Quando finalmente tive notícias do Sam, já tinham passado duas semanas desde que ele partira para a faculdade e eu estava furiosa. Ele pediu muitas desculpas e fartou-se de dizer «Como estás?», «Amo-te» e «Tenho saudades», mas também estava distante. Evitou as minhas perguntas sobre o workshop, o quarto, os outros estudantes, ou deu respostas monossilábicas. Cinco minutos depois do início do telefonema, ouviu-se bater à porta do lado de lá e a voz de uma rapariga perguntou se ele estava pronto para sair.
— Quem era? — perguntei, secamente.
— Era só a Jo.
— Uma amiga?
— Sim, também está no workshop — explicou ele. — A maior parte de nós está no mesmo piso. Vamos ter um convívio agora e, bem, tenho de ir.
— Ah. — Eu conseguia ouvir o sangue a latejar-me nos ouvidos, quente e raivoso. — Nem sequer dissemos as três novidades.
— Ouve, mando-te um e-mail mais logo. Finalmente, consegui ter Internet esta semana.
— Conseguiste ter Internet esta semana? No início da semana?
— Há uns dias, sim.
— Ah.
— Não te escrevi porque, na verdade, não havia muito a dizer. Mas vou escrever-te, está bem?
Fiel à sua palavra, o Sam mandou um e-mail, umas notas rápidas e insatisfatórias, prometendo novidades mais detalhadas em breve. Mandou até uns textos. Contei tudo à Delilah, que prometeu ficar de olho nele quando chegasse à universidade e contar-me tudo sobre qualquer «rabo de saias» que visse com ele, e ao Charlie, que me ouviu, mas não deu grande resposta.
— Tens de começar a nadar outra vez — disse o Charlie, quando chegámos ao restaurante, numa noite de chuviscos, depois de eu lhe falar sobre a última mensagem do Sam. Dizia que ia mudar-se para um quarto de duas pessoas para que ele e o Jordie pudessem ficar juntos a partir de setembro. — Como quando ias com o Sam — continuou o Charlie, sem olhar para mim. — Tens de tirar isso da cabeça. Começamos amanhã. Se às oito da manhã não estiveres na doca, vou buscar-te e arrastar-te para lá.
Saiu do carro, sem esperar por uma resposta e abriu a porta das traseiras para a cozinha, enquanto eu o olhava boquiaberta.
Na manhã seguinte, ele estava à minha espera na doca, de calças e t-shirt e com uma caneca de café na mão. Só muito raramente tinha visto o Charlie a pé tão cedo.
— Não sabia que a tua espécie conseguia funcionar antes do meio-dia — disse-lhe, ao aproximar-me dele, reparando nas marcas da almofada no seu rosto.
— Só por ti, Pers — afirmou, e pareceu mesmo sincero. Eu ia agradecer, porque, por muito que nadar fosse uma coisa minha e do Sam, era também uma coisa só minha, e eu tinha sentido a falta disso, mas o Charlie apontou com a cabeça para a água, com uma mensagem óbvia. Entra.
Encontrávamo-nos todas as manhãs. Era raro o Charlie meter-se comigo na água, ficando sentado à beira da doca a ver-me, bebericando da sua caneca quente. Aprendi rapidamente que ele não conseguia ser funcional até ter chegado a meio da sua primeira caneca de café, mas, depois de a acabar, os seus olhos brilhavam, estava fresco como uma alface. Nas manhãs mais quentes, ele mergulhava e dava umas braçadas ao meu lado.
Depois de uma semana de manhãs a nadar, o Charlie decidiu que eu ia atravessar o lago a nadar outra vez, antes do fim do verão.
— Precisas de um objetivo. E quero ver-te fazê-lo de perto — declarou quando regressámos a casa. Pensei no verão em que o Charlie tinha sugerido que eu começasse a nadar e se tinha oferecido para me treinar, e concordei sem protestar.
Às vezes, tomávamos o café e o pequeno-almoço com a Sue, depois da natação. Ao início, ela parecia desconfortável com a nossa amizade, entreolhando-nos com um olhar severo. Uma vez, referi-o ao Charlie, mas ele esclareceu:
— Ela está só preocupada com a possibilidade de tu afinal perceberes quem é o melhor irmão — disse, e eu revirei os olhos. Mas fiquei a pensar.
Numa coisa o Charlie tinha razão: eu descansava a cabeça quando nadava, mas o interregno só durava enquanto eu estava na água, focada apenas na respiração e em avançar. A meio de agosto, já tinha desenvolvido o que alguns chamariam um comportamento de namorada louca, ligando ao Sam do telefone fixo da cabana sempre que chegava dos turnos no restaurante, por mais tarde que fosse e apesar da limitação dos meus pais a duas chamadas de longa distância por semana. Até teria usado o meu telemóvel, se a rede no lago não fosse tão fraca. Eu sabia que o Sam se levantava muito cedo para conseguir fazer uma corrida antes de estar no laboratório às oito horas, mas também sabia que ele estava sozinho no quarto, deitado, e não podia evitar-me.
Mas as chamadas não me faziam sentir melhor. O Sam estava muitas vezes distraído, pedia-me para repetir as perguntas e dava tão pouca informação sobre o workshop, parecendo até não gostar dele, que eu comecei a sentir-me ressentida, não só por ele o esconder de mim, mas também por ele ter ido para lá.
