— Dormi com o Charlie — digo ao Sam, mal me apercebendo de que ele acabou de dizer que me ama. Ele fica calado. — Estou tão arrependida — digo-lhe, com as lágrimas já a correrem-me pela cara. Repito-o várias vezes. E ele continua sem dizer nada. Estamos frente a frente no chão. Ele olha para lá do meu ombro, o olhar mortiço e desfocado, os dedos paralisados no meu ombro. — Sam? — Ele não se mexe. — Foi um erro — digo, com a voz a tremer. — Um erro enorme. Eu amava-te mais do que tudo, e tu foste-te embora. E depois mandaste aquele e-mail e eu pensei que estava tudo acabado. Sei que isso não é desculpa. — As palavras saem-me numa confusão desordenada. — E foi por isso… foi por isso que acabei connosco. Eu amava-te, Sam. Amava-te tanto. Mas não era boa para ti. Ainda não sou… — Baralho-me porque o Sam está a abrir e a fechar a boca, como se tentasse dizer algo, mas não conseguisse. — Faria qualquer coisa para voltar atrás, para corrigir as coisas. Diz-me o que posso fazer.
Ele olha-me, pestanejando em movimentos rápidos. Abana a cabeça.
— Sam, por favor, diz qualquer coisa. O que quer que seja — suplico-lhe, com a garganta seca. Ele semicerra os olhos e contrai o maxilar. Os dentes rangem uns contra os outros.
— Como é que foi? — A sua pergunta é um sussurro tão baixo que penso ter ouvido mal.
— O quê?
— Foste para a cama com o Charlie. Perguntei como é que foi.
Aquilo é tão rancoroso e inesperado vindo do Sam que eu vacilo. Fico completamente imóvel, a sentir picadas por todo o peito e pelos braços, como se aquelas palavras carregassem veneno verdadeiro. Tinha imaginado como seria contar ao Sam, qual seria a sua reação — magoado ou furioso, talvez indiferente, por ter passado tanto tempo —, mas nunca pensei que ele pudesse ser cruel.
Ele olha-me intensamente e apercebo-me, de repente, de que estou nua. Preciso de sair daqui. Pensei que conseguia lidar com isto, mas não consigo.
Sento-me, cobrindo-me com um braço e, com o outro, alcanço a minha roupa. Deixo o cabelo cair-me em volta do rosto. Visto-me o mais depressa possível, virada para a estante, trémula e entorpecida, e corro para a porta.
— Não acredito nisto — diz o Sam, e eu paro. — Vais-te mesmo embora.
Limpo as lágrimas desajeitadamente. Quando me viro, o Sam está de pé, completamente nu, de braços cruzados e com os pés afastados. Quero responder-lhe, mas sinto o cérebro paralisado. Ele abana a cabeça.
— Vais fugir, tal como da última vez. — Todas as palavras são ácidas e sarcásticas. Sete setas envenenadas. — Eu fui-me embora para a universidade, mas tu foste-te embora e nunca mais voltaste.
Gaguejo, à procura de algo para dizer no meio da desorientação, mas fico baralhada pela súbita mudança de assunto. A única coisa que parece funcionar em mim é o coração — até à exaustão. Consigo sentir a pulsação nas pontas dos dedos.
— Achei que já não querias ver-me — consigo dizer, por fim. — E vendemos a cabana… não havia nada por que voltar.
Os seus olhos brilham, magoados.
— Eu estava aqui para tu voltares. Todas as férias. Todos os verões. Estava aqui.
— Mas tu odiavas-me. Eu escrevi-te. Tu nunca me respondeste ou ligaste de volta.
Ele põe as mãos na cabeça e eu calo-me. O Sam inspira pelo nariz e depois explode.
— Como é que querias que reagisse? — grita, com os tendões do pescoço salientes. Fito-o, boquiaberta. — Dormiste com o meu irmão! — Ruge a última palavra e eu encolho-me.
