— O Sam Florek é um maldito lunático, não te esqueças disso.
A Delilah estava sentada na minha cama, com as pernas pálidas cruzadas, e discursava num tom motivacional enquanto eu preparava a mala para a cabana.
— És uma mulher de 17 anos, inteligente e sexy, com um namorado ridiculamente lindo, e não precisas que um falhado provinciano, que não percebe quão incrível tu és, te venha deitar abaixo!
A Delilah estava numa cruzada anti-homens. Tinha acabado o namoro com o Patel quando ele fora para a universidade McGill e dedicara-se de corpo e alma aos estudos. Tinha metido na cabeça que o seu destino era mudar o mundo, e estava decidida a não deixar nenhum tipo meter-se no seu caminho. As suas notas eram melhores do que as minhas. Embora ela e o Patel tivessem «retomado as coisas» durante o verão.
— Sabes que é estranho chamares ao teu próprio primo «ridiculamente lindo», não sabes? — comentei, atafulhando biquínis numa mala já a abarrotar.
— Não é estranho se eu estiver só a declarar um facto — respondeu ela. — Mas estás a passar ao lado do que interessa, que é: eu não quero que te magoes outra vez. És demasiado boa para o Sam.
— Isso não é verdade. — Eu podia ter passado os últimos dez meses a convencer-me a mim própria de que já não gostava dele e de que ele tinha razão em querer manter a nossa relação puramente platónica, mas não acreditava por um segundo que fosse boa demais para ele. — E ele não é um falhado — acrescentei.
Às vezes, eu perguntava-me se o Sam teria terminado tudo no verão passado porque não queria comprometer-se comigo quando tinha todos aqueles grandes planos de ir para fora, para a faculdade, tornar-se médico e nunca mais olhar para trás. Não queria ficar preso a Barry’s Bay, mas, nos meus momentos de maior ansiedade, eu achava que ele também não queria ficar preso a mim.
Eu tinha entrado na equipa de natação, o que tinha deixado a minha mãe satisfeita, e distraía-me com os treinos, a escrita e os jogos de hóquei do Mason, enquanto o Sam tinha passado o ano a estudar e a trabalhar, para poupar para a universidade. Era raro ele fazer pausas. Tive de convencê-lo a ir a festas ou a passar uma noite a jogar na consola com o Finn e o Jordie. Nunca me falava de raparigas, mas eu sabia que ele não desperdiçava tempo em encontros — não que me importasse. Bem, importava-me, sim. Ele continuava a ser o meu melhor amigo. Mas era só isso. Melhor amigo. Mais nada.
— Isso sou eu que vou avaliar quando te formos visitar — declarou a Delilah, aproximando-se da mala e tirando lá de dentro o meu fato de banho da natação. — Eu sei que tu nadas mesmo quando vais para o lago, mas, por favor, diz-me que levas algo um pouco mais excitante do que isto — disse ela, levantando a peça azul-escura. Sorri. A Delilah era totalmente previsível. Peguei num biquíni dourado com fitas e atirei-lho.
— Contente?
— Felizmente. Qual é o objetivo de andares a enrugar-te em cloro se não for para mostrar o corpinho?
— Há pessoas que lhe chamam desporto. — Ri-me. — Sabes, para ser saudável?
— Hum… Como se tu e o Mason não se deitassem nus a falar de como os vossos corpos atléticos são lindos — troçou ela.
— Relembro-te de que estás a falar do teu primo.
A Delilah e o Patel tinham começado a ter relações sexuais há algum tempo e ela assumira que eu e o Mason também. Corrigi-la teria significado uma longa conversa sobre o que acontecia exatamente entre nós, o que eu preferia guardar para mim própria.
— Não consigo evitar que os genes da família Mason tendam a resultar em aparências extremamente agradáveis — replicou, atirando o cabelo para trás dos ombros. E tinha razão. Mesmo com o seu cabelo ruivo e a sua personalidade explosiva, tinha um ar mais doce do que eu, com curvas estonteantes que eram irresistíveis para os rapazes da nossa escola secundária, que paravam constantemente à nossa mesa do almoço para lhe atirarem piropos. Ela punha-os todos a andar com um gesto do pulso.
Agarrei nuns quantos cadernos e livros e pu-los em cima do monte de roupa.
— Nunca vou conseguir fechar isto — disse eu, tentando comprimir tudo dentro do espaço da mala.
— Que chatice, então vais ter de ficar cá!
— Encontramo-nos daqui a um mês, D. Vai passar num instante. Dás-me uma ajudinha?
A Delilah pressionou a mala, enquanto eu puxava o fecho.
— E o Charlie? Ainda é tão giro como eu me lembro? — perguntou, levantando as sobrancelhas. A versão de ódio aos homens da Delilah era de curta duração. O Charlie tinha ido para a Universidade Western no outono, e eu não o via desde as férias de Natal.
— Não é feio — respondi-lhe. — Mas também poderás avaliar isso quando lá fores.
Os meus pais tinham-me deixado convidar o Mason, a Delilah e o Patel para o feriado do 1 de agosto, que eles passariam em Prince Edward County pela segunda vez.
O Mason tinha ficado na faculdade, em Toronto, e tínhamos assumido uma relação oficial no outono. Eu tinha-me agarrado à esperança de que o Sam pudesse mudar de ideias acerca de nós, mas, quando voltei a vê-lo, no Dia da Ação de Graças, foi como se a noite que tínhamos passado na cama dele nunca tivesse acontecido. No fim de semana seguinte, no cinema, deixei o Mason meter a mão por baixo da minha saia.
— Espero que agora já comeces a chamar-me o teu namorado — murmurara-me ao ouvido, e eu concordara que o faria, deleitando-me com a sensação de ser desejada.
Nas férias de Natal, o Sam reparou na pulseira de prata que eu tinha no pulso assim que entrei pela porta da cabana. Os meus pais tinham convidado os Floreks para uma bebida de reencontro, e ele puxou-me para um canto, agarrando-me no braço que tinha a pulseira da amizade juntamente com a pulseira que o Mason me tinha dado.