— Deixaste o nosso verão juntos por causa disso. Podias ao menos fingir que estavas a beneficiar de alguma coisa — atirei-lhe uma noite em que ele estava particularmente monossilábico.
— Percy. — Ele suspirou. Parecia exausto, cansado de mim, do workshop ou de ambos.
— Não estou a pedir muito de ti — disse-lhe. — Só gostava de ouvir um módico entusiasmo.
— Módico? Andas a dormir com a enciclopédia outra vez?
Era a sua tentativa de animar a disposição, mas não melhorou a minha. E, portanto, fiz-lhe a pergunta que me andava a atormentar desde o momento em que ele me dissera que ia para a universidade mais cedo.
— Candidataste-te a essa coisa porque querias ficar longe de mim?
Do outro lado, houve silêncio, mas eu ouvia o coração a bater-me nos ouvidos e as têmporas a latejarem com sangue enfurecido.
— Claro que não — acabou por responder, baixinho. — É isso que realmente pensas?
— Quase não me dizes nada quando falamos e pareces odiar isso aí. Além disso, aquela coisa do «Surpresa, vou-me embora daqui a três semanas!» não transmite propriamente muita confiança na nossa relação.
— Quando é que vais ultrapassar isso? — respondeu ele, com uma aspereza que nunca me tinha mostrado.
— Provavelmente, vou precisar do mesmo tempo que tu demoraste a guardar esse segredo de mim — disparei.
Ouvi-o a respirar profundamente.
— Não vim para aqui para te deixar — disse, com calma. — Vim para começar a construir algo para mim. Um futuro. Estou só a ajustar-me. É tudo novo.
A chamada não demorou muito mais. Já passava da meia-noite. Fiquei acordada durante quase toda a noite, a pensar que aquilo que o Sam estava a construir para ele não teria lugar para mim.
*
Tornei-me irritadiça com toda a gente à minha volta. Era breve ao telefone com o Sam e, muitas vezes, não respondia às mensagens da Delilah, aborrecida com o seu entusiasmo com a universidade. Parecia-me injusto que ela e o Sam pudessem partilhar a mesma universidade. Os meus pais pareciam não reparar no meu mau humor. Amiúde, entrava na cabana e ouvia-os a discutirem à frente de umas pilhas de papel.
— Não vamos conseguir assegurar tudo — ouvi o meu pai dizer à minha mãe numa dessas ocasiões, mas estava demasiado envolvida na minha angústia adolescente para me preocupar com os seus problemas de adultos.
As únicas interrupções na minha ansiedade eram as minhas manhãs na água com o Charlie. Não me preocupei em dizer aos meus pais que ia atravessar o lago a nado outra vez. Eles voltaram para a cidade mais cedo — algo que tinha que ver com a casa, mas não prestei muita atenção — e não estariam presentes nos últimos dez dias do verão. No dia da travessia, encontrei-me com o Charlie na doca, como numa manhã normal, acenei-lhe, mergulhei e parti. Nem esperei que ele entrasse no barco, mas, passado pouco tempo, senti o remo a bater na água ao meu lado.
Aquela travessia longa e regular através do lago era uma libertação de tudo o que andava a atormentar-me e, quando cheguei à praia, com os membros a arderem-me de uma forma agradável, senti-me viva.
— Pensei que te tinhas esquecido de como é que isso se fazia — disse-me o Charlie, enquanto puxava o barco para a areia, perto de mim. Vestia uns calções de banho e uma t-shirt ensopada em suor.
— Nadar? — perguntei, confusa. — Andamos a treinar todos os dias há quase um mês.
O Charlie sentou-se ao meu lado.
— Sorrir. — E deu-me um toque com o ombro.
Levei a mão à cara.
— Soube-me bem — disse-lhe. — Mexer-me… escapar.
— Quem é que não precisa de escapar do Sam de vez em quando? — Ele acenou e levantou a sobrancelha, como se dissesse: «Tenho ou não tenho razão?»
— És sempre tão duro com ele — respondi, ainda a sorrir, virada para o sol e a recuperar o fôlego. Estava quase alegre com a circulação de adrenalina. Não esperava uma resposta e ele não a deu. Em vez disso, decidi perguntar-lhe: — E então? Correspondeu às tuas expetativas? — Ele inclinou a cabeça. — Disseste que querias ver a travessia de perto. Foi tal como sonhavas?
— Absolutamente. — E esboçou um sorriso com covinhas, para reforçar. — Embora, nos meus sonhos, tu uses aquele biquíni amarelo minúsculo com que costumavas pavonear-te.
Era o piropo clássico do Charlie que eu dantes ignorava, mas, naquele dia, bateu-me como combustível. Eu queria divertir-me com aquilo. Queria jogar.
— Eu não me pavoneava! — gritei. — Nunca me pavoneei na vida.
— Oh, pavoneavas, sim — insistiu o Charlie, com uma expressão totalmente séria.
— E tu podes falar. Tenho quase a certeza de que a tua fotografia aparece por baixo da palavra «flirt» no dicionário.
— Uma piada com um dicionário? Consegues fazer melhor do que isso, Pers. — Ele riu-se.
— Concordo. — Juntei-me a ele a rir. — Sabias que foste o meu primeiro beijo? — A pergunta saiu-me sem pensar; devia ter sido leve, mas as covinhas do Charlie desapareceram.
— No Verdade ou Consequência? — perguntou. Às vezes, punha-me a pensar se ele se teria esquecido disso. Claramente, não tinha.