Há algo no meu cérebro que não está a funcionar bem, porque não consigo processar o que ele acabou de dizer. As linhas cronológicas estão todas baralhadas. «Eu dormi com o Charlie. Acabei com o Sam. Nunca mais falámos.» Sinto o peito apertado. Esfrego a cara e tento concentrar-me de novo. Eu dormi com o Charlie, mas não foi por isso que o Sam deixou de me falar. Ele deixou de me falar porque eu recusei o seu pedido. E então as peças começam a encaixar umas nas outras, e tenho de lutar para respirar. Parece que a cabeça me vai saltar do pescoço. Os olhos enchem-se de formigas a correr e fecho-os com força. Tenho de sair daqui.
Dou meia-volta, abro a porta com força e corro pelo átrio, depois pelas escadas, até conseguir chegar à entrada. O Sam chama-me e percebo que vem atrás de mim. Agarro na minha mala, que está pendurada junto à porta, e corro lá para fora, desço os degraus do alpendre e paro de repente.
O meu carro desapareceu. Onde raio está o meu carro? Olho em volta, desesperada, como se estivesse num parque de estacionamento e talvez me tivesse enganado na fila. Mas não vejo nada. Só relva e árvores e o Sam, de pé, nu, à porta. Podia jurar que tinha conduzido até aqui depois do funeral, mas já não tenho a certeza. O que é que está a acontecer? Sinto um som agudo muito alto sair-me da garganta. Deve ser um sonho, penso. Isto é tudo um sonho.
Avanço pela gravilha a caminho da estrada. O Sam continua a gritar e a vociferar, mas eu continuo, com as pedrinhas aguçadas a darem-me cabo dos pés. É como se o meu corpo estivesse em piloto automático enquanto os meus pulmões lutam por receber oxigénio, porque, sem pensar, dirijo-me à minha cabana. Não paro quando chego ao fim do longo percurso de acesso.
Isto é só um pesadelo.
Só quero enrolar-me na minha cama e dormir até amanhã. Vou acordar, tomar o pequeno-almoço com os meus pais, e o Sam chegará um pouco mais tarde, suado da corrida, para me levar a nadar. E tudo voltará a ser como era. Eu e o Sam e o lago.
Quando vejo a cabana, quase não a reconheço. Há um anexo novo colado às traseiras e os pinheiros em volta da casa foram cortados. Há um espaço para fogueiras que não estava lá antes e uma carrinha vermelha estacionada ao pé da porta. Não é a minha cabana e isto não é um pesadelo. Não sei como, consigo voltar à estrada, mas as pernas falham-me à saída do caminho e eu caio ao chão, tentando respirar, de olhos fechados pela torrente de lágrimas.
Não ouço o Sam a aproximar-se. Não reparo nele até ver os seus ténis perto de mim.
— Dois ataques de pânico no mesmo dia é um pouco excessivo, não achas? — diz ele, mas sem ironia na voz. Não consigo responder. Nem sequer consigo abanar a cabeça. Só consigo continuar a tentar respirar. Ele agacha-se à minha frente. — Tens de abrandar a respiração — diz. Mas eu não consigo. Estou a correr uma maratona a um ritmo de sprint. Ele suspira. — Vá lá, Percy. Juntos conseguimos. — Põe-me as mãos na cara, com os polegares nas faces e os outros dedos no cabelo. — Olha para mim — diz, levantando-me a cara para a dele. Começa a respirar devagar, contando as respirações, como fez antes, de testa franzida.
Demoro um minuto a concentrar-me, mas, a certa altura, consigo respirar um pouco melhor, depois um pouco mais devagar, e o coração vai-se acalmando.
— Estás melhor? — pergunta. Mas nada está melhor, nem por sombras, porque agora que a névoa começa a clarear, já me lembro do que originou esta espiral de ansiedade.
— Não — rouquejo. Olho para ele, com o queixo a tremer, a cara ainda entre as suas mãos, e forço-me a dizer: — Já sabias.
Ele engole em seco e contrai os lábios.
— Sim — diz. — Sabia.
Fecho os olhos e deixo-me cair no chão, com o corpo sacudido por soluços silenciosos. Ouço-o dizer qualquer coisa, mas só consigo pensar em há quando tempo ele sabe e em quão profundamente me deve ter odiado durante todo este tempo.
Primeiro, sinto as suas mãos nas minhas costas e os seus braços à minha volta, e, depois, fica tudo negro.