— Tens novidades para me contar, Percy? — perguntou-me, de olhos semicerrados. Não era exatamente daquela maneira que eu tinha pensado falar-lhe da minha relação, com os nossos pais por ali, e o Charlie suficientemente perto para nos ouvir, mas também não queria mentir-lhe. — A de prata não fica nada bem ao pé da nossa. — Foi a sua única resposta.
*
Nesse verão, a tensão entre o Sam e o Charlie tornou-se, desde o início, bastante óbvia. Os irmãos Florek estavam de pé à nossa espera, junto da porta das traseiras da nossa cabana, a um bom metro de distância um do outro.
— Estás mais deslumbrante do que nunca, Pers — elogiou-me o Charlie, de olhos postos no Sam, puxando-me para um longo abraço.
— Que subtil — resmungou o Sam.
O Charlie ajudou-nos a descarregar, mas teve de sair mais cedo por causa do seu turno no restaurante e deu-me outro abraço prolongado antes de se ir embora.
— Para que conste — disse-me baixinho ao ouvido, de modo que mais ninguém ouvisse —, o meu irmão é um grande idiota.
— O que se passa com o Charlie? — perguntei ao Sam, mais tarde, quando já estávamos estendidos na jangada.
— Não estamos propriamente de acordo em alguns assuntos — respondeu, num tom vago. Virei-me de barriga para baixo e descansei a cara nas mãos.
— Quer explicar-se melhor, Dr. Florek?
— Não, não é nada — disse o Sam.
Nessa noite, o Sam convidou-me para aparecer depois do jantar. Fui lá ter, de fato de treino e com um exemplar da minha última história para ele ler.
— Trouxe trabalho de casa — avisei-o, agitando as páginas no ar quando ele abriu a porta.
— Também tenho uma coisa para ti. — Sorriu. Segui-o até ao seu quarto, tentando não pensar no que acontecera da última vez que ali tínhamos estado.
Da prateleira de cima do roupeiro, tirou três livros meio usados, atados com uma fita branca: A Semente do Diabo, Misery e A História de Uma Serva.
— Andei atrás destes livros durante meses, em vendas de garagem e lojas de segunda mão — afirmou, parecendo um pouco nervoso. — O da Atwood não é bem de terror, é uma distopia, mas lemo-lo na escola e acho que vais adorar. E comprei os outros dois porque achei que gostarias de conhecer as palavras que originaram alguns dos teus filmes preferidos.
— Uau! — exclamei. — Sam, são mesmo incríveis.
— Achas? — Parecia inseguro. — Mas não tão chiques como uma pulseira de prata.
Eu nem sequer estava a usar a pulseira. Estaria ele com ciúmes? Nunca vira o Sam inseguro em relação a dinheiro, mas talvez fosse isso.
— Não tão chiques, mas muito melhores — respondi, e ele pareceu aliviado. Passei-lhe a versão revista da história de fantasmas em que andava a trabalhar há algum tempo.
— Vamos ler? — perguntou, atirando-se para a ponta da cama e batendo com a mão no lugar ao lado dele.
— Vais ler à minha frente?
— A-hã — replicou, sem afastar os olhos da página e pondo o indicador em frente dos lábios a pedir silêncio. Sentei-me ao seu lado na cama e mergulhei em A História de Uma Serva. Cerca de meia hora depois, o Sam pousou as páginas que estava a ler e passou a mão pelo cabelo. Tinha-o cortado mais curto desde a última vez que o vira. Parecia mais velho.
— Isto está mesmo bom, Percy — disse.
— Juras? — perguntei, pousando o livro.
— Claro. — O Sam pareceu surpreendido com a minha pergunta e tocou-me na pulseira distraidamente. — Não tenho a certeza se fiquei aterrorizado com a irmã morta ou cheio de pena dela. Ou ambas as coisas.
— A sério? Era mesmo isso que eu pretendia!
— A sério. Vou lê-la outra vez e deixar umas notas, está bem?
Estava mais do que bem. O Sam era o meu melhor leitor. Tinha sempre ideias para tornar as personagens mais fortes ou questões que indicavam falhas na lógica da história.
— Sim, por favor. A crítica da Delilah foi muito à Delilah e totalmente inútil, como é costume.
— Mais sexo?
— Exato. — Ri-me. Instalou-se um silêncio confrangedor e eu tentei pensar em qualquer coisa para dizer que não tivesse que ver com sexo, mas o Sam falou primeiro.
— Então, quando é que a tua relação com o Buckley se tornou séria? — perguntou, semicerrando os olhos.
— Alguma vez vais chamar-lhe Mason?
— Provavelmente, não — replicou, impassível.
— Bem, não sei se lhe chamaria séria — respondi.
— Mas agora ele é o teu namorado.
— Sim, é. — Meti o dedo no pequeno buraco das minhas calças de ganga.
— Bem, acho que sei o básico: é primo da Delilah, joga hóquei, andou num colégio privado (arrepio) só para rapazes e está agora na Universidade de Toronto, compra joalharia cara à namorada e tem um nome horrível. — Fiquei surpreendida pela quantidade de informações de que ele se recordava dos nossos e-mails. — Mas não me disseste como é que ele realmente é.
— É fixe.
Encolhi os ombros e estudei a mulher de vermelho na capa do livro. Que escondia ela?
— Essa parte já disseste — respondeu ele, tocando-me com o joelho. — O que pensa ele da tua escrita? — E mexeu nas folhas em cima da cama.
— Na verdade, não sei — retorqui. — Não lhe mostrei nada disso. É um bocado pessoal, sabes?
— Demasiado pessoal para o teu próprio namorado? — questionou ele, com um meio sorriso.
— Percebes o que quero dizer. — Dei-lhe um pontapé. — Hei de mostrar-lhe uma, um dia, mas assusta-me ter outras pessoas a lerem o meu trabalho.
— Mas não te assusta quando sou eu a ler? — perguntou, olhando-me por baixo das pestanas.
— Bem, quando o lês à minha frente, assusta — respondi, de modo evasivo. — Mas não, confio em ti.
Ele pareceu satisfeito com a resposta.
— Portanto, além do facto de ele ser fixe, de que gostas nele?
Não era uma pergunta sarcástica. A sua curiosidade era verdadeira. Rodei a pulseira de tecido em volta do pulso.
— Que ele goste de mim — repliquei, com sinceridade, e, depois disso, o Sam não fez mais perguntas.