— No Verdade ou Consequência.
— Hum — respondeu, olhando para a água. Não sei que reação eu esperava, mas não era aquela. Ele levantou-se de repente. — Bem, estou mais quente do que o diabo, vou dar um mergulho.
— Vá-se lá perceber que a única vez em que decides usar uma t-shirt é a única em que não devias usá-la — provoquei quando ele se levantava e tirava a t-shirt pela cabeça. Normalmente, quando o Charlie andava sem camisola, eu tentava sempre manter o olhar fixo na sua cara. Era muita a extensão de pele e músculos, mas ali estava ele, muito bronzeado e coberto de suor. Ele apanhou-me a mirá-lo antes que eu pudesse desviar o olhar e dobrou o braço para mostrar os bíceps. — Convencido — murmurei.
Deitei-me na areia de olhos fechados, enquanto o Charlie nadava. Estava quase a dormir quando ele se sentou de novo ao meu lado.
— Continuas a escrever? — perguntou. Nunca tínhamos falado sobre a minha escrita.
— Hum… nem por isso — repliquei. Não me tinha sentido particularmente criativa naquele verão. «Mesmo nada» seria a resposta certa.
— As tuas histórias são boas.
Ao ouvir isto, sentei-me.
— Leste-as? Quando?
— Li-as. No outro dia, estava à procura de qualquer coisa na secretária do Sam e encontrei uma pilha delas. Li-as todas. São boas. Tu és boa.
Eu estava a olhar diretamente para ele, mas ele olhava para o lago.
— A sério? Gostaste delas?
O Sam e a Delilah eram sempre muito efusivos, mas eles tinham mesmo de gostar. O Charlie não era dado a elogios que não envolvessem partes do corpo.
— Sim. São um bocado estranhas, mas é esse o objetivo, não é? São diferentes, de forma positiva.
Ele observou-me. Os seus olhos eram de um verde-pálido ao sol, brilhando em contraste com a pele morena. Mas não havia nenhum toque de provocação neles.
— Talvez possa ser uma maneira de te ajudar a escapar, se escreveres algo novo — disse.
Emiti um som de concordância não comprometida, apercebendo-me, de repente, de todos os esforços feitos pelo Charlie nesse verão para me tirar do meu mal-estar. Mesmo quando fui insuportável. E se isso não se tivesse tornado óbvio naquele momento, tornar-se-ia mais tarde, nessa noite.
Parámos o carro nas traseiras da Taberna, porque eu tinha as pernas demasiado doridas para fazer a caminhada da doca da vila até ao restaurante. O Charlie desligou o motor e virou-se para mim.
— Bem, tive uma ideia que acho que te vai animar— disse, com um sorriso hesitante.
— Já te disse que relações a três são um limite difícil para mim — respondi-lhe, com um ar sério, e ele riu-se.
— Se algum dia te fartares do meu irmão, avisa-me, Pers — afirmou, ainda a rir-se. Eu fiquei quieta. Nunca tinha passado tanto tempo com o Charlie. E a verdade é que gostava. Muito. Às vezes, até conseguia esquecer-me de como estava furiosa com o Sam e o quanto tinha saudades dele. Nesse verão, o Charlie não tinha nenhuma namorada pendurada nele e tinha-se revelado um excelente ouvinte. Tinha ultrapassado todo o meu mau humor, ora ignorando-o completamente, ora chamando-me a atenção.
«Armares-te em parva não combina contigo», disse-me da última vez em que me tinha passado com ele, depois de ter recebido outro e-mail curto e deprimente do Sam.
Mas, naquele momento, o ar dentro da carrinha estava espesso como molho de caramelo.
— O drive-in — apressou-se ele, pestanejando. — É essa a ideia. Vão passar um daqueles filmes de terror de série B de que tu tanto gostas e pensei que podia ser uma boa distração. Os teus pais já estão na cidade esta semana, não é? Achei que podias sentir-te um bocado sozinha.
— Não sabia que havia um drive-in em Barry’s Bay — comentei.
— E não há. É a uma hora daqui. Costumava lá ir montes de vezes quando andava no secundário. — Fez uma pausa. — Então, o que achas? O filme passa no domingo, e nós não trabalhamos.
Aquilo parecia perigoso, de uma maneira que eu não conseguia definir. Os filmes de terror eram uma coisa minha e do Sam, mas o Sam não estava ali. E eu estava. E o Charlie também.
— Combinado — respondi, saindo da carrinha. — É exatamente disso que eu preciso.
*
O e-mail do Sam chegou no sábado. Eu tinha-me arrastado do lago para casa, depois de um turno caótico, com a pele ainda peganhenta, apesar do vento fresco que fez na viagem de barco da vila para casa. Quase todos os pedidos tinham sido de pierogies e estes tinham-se esgotado a meio da noite. O Julien ficou louco e os clientes também ficaram zangados.
A cabana estava completamente vazia. Tomei banho e preparei um prato de bolachas de água e sal com queijo, ao mesmo tempo que abria o portátil para consultar o meu e-mail. Era a minha rotina habitual depois do trabalho e antes do telefonema com o Sam. O que não era habitual era uma nova mensagem dele na minha caixa de correio. O assunto era «Tenho andado a pensar». Os e-mails do Sam costumavam chegar de manhã, antes das aulas, ou à tarde, assim que estas acabavam. Traziam uma ou duas frases de novidades e nunca tinham assunto. Senti as pernas fracas de medo quando abri a mensagem e vi os parágrafos todos do texto.
