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Outono, Treze Anos Antes

Eu e a Delilah estávamos no refeitório na primeira semana do nosso último ano do secundário e eu sorria de tal maneira que nem um balde de água fria teria conseguido acabar com a minha boa-disposição. Tinha acabado de comprar um Toyota em segunda mão nesse fim de semana, e a sensação de liberdade puxava-me os cantos dos lábios para cima, como se tivessem fios de marioneta. O meu pai tinha concordado em dividir o valor de um carro em segunda mão comigo e tinha ficado muito espantado por eu ter conseguido poupar 4000 dólares em gorjetas.

— Não sejas uma dessas miúdas — disse a Delilah, agitando uma batata frita à frente da minha cara. Eu tinha acabado de mencionar que estava a pensar deixar a equipa de natação. Os treinos eram durante a semana, mas as competições costumavam ser aos fins de semana, e eu tinha grandes planos para passar todos os fins de semana em Barry’s Bay, com o Sam.

— Que miúdas? — perguntei, com a boca cheia de uma dentada de sanduíche de atum, ao mesmo tempo que um rapaz ruivo giro se sentava diante da Delilah, estendendo-lhe a mão.

— A sério? — perguntou ela, agitando outra batata frita na sua direção, antes que ele pudesse dizer alguma coisa.

— Sou novo aqui — gaguejou ele, recolhendo a mão. — Pensei que devia cumprimentar-te.

A Delilah olhou para mim como quem diz «Consegues acreditar nisto?» e depois olhou-o com altivez.

— Porquê? Achaste que, por sermos os dois ruivos, podíamos juntar-nos num alegre conjunto de cabeças de cenoura? Não vai acontecer — disparou ela. — Adeusinho.

Ele olhou para mim, a verificar se ela estava a brincar ou não.

— Ela parece muito mais doce do que realmente é — afirmei, encolhendo os ombros.

Depois de ele se ir embora, a Delilah virou-se de novo para mim.

— Como eu estava a dizer, não queiras ser uma das miúdas que nunca têm nada de interessante para dizer porque só conseguem pensar no namorado e só sabem coser-lhe as meias ou o que for. Essas miúdas são chatas. Não te tornes uma chata, Persephone Fraser. Seria obrigada a acabar tudo contigo.

Ri-me e ela semicerrou os olhos. Não estava a brincar.

— Está bem — respondi, levantando as mãos. — Não vou deixar a natação. Mas o Sam não é o meu namorado. Ainda não lhe demos um rótulo, sabes? É uma coisa nova.

— Não é nada novo. Tem para aí uns cem anos — disse ela, abanando a cabeça. — Não interessa se lhe põem um rótulo ou não, vocês estão juntos. E para de sorrir dessa maneira, estás a deixar-me enjoada.

*

Nos fins de semana em que não tinha natação, carregava o carro à quinta-feira à noite e, na sexta-feira depois das aulas, dirigia-me diretamente para o lago. Ao princípio, os meus pais não gostaram disso, mas convenci-os com «Estou quase a fazer 18 anos», «Qual é a vantagem de ter uma cabana se não a usamos?» e prometi-lhes que estudava enquanto lá estivesse. O que não lhes disse foi que também planeava enfiar a língua pela garganta do Sam abaixo assim que estivesse sozinha com ele. Mas, de qualquer maneira, eles descobriram.

No dia depois de o Sam ter explorado todos os centímetros do meu corpo, em agosto, a Sue viu um chupão no pescoço dele. Fiel à sua caraterística honestidade, o Sam disse-lhe exatamente quem lho tinha feito. Antes da minha primeira viagem sozinha ao lago, a Sue ligou à minha mãe para se certificar de que os meus pais sabiam o que se passava entre nós. A minha mãe nunca me contou nada disto, mas, segundo o Sam, a Sue disse aos meus pais que eu e ele tínhamos iniciado uma «relação física» e depois pô-lo ao telefone com a minha mãe para que lhe prometesse que ia tratar-me sempre com respeito e cuidado.

Os meus pais nunca falavam comigo sobre sexo, e fiquei chocada por uma conversa daquelas ter existido. Mas, quando desfiz a mala de fim de semana, encontrei uma caixa de preservativos com uma nota adesiva colada que dizia «Se for preciso», escrito com a letra da minha mãe.