*
De vez em quando, eu descobria qualquer coisa sobre o Charlie que punha à prova tudo o que eu sabia dele. Nessa altura, conduzia uma velha carrinha azul que o avô lhe tinha dado, «devido às minhas ótimas notas», segundo ele explicou. Quando ele me disse isso, ri-me, achando que estava a brincar, mas as covinhas desapareceram-lhe da cara. Franzi as sobrancelhas.
— Bolsa de mérito com tudo pago — afirmou. — Não fiques com esse ar tão chocado.
Mas, ainda assim, preferia ir para o trabalho no Barco Banana.
— Gosto de sentir o ar na cara depois de passar a noite naquele buraco infernal — explicou. — Além disso — acrescentou, piscando-me o olho —, o barco dá mais jeito para nadar nu depois do turno.
Aquele era o Charlie que eu conhecia.
Saltarmos para o lago todos nus tinha-se tornado um ritual. Assumi que a Sue sabia o que se passava — não éramos propriamente silenciosos —, e os meus pais já me tinham visto chegar à cabana enrolada numa toalha e com a roupa do trabalho no braço, mas ninguém parecia preocupar-se. Já tinha visto algumas partes dos seus corpos, e nem sempre era acidental, mas era uma forma inocente de libertar a tensão.
A namorada mais recente do Charlie, a Anita, juntou-se a nós uma vez. Era um pouco mais velha do que nós e também tinha uma cabana no lago, mais abaixo, mas a sua presença não impedia o Charlie de ultrapassar todos os limites que lhe apetecia.
Numa quinta-feira, depois do turno, estávamos no lago. O Charlie e a Anita bebiam cervejas dentro de água, ao fundo da doca, a sussurrarem e a rirem e a beijarem-se, e eu e o Sam flutuávamos numas boias cilíndricas, mais à distância.
— Não achas a Percy uma brasa? — perguntou o Charlie, suficientemente alto para nós ouvirmos.
— Já te disse que sim — respondeu a Anita, a rir-se. Eu conseguia ver os mamilos dos seus pequenos seis fora da água e senti a cara a arder.
— Claro, devo ter-me esquecido — disse-lhe o Charlie, dando-lhe um beijo na cara.
— Aposto que sim. — O Sam riu-se, mas eu senti-me desconfortável. Parecia-me que o Charlie estava a tramar alguma. Aproximei-me do Sam e toquei-lhe com o pé na perna, surpreendendo-o. Estávamos suficientemente próximos para eu ver o seu peito a brilhar dentro de água num branco leitoso.
— Sabes, Pers — disse o Charlie, de forma arrastada —, eu e a Anita achamos-te linda. Talvez um dia possas juntar-te a nós.
Fiquei boquiaberta ao ouvir aquelas palavras e senti o pé do Sam enrolar-se no meu tornozelo.
— Deixa-a em paz, Charlie — ralhou a Anita. — Estás a assustá-la.
— Eu tenho namorado — retorqui, tentando parecer aborrecida, mas preparando-me para o que aí vinha. Achei que o Charlie ainda não tinha chegado onde queria.
— Ah, pois é — respondeu o Charlie. — Um tipo rico. O Sam contou-me. É chato, mas não estou admirado. Uma miúda linda, divertida e inteligente como tu, já para não falar do quanto o teu peito cresceu desde o ano passado.
— Charlie — avisou o Sam.
— O que foi? É verdade. Não me digas que não reparaste, Samuel — continuou. — A sério, Pers, não consigo imaginar um tipo que não estivesse mortinho por poder estar contigo.
Tiro certeiro.
— Vai-te lixar, Charlie! — exclamou o Sam, mas o irmão estava a murmurar qualquer coisa à Anita, que olhava na minha direção e emitia um «Oooh» num tom triste.
— Ai, meu Deus. — Só me apercebi de que as palavras tinham saído da minha boca quando vi o Sam a olhar-me fixamente.
— Está tudo bem? — sussurrou ele, mas não lhe respondi. O Charlie e a Anita estavam a sair da água, mas nenhum deles estava com pressa para se cobrirem com as toalhas.
— Vamos para a cave — disse o Charlie, bem alto, quando se afastaram. — O convite mantém-se, Pers.
— Percy? — O Sam tocou-me com o pé. — Desculpa. Aquilo foi longe demais, mesmo sendo o Charlie.
— Contaste-lhe? — murmurei. — Sobre o verão passado?
Engoli o nó na garganta e encarei o Sam, sem me importar com quanto de mim ele conseguia ou não ver.
— Sim, mas não lhe contei tudo. Ele encurralou-me a seguir à noite de Natal em tua casa, depois de te ter ouvido falar do Mason e da pulseira.
— Lindo. Não bastava ter sido rejeitada uma vez, agora o teu irmão e a Anita também o sabem.
Engoli em seco, aguentando as picadas das lágrimas.
— Desculpa, Percy. Nunca pensei que ele fosse falar sobre isso. Não tens de ficar envergonhada, o meu irmão acha que eu é que sou o idiota desta cena.
Olhei para cima, para as estrelas, e ele colocou as duas pernas à minha volta, puxando-me para mais perto.
— Ei — sussurrou, pousando uma das mãos na minha cintura. Fiquei rígida.
— O que estás a fazer? — perguntei.
— Só quero abraçar-te — respondeu, com a voz tensa. — Odeio que ele te tenha chateado.
Flutuámos durante uns instantes, até que ele falou outra vez.
— Posso?
Havia um milhão de razões para eu recusar, ou, no mínimo, duas muito boas: eu tinha um namorado e esse namorado não era o Sam.
— Podes — consenti, num sussurro.
— Anda cá — disse ele. Nadámos para mais perto da margem, num sítio que não podia ser visto de casa, num ponto onde a água lhe dava pelo meio do peito e pelos meus ombros. Entreolhámo-nos, talvez a 30 centímetros de distância, até que o Sam se aproximou e me abraçou. Estava quente e escorregadio, e eu conseguia sentir o seu coração em batimentos impacientes contra o meu peito. — O Charlie tem razão, sabes — afirmou. — És linda e divertida e inteligente. — Enrosquei-me com mais força contra ele. As suas mãos percorriam-me as costas de alto a baixo, e ele disse baixinho: — E qualquer tipo estaria mortinho por poder estar contigo.