Percy,
As últimas seis semanas têm sido duras. Mais duras do que eu pensava. Ainda não me habituei a este quarto e a esta cama. A universidade é enorme. E as pessoas são muito inteligentes. O tipo de inteligência que me faz perceber o quanto crescer numa pequena vila me deu uma falsa ideia da minha própria inteligência. Olho em volta durante uma aula ou um laboratório e todos parecem acenar e cumprir com o que é pedido sem necessidade de esclarecimentos. Sinto-me muito atrás deles. Como é que fui sequer aceite neste workshop? É assim que vai ser ao longo de todo o curso?
Sei que passei o resto do nosso tempo juntos a estudar, mas não chegou. Devia ter trabalhado mais. Tenho de trabalhar mais agora se quiser ter sucesso.
E tenho tantas saudades tuas. Às vezes, não consigo concentrar-me porque me ponho a pensar em ti e no que estarás a fazer. Quando falamos, consigo perceber a tua desilusão — por não te falar do workshop e por parecer tão infeliz aqui. Não quero desperdiçar tudo agora. Vou trabalhar mais. Vou ter sucesso. Tem de ser.
E é por isto que acho que temos de estabelecer alguns limites. Adoro ouvir a tua voz do outro lado do telefone, mas, quando desligo, sinto-me ainda mais sozinho. Em breve, também vais para a universidade e verás o que eu quero dizer. Devemo-lo a nós próprios e um ao outro concentrarmo-nos — tu, na tua escrita, e eu, no laboratório.
O que estou a propor é uma pausa na nossa comunicação constante. Neste momento, acho razoável um telefonema por semana. Podemos combinar a hora, como se fosse um encontro. Senão, vou estar sempre a pensar em ti. Não vou ser capaz de fazer isto que quis durante tanto tempo e não serei a pessoa que quero ser. Por ti, mas também por mim. Só preciso de um pouco de espaço — para construir um futuro maior.
Que te parece? Falamos amanhã — pensei que o domingo podia ser o nosso dia da semana.
Sam
Li aquilo tudo três vezes, com a cara coberta de lágrimas e um pedaço de bolacha mal mastigado preso na garganta. O Sam queria espaço. De nós. De mim. Porque falar comigo o fazia sentir sozinho. Eu era uma distração. Estava a afastá-lo do seu futuro. O Sam estava muito enganado se pensava que eu ia esperar até ao dia seguinte para falar daquilo. Para discutir sobre aquilo. Não era assim que se tratava a melhor amiga e de certeza que não era assim que se tratava a namorada.
O seu telefone tocou três, quatro, cinco vezes, até que ele atendeu. Só que não foi o Sam que gritou «Estou?» por cima da música e das gargalhadas de fundo. Foi uma rapariga.
— Quem fala? — perguntei.
— É a Jo. E quem fala?
Era por essa razão que o Sam não queria que eu lhe ligasse? Queria ter outras raparigas com ele?
— O Sam está aí?
— Neste momento, o Sam está ocupado. Estamos a ver se o animamos. Queres deixar alguma mensagem? — perguntou ela, atropelando as palavras.
— Não. Sou a Percy. Passa-lhe o telefone.
— A Percy. — Ela riu-se. — Já ouvimos falar muito…
De repente, ela desapareceu, a música parou e ouvi risos abafados antes de uma porta se fechar. Depois, silêncio, até que o Sam começou a falar.
— Percy? — Só por aquela palavra, percebi que ele estava embriagado. Lá se fora a teoria de precisar de espaço para trabalhar mais.
— Então, este e-mail foi todo uma palhaçada? Só queres mais tempo para poderes embebedar-te com outras raparigas? — gritei-lhe.
— Não, não, não é nada disso. Olha, Percy, estou com os copos. A Jo trouxe vodca de groselha. Vamos falar. Amanhã, está bem? Agora, acho que vou…
A chamada caiu e eu enrolei-me no sofá a chorar até adormecer.
*
Na noite seguinte, o Charlie veio buscar-me um pouco antes das oito. Por essa altura, eu já não tinha mais lágrimas. Tinha tido uma longa conversa soluçada com a Delilah e chorei de novo quando o Sam mandou um curto pedido de desculpas por ter desligado para ir vomitar. Dizia que queria falar nessa noite. Não lhe respondi.
Achava que era impossível conseguir rir-me, mas a montanha de comida que o Charlie tinha reunido no banco da frente era hilariante.
— Há hambúrgueres, cachorros-quentes e batatas fritas, se quiseres algo mais substancial — disse ele quando me viu a examinar os pacotes de aperitivos e guloseimas.
— Pois, porque isto provavelmente não vai ser suficiente — brinquei. E senti-me bem. Leve. — Normalmente, despacho quatro pacotes grandes de batatas por noite, e aqui só vejo três, portanto…
— Espertinha — respondeu ele, olhando-me de relance enquanto avançava pela estrada. — Não sabia de que sabor gostavas. Por isso, tive de comprar várias opções.
— Perguntava-me sempre o que acontece a todas aquelas raparigas com quem andas — disse eu, pegando numa caixa de Oreo. — Agora já sei. Tu engorda-las e depois come-las ao jantar.
Ele esboçou um sorriso matreiro.