O Sam trabalhava às sextas e, por norma, eu conduzia diretamente até à Taberna e esperava lá que ele terminasse o turno. Desde que o Charlie se tinha ido embora para a faculdade, ele ajudava o Julien a cozinhar. Se o restaurante estivesse muito cheio quando eu lá chegava, vestia um avental e ia atender às mesas ou ajudar o Glen, o rapaz de sardas que tinha substituído o Sam na máquina da louça. Se estivesse calmo, ia para o bar estudar até que o Julien deixasse o Sam sair.

O Sam insistia em tomar banho depois do turno, por isso, íamos sempre a casa dele. Pelo caminho, púnhamos em dia o que tinha sido a nossa semana — os treinos de natação, os exames de Biologia, os dramas da Delilah — e depois subíamos as escadas a correr. A seguir ao duche do Sam, tínhamos aproximadamente 30 minutos até a Sue chegar a casa, depois de fechar o restaurante. Deixávamos as luzes apagadas, num choque frenético de línguas, dentes e mãos, e quando as luzes do carro da Sue brilhavam na janela do Sam, vestíamo-nos e corríamos lá para baixo, para a cozinha, colocando os pratos de comida que o Julien nos tinha dado dentro do micro-ondas. Comíamos na mesa da cozinha, trocando olhares e toques com os pés debaixo da mesa, enquanto a Sue preparava o seu próprio jantar.

«Vocês são subtis como elefantes», dissera-nos ela uma vez.

No fim de setembro, as folhas começaram a mudar e a água ficou demasiado fria para nadar, por isso, criámos uma nova rotina matinal. Começava comigo a dormir até mais tarde, até o Sam ir bater-me à porta depois do seu treino. Ele fazia meias de leite, eu preparava baguetes ou cereais, e comíamos ao balcão, falando sobre a história que eu estava a escrever, sobre a nova namorada do Finn, que nem o Jordie nem o Sam suportavam, ou sobre as candidaturas à faculdade, que terminavam em janeiro.

A Delilah, o Sam e o Jordie estavam virados para a Queen’s, em Kingston, a universidade tinha um belo campus histórico e era considerada uma das melhores do país. A Delilah queria entrar em Ciência Política, o Sam, em Medicina e o Jordie, em Gestão (a Queen’s era reconhecida por estes três cursos). O Sam continuava a lutar por uma bolsa; por mais que a Sue trabalhasse, não tinha dinheiro suficiente para suportar as propinas do curso e o alojamento. E, a não ser que as minhas notas tivessem uma queda abrupta, eu iria para a Universidade de Toronto, como era o sonho dos meus pais, alimentado, em parte, pela sua ligação à universidade, e também porque o seu desconto de professores cobria metade das minhas propinas. Se entrasse, queria candidatar-me ao curso de Inglês e queria fazer o máximo possível de cadeiras de Escrita Criativa. A Universidade de Toronto era excelente, mas escusado será dizer que preferia que eu e o Sam estivéssemos a planear a nossa ida para a universidade juntos. Toronto ficava a quase três horas de distância de carro de Kingston, duas e meia se eu conduzisse depressa e sem trânsito. Um bichinho de preocupação começava a escavar-me o cérebro, dizendo-me que aquilo não duraria a partir do momento em que o Sam fosse para a universidade.

Os meus pais vieram para o Dia de Ação de Graças, e as nossas famílias fizeram o jantar juntas, com a companhia do Julien, que a Sue finalmente convencera a ir. Com o Charlie, que tinha vindo passar o fim de semana prolongado, éramos sete à volta da mesa da sala dos Floreks, e, entre o Charlie e o Julien, eu e o Sam fomos sujeitos a piadas infindáveis sobre a nossa relação. Não que nos importássemos. Dávamos as mãos debaixo da mesa e riamo-nos do choque inicial dos meus pais com a língua afiada do Julien e com as insinuações do Charlie sobre gravidezes na adolescência.

No Natal, voltámos a estar todos juntos, mas os meus pais regressaram à cidade para passar o Ano Novo, e eu fiquei a trabalhar na Taberna. À meia-noite, o Sam arrastou-me pelas escadas abaixo, para a cave refrigerada e, encostados às caixas de fruta, beijámo-nos.

— Estou tão apaixonado por ti — disse ele, quando nos afastámos, com a respiração visível no ar.