— Tu, não — repliquei.
— Isso não é verdade — rouquejou. Inclinou-se e encostou a testa à minha, segurando-me na cara com as duas mãos. — Deixas-me doido — declarou. Fechei os olhos e senti um frio na espinha e uma fogueira no meio das pernas. Eu amava o Sam, mas aquilo não era justo. Talvez ele não soubesse o que queria nem como estava a ser cruel, mas eu não podia deixar que ele brincasse assim comigo enquanto não o descobria.
— Estás a baralhar-me — disse-lhe, empurrando-o. — Tenho de ir para casa.
*
Mal dormi. O Sam deixou-me ir para casa sem uma palavra de protesto — na verdade, sem qualquer palavra. Passava pouco das duas da manhã quando fui buscar o caderno que ele me dera nos meus 15 anos, com a dedicatória «Para a tua próxima história brilhante», abri-o numa das páginas vazias e escrevi: «O Sam Florek é um maldito lunático» e, depois, comecei a derramar lágrimas quentes e furiosas. Tinha passado o último ano a tentar seguir em frente e achava que tinha conseguido. Estava a tentar enganar-me a mim própria?
O Sam não disse nada quando apareceu nessa manhã, a seguir à sua corrida. Não trocámos mais do que uma ou duas palavras. Só depois de eu ter encurtado o meu tempo de natação e de ter subido para a jangada, para tentar dormir um pouco, é que ele falou.
— Peço desculpa por ontem à noite — declarou, sentado ao meu lado, com os pés na água. Por qual parte é que ele pedia desculpa? Por quase me ter beijado? Por ter sido parvo comigo?
— Está bem — respondi, mantendo os olhos fechados, com a cara colada à madeira quente e a raiva a começar a subir-me desde os dedos dos pés.
— Sei que tens um namorado e foi uma atitude idiota da minha parte — continuou ele. Ainda não tinha percebido. Levantei-me e sentei-me ao seu lado. Tinha um ar muito arrependido.
— Se eu tenho ou não namorado é uma preocupação minha — escarneci. — A tua preocupação, Sam, é perceberes que as tuas palavras contrastam com os teus atos.
Ele respirou fundo.
— Tens toda a razão, Percy. — Baixou os olhos para ficarem ao nível dos meus. — Disseste que eu estava a baralhar-te, e peço desculpa por isso. Podemos só voltar a como as coisas eram?
— Não sei. Tu podes? — retorqui, elevando a voz uma oitava. — Porque eu passei este último ano a agir como se as coisas fossem normais entre nós. Não me quiseste, e está tudo bem. Agora, ando com alguém. Fingi que não tinha acontecido nada entre nós, porque era o que tu querias. E acho que tenho feito um excelente trabalho. — Levantei-me antes que ele pudesse responder. — Vou para casa. Não dormi muito ontem à noite e preciso de fazer uma sesta antes do meu turno de logo à noite. Vemo-nos nessa altura, está bem?
Mergulhei da jangada e nadei até à margem sem esperar que ele se despedisse.
Mais perto do fim da tarde, havia nuvens com um aspeto ameaçador no céu, pelo que o Charlie e o Sam vieram buscar-me na carrinha. Sentei-me no meu lugar habitual, no meio deles, sem paciência para conversas de circunstância com nenhum dos dois.
— Voltaste a pensar naquele convite, Pers? — perguntou o Charlie, esboçando um sorriso com covinhas e mantendo os olhos fixos no Sam.
— Sabes uma coisa, Charlie? — respondi-lhe, estreitando os olhos. — Vai-te lixar. Se queres chatear o Sam, tudo bem. Mas deixa-me fora disso, porra. És demasiado velho para estas tretas!
O Charlie pestanejou na minha direção.
— Estava só a brincar — murmurou.
— Eu sei! — gritei, batendo com as mãos nas minhas pernas. — E estou mesmo farta disso.
— Pronto, pronto, está bem, já percebi — respondeu ele. — Vou portar-me bem.
Arrancou com a carrinha e nenhum de nós falou até chegarmos ao restaurante.
*
Na manhã seguinte, estava a chover quando o Sam apareceu à porta da cabana com a roupa de treino e todo molhado.
— Sam, parece que te ias afogando! — exclamou o meu pai quando lhe abriu a porta. A camisola do Sam estava colada ao corpo, mostrando o relevo dos músculos do peito e barriga. Para uma vítima de afogamento, tinha muito bom aspeto. Fiquei danada com isso.
— Espera aqui, vou buscar-te uma toalha — disse-lhe o meu pai.
— O melhor é trazeres-lhe uma muda de roupa também — acrescentou a minha mãe, do sofá. O meu pai atirou uma toalha ao Sam e foi lá acima buscar roupa seca para ele vestir.
— O que fazes aqui? — perguntei-lhe enquanto ele esfregava o cabelo com a toalha.
— Venho sempre aqui depois da minha corrida. Além disso — acrescentou, num tom mais baixo —, quero falar contigo. Podemos ir lá acima?
Não vi maneira de recusar em frente dos meus pais, sem causar uma cena, e já tinha tido muitos dramas do Sam nessa semana. O meu pai entregou uma pilha de roupa ao Sam quando passámos por ele nas escadas, e ele mudou-se no quarto dos meus pais, enquanto eu esperava no meu, sentada na minha cama de pernas cruzadas, a ouvir a chuva a bater no telhado.
Mesmo zangada com o Sam, quando o vi entrar com umas calças do meu pai, que tinham vários centímetros a mais na cintura, e um pulôver de lã verde, que tinha centímetros a menos nas mangas, desatei às gargalhadas.
— Espero que não pretendas ter uma conversa séria vestido dessa maneira.
— Não sei do que falas — respondeu com um sorriso e os olhos a brilharem.
Tenho saudades disto, pensei, e senti o meu sorriso a desvanecer. O Sam fechou a porta e sentou-se à minha frente na ponta oposta da cama.
