A Chantal leva muito a sério o brunch de domingo. Neste momento, estará, sem dúvida, sentada na sua mesa preferida, no seu restaurante preferido, a partilhar o jornal com o noivo. Estará a ler primeiro a secção de Artes, e ele, a Opinião, e depois irão trocar. Já terão os cafés na mesa, e os seus ovos Benedict estarão quase a chegar. Vou perturbar o seu ritual. Ela mal consegue falar até ter tomado, no mínimo, duas chávenas de cafeína, quanto mais lidar com a minha crise pessoal. Pelo menos, é isso que digo a mim própria enquanto lhe escrevo uma mensagem rápida, que depois apago, e, a seguir, pouso o telemóvel ao meu lado, na cama. Novamente. Abano a cabeça. É a quinta vez, certo? Pego no estúpido objeto, escrevo uma mensagem rápida, carrego em enviar e atiro-o. Fico sentada à espera — um minuto, cinco minutos — e, quando não chega nenhuma resposta, arrependo-me de sequer a ter enviado e salto para a casa de banho.
Deixo correr a água até o espelho ficar embaciado, entro para debaixo da corrente quente e encosto a cabeça aos azulejos da parede, deixando que todos os meus pensamentos ansiosos rodem à minha volta como gás mostarda.
Que raio se passa comigo? Que tipo de pessoa se aproveita do seu antigo namorado (que agora está solteiro!) no dia do funeral da mãe dele? O Sam nunca me vai deixar ficar na sua vida. E porque o faria? Sou uma pessoa egoísta e miserável, claramente incapaz de ser sua amiga.
Não percebo que estou a chorar até sentir os ombros a estremecerem. Repugnada com tanta pena de mim própria, afasto-me da parede, esfrego-me com força com o sabonete, lavo o cabelo e seco-me.
Chego à igreja dez minutos antes da hora e o parque já está cheio de carrinhas de caixa aberta e carros muito usados. Um rapaz jovem orienta os carros para estacionarem no terreno ao lado. Deixo o carro no fim de uma fila aleatória e caminho até à igreja, com os saltos dos sapatos pretos a enterrarem-se na erva, fazendo-me parecer tão desequilibrada como me sinto.
O Sam está em frente dos degraus da igreja, no meio de um pequeno grupo de pessoas. Paro de repente quando vejo a Taylor ao lado dele, as pernas longas como as de uma girafa e o cabelo claro como o sol. Embora tanto o Sam como o Charlie tivessem dito que ela iria estar presente, eu não estava à espera de a ver. Sinto-me como se tivesse ficado sem ar. Fecho os olhos com força, tentando manter o equilíbrio. Quando os abro, o Charlie está a olhar para mim do outro lado do parque. Ele levanta a mão e toda a gente se vira para mim.
Assim que me aproximo, reconheço imediatamente o senhor magro de meia-idade como sendo o Julien. Há um casal mais velho, que devem ser os avós do Charlie e do Sam, do lado paterno. Os pais da Sue já não são vivos. Há outro casal, que devem ser o irmão e a cunhada da Sue, de Otava. Respiro fundo e colo um sorriso caloroso no rosto, embora tenha o estômago às voltas.
— Esta é a Percy Fraser — diz o Charlie, quando me aproximo. — Provavelmente, lembram-se dela. Ela e os pais eram os donos da cabana ao nosso lado, quando éramos pequenos.
Cumprimento a família com abraços e condolências, fingindo que este é um funeral como outro qualquer e que não estou a sentir o Sam a olhar-me intensamente.
— Estás com bom ar, Percy — diz o Julien, dando-me um abraço frouxo. Esfrego-lhe os braços quando ele se afasta. Tem os olhos vermelhos e cheira a cigarros e a fumo.
Por fim, viro-me para o Sam e a Taylor. Depois do que aconteceu esta manhã, ele fechou-se de imediato, mas era de esperar. Quem quer ter a conversa do «Partiste-me o coração» na manhã do funeral da própria mãe? Tenho medo de olhar para ele, medo do que vou encontrar nos seus olhos. Arrependimento? Raiva? Dor?