— Bem, uma dessas coisas é verdadeira — respondeu, lentamente. Revirei os olhos e olhei pela janela, para ele não ver que corei do peito ao pescoço.
— Assustas-te com pouco — disse ele, passado um minuto.
— Não me assusto com pouco. Tu é que gostas de provocar as pessoas desnecessariamente — respondi, virando-me para observar o seu perfil. Estava com um olhar sério. — Que foi? Estou errada? — retorqui, e ele riu-se.
— Não, não estás errada. Talvez «assustada» não seja a palavra certa, mas és fácil de provocar. — E olhou para mim. — Gosto disso.
Senti o sangue acelerar pelo meu corpo. Ele entrou na estrada principal com um grande sorriso que lhe fez aparecer uma covinha na cara. Senti uma necessidade imperiosa de passar o dedo por ela.
— Gostas de me ver furiosa? — perguntei, tentando soar indignada, mas também sedutora. Ele olhou-me outra vez de soslaio antes de responder.
— Mais ou menos. Gosto de ver o teu pescoço ficar vermelho, como se estivesses a arder. Fazes beicinho e os teus olhos ficam mais escuros e indomáveis. É bastante sexy — explicou, de olhos postos na autoestrada vazia. — E gosto que te imponhas comigo. Os teus insultos conseguem ser bastante agressivos, Pers.
Eu estava em choque. Não pela parte do sexy, isso era só o Charlie a ser o Charlie, pelo menos, era o que me parecia, mas pelo facto de ser tão óbvia a atenção que ele andava a prestar-me. Passar tempo com ele tinha sido a única coisa que me tinha mantido minimamente sã, mas começava a ter a impressão de que ele andava a dar-me atenção já antes de ter tido pena de mim nesse verão. Parecera-me que ele tinha tido pena de mim. Agora, já não tinha tanta certeza.
— No que toca a insultos, só mereces o melhor, Charles Florek — respondi, tentando parecer descontraída.
— Não podia concordar mais contigo — disse ele. E, passado um segundo, acrescentou: — Então, e esses olhos inchados, são do quê?
Fitei outra vez a janela.
— Parece que as rodelas de pepino não resultaram — murmurei.
— Parece que andaste a nadar de olhos abertos numa piscina cheia de cloro. Que fez ele desta vez? — perguntou o Charlie.
Hesitei um pouco, sem saber como mandar as palavras para fora da boca com a rapidez necessária para não começar a chorar a meio.
— Ele, hum… — Aclarei a garganta. — Diz que estou a distraí-lo e que quer fazer uma pausa. — Olhei para o Charlie, que fitava a estrada, de maxilar contraído. — Precisa de espaço. De mim. Para conseguir estudar e, um dia, ser importante.
— Ele acabou contigo? — perguntou, quase num sussurro, mas cheio de raiva por dentro.
— Não sei — respondi, com a voz trémula. — Acho que não foi isso, mas ele só quer falar comigo uma vez por semana. E, quando lhe liguei, ontem à noite, havia pessoas no quarto dele e também uma rapariga com quem ele tem andado. Estava bêbedo.
Um músculo moveu-se no maxilar do Charlie.
— Não vamos falar sobre isto — murmurei, embora estivéssemos ambos calados há uns segundos. Depois, acrescentei, mais segura: — Esta noite, quero divertir-me. Só falta uma semana para o fim do verão e temos um dos melhores filmes de terror de todos os tempos à nossa espera.
O Charlie olhou-me com uma expressão pesarosa.
— Por favor? — pedi.
Ele olhou uma vez mais para a frente.
— Posso ser divertido.
O filme era A Semente do Diabo, um dos meus preferidos da década de 1960, e não exatamente o filme terrível de série B que o Charlie esperava. Enquanto passavam os créditos, no fim, ele não desviava o olhar do ecrã, de queixo caído.
— Isso foi uma cena do mais marado… — murmurou e virou-se para mim. — Tu gostas disto?
— Adooooro — gemi. Já tínhamos despachado um pacote de batatas fritas com sal e vinagre, um pacote de gomas e torrões e dois batidos da banca do drive-in. Eu estava elétrica por causa do açúcar. Era o momento mais divertido que tinha tido em todo o verão, o que era espantoso, visto que tinha passado a maior parte do dia em posição fetal.
— És uma rapariga perturbante, Pers — disse-me ele, ligando a carrinha.
— Olha quem fala. — Eu sorri e, quando ele retribuiu o sorriso, o meu olhar pousou nas suas covinhas antes de perceber que ele observava a minha boca. Quando pigarreei, ele olhou para o relógio no painel.
— É melhor levar-te a casa — disse ele, pondo o carro a trabalhar.
Passámos a viagem de regresso a conversar, primeiro, sobre o seu curso de Economia na Western e sobre os miúdos ricos com quem ia partilhar uma casa a partir do outono, e, depois, de como eu sentia que toda a gente estava a mudar para coisas maiores e melhores, enquanto eu ficava em Toronto, seguindo o caminho que os meus pais tinham traçado para mim.
Ele não tentou animar-me nem me disse que eu estava a exagerar. Limitou-se a ouvir. Não houve mais do que meros segundos de silêncio durante a hora que durou a viagem. Ainda estávamos a rir de uma história sobre a primeira vez que ele dançara na escola, quando parámos em frente à cabana. O seu pai tinha-lhe ensinado a maneira «apropriada» de dançar, que terminou com o Charlie a guiar uma Meredith Shanahan apavorada, num rodopio de passos pelo ginásio.