— Eu estava errado — disse. — Tão errado. — Os meus olhos prenderam-se nos dele. — E tu também estavas errada. Ontem, quando disseste que eu não te queria. — Falava suavemente, com os seus olhos azuis fixados nos meus. — Eu queria-te. Eu quero-te. Sempre te quis. — Senti uma pressão aguda nos pulmões, como se aquelas palavras me tivessem sugado todo o oxigénio. — Desculpa ter-te feito pensar o contrário, ter-te baralhado. Achei que, nesta altura, devíamos concentrar-nos na escola. Aquilo que a minha mãe disse no verão passado, que tínhamos muito tempo para assumir uma relação, fazia sentido para mim. E pensei que íamos estragar tudo se tentássemos ser algo mais, mas acabei por estragar tudo ao tentar não o ser.
— Estragaste mesmo — respondi, numa tentativa falhada de humor. Mas ele sorriu.
— No verão passado, disse-te que não sabia como fazer isto. — Aproximou-se de mim. — Disse-te que devíamos esperar até estarmos prontos. — Soltou um grande suspiro. — Não sei se estamos prontos, mas não quero esperar mais. — Pôs a mão por cima da minha a apertou-a ao de leve.
Apeteceu-me saltar-lhe para o colo e abraçá-lo, beijar-lhe a ruga do seu lábio inferior. Mas também me apetecia esmurrá-lo. E se ele mudasse de ideias de novo? Pensei que não conseguiria sobreviver a isso.
— Sam, eu tenho um namorado — disse-lhe, obrigando-me a parecer segura. — Que, por acaso, dentro de uma semana, estará aqui. E preciso que, neste momento, respeites isso.
— Claro — respondeu, com voz rouca. — Posso fazê-lo.
*
— Então, é ele — afirmou o Sam, espreitando pela janela da cozinha para a sala das refeições, onde o Mason, a Delilah e o Patel estavam sentados numa mesa de quatro, enquanto a Joan, a minha antiga empregada preferida, lhes entregava as ementas. Só tinham chegado à cabana ao fim da tarde, cerca de duas horas antes de o meu turno de sábado à noite começar, por isso, tinham decidido ir jantar à Taberna, para podermos estar juntos durante mais tempo. O Mason disse que queriam fazer-me uma surpresa. Resultou. Eu não ia dizer ao Sam que eles estavam lá, mas a Joan entrou de rompante na cozinha, depois de os sentar, dizendo que eu era «uma grande sortuda» por ter «um namorado tão sexy». Eu costumava gostar da Joan.
Mas o Mason estava mesmo giro. A época do hóquei tinha terminado, pelo que ele tinha cortado o cabelo mais curto, o que chamava mais a atenção para as suas feições. Vestia uma t-shirt preta que evidenciava todas as horas que passava no ginásio, e uns óculos de aviador presos no colarinho.
— Pois — respondi-lhe, sentindo a presença de outra pessoa por trás de mim. O Charlie inclinou-se sobre mim e espreitou pela janela.
— Eu sou mais giro — declarou e regressou ao seu posto.
As coisas tornaram-se mais estranhas quando a Delilah insistiu que o Sam fosse à sala cumprimentá-los. Pedi-lhe desculpa enquanto ele avançava em direção à mesa, limpando as mãos às calças de ganga e afastando o cabelo da cara. Apertou a mão ao Mason e ao Patel, mas a Delilah abraçou-o e atirou-me, por cima do ombro dele, um «Que brasa!».
— Aparece mais logo, depois do teu turno, Sam — disse-lhe a Delilah. — E traz aquele giraço do teu irmão.
O Sam ergueu as sobrancelhas e olhou para o Patel, mas este sorriu e abanou a cabeça, divertido.
— Acho que o Charlie tem planos com a sua… com a Anita, mas, sim, eu apareço. Depois me livrar do cheiro a salsicha e molho de tomate — acrescentou ele. — A não ser que gostes dele.
Riu-se para a Delilah, que se riu de volta. O Mason observava a cena com um sorriso que não lhe chegava aos olhos.
Quando cheguei a casa, já estavam os três bêbedos. Antes de entrar, já ouvia o Mason e o Patel a discutirem com vozes entarameladas se a forma superior da pilosidade facial era a barba ou o bigode. A Delilah estava estendida no colo do Patel, no sofá, a ler as memórias da Joan Didion, com o top enrugado, mostrando-lhe a barriga. Era óbvio que não usava soutien. Levantou a cabeça quando entrei e os seus olhos demoraram a focar-se na minha cara.
— Persephone! — guinchou, levantando os braços e acenando-me para a abraçar. — Tivemos saudaaaaaades tuas!
Inclinei-me e abracei-a.
— Parece que sobreviveram sem mim.
Havia várias garrafas vazias de cerveja alinhadas em cima do balcão da cozinha. Alguns dos discos do meu pai estavam espalhados pelo chão e alguém tinha conseguido pôr o Revolver a tocar. Havia uma taça com gelo derretido e uma garrafa de tequila aberta em cima da mesinha de apoio. Cada um deles tinha um copo daquela bebida na mão.
— Senta-te aqui, querida — disse o Mason, puxando-me para baixo e dando-me um beijo no queixo. — Sem querer ofender-te, cheiras um bocado mal.
Dei-lhe uma cotovelada na barriga.
— Vou tomar um duche primeiro — declarei, tentando levantar-me, mas o Mason agarrou-me com força, passando a língua pelo meu pescoço.
— Hum — entoou. — Sabe a pierogi.
Demorei mais tempo no duche do que precisava. Sabia que o Sam ia chegar a qualquer momento e sentia-me meio aborrecida, meio excitada com isso. Sabia que esta grande parte da minha vida tinha estado fechada para ele e agora podia apresentá-lo às pessoas com quem eu passava tempo quando estava longe dele. Queria que a Delilah o visse. Estava preocupada com o Sam e com o Mason. O Mason não era ciumento e o Sam não era de confrontos. E eu achava que, se os visse ao mesmo tempo na mesma sala, talvez percebesse que o Sam era só um tipo normal. Que talvez eu tivesse feito dele uma criatura mítica, um amigo perfeito e um potencial namorado, que já não pareceria tão raro e precioso no mundo real.