Por isso, prefiro olhar para a Taylor. Tem a mão apoiada no ombro do Sam, de uma forma que grita «É meu». O Sam pode ter acabado com ela, mas ela claramente ainda não acabou com o Sam. Em troca, esboço um sorriso que diz «Não acabei de fazer o teu ex-namorado vir-se nas calças» e mantenho-o, apesar do nó que me aperta a garganta. Ela está espantosa, num macacão preto justo, com o cabelo apanhado num rabo de cavalo brilhante. Em comparação, o meu vestido preto cintado parece vulgar. Usa pouca maquilhagem e nenhum acessório e, de alguma forma, consegue passar a ideia de que foi um minimalismo propositado. Se eu saísse à rua só com rímel e lip gloss, pareceria apenas cansada. Para estar como estou, passei cinco minutos só a aplicar várias camadas de corretor para disfarçar os olhos inchados e o nariz vermelho.
Quando finalmente olho para o Sam, é como vê-lo pela primeira vez. Está direito como um pinheiro-bravo, vestindo uma camisa branca impecável e um fato preto caro, de corte justo. Barbeou-se há pouco tempo e tem o cabelo penteado e domado com um produto de fixação. Parece um ator que faz o papel de médico numa série televisiva, em vez de um médico verdadeiro.
Eu e o Sam cirandávamos sempre por todo o lado em fato de banho ou com a roupa do trabalho, e só o tinha visto de fato uma vez. Agora parece tão adulto, tão homem. Um homem que deve ter uma advogada lindíssima agarrada ao seu braço, em vez de uma trapalhona pendurada ao pescoço. Ele e a Taylor fazem um casal soberbo e é difícil não pensar que foram feitos para terem bebés espertos, bem-sucedidos e incrivelmente lindos.
Inclino-me para lhe dar um abraço e tenho uma sensação de chegada a casa, de despedida e de quatro mil dias de saudades.
— É melhor irmos entrando — diz a Taylor, e percebo que estive encostada ao peito do Sam um segundo a mais do que manda o cumprimento educado, mas, quando tento afastar-me, ele segura-me e abraça-me impercetivelmente com um pouco mais de força, antes de me soltar com uma expressão indecifrável no rosto.
Esta é a maior igreja da cidade, mas, mesmo assim, não é suficientemente grande para acomodar todas as pessoas que aparecem esta manhã e que fazem filas em pé atrás da última linha de bancos, acumulando-se junto às portas e espalhando-se pelo exterior. É uma manifestação incrível de amor e apoio. Mas também significa que a igreja fica quente e abafada. Quando conseguimos chegar aos bancos da frente, já tenho o pescoço e as coxas transpirados. Devia ter apanhado o cabelo. Fico sentada entre o Sam e o Charlie, com uma fotografia enorme da Sue a sorrir, olhando-nos diretamente, rodeada por lírios, orquídeas e rosas. Limpo a transpiração por cima do lábio superior e depois passo as mãos pelo vestido.
— Estás bem, Pers? — sussurra o Charlie. — Pareces ansiosa.
— Só com calor — respondo. — E tu?
— Nervoso — replica, mostrando um papel dobrado que deve ser o seu discurso. — Quero que ela se orgulhe de mim.
Quando chega a altura de o Charlie falar, ele agarra-se ao rebordo do púlpito com os nós dos dedos brancos. Abre a boca, fecha-a de novo, olhando para a multidão durante alguns segundos até começar a falar, a voz percetivelmente trémula. Para, respira fundo, depois recomeça, desta vez mais firme. Fala de como a Sue manteve a família unida e o negócio de pé depois de o pai dele ter morrido, e, embora tenha parado de falar um par de vezes para se recompor, consegue chegar ao fim sem lágrimas, com um alívio visível nos seus olhos verdes.
Para minha grande surpresa, quando o Charlie se senta no banco, o Sam levanta-se. Não fazia ideia de que ele também ia falar. Vejo-o a avançar, confiante.
— Muitos de vocês vão ficar chocados com isto, mas a minha mãe, na verdade, não gostava de pierogies — começa, com um pequeno sorriso nos lábios, e a igreja estremece com um riso baixo coletivo. — Do que ela gostava mesmo era de ver-nos a comê-los.