— Juras? — sussurrei, e ele sorriu e beijou-me a parte de dentro do pulso, sobre a pulseira.

Com a autorização dos meus pais, a Sue deixou-me passar a noite em casa deles e, depois de todos termos tomado banho e vestido os pijamas, ela abriu uma garrafa de prosecco, serviu-se num copo do tamanho de um aquário e retirou-se para o quarto, deixando-me a mim e ao Sam com o resto da garrafa. Pusemos uma coisa qualquer no leitor de DVD e enrolámo-nos no sofá da cave.

Esperei dez minutos para ter a certeza de que a Sue não voltava atrás e rastejei para o colo do Sam, pondo um joelho de cada lado das suas ancas. Vinha agitada do trabalho e excitada por dentro pelo seu «Amo-te» e também pelo prosecco. Tirei-lhe a camisola pela cabeça e beijei-o do peito até ao pescoço, e depois até à boca, onde as nossas línguas se encontraram. Ele começou a desapertar a minha camisa de flanela cor-de-rosa, os dedos a tremerem de excitação, e, de repente, parou, quando viu que não tinha nada por baixo. Olhou para mim, com as pupilas a engolirem os olhos azuis num mar de meia-noite. À exceção do que tinha acontecido em casa dele em agosto, não tínhamos ido mais longe do que curtir sem camisolas, mas com soutien. Eu desapertei os botões que faltavam.

— Também estou tão apaixonada por ti — murmurei e tirei a parte de cima do pijama. O olhar dele pousou no meu peito e senti-o endurecer por baixo de mim.

— És mesmo perfeita — rouquejou quando os nossos olhos se encontraram de novo, e eu sorri e apertei-me contra ele. As suas mãos agarraram-me pela cintura, depois, percorreram o caminho até aos meus seios e ele gemeu.

Inclinei-me para o ouvido dele, de forma que a nossa pele se tocasse, e sussurrei-lhe:

— Quero mostrar-te o quanto te amo.

Pus a mão entre nós e fechei os dedos em volta da sua forma masculina. Ele mordeu o lábio e esperou, o peito a mover-se com a força da respiração.

— Está bem — suspirou, e puxámos juntos as calças dele para baixo. — Não vou aguentar muito — avisou, com a voz grave e séria. Passou a mão pelo meu peito, beliscando o pico cor-de-rosa. — Podia vir-me assim, só de olhar para os teus mamilos rijos.

Olhei-o intensamente. Nunca o tinha ouvido falar daquela maneira e senti uma corrente de fogo a atravessar-me. Puxei-lhe o cós dos boxers e afastei-me um pouco para ele poder tirá-los, fitando-o de olhos arregalados. Pus-lhe a mão à volta, temerosa e duvidosa. Não fazia ideia do que estava a fazer.

— Mostra-me como é — disse-lhe, e ele fechou a mão sobre a minha.

*

Nessa primavera, o Sam, o Jordie e a Delilah receberam cartas a confirmar que tinham entrado em Queen’s, e eu fiquei feliz por eles, especialmente pelo Sam, que conseguiu uma das poucas bolsas académicas que podiam cobrir-lhe todo o custo do curso.

A minha entrada na Universidade de Toronto foi recebida com muito entusiasmo dos meus pais e do Sam, mas eu não conseguia deixar de sentir que estava pregada ao chão enquanto toda a gente embarcava numa nave espacial.

Não que o Sam me tivesse dado alguma razão para que eu me sentisse assim. Quando estávamos separados, trocávamos e-mails constantemente, e já fazíamos planos para quando pudéssemos ver-nos, depois de começarmos as aulas na faculdade. Ele mandou-me o horário do comboio que ligava Kingston a Toronto — as viagens demoravam menos de três horas — e a lista mais querida e aplicada das livrarias e hospitais que devíamos visitar em ambas as cidades.

Em abril, Toronto estava repleta de tulipas e narcisos, e os botões das magnólias e das cerejeiras começavam a rebentar. Mas, no lago, pedaços de neve gelada ainda pendiam nas bermas de Bare Rock Lane e pelos bosques. Eu e o Sam trilhávamos o caminho ao lado do riacho, afundando as botas onde a neve ainda era surpreendentemente alta e escorregando no solo húmido onde batia o sol que tinha conseguido atravessar os ramos. Cheirava a frescura e a humidade ao mesmo tempo, como aquelas máscaras faciais caras que a minha mãe usava, e havia tanta água a correr no riacho que tínhamos de aumentar o volume da voz para nos conseguirmos ouvir.

