Acordo na cama do Sam com uma dor de cabeça arrasadora. Pela janela, entra uma pálida luz azul-rosada. Durante quanto tempo terei dormido? Destapo-me, com calor. Continuo a usar a t-shirt e as calças dele, sujas nos joelhos. Fico deitada, à procura de algum som, mas a casa está silenciosa. Na mesa de cabeceira está um copo de água e uma caixa de analgésicos. O Sam deve tê-los deixado ali.
Depois de engolir dois comprimidos e a água toda, sento-me à beira da cama, com os pés na carpete e a cabeça entre as mãos, fazendo contas ao problema que criei. Arrasei o Sam com a verdade no pior momento possível. No dia do funeral da sua mãe. Não pensei nele, só pensei em tirar aquele peso do meu peito. E ele sabia. Ele sabia e não queria falar sobre isso, pelo menos, não naquele momento.
O Sam tinha deixado a minha mala no chão, ao lado da cama. Procurei o telemóvel lá dentro. Decidida a não afastar mais ninguém da minha vida, liguei à Chantal.
— P? — Ouço a sua voz, grogue de sono.
— Ainda o amo — sussurro-lhe. — Estraguei tudo. E amo-o. E acho que, mesmo que ele me perdoe, continuarei a não ser suficientemente boa para ele.
— Tu és suficientemente boa — diz a Chantal.
— Mas sou uma desgraça. E ele é médico.
— Tu és suficientemente boa — repete.
— E se ele não achar?
— Então, voltas para casa, P. E eu explico-te porque é que ele está enganado.
Fecho os olhos e solto um suspiro tremido.
— Sim, acho que consigo fazer isso.
— Eu sei que consegues.
Depois de desligarmos a chamada, atravesso o corredor às escuras até à casa de banho. Acendo a luz e faço uma careta quando vejo o meu reflexo no espelho. Debaixo das marcas de rímel, tenho a pele manchada e os olhos raiados e inchados. Lavo a cara com água fria e esfrego as manchas escuras de maquilhagem até ter a pele lavada e toda vermelha.
Quando desço as escadas em pontas de pés, chega-me o cheiro de café. Há uma luz acesa na cozinha. Respiro fundo antes de enfrentar o Sam de novo. Mas não é o Sam. É o Charlie. Está à mesa, no sítio onde a Sue costumava sentar-se. Tem uma caneca na mão e encara-me, como se estivesse à minha espera.
— Bom dia — diz, erguendo a caneca na minha direção.
— Levaste-me o carro — afirmo, ficando à porta.
— Levei-te o carro — admite, dando um gole na bebida. — Desculpa lá. Não me apercebi de que ias precisar de sair com tanta pressa. — Obviamente, o Sam já o pôs a par de alguns pormenores. — Ele está lá em baixo, na água — diz, antes que eu pergunte.
Olho na direção do lago e depois para o Charlie outra vez.
— Ele odeia-me.
O Charlie levanta-se e aproxima-se de mim, sorrindo suavemente enquanto me põe uma madeixa de cabelo atrás da orelha.
— Estás enganada. Acho que o sentimento que ele tem por ti é o oposto disso. — Olha-me expressivamente e o sorriso desfaz-se. — E tu, odeias-me? — pergunta, baixinho.
Demoro um instante a perceber porque é que ele me perguntaria aquilo, mas depois percebo: o Charlie é a única outra pessoa que poderia ter contado ao Sam o que aconteceu entre nós.
— Nunca — respondo-lhe, com a voz trémula, e ele puxa-me para um abraço apertado. — E, naquela altura, também não te odiei. Depois do que aconteceu. Foste muito bom para mim naquele verão.
— Tive os meus motivos, mas nem sequer tinha planeado o que aconteceu — murmura. — Até àquela noite.
— Aquela noite foi culpa minha — afirmo. O Charlie aperta-me mais e depois larga-me. — Posso perguntar-te uma coisa? — digo, quando nos afastamos.
— Claro — rouqueja ele. — Tudo o que quiseres.
— A tua mãe sabia?
O seu rosto esmorece um pouco e eu fecho os olhos, engolindo em seco.
— Se te fizer sentir melhor, ela ficou principalmente furiosa comigo.
— Isso não me faz sentir muito melhor — digo, com um suspiro.
Ele acena, com os olhos a brilhar como pirilampos.
— Tentei explicar-lhe como tu me seduziste com doces e pernas peludas, mas ela não ficou convencida.
Não consigo conter uma risada e sinto que o peso se alivia um pouco.
— Foi ela quem me disse para te ligar — diz ele, sério. Sustenho a respiração. — Antes de morrer. Disse que, depois, ele ia precisar de ti.
Abraço-o.
— Obrigada — sussurro.
*
O Sam está sentado à beira da doca, com os pés na água. O sol ainda não apareceu por trás dos montes, mas a sua luz cria uma auréola na outra margem que promete a sua chegada em breve. Os meus passos fazem vibrar as tábuas de madeira do chão, mas ele não se vira.
Sento-me ao seu lado, pousando no chão duas canecas fumegantes de café, e enrolo as minhas calças até aos joelhos para poder pôr os pés na água. Passo-lhe uma das canecas e bebemos em silêncio. Ainda não há barcos a circularem, e o único som é o canto distante e triste de um mergulhão. Vou a meio do café, tentando decidir por onde iniciar a conversa, quando o Sam começa a falar.