Ele mantém quase sempre os olhos na folha, mas é um excelente orador; enquanto o discurso do Charlie era sério e reverente, o do Sam brinca de forma gentil, quebrando a tristeza do momento com pequenas histórias sobre as lutas e os sucessos da Sue a educar dois rapazes. Depois, olha para cima, através da multidão, até que fixa o olhar em mim por breves momentos, antes de continuar. Pelo canto do olho, vejo a Taylor a observar-me, e o meu coração aperta os sapatos de corrida e sai disparado.
— A minha mãe viveu sem o meu pai durante 20 anos — continua ele. — Eram amigos desde a creche, começaram a namorar no 9.º ano e casaram-se no fim do secundário. O meu avô pode contar-vos que não houve forma de convencer nenhum deles a esperar mais algum tempo. Eles sabiam. Há pessoas com essa sorte. Encontram o seu melhor amigo, o amor da sua vida, e são suficientemente sábios para não o deixarem fugir. Infelizmente, a história de amor dos meus pais durou pouco tempo. Pouco antes de morrer, a minha mãe disse-me que estava pronta. Disse-me que estava cansada de lutar e cansada de ter saudades do meu pai. Pensava na morte como num recomeço, disse-me que ia passar toda a sua próxima vida com o meu pai, e eu gosto de pensar que é exatamente isso que eles estão a fazer neste momento. Os melhores amigos novamente reunidos.
Estou hipnotizada por ele. Cada palavra é uma seta no meu coração. Estou prestes a envolver-lhe o pescoço quando ele se vem sentar, mas então a Taylor puxa-lhe uma mão para o colo e prende-a entre as suas. A visão dos seus dedos entrelaçados acorda-me para a realidade. Eles fazem sentido juntos. São uma prenda cuidadosamente embrulhada em papel brilhante com um laço de cetim. Eu e o Sam somos uma trapalhada com mais de uma década e um grande e feio segredo entre nós. Amanhã volto para Toronto, para longe desta vila, para longe do Sam. Foi uma loucura ter voltado, ter achado que podia melhorar as coisas. Em vez disso, atirei-me a ele no seu momento mais vulnerável. E, por mais perfeita, certa e boa que tenha sido a sensação dos seus lábios contra os meus, eu não devia ter deixado aquilo acontecer sem ter sido honesta com ele primeiro. Apesar de tudo o que fiz para seguir em frente, estou exatamente no mesmo ponto em que estava aos 18 anos.
O Charlie oferece-me o braço enquanto saímos da igreja, e depois encaminho-me lentamente para o carro com um peso que me oprime o peito. Descanso a cabeça no volante.
Não devia estar aqui. Não devia ter vindo.
Mas não posso ir-me embora, ainda falta assistir ao convívio, por isso, espero que aquele peso alivie um pouco e, depois, conduzo até à Taberna.
*
No restaurante, o que há é mais uma turbulenta reunião familiar do que um encontro pós-funeral. Vejo os familiares e amigos sorridentes a misturarem-se, com pratos cheios dos pierogies da Sue. As mesas foram afastadas do centro, para dar espaço a toda a gente, e alguém preparou uma seleção das músicas country preferidas da Sue. Não demora muito até um grupo de crianças começar uma roda de dança, saltando e batendo palmas ao som da Shania Twain e da Dolly Parton. A cena é muitíssimo bonita e eu sou apenas uma impostora dentro dela.
Ignoro o telemóvel que começa a vibrar dentro da minha mala e peço um copo de vinho ao empregado jovem que está no bar. Tento encontrar uma cara conhecida com quem possa conversar durante algum tempo, antes de poder retirar-me para o motel. O Charlie está na conversa com outros fumadores, reunidos na esplanada. O Sam e a Taylor não estão em lado nenhum, e o Julien ou está escondido na cozinha ou está a repor a comida nas travessas do bufete. Vou lá atrás para o ajudar, mas o espaço está vazio e a porta das traseiras está aberta. Encaminho-me para ela, para ver se ele está lá fora a fumar, mas hesito quando ouço vozes.