A corrente estava mais parada no pequeno lago onde havia a velha árvore caída sobre ele. Estava um dia luminoso, mas frio à sombra dos pinheiros, e a casca estava tão empapada que eu conseguia sentir a humidade mesmo com as calças de ganga. Estava contente por o Sam me ter convencido a trazer o casaco acolchoado.

— Bem, vai haver uma grande festa no fim do ano — disse o Sam, quando nos instalámos, enquanto me passava um dos bolinhos de aveia da Sue, que tinha guardado nos seus bolsos. — É logo a seguir à entrega dos diplomas e, hum, toda a gente se veste bem…

Afastou o cabelo dos olhos — não o cortava há meses e ele caía-lhe na testa em caracóis e canudos.

— É o baile de finalistas? — perguntei, a rir.

— Há um baile de finalistas, mas não é nada de especial. Isto é uma grande festa de finalistas, só que acontece num grande campo no meio dos bosques.

Arqueou as sobrancelhas, como a perguntar: «Então, o que achas?»

— Parece-me divertido, e agora tens tempo para te divertires — respondi, trincando o bolinho.

Ele aclarou a voz.

— Então, eu estava a pensar, se não coincidir com a tua entrega de diplomas, se querias ir comigo — balançou-se um pouco e esclareceu —, como minha acompanhante.

— Vais vestir um fato? — questionei e sorri ao imaginá-lo.

— Há quem leve blazers — disse ele devagar. — Isso é um sim?

— Se fores de fato, aceito. — E dei-lhe uma cotovelada. — A nossa primeira saída.

— A primeira de muitas — retorquiu, com outra cotovelada. O sorriso falhou-me. — Haverá outras saídas, Percy — prometeu ele, lendo-me os pensamentos e baixando o rosto na direção do meu. — Eu vou ver-te a Toronto, tu vais ver-me a Kingston, sempre que pudermos.

Sentia picadas no nariz, como se tivesse comido uma colher de pimenta.

— Quatro anos separados é muito tempo — murmurei, rodando a pulseira.

— Para nós os dois? Não vai ser nada — respondeu ele baixinho e, antes que eu pudesse pedir, ele meteu o dedo na minha pulseira e deu-lhe um puxão suave. — Juro. Além disso, temos tempo. Temos o verão todo.

Mas estava enganado. Não tivemos o verão todo.

*

O Sam lia livros escolares — por divertimento! — no seu tempo livre e conseguira uma bolsa académica completa para um dos cursos mais competitivos do país, portanto, é claro que eu sabia que ele era inteligente. Mas descobrir que ele tivera a média mais alta do seu ano deixou-me siderada.

— Portanto, és, tipo, sobredotado? — perguntei, quando ele me ligou a dar a notícia. — Porque é que não me disseste?

— Eu estudo e, para mim, a escola é fácil — respondeu. Quase conseguia vê-lo a encolher os ombros. — Não é assim tão importante, a sério.

Mas era mesmo importante. Ter a melhor média do seu ano significava que o Sam era o seu representante e, como tal, teria de fazer o discurso no dia da entrega dos diplomas.

Conduzi até Barry’s Bay no dia da cerimónia, que era também o da grande festa à noite, com o vestido branco sem alças que eu e a Delilah tínhamos escolhido no centro comercial pendurado atrás no carro.

A minha entrega de diplomas — uma ocasião abafada e desinteressante, que era realizada no campo de futebol da escola, ao fim da tarde — acontecera uns dias antes. Quando cheguei à cabana, só tive tempo de tomar um duche, vestir-me, aplicar uma maquilhagem leve e arranjar o cabelo numa trança que me caía de lado, sobre o ombro. Tinha pedido ao Sam para descobrir que tipo de calçado as raparigas usavam para uma festa chique no bosque, pelo que me dirigi a casa dos Floreks com uns chinelos de tiras prateadas com missangas.

