som do meu suspiro alto enche o silêncio da carrinha e, de repente, o Sam pega em mim e senta-me no seu colo, com as ancas encaixadas nas dele, e eu agarro-me aos seus ombros para me equilibrar. Passa as mãos pelas minhas coxas, para cima e para baixo, e os dedos metem-se por dentro da bainha dos meus calções. Observa-me com uma admiração espantada.
Não percebo que estou a morder o lábio até ele usar o polegar para o libertar dos dentes. Põe-me a mão na cara e eu viro-a para lhe beijar a palma da mão. A outra mão avança mais dentro dos meus calções e chega à costura das cuecas. Gemo com esse movimento.
— Tive saudades tuas — diz, rouco. Um soluço magoado sai-me da garganta, e então a sua boca une-se à minha, engolindo o som, enrolando a língua na minha. Ele sabe a café e conforto e xarope de ácer. Passa para o pescoço, deixando-me um rasto de beijos quentes no maxilar. Inclino a cabeça para trás, para lhe dar mais acesso, e arqueio-me na sua direção, mas os beijos param. A sua boca está no meu mamilo, chupando a ponta firme através do top, mordendo-o suavemente, antes de o sugar de novo. O som que deixo escapar é diferente de qualquer outro que já me ouvi fazer, e ele olha para cima com um meio sorriso trocista nos lábios.
Perco o controlo e levanto-lhe a camisola, passando as mãos pelas curvas firmes do seu peito e do seu estômago. Ele posiciona-se no centro do banco, empurra os meus joelhos para os lados, e eu fico colada contra ele. Movo as ancas contra a rigidez por baixo de mim, ele geme e depois agarra-me as ancas, obrigando-me a parar. Olho para ele.
— Não vou durar muito — murmura.
— Não quero que dures — respondo.
O Sam respira alto. Tem as faces húmidas das lágrimas e eu beijo-as. Ele põe as mãos na minha cara e junta as nossas testas, com o nariz colado ao meu. Sinto todas as suas expirações na minha boca. Passa o polegar pelo meu lábio outra vez e, então, suavemente, cola a sua boca à minha. Enfio as mãos por baixo da camisola dele até às costas e tento puxá-lo mais para mim, mas ele segura-me a cabeça e dá-me pequenos beijos nos lábios, observando a minha reação a cada um deles. Emito um som frustrado, porque aquilo não me satisfaz minimamente. Ele ri-se baixinho, causando-me arrepios nos braços. Tento erguer-me um pouco de joelhos, para poder controlar melhor os beijos, mas as suas mãos regressam às minhas ancas e mantêm-me apertada contra ele. Sinto as mãos dele a entrarem na parte de trás dos meus calções, os dedos a procurarem o caminho através do traseiro, e depois faz uns movimentos fortes contra mim e eu gemo. Deixo escapar um «Meu Deus» e sinto as pernas a tremerem quando ele cola os lábios à minha orelha e sussurra:
— Talvez eu também não queira que tu aguentes muito tempo.
Cobre a minha boca com a sua, puxa-me o lábio inferior com os dentes e depois passa a língua por ele. Quando a sua língua volta para dentro da minha boca, sinto a vibração do seu gemido e rolo as ancas contra ele. Uma das suas mãos larga o meu rabo e agarra-me uma mama, enquanto puxa o top para baixo. Belisca-me o mamilo com os dedos e sinto-o entre as pernas.
— Caramba, Percy — rouqueja. — És incrível. Não imaginas quantas vezes pensei nisto.
Aquelas palavras entram-me no coração e parece que sinto manteiga derretida a correr-me pelo corpo.
— Imagino — murmuro. A sua boca move-se para o meu pescoço, passa a língua pela minha clavícula e termina na orelha, enquanto me esfrego contra ele, tentando atingir o auge do meu prazer. — Imagino — repito. — Também penso em ti.
A confissão escapa-me da boca, o Sam geme e aperta-me mais, com uma das mãos dentro dos meus calções e a outra a libertar o meu peito do soutien. Quando cola a boca sequiosamente ao mamilo e me olha nos olhos, sinto o orgasmo a aproximar-se cada vez mais. Sussurro coisas incoerentes numa confusão entre «Sam», «não pares» e «quase». Ele movimenta-me com mais força e mais rapidez sobre ele, suga-me mais para dentro da sua boca quente e, quando crava os dentes na minha pele, sinto um tremor a subir-me pela espinha e estremeço com violência. A boca dele está outra vez colada à minha, a sua língua enrola-se com avidez na minha até o meu corpo se liquefazer e eu me encostar a ele, ainda com pequenos tremores a percorrerem-me.
— Quero-te. Sempre te quis — murmura ele, enquanto eu continuo a arfar. Chego-me para trás, com o peito frio da humidade da sua boca. — És tão incrivelmente linda — diz ele. Passo-lhe a mão pela coxa, por cima do tecido fino das calças de fato de treino, até encontrar o contorno rígido da sua ereção.
Beijo-lhe a ruga do lábio inferior e cubro-a com a boca, chupando-o e mordendo-o, enquanto meto a mão por dentro das calças, envolvendo o seu pénis quente e ereto, e movendo a minha mão para cima e para baixo. Quando lhe passo a língua pelo pescoço até à orelha, lhe mordo o lóbulo e lhe digo baixinho «És o homem mais bonito que alguma vez conheci», ele agarra a minha mão e tira-a de dentro das calças. De seguida, agarra-me pelas ancas, pressiona-me contra ele e a sua pélvis balança com força contra mim. Um grito alto e estrangulado sai-lhe da boca. O orgasmo assalta-o em três ondas e eu beijo-lhe repetidamente o pescoço até ele se acalmar. Só então é que me aconchego no seu peito e escuto o som da sua respiração pesada. Ele fecha os braços à minha volta, e ficamos assim, em silêncio, durante vários minutos.
Mas, quando me sento outra vez, para olhar para ele, tem as sobrancelhas franzidas.
— Eu amava-te — diz-me.
— Eu sei — respondo.
Os seus olhos magoados perscrutam-me o rosto.
— Partiste-me o coração.
— Também sei disso.