— És doido, pá — diz uma voz grave. — Tens a certeza de que queres passar por tudo outra vez?
— Não. — Ouço a resposta do Sam. — Não sei. — A sua voz soa confusa, frustrada. — Talvez queira.
— Precisas que te recordemos da desgraça em que ficaste da última vez? — pergunta uma terceira voz. Sei que devo sair dali, mas não o faço. Os meus pés estão colados ao chão e o meu telemóvel começa a vibrar novamente.
— Não, claro que não. Eu estava lá. Mas éramos miúdos.
Agora, sei que é de mim que estão a falar. Fico ali parada, com o vestido húmido da transpiração, aguardando pelo pelotão de fuzilamento.
— Não venhas com essa treta. Eu também estava lá — replica a primeira voz. — Miúdos? Ficaste mesmo lixado da cabeça para quem era só um miúdo.
Não quero ouvir o resto. Não quero ouvir mais nada sobre o quanto destruí o Sam.
— Sam — começa a outra voz, suavemente —, demoraste anos, lembras-te?
Sinto-me agoniada. Viro-me e saio de rompante pelas portas batentes, para a sala, e dou caras com o Charlie.
— Eh, lá! Tens algum sítio melhor aonde ir? — As covinhas do Charlie desvanecem-se quando ele olha bem para mim. — Estás pálida e meio suada, Pers. Está tudo bem?
Não tenho ar suficiente para lhe responder, e o coração bate-me tão depressa que o sinto em todos os centímetros da minha pele. Talvez desta vez seja mesmo um ataque cardíaco. Posso morrer. Neste instante. Tento respirar, mas os cantos da sala ficam desfocados. O Charlie conduz-me de volta à cozinha, sem que eu consiga dizer-lhe para não o fazer. Ouço um som horrível de uma respiração em silvos e percebo que sou eu. Dobro-me, tentando recuperar o fôlego, e então caio sobre as mãos e os joelhos. Ouço vozes abafadas, mas parecem estar muito longe, como se eu estivesse a nadar debaixo de lama e elas estivessem na margem. Fecho os olhos com força.
Sinto uma pressão muito leve nos meus ombros. Através da lama, ouço uma voz a contar lentamente: «Sete. Oito. Nove. Dez. Um. Dois. Três…» E continua. Ao fim de um bocadinho, começo a ajustar a minha respiração àquele ritmo. «Quatro. Cinco. Seis. Sete.»
— Que se passa? — pergunta alguém.
— É um ataque de pânico — responde a voz, e continua a contar. «Oito. Nove. Dez.» — Muito bem, Percy — diz a voz. — Continua a respirar.
Eu continuo a respirar. O coração começa a abrandar. Respiro profunda e longamente e abro os olhos. O Sam está agachado junto de mim, com a mão no meu ombro.
— Queres levantar-te?
— Ainda não — replico, com a vergonha a substituir a sensação de morte iminente. Inspiro fundo mais algumas vezes, volto a abrir os olhos, e o Sam continua ali. Lentamente, ponho-me de joelhos e ele ajuda-me a levantar, com as mãos nos meus cotovelos e a testa franzida, com um ar de concentração. Atrás dele, estão dois homens, um negro extremamente bonito e outro pálido e muito alto, de cabelo preto e óculos.
— Percy, ainda te lembras dos meus amigos, o Jordie e o Finn? — pergunta o Sam.
Começo a desculpar-me, mas reparo no Charlie ao meu lado. Observa-me de perto, como se tivesse percebido qualquer coisa, como se estivesse a ligar pontos que antes não encaixavam.
— Foi um ataque de pânico? — pergunta, e sei que ele não se refere só ao que acabou de acontecer.
Respondo com um pequeno aceno.
— Costumas ter muitos? — questiona o Sam, de sobrancelhas franzidas.
— Já não tinha um há muito tempo — respondo-lhe.
— Quando é que começaram, Percy?
Pestanejo e olho para ele.
— Hum… — E olho para o Charlie, por um segundo. — Há cerca de doze anos.