O Charlie já tinha voltado do seu segundo ano na Western, e a Sue e os dois rapazes estavam sentados no alpendre com copos molhados de chá gelado, quando eu entrei no caminho de acesso à casa. Os três juntos em casa, no entardecer de uma sexta-feira, no verão, era um acontecimento raro. O Sam levantou-se da cadeira de baloiço e atravessou o alpendre para me cumprimentar, vestido com um fato preto, uma camisa branca e uma gravata preta. Tinha cortado o cabelo e parecia um James Bond adolescente.

Nem acredito que ele é meu, foi o que pensei enquanto lhe punha as mãos nos ombros e descia pelos braços, mas o que lhe disse foi:

— Assim parece-me bem.

Ele esboçou um sorriso de quem provavelmente estava consciente de quão elegante estava e deu-me um beijo leve na cara. Depois, posámos para as fotografias da Sue.

Desde o momento em que entrámos na escola, apercebi-me de que o Sam não era só uma cabeça, também era acarinhado. Não fora propriamente uma surpresa. Eu sabia que o Sam era espetacular — só não sabia que toda a gente o sabia também. Havia rapazes a cumprimentarem-no e a darem-lhe palmadas nas costas e várias raparigas rodearam-lhe o pescoço com os braços, suspirando «Nem acredito que isto acabou», sem se preocuparem comigo. Eu conhecia mais ou menos o Jordie e o Finn, mas todo aquele mundo a que ele pertencia, e de que talvez fosse o centro, era-me totalmente desconhecido.

Em algumas coisas, o Sam tinha continuado a ser, para mim, o rapazinho desajeitado que eu conhecera, que tinha problemas a relacionar-se com os colegas depois da morte do pai, e depois o adolescente que nunca queria divertir-se a não ser que eu o incentivasse a isso. Mas vê-lo entrar no palco com o seu chapéu e capa de formação, ovacionado pelos colegas, foi como ver a metamorfose acontecer naquele instante. Fez o seu discurso numa voz clara e forte — foi humilde, divertido, esperançoso e foi completamente charmoso. Eu estava paralisada e orgulhosa e, quando me levantei com o resto do público para o aplaudir, uma semente de medo rebentou dentro de mim. O Sam tinha estado protegido em Barry’s Bay, só para mim, mas, em setembro, iria partir para um mundo muito maior, um que certamente o arrastaria para as suas infinitas possibilidades.

— Estás bem? — perguntou baixinho o Sam, quando íamos à boleia do Charlie para a festa, os três sentados à frente na sua carrinha.

— Sim. Estava só a pensar em como este verão vai passar rápido — respondi, vendo como os arbustos se iam tornando mais densos na berma da estrada à medida que íamos avançando. — Pelo menos, ainda temos mais dois meses.

Sorri, timidamente, ao mesmo tempo que o Charlie resmungava qualquer coisa como se estivesse a tossir.

— O que é que me chamaste? — chateei-me.

— Não és tu.

Olhou para o Sam pelo canto do olho e não disseram mais nada.

Já estávamos no carro há cerca de 20 minutos quando o Charlie virou para uma estrada de terra que entrava pelo bosque e, depois, sem aviso, abria-se para uma clareira gigante. O sol já se tinha posto, mas havia luz suficiente para ver a antiga casa de campo e os celeiros no topo da estrada de terra. Dezenas de carros estavam estacionados em filas na relva, e havia um pequeno palco com aparelhagem de DJ montado na ponta de um dos pastos. O Charlie parou em frente da casa de campo, onde havia duas raparigas sentadas a uma mesa dobrável, com uma caixa de dinheiro e uma pilha de copos de plástico vermelhos. A entrada e um copo, que se enchia no barril, custava 20 dólares.

— Venho buscar-vos à uma, aqui neste sítio — disse ele, depois de sairmos, e foi-se embora no meio de uma nuvem de pó.

O ar cheirava a erva fresca e a desodorizante Axe. Havia mais pessoas a circularem pelos campos do que os finalistas do ano do Sam. De facto, as raparigas usavam chinelos de tiras ou sandálias com os vestidos, algumas com vestidos de festa compridos, e outras, com vestidos mais casuais. A maioria dos rapazes vestia calças de cerimónia e camisa, mas alguns, como o Sam, vestiam blazers. Enchemos os nossos copos e tentámos encontrar o Jordie e o Finn, mas as únicas luzes eram as do palco e tínhamos de semicerrar os olhos para tentar reconhecer caras naquela luz fraca.