Quando saí da casa de banho, o Sam estava sentado numa cadeira que tinha puxado para junto do sofá, com o cabelo molhado muito bem penteado, sem lhe tapar a cara. Vestia as calças de ganga escura que eu sabia que eram as suas melhores calças e uma camisa branca, de mangas enroladas, mostrando os braços bronzeados. Tinha os pés descalços. Estava giro. Já eu, vestia uns calções de bombazina e uma camisola cor-de-rosa de Barry’s Bay. O Mason passou-lhe um copo cheio de tequila e ambos fizeram um brinde antes de darem um bom gole. Percebi o esforço do Sam para manter um ar impassível. Ele não costumava beber.
— Normalmente, não se bebe isso com limas e sal ou algo do género? — perguntei, juntando-me a eles.
— Esquecemo-nos de trazer limas — explicou o Mason. — Mas este produto é mesmo bom, por isso, usamo-lo em shots, de qualquer maneira.
Encheu outro copo e passou-mo. Dei um gole pequeno e tossi ao sentir o ardor.
— Pois, produto mesmo bom — rouquejei, ainda a tossir. O Mason puxou-me para ele e eu gelei ao perceber que queria que me sentasse ao seu colo.
— Vem cá fazer-me companhia, querida — disse ele, puxando-me com mais força. Sentei-me de forma desajeitada na ponta do seu joelho. A Delilah, que já se tinha levantado, olhou-me de modo inquiridor. Movi os olhos na direção do Sam, que observava as mãos do Mason a fazerem círculos nas minhas pernas nuas. Franziu as sobrancelhas e depois bebeu a bebida toda que ainda tinha no copo. O olhar da Delilah alternou entre nós, arregalando os olhos à medida que ia compreendendo, com um sorriso alcoolizado a formar-se-lhe nos lábios.
— Muito bem — disse o Patel ao Sam, pegando na garrafa para lhe servir mais.
— E então, Sam? — disse a Delilah, com voz arrastada, inclinando-se e pondo os cotovelos nos joelhos e a cara nas mãos. — Há quanto tempo não te via? Transformaste-te num belo e sumarento pedaço de homem. Fala-me da tua namorada.
O Sam olhou para mim, confuso, mas eu não fazia ideia de aonde ela queria chegar com aquela conversa.
— Não tenho namorada — respondeu ele, bebericando do seu copo.
— Custa-me acreditar nisso — continuou ela. — Sabem — disse, virando-se para o Mason e o Patel —, o Sam parte corações. Pode fazer-se de muito difícil de conseguir. — Dirigi-lhe um olhar de aviso, mas ela sorriu e abanou ligeiramente a cabeça. — Uma vez recusou-se terminantemente a beijar a Percy num jogo de Verdade ou Consequência.
Que alívio.
— Isso foi duro, pá — comentou o Patel, enquanto o Mason me puxou para trás, até ficar encostada ao seu peito.
— Coitadinha — retorquiu, pondo os braços à volta da minha cintura e beijando-me no pescoço. — Esta noite, vou compensar-te.
Olhei automaticamente para o Sam, que nos fitava de maxilar cerrado e olhos escurecidos. Abanava a perna.
— Alguém quer aperitivos? — perguntei, saltando do colo do Mason e dirigindo-me para a cozinha.
— Eu ajudo — replicou o Sam, seguindo-me, enquanto o Patel e o Mason recordavam um jogo de crianças particularmente memorável de Sete Minutos no Paraíso.
Eu estava em bicos de pés a tentar chegar a uma taça de aperitivos quando o Sam apareceu por trás de mim.
— Eu tiro isso — disse, pondo a mão por cima da minha. — Cheiras bem — murmurou ao colocar a taça em cima do balcão. Um arrepio percorreu-me quando senti o seu hálito no meu ouvido, que me fez estremecer.
— São as maravilhas do sabonete — respondi. — Quase não te reconhecia nesta roupa tão chique.
— Chique? — Os seus olhos cintilaram.
— Muito chique. — Ri-me.
— Vocês trazem os aperitivos ou não? — gritou a Delilah do sofá.
Despejei um pacote de batatas fritas na taça, pousei-a na mesinha de apoio e encavalitei-me no braço do cadeirão do Mason. Ele e o Patel tinham passado para uma discussão apaixonada relacionada com hóquei.
— Não lhes ligues — disse a Delilah ao Sam. — São ligeiramente obcecados. Mas nós temos coisas melhores para discutir, como a nossa querida Persephone. — Tocou-lhe com o pé na perna. — Ouvi dizer que és o seu leitor preferido. Não para de dizer que as tuas opiniões são boas.
O Sam esboçou um grande sorriso.
— Ah, sim? — comentou, olhando para mim.
Eu revirei os olhos.
— Ele já tem um ego suficientemente alimentado, D.
— Discordo — respondeu ele. — Conta-me mais sobre quão inteligente sou, Delilah.
— Eu achar-te-ia muito mais inteligente se lhe dissesses para aumentar as partes de sexo e romance — disse ela, a rir.
— Estão a rir-se de quê? — interrompeu o Mason.
— Das histórias da Percy. O que achas delas? — perguntou o Sam, e senti um nó no estômago. Ainda não tinha mostrado nada ao Mason.
— Ela nunca me deixou ler nenhuma — replicou ele, semicerrando os olhos na direção do Sam.
— Ah, não? Mas ela é incrivelmente talentosa — disse o Sam, os seus olhos brilhavam. — Está sempre a pedir-me opiniões sobre elas, mas, na verdade, não precisa disso. É uma escritora nata.
— Ah, é?
O Sam continuou como se nem o tivesse ouvido.
— Devias ler a Sangue Jovem. Ela já a escreveu há uns anos, mas ainda é a minha preferida. Bem, ainda te lembras de quando nos deitávamos tardíssimo, só a discutir os nomes das personagens, Percy?
O Sam estava a marcar o seu território, e eu não podia fazer mais nada a não ser concordar num murmúrio.
— Não tinha percebido que vocês eram tão próximos — disse o Mason, a fitar-me. — É muito bom que a Percy tenha aqui um amigo para lhe fazer companhia.
Puxou-me para o seu colo e virou-me ao mesmo tempo, por isso, fiquei encaixada nele.
— Que estás a fazer? — sussurrei-lhe.
— Não se importam, pois não, pessoal? — Desviou a cabeça de modo a olhar para trás de mim. — Não vejo a minha miúda há demasiado tempo.