— Queres entrar? — perguntei-lhe, ainda a rir. — Acho que o meu pai deixou umas cervejas no frigorífico.
— Pode ser — respondeu ele, desligando o carro e acompanhando-me até à porta. — Se jogares bem as tuas cartas hoje, ainda sou capaz de te convidar para dançar.
— Só danço tango — respondi por cima do ombro, rodando a chave na fechadura.
— Eu sabia que nunca resultaria entre nós — disse-me ao ouvido, provocando-me arrepios nos braços.
Descalçámo-nos e o Charlie entrou na pequena divisão aberta.
— Há séculos que não vinha aqui. Gosto que os teus pais tenham mantido isto uma verdadeira cabana. Bem, além daquilo. — Apontou para a máquina de café expresso que ocupava demasiado espaço no balcão. Fui até ao outro lado da sala e liguei as luzes exteriores, que brilharam sobre os pinheiros altos.
— É o meu sítio preferido no mundo inteiro — afirmei, vendo os ramos a baloiçarem por um momento.
Quando me virei, o Charlie estudava-me com uma expressão estranha no rosto.
— É melhor ir andando para casa — disse, com voz rouca, apontando para a porta.
— Mas acabaste de chegar. — Inclinei a cabeça. — E eu prometi-te uma cerveja. — Passei por ele em direção ao frigorífico. Passei-lhe uma garrafa.
— Na verdade, não costumo beber sozinho. — Ele coçou a parte de trás do pescoço.
Revirei os olhos, puxei a manga da camisola para a mão para tirar a tampa à garrafa. Dei um longo gole e depois passei-lha.
— Está melhor assim? — questionei. Ele bebeu um gole, olhando-me cautelosamente.
— Esmeraste-te bastante esta noite, não foi? — disse ele, apontando para a minha roupa, uns calções de ganga coçados e uma camisola cinzenta. Tinha apanhado o cabelo num rabo de cavalo. Só então percebi que ele vestia umas boas calças escuras e um polo com ar de novo.
— Deixei o vestido de cerimónia em Toronto — afirmei.
Ele sorriu e olhou-me para as pernas.
— As minhas companhias não usam vestidos de cerimónia, Pers — disse, voltando os olhos para mim. — Mas costumam vestir roupa limpa.
Olhei para baixo e, sim, havia uma nódoa alaranjada na perna dos calções.
— Sabes, como sinal de um nível básico de higiene — acrescentou ele. Senti-me a aquecer e ele sorriu abertamente. — Eu bem te disse — comentou, em voz baixa e grave. Pousou a garrafa e deu um passo na minha direção. — Pescoço vermelho. Beicinho. E os olhos ainda mais escuros do que o costume.
Ficamos ali os dois, sem respirar, durante vários segundos.
— Muito sexy — rouquejou ele. — És tão diabolicamente sexy que não aguento.
Pestanejei uma vez e depois atirei-me a ele, envolvendo o seu pescoço com os braços e puxando a sua boca para a minha. Queria tanto que me quisessem. Ele agarrou-me com a mesma sofreguidão, pela cintura, e encostou-me ao seu corpo firme. Prendeu-me as ancas juntas às dele com uma mão e enrolou a outra no meu rabo de cavalo, puxando-me a cabeça para trás e chupando a pele exposta do meu pescoço. Quando gemi, ele agarrou-me pelas nádegas, levantou-me do chão, prendendo as minhas pernas na sua cintura, meteu-me a língua na boca e levou-me ao colo até me sentar no balcão. Abriu-me bem as pernas e meteu-se no meio delas, passando-me com as mãos pelos gémeos.
— Não me depilei — murmurei no meio dos beijos, e ele riu-se na minha boca, fazendo-me vibrar. Agachou-se, agarrando-me num tornozelo, e passou a língua desde a canela até ao joelho, e depois até ao limite dos calções, sempre de olhos fixos nos meus.
— Quero lá saber — rouquejou. Então, ergueu-se e prendeu-me a cara nas suas mãos. — Podias estar um mês sem te depilar e eu desejava-te à mesma.
Enrolei as pernas à volta dele e beijei-o com intensidade. Mordi-lhe o lábio e ele gemeu. Esse som deixou-me a arder.
— Vamos lá para cima — disse-lhe, empurrando-o para poder saltar do balcão, e levei-o até ao meu quarto.
Ele voltou a tocar-me assim que atravessámos a porta. Andei para trás, até as minhas pernas baterem na cama, e agarrei-lhe na camisola ao mesmo tempo que ele agarrou na minha. Tirámo-las numa confusão de braços e ele desapertou-me o soutien num segundo, atirando-o ao chão. As minhas mãos voaram para o fecho das calças dele, desesperada por senti-lo contra mim, por apagar todas as partes tristes, por me sentir desejada. Ele observou-me enquanto o despia, depois, desapertou-me os calções, baixando-os e deixando-os cair no chão. Ficámos frente a frente, a respirar intensamente, e então baixei as minhas cuecas até ao chão e aproximei-me dele, esfregando-lhe os dedos nos ombros. Não me apercebi de que estavam a tremer até que o Charlie pôs a sua mão sobre a minha.
— Tens a certeza? — perguntou, suavemente. Em resposta, puxei-o para a cama, para cima de mim.