De tantos em tantos minutos, alguém se aproximava do Sam para lhe dizer que o seu discurso tinha sido fantástico. Abrimos caminho até ao palco, vendo outras pessoas, já mais embriagadas, a dançarem com os braços em volta do pescoço umas das outras.

Ao fim de algumas cervejas, reparei que não havia casas de banho portáteis e que as raparigas se esgueiravam para se aliviarem no bosque. Depois disso, comecei a beber menos, mas, a certa altura, tive de o fazer no meio dos arbustos, como toda a gente.

— Foi uma experiência única — disse ao Sam quando voltei. As luzes vermelhas do palco iluminavam o seu sorriso de quatro cervejas e os olhos embaciados.

— Dança comigo — pediu ele, pondo os braços à volta da minha cintura, e balançámos lentamente, apesar de a música ser um tema de dança bem compassado.

— Eu sei que um milhão de pessoas já te disse isto hoje — comecei, com os dedos enrolados no cabelo da sua nuca —, mas o teu discurso foi maravilhoso. Pensava que eu é que era a escritora nesta relação. Que outros segredos andas a esconder-me, Sam Florek?

O sorriso desapareceu-lhe do rosto.

— Que foi? — Ele contraiu os lábios e eu senti o estômago a revolver-se. — Que foi, Sam? Andas a esconder-me alguma coisa? — perguntei e parei de dançar.

— Vamos para um sítio mais sossegado — respondeu ele, pegando na minha mão e levando-me para mais longe do palco, para junto de um monte de pedregulhos. Puxou-me para trás das pedras e passou a mão pelo cabelo.

— Sam, estás mesmo a assustar-me — avisei-o, tentando manter a voz firme. A cerveja deixava-me tonta. — O que se passa?

Ele respirou fundo e meteu as mãos nos bolsos.

— Entrei num workshop para estudantes de Medicina.

— Um workshop? — repeti. — Não me disseste que te tinhas candidatado.

— Eu sei. Tinha poucas hipóteses. Só aceitam doze estudantes de primeiro ano. Nunca pensei que pudesse entrar.

— Bem, isso é ótimo! — respondi, com a voz arrastada. — Estou orgulhosa de ti, Sam.

— Percy, parece que — hesitou, mudando o peso de um pé para o outro — começa cedo. Tenho de estar lá daqui a três semanas.

Foi como se me caísse ácido sulfúrico pela espinha abaixo.

— Três semanas? — repeti. Três semanas não era tempo suficiente. E quando voltaria a ver o Sam depois disso? No Dia de Ação de Graças? Fechei os olhos, estava tudo a andar à roda.

— Desculpa não te ter dito mais cedo. Devia tê-lo feito, mas sabia que estavas desejosa de passarmos o verão juntos — disse ele, pegando-me na mão.

— Pensei que tu também estavas — murmurei. Depois, vomitei para cima dos sapatos novos dele.

O Charlie olhou para mim quando entrei na carrinha, com a cara manchada de lágrimas e rímel, e disse ao Sam:

— Finalmente, contaste-lhe, hem?

O Sam lançou-lhe um olhar sombrio e ninguém voltou a falar durante a viagem.

As três semanas passaram como se fossem segundos, e o meu medo ganhou raízes nos meus pés e ganhou ramos que se espalharam pelos meus ombros e braços. O Sam passava a maior parte do nosso tempo focado em livros de estudo, como se estivesse a preparar-se para um exame decisivo. Recusou-se a cancelar a nossa tradicional travessia a nado do lago e insistiu que eu a fizesse no último dia antes de ele ir para a faculdade. Estava uma manhã de sol esplendorosa, e eu fiz os alongamentos e aquecimentos necessários. Desde que começara a fazer natação competitiva, a travessia do lago já não era o desafio que tinha sido em tempos. Senti-me quase dormente quando cheguei à outra margem, juntando os joelhos ao peito e sorvendo a água que o Sam me trouxera.

— O teu tempo mais rápido de sempre — afirmou ele, feliz, quando eu terminei, pondo um braço à minha volta e puxando-me para ele. — Até pensei que não ia conseguir acompanhar-te.

Soltei um riso amargo.

— Isso tem graça — repliquei, detestando o meu tom ressentido. — Eu é que sinto que vou ficar para trás.

— Não pensas mesmo isso, pois não?

Não o encarei, mas senti a sua preocupação quando falava.