Pegou na minha cara com as mãos e juntou as nossas bocas, beijando-me desajeitadamente. Quando me deixou voltar a respirar, o Sam já estava a caminhar para a porta.
— Tenho de ir andando, se quero correr amanhã de manhã — afirmou, sem olhar para mim. E foi-se embora.
O Sam manteve-se afastado durante o resto do fim de semana, e eu estava desejosa de que toda a gente se fosse embora para poder estar outra vez com ele. Metade das férias de verão já tinham passado e eu tinha ficado chateada com o comportamento do Mason, por me ter feito perder tempo precioso em que podia ter estado com o Sam. O Mason também foi muito físico durante toda a visita, como se pretendesse tomar posse do meu corpo com as suas mãos. Deixou-me ansiosa. Até o beijo de despedida foi uma coisa táctil, cheia de língua.
Depois da visita do Mason, o Sam ficou diferente. Mais reservado. Às vezes, os nossos olhos cruzavam-se através da cozinha, ou quando convivíamos na cave, e o ambiente era tenso. Mas, de resto, era como se ele tivesse posto uma tampa sobre os seus sentimentos por mim, que era exatamente o que eu lhe tinha pedido. Mas, à medida que o fim das férias se aproximava, eu percebia que não era isso que eu queria. Eu queria tirar-lhe a tampa de cima.
Acabei tudo com o Mason na última semana de férias, num telefonema estranho em que lhe disse: «És um tipo incrível!» Ele ficou surpreendido, mas aceitou melhor do que a Delilah, que se queixou do fim dos nossos encontros duplos até eu a recordar de que ela planeava separar-se do Patel durante o ano letivo.
No último dia antes de eu regressar à cidade com os meus pais, eu e o Sam estávamos sentados na cama dele, a ler, ainda com os fatos de banho húmidos. Estava calor, e o Charlie e a Anita estavam a ocupar o nosso refúgio habitual na cave. A Sue recusara-se a ligar o ar condicionado, por isso o Sam tinha fechado os estores do quarto e tinha posto uma ventoinha a funcionar entre nós, ele aos pés da cama, encostado à parede, e eu na cabeceira, de frente para ele, com os joelhos colados ao peito.
Ele estudava um esquema num livro e eu estava a ler A Dança da Morte. Ou, pelo menos, estava a tentar. Nos últimos dez minutos, não tinha conseguido ler uma página inteira. Não conseguia parar de olhar para o Sam: o bronzeado dos seus tornozelos, os músculos dos gémeos, a pulseira que tinha no pulso. Estiquei o pé para o apoiar na sua perna e, assim que o meu pé lhe tocou, ele deu um salto.
— Está tudo bem, assustadiço? — perguntei. Ele olhou para mim, depois, levantou-se de repente e foi até à gaveta da cómoda.
— Faz-me um favor — disse, atirando-me a velha t-shirt dos Weezer. Vesti-a enquanto ele se sentava outra vez e mergulhava no livro de estudo.
Toquei-lhe na perna com o dedo do pé e percebi que uma cor de tomate lhe aparecia no rosto. Conseguir fazer o Sam corar era uma das minhas três coisas preferidas, mas, ultimamente, era algo raro. Mas algo tinha aberto um buraco na sua calma reserva e eu queria abrir esse buraco todo, nem que fosse com os dentes.
— Estás a dar-me pontapés porque… — disse-me num tom monótono, sem tirar os olhos do livro, de sobrancelhas cerradas. Pus ambos os pés no colo dele, sentindo-o ficar rígido.
— Esse livro deve ser fascinante, tens andado a lê-lo durante todo o verão.
— Hum.
— O argumento é muito bom?
— Fascinante — respondeu, impassível. — Sabes, normalmente, conto contigo para não me chateares quando estudo.
— Não estou aqui para chatear — jurei, e enterrei o meu calcanhar na perna dele. — Tem muitas partes sexy, é isso? — Por fim, ele olhou-me de soslaio, abanou a cabeça e regressou ao livro. — Na verdade — continuei, tirando os pés do colo dele e sentando-me, de pernas cruzadas, com os dedos dos pés encostados à perna dele —, o corpo humano é bastante sexy. Quer dizer, não a imagem desse homem sem pele que estás a observar…
— É um esquema do sistema muscular, Percy — afirmou, virando a cara para mim. — Isto — e pôs a mão à volta da minha perna — são os gémeos.
O tom de voz era sarcástico, mas parecia que alguém tinha substituído o sangue das minhas veias por cafeína. Eu queria a mão dele em mim. Eu queria as mãos dele em mim.
Ele olhou para o sítio onde me tinha agarrado e, de seguida, olhou outra vez para mim. O seu olhar tinha uma interrogação.
— Gémeos? — repeti. — É bom saber… vou tentar usá-los um dia. Ouvi falar de uma coisa chamada corrida.
Ri-me e ele afastou a mão.
Sentámo-nos de novo com os livros abertos, durante uns minutos, mas nenhum de nós virou uma página. Senti que a promessa de algo mais entre nós se desvanecia, relegada para um canto como a velha caixa de fio entrançado que guardei na gaveta da minha secretária. Portanto, tentei agarrar-me a ela.
Empurrei os dedos dos pés para baixo da perna dele.
— Aprendeste mais alguma coisa nesse teu livro? — perguntei. Ele virou-se para me olhar nos olhos. Acenou lentamente. — Queres explicar-me, génio? — Dei o meu melhor para parecer brincalhona, mas tinha a voz trémula.
— Percy… — disse ele. Tive de recorrer a toda a minha autoconfiança para não deixar de olhar para ele.
— Bem, parece que terei de recorrer a outro futuro médico para me ensinar alguma coisa — provoquei-o, e ele pestanejou rapidamente. Foi então que percebi. Tinha descoberto o seu ponto fraco. Ele odiava a ideia de qualquer outra pessoa me tocar. Quando voltou a pôr a mão nos meus gémeos, apeteceu-me gritar de triunfo.
Dessa vez, não me apertou. Passou-me apenas os dedos pela perna, para trás e para a frente, lançando-me eletricidade por todo o corpo, fazendo cintilar todas as minhas extremidades nervosas. Tinha os lábios contraídos numa linha séria e fina, o rosto numa máscara concentrada. Ambos observámos a sua mão percorrer-me o gémeo e descer pela perna. Aí, rodeou-a. Olhou para mim com um sorriso.