*
Devo ter adormecido logo a seguir, porque, quando acordei, o céu rosado da manhã já era visível através da janela. Ainda ensonada, senti uma respiração no meu ombro, antes de perceber que tinha uma perna em cima de mim. A caixa de preservativos que a minha mãe me tinha dado no ano anterior estava aberta em cima da mesa de cabeceira.
— Bom dia — disse-me uma voz grave ao ouvido. Parecia tanto a do Sam. Fechei os olhos com força, desejando que tudo fosse só um pesadelo. Ele rolou para cima de mim e beijou-me a testa, o nariz, os lábios, até que abri os olhos e encontrei um par de olhos verdes.
Os olhos errados.
O irmão errado.
Inspirei com dificuldade, à procura de oxigénio, sentindo a minha pulsação acelerada e desconfortável a percorrer o meu o corpo.
— Pers, o que se passa? — perguntou o Charlie, saindo de cima de mim e ajudando-me a sentar. — Vais vomitar?
Abanei a cabeça, olhei para ele com uma expressão aterrorizada e rouquejei:
— Não consigo respirar.
*
Passei os últimos dias do verão numa névoa de nojo de mim própria, tentando perceber porque fizera aquilo e como conseguiria contar ao Sam sobre a minha traição.
Depois de me ter passado o ataque de pânico, expulsei o Charlie da cabana, mas ele voltou ao fim da tarde para ver como eu estava. Gritei-lhe entre lágrimas quentes, dizendo-lhe que aquilo tinha sido um grande erro, que o odiava, que me odiava a mim própria. Quando comecei a hiperventilar, ele segurou-me com força até eu me acalmar, murmurando-me o quanto lamentava e como não tinha querido magoar-me. Quando me acalmei, pediu desculpa, parecendo desfeito e em sofrimento, e deixou-me sozinha, sentindo-me ainda pior por também o ter magoado.
O Charlie desculpou-se outra vez quando veio buscar-me para o meu último turno na Taberna, um dia depois, e eu acenei, mas foi a última vez que falámos do que tinha acontecido entre nós.
Quando regressei à cidade, os meus pais deram-me imediatamente a notícia de que iam pôr a cabana à venda no outono. Devia ter previsto aquilo, devia ter prestado mais atenção à forma como eles discutiam por questões financeiras. Desatei a chorar quando me explicaram que a nossa casa de Toronto precisava de obras e, além disso, eu podia sempre ficar com os Floreks. Senti que estava a ser castigada por aquilo que tinha feito.
Eu e o Sam só tínhamos trocado e-mails desde a noite com o Charlie, mas ele telefonou assim que recebeu a minha mensagem com a notícia. Disse-me que estava triste, mas que tinha a certeza de que eu poderia ficar em casa deles no próximo verão.
— Sei como deves estar abalada — disse ele. — Não vais ter de te despedir sozinha. Podemos encaixotar as tuas coisas no Dia de Ação de Graças e levar uma parte delas para nossa casa. O póster da Criatura da Lagoa Negra pode ficar no meu quarto.
Nenhum de nós mencionou o e-mail dele. E não lhe contei nada do que acontecera com o Charlie.
Eu precisava de falar com a Delilah, mas ela já tinha partido para Kingston. Queria confidenciar-lhe tudo, queria que ela me traçasse um plano para melhorar tudo, mas não podia fazê-lo por mensagem e não queria fazê-lo por telefone, ouvindo a sua voz, mas sem ver a sua reação.
Não me recordo muito bem dessas primeiras semanas na faculdade. Só que o Sam começou a escrever e-mails mais longos entre as nossas chamadas dos domingos. Agora que ele e o Jordie partilhavam o quarto, e ele estava mais habituado ao quarto e à cidade, sentia-se mais estável. Além disso, apesar de o workshop não ter notas, recebeu uma avaliação brilhante do professor supervisor e uma proposta para trabalhar a tempo parcial no seu projeto de investigação. Ainda não se tinha cruzado com a Delilah, mas estava atento, caso visse uma cabeleira ruiva.
Explicou o quanto se tinha sentido sozinho quando chegou à universidade e que tinha escrito e-mails curtos para não me preocupar. Pediu desculpa por estar embriagado quando lhe telefonei e disse-me que, quando pensava em construir um futuro, era sempre um futuro comigo. Também pediu desculpa por não ter deixado isso claro. Disse-me que eu era a sua melhor amiga. Que tinha saudades minhas. Que me amava.
As aulas do Sam acabavam cedo à sexta-feira e ele queria apanhar o comboio para Toronto, para passar o fim de semana comigo, mas eu evitei-o, dizendo-lhe que um dos meus professores me tinha pedido um conto de vinte mil palavras, para apresentar em poucas semanas. Não era mentira, mas eu terminei o conto muito antes do fim do prazo e não o disse ao Sam. Quando chegou o Dia de Ação de Graças, eu estava muitíssimo nervosa. Ainda não tinha contado nada à Delilah, mas tinha-me convencido a contar a verdade ao Sam. Faria tudo o que pudesse para resolver as coisas entre nós, mas não podia mentir-lhe.
Conduzi até ao lago na sexta-feira, sem sequer parar para ir à casa de banho, de forma a chegar por volta da mesma altura que a Sue chegaria com o Sam. Os meus pais já tinham tirado a maior parte das nossas coisas da cabana e não vinham passar aquele feriado connosco. Tinham deixado o meu quarto para eu o arrumar. A imobiliária chegaria na semana seguinte para arranjar a casa e começar as visitas.