— E o que é que devo pensar, Sam? Não me disseste que te tinhas candidatado. E não me disseste quando foste aceite. — Esforcei-me por engolir as lágrimas. — Compreendo porque é que queres ir. É incrível teres conseguido entrar. E eu sei, sem dúvida, que vai ser ótimo para ti. Mas teres escondido isto de mim até ao último minuto magoa-me. Muito. Faz-me sentir que isto que temos só funciona para um lado.

— Não é nada! — exclamou ele, com a voz a falhar. Puxou-me para o seu colo, para me encarar, e pegou-me na cara com as mãos, de modo que eu não pudesse desviar o olhar. — Bolas, não é nada disso! És a minha melhor amiga. A minha pessoa preferida.

Beijou-me e puxou-me contra o seu peito nu. Estava húmido de suor e ele cheirava tanto a verão, tanto a Sam, que eu só queria enroscar-me dentro dele.

— Vamos falar constantemente.

— Sinto que nunca mais te vou ver — admiti, e ele sorriu-me com pena, como se eu estivesse a ser muito ridícula.

— É só a universidade — disse, beijando-me no cocuruto molhado. — Um dia, não vais conseguir ver-te livre de mim. Prometo-te.

*

A Sue e o Sam partiram cedo na manhã seguinte, enquanto eu e o Charlie lhes acenávamos do alpendre, eu com lágrimas a escorrerem-me pela cara.

— Anda — disse ele, depois de o carro ter desaparecido de vista, pondo o braço à volta dos meus ombros. — Acho que devíamos ir dar uma volta de barco.

Descobri que o Charlie era muito menos palerma quando o Sam não estava por perto para ele o chatear.

Os meus pais ficaram surpreendidos quando decidi aceitar mais turnos na Taberna. Mesmo quando não ia trabalhar, o Charlie dava-me boleia. Na maioria dos dias, aparecia a nado quando eu estava no lago, só para saber de mim.

Eu não estava muito bem. Tinha passado mais de uma semana sem saber nada do Sam, embora tivesse finalmente arranjado um telemóvel antes de partir para Kingston. Sabia que ele não ia enviar-me muitas mensagens, mas não conseguia descortinar porque é que ele nem sequer respondia às minhas mensagens: «Como estás?», «Saudades tuas» e «Podemos falar???» Quando liguei para o telefone fixo do seu quarto, ele não atendeu.

O Charlie lançava-me olhares interrogativos sempre que eu entrava na cozinha para ir buscar um pedido. Numa noite, a caminho de casa, ele desligou o motor no meio do lago e virou-se para mim.

— Deita cá para fora — ordenou-me.

— Deito o quê?

— Não sei, Pers. Diz-me tu. Sei que estás triste por o Sam se ter ido embora, mas tens andado para aí a arrastar-te como se fosses a Miss Havisham.

— Sabes quem é a Miss Havisham? — resmunguei.

— Vai-te lixar.

Suspirei.

— Ainda não tive notícias dele. Nem um e-mail. Nem um único telefonema.

O Charlie esfregou a cara.

— Acho que ainda não tem acesso à Internet. E a minha mãe já disse que ele ligou para casa. Está tudo bem.

— Mas porque é que não me ligou? — gemi, e o Charlie riu-se.

— Sabes que as chamadas de longa distância são caras, Pers.

— Uma mensagem?

O Charlie suspirou, depois hesitou.

— Bem, queres saber o que eu penso?

— Não tenho a certeza. — Semicerrei os olhos. Nunca sabíamos o que ia sair do Charlie.

— Sinceramente, acho que o meu irmão foi cobarde em ter escondido o curso. — Fez uma pausa. — E, se fosse eu, ter-te-ia ligado assim que chegasse a Kingston.

— Obrigada — respondi, corada.

— O Sam tem metido na cabeça que tu lhe pertences. Não de uma forma obsessiva e esquisita, mas no sentido em que ele acredita que está escrito que tudo vai resultar bem para vocês no fim. E eu acho que isso é basicamente uma treta.

Empalideci.

— Achas que não vai resultar? — sussurrei.

— Acho que nada está escrito — respondeu categoricamente. — Ele já estragou as coisas uma vez, quando arranjaste aquele namorado jogador de hóquei. Espero que lute mais desta vez — disse, ligando o motor. — Ou alguém lutará.