— O Charlie contou-me sobre vocês naquelas férias de Natal quando viemos passar esses dias a casa — diz, olhando para a água parada. Quero interrompê-lo para me desculpar, mas percebo que ele tem mais para dizer. E, no mínimo, devo-lhe a possibilidade de contar o seu lado, apesar do medo que tenho de o ouvir, de ouvir o que significou para ele saber o que eu tinha feito durante todo este tempo, de o ouvir dizer-me que nunca mais me quer ver.
Tem a voz insegura, como se ainda não tivesse dito uma palavra durante a manhã toda.
— Eu fiquei em mau estado depois de termos acabado. Não compreendia o que tinha corrido mal e por que razão tinhas desaparecido daquela maneira. Mesmo que não estivesses pronta para casar, ou sequer para falar de casamento, acabar com tudo não fazia sentido nenhum para mim. Eu sentia que talvez tivéssemos vivido toda a nossa relação de formas completamente diferentes. Sentia que estava prestes a enlouquecer.
Faz uma pausa e olha-me pelo canto do olho. Sinto a vergonha dar-me um nó na garganta e o coração a disparar, mas, em vez de lutar contra isso, aceito que isto vai ser desconfortável e concentro-me no Sam e naquilo que ele tem necessidade de dizer.
— Acho que o Charlie pensou que, se eu soubesse o que realmente se tinha passado, isso poderia ajudar de alguma maneira e explicar por que motivo me tinhas afastado. — Abana a cabeça, como se ainda não conseguisse acreditar. — Ele disse-me que tu continuavas a amar-me, que te tinhas arrependido de imediato e que te tinhas passado completamente.
— Tive um ataque de pânico — murmuro.
— Sim, depois acabei por perceber isso — replica, olhando-me diretamente. Está muito mais calmo do que estava ontem, mas a voz continua vazia.
— Arrependi-me mesmo — digo-lhe, hesitando antes de lhe tocar na perna. Ele não se afasta nem fica tenso sob o meu toque, por isso, deixo a mão ficar ali. — É o maior arrependimento da minha vida. Quem me dera que nunca tivesse acontecido, mas aconteceu, e lamento muito.
— Eu sei — responde ele, voltando a olhar para o lago, de ombros descaídos. — Lamento ter perdido a cabeça ontem. Pensei que tinha ultrapassado isto há anos, mas ouvir-te dizê-lo foi como se estivesse a ouvi-lo, de novo, pela primeira vez.
Pego-lhe na mão e aperto-lha.
— Ei — digo-lhe, para ele olhar para mim e, quando o faz, aperto-lhe mais a mão e olho-o nos olhos. — Não tens de pedir desculpa por nada. Já eu…
Um sorriso triste aflora-lhe aos lábios e ele passa a mão pelo cabelo.
— Mas acontece que tenho, Percy.
Sinto-me a franzir a cara, confusa. Ele levanta uma perna da água e vira-se, para ficar de frente para mim. Tiro os pés da água e cruzo as pernas para ficarmos frente a frente.
— Sempre achaste que eu era perfeito.
— Sam, tu eras perfeito — respondo, afirmando o óbvio.
— Não era! — exclama ele, perentório. — Estava obcecado com a ideia de sair daqui e, depois, quando fui para a faculdade, fiquei com tanto medo de estragar tudo, de só parecer inteligente porque tinha crescido numa vila tão pequena. Parecia-me que, a qualquer momento, eles iam descobrir que eu era uma fraude. Estava paralisado pelo medo. E também tinha saudades de casa. Tinha umas saudades loucas de ti. Não queria que percebesses como eu estava mal, que pensasses menos bem de mim, por isso, não te ligava.
— Tinhas 18 anos, era perfeitamente normal sentires-te assim. Eu era demasiado imatura para o perceber.
Ele abana a cabeça.
— Sempre tive inveja do Charlie. Acho que sabias isso. No secundário, ele mal estudava e arrasava em todos os testes. As miúdas adoravam-no. Parecia que tudo lhe acontecia da maneira mais fácil. E depois, tu também.
O meu estômago pareceu cair da altura de quarenta andares.
— Senti-me como se o meu futuro tivesse explodido quando disseste que não querias casar comigo — continua ele. — Mas achei que um dia ias mudar de ideias. Pensei que precisávamos ambos de algum tempo. Mas, depois, quando soube de ti e do Charlie, não soube lidar com isso. — Esfrega o rosto. — Fiquei furioso. Contigo. Com o Charlie. E comigo. Aquilo que sentia por ti foi sempre tão claro para mim, mesmo quando eramos miúdos, eu sabia que éramos feitos um para o outro. Duas metades de um todo. Amava-te tanto que a palavra amor não me parecia suficientemente grande para o que eu sentia. Mas agora percebo que tu não sabias isso. Não te terias virado para o Charlie se o soubesses. E é por isso que peço desculpa.
Estende a mão e, com o polegar, liberta-me o lábio inferior dos dentes. Não me tinha apercebido de que estava a mordê-lo.