Eu tinha dito ao Sam num e-mail que tinha uma coisa importante para lhe dizer assim que chegasse lá. «Que engraçado, eu também tenho uma coisa para te dizer», escrevera ele.
Enquanto esperava por ele, fui arrumando as coisas, com um nó na barriga e as mãos a tremerem enquanto tirava da parede o póster da Criatura da Lagoa Negra. Esvaziei a secretária, folheando o bloco de notas de tecido que o Sam me tinha dado e passando os dedos pelas palavras inclinadas que ele lá escrevera, «Para a tua próxima história brilhante», antes de o meter numa caixa. Em cima, pus-lhe a caixa de madeira com as minhas iniciais gravadas na tampa. Sabia, sem ter de a abrir, que ainda continha o fio de tecer com que eu tinha feito as nossas pulseiras.
Ele vai ter de me perdoar, pensava para mim própria, vezes sem conta, querendo que fosse verdade.
Tinha começado a esvaziar a mesa de cabeceira quando ouvi o barulho da porta das traseiras. Voei pela escada abaixo e lancei-me para os braços do Sam, empurrando-o de costas contra a porta, e o seu riso reverberou através de mim enquanto nos abraçávamos com força. Ele parecia maior do que eu me lembrava. Sentia-o sólido. E real.
— Também tive saudades tuas — disse ele contra o meu cabelo, e eu cheirei-o, com vontade de me meter entre as costelas dele e ficar lá enroscada para sempre. Beijámo-nos e abraçámo-nos, eu sempre em lágrimas e, depois, ele levou-me até meio da sala e encostou a testa à minha.
— Três novidades? — murmurei, e os seus olhos enrugaram-se quando começou a sorrir.
— Primeira, amo-te — replicou ele. — Segunda, não suporto a ideia de partir outra vez ou de tu não voltares a esta cabana sem saberes o quanto eu te amo. — Soltou um suspiro trémulo e, depois, pôs um joelho no chão e pegou-me nas mãos. — Três. — Olhou para mim, com os olhos azuis sérios, abertos, esperançosos e assustados. — Quero que cases comigo.
O meu coração explodiu de felicidade, de um prazer fundido que me corria pelas veias. E, também repentinamente, lembrei-me do que tinha feito e com quem, e empalideci.
O Sam apressou-se a continuar.
— Não é hoje. Nem este ano. E nem até teres 30 anos, se preferires. Mas casa comigo.
Levou a mão ao bolso das calças e tirou um anel de ouro com uma pedra central rodeada de brilhantes. Era lindo, e fez-me sentir muito maldisposta.
— A minha mãe deu-me este anel. Era da mãe dela — afirmou. — És a minha melhor amiga, Percy. Por favor, sê também a minha família.
Permaneci num silêncio chocado durante cerca de cinco segundos, com a cabeça a mil à hora. Como é que podia contar-lhe acerca do Charlie? Estando ele de joelho no chão, com o anel da avó na mão? Mas como é que podia aceitar sem lhe contar? Não podia. Não aceitaria. Não quando ele pensava que eu era a pessoa certa para casar com ele. Só havia uma solução.
Ajoelhei-me à frente dele, odiando-me por aquilo que estava prestes a fazer. Que tinha de fazer.
— Sam — comecei, fechando-lhe a mão sobre o anel e reprimindo as lágrimas. — Não posso.
Ele pestanejou, depois, abriu a boca e fechou-a de novo. Voltou a abri-la, mas não lhe saiu nada.
— Somos muito novos. Sabes isso — murmurei-lhe. Era mentira. Queria dizer-lhe que sim e dizer «Vão-se lixar» a quem quer que nos questionasse. Queria o Sam para sempre.
— Eu sei que disse isso antes, mas estava errado — retorquiu ele. — Não há muita gente que conheça a pessoa da sua vida aos 13 anos. Mas nós conhecemos. Sabes que conhecemos. Quero-te agora. E quero-te para sempre. Penso nisso constantemente. Penso em viagens. E em arranjar emprego. E em ter uma família. E tu estás sempre comigo. Tens de estar sempre comigo — disse, com a voz trémula e os olhos a passearem pelo meu rosto à procura de um sinal de que eu tinha mudado de ideias.
— Podes não sentir sempre isso, Sam — repliquei. — Já me afastaste antes. Escondeste-me o workshop e depois passei o verão todo a perguntar-me por que razão quase não sabia de ti. E aquele e-mail… Não posso ter a certeza de que vais amar-me para sempre quando nem sequer sei se vais amar-me no próximo mês.
As palavras sabiam-me a fel e ele inclinou a cabeça para trás como se eu lhe tivesse acertado.
— Acho que devíamos fazer uma pausa durante algum tempo — continuei, falando suavemente, para que ele não percebesse o desespero na minha voz.
— Não queres mesmo isso, pois não? — perguntou, a sua voz parecia estar a falhar, com os olhos vidrados. Senti que tinha levado um murro no estômago.
— É só durante algum tempo — repeti, retendo as lágrimas.
Ele observou-me o rosto, como se lhe faltasse qualquer coisa.
— Jura — disse, como se estivesse a desafiar-me, como se não acreditasse em mim.
Hesitei, e depois meti o dedo na pulseira dele e declarei:
— Juro.