— Tornozelo — disse.
Libertei um som que estava algures entre riso e tosse. Ele mudou de posição e ficou de joelhos aos meus pés, agarrando-me no outro tornozelo com a mão direita, ficando assim a agarrar-me nas duas pernas. Olhou-me nos olhos durante um, dois, três segundos. Engoli em seco. A seguir, observando a minha reação, foi subindo com um dedo pela minha perna.
— Canela.
Eu tinha imaginado, sonhado, ficado obcecada com o Sam a tocar-me. Tinha-me deitado na cama, com a mão entre as pernas, a fantasiar sobre a sua mão e os seus ombros e a ruga no seu lábio inferior. Queria desesperadamente tocar-lhe, passar a mão pela fina linha de pelo que ia do seu umbigo até ao cós dos calções de banho. E agora estava paralisada. Estava aterrorizada, com medo de estragar o momento, de despertar o Sam daquela magia que o tinha controlado.
Ele pôs a mão em concha num joelho e fez o mesmo com a outra mão no outro. Afastou-os e moveu-se ligeiramente do seu lugar, ficando no meio deles. A seguir, agarrou-me nos tornozelos e puxou-os, esticando-me as pernas. Inclinou-se sobre mim e tentei apoiar-me nos braços. Sentia a sua respiração na minha cara. Sem tirar os olhos dos meus, sussurrou:
— Deita-te, Percy.
Fiz o que ele mandou, com o coração aos saltos, e ele ajoelhou-se no meio das minhas pernas, com o olhar escurecido. O seu tronco alto bloqueava o ar da ventoinha e, subitamente, senti-me a arder. Sentia o suor a formar-se por cima do meu lábio superior. Sem desviar o olhar, pôs outra vez a mão no meu joelho.
— Joelho — murmurou. Pestanejei. O ar parecia muito pesado.
— Joelho, hem? Para que ano escolar é esse livro, afinal? — brinquei.
Um pequeno sorriso surgiu-lhe nos lábios.
— Vastus medialis, vastus lateralis, tensor fasciae latae — afirmou, suavemente, levando os dedos mais acima. Parecia que todas as minhas extremidades nervosas se concentravam por baixo dos seus dedos. Apertou-me um pouco a parte interior da coxa.
— Adductor longus — murmurou, e eu respirei fundo. Arrastou o dedo indicador daí até ao cimo da minha perna e anca, por baixo da bainha da t-shirt. Depois, espalmou a mão sobre o osso da anca e envolveu-a, por cima dos atilhos do meu biquíni. Manteve-a nesse lugar, olhando-me, já sem sorrir. Queria puxá-lo para cima de mim e sentir o seu peso a pressionar-me contra a cama. Queria enfiar as mãos nas ondas do seu cabelo e beijá-lo na pele quente do pescoço, mas mantive-me imóvel, com o peito a subir e a descer.
Ele levantou-me a t-shirt acima da barriga e, lentamente, desapertou-me os atilhos de um lado do biquíni. Depois, afastou-os e a sua mão percorreu, para cima e para baixo, a zona da cintura e anca.
— Gluteus medius. — Passou a mão para a parte de trás. — Gluteus maximus. — Soltei uma gargalhada nervosa. — Já chega de lições de anatomia por hoje? — perguntou, com a voz rouca e grave. Engoli em seco e acenei em concordância. Os seus olhos brilharam perante a vitória e puxou a t-shirt mais para cima. Levantei a parte superior do tronco e ele tirou-ma pela cabeça. Voltei a deitar-me e o súbito contacto do biquíni com o ar fez-me arrepiar. Os seus olhos viraram-se para os triângulos de tecido que me cobriam o peito, e os meus mamilos elevaram-se, firmes, contra o tecido frio. O olhar de Sam demorou-se ali e, quando regressou a mim, os seus olhos tinham os tons mais profundos de azul que eu alguma vez vira neles.
Ele chegou-se um pouco atrás, depois, inclinou-se e pressionou os lábios na pele abaixo do meu umbigo, murmurando nomes de músculos enquanto movia a boca pela minha barriga, deixando-me um rasto de beijos no corpo. Passou a língua pela abertura do umbigo e, de seguida, fez um traço quente e húmido pela minha barriga acima, parando para deixar beijos em diferentes sítios dos meus abdominais. As minhas ancas ergueram-se e agarrei o lençol com força, com ambas as mãos. Ele passou pelo espaço entre o meu peito e, quando pressionou a língua na cavidade entre as minhas clavículas, emiti um gemido gutural. Colei as mãos às suas costas, onde a pele era quente e macia, e ele chupou-me o pescoço, mesmo abaixo do queixo. Depois, avançou para a orelha, onde me mordiscou o lóbulo.
— Auricular lobule — murmurou, com os lábios colados ao meu ouvido. A seguir, ergueu-se sobre mim, com o rosto um pouco acima do meu. Apoiou-se num braço enquanto a outra mão descia até à minha cintura, no sítio onde tinha desapertado o fato de banho.
Envolvi-lhe o pescoço com os braços e ele juntou os lábios aos meus, suavemente. Beijei-o com mais força, abrindo caminho com a língua. A boca dele era uma gruta quente que eu queria explorar. Sabia a sal e a laranjas. Pus-lhe uma mão por entre o cabelo e mordi-lhe o lábio inferior. Quando nos afastámos, ele pôs a mão na parte de dentro da minha coxa.
— Quero tocar-te, Percy — disse, com a voz rouca. — Posso?
Deixei sair um sim estrangulado. Ele pôs-se de lado e ambos olhámos para os seus dedos, que entravam por baixo do tecido dourado. Percorreu a fenda húmida entre as minhas pernas e o pedaço de tecido resvalou para o lado com o movimento. Penetrou-me com um dos dedos e, então, olhou para mim, com um olhar cheio de assombro.
— Estamos a fazer isto? — perguntou, num sussurro, e eu não percebi se ele se referia àquele momento específico ou a algo maior entre nós, mas, de qualquer forma, a resposta era a mesma.
— Sim, estamos a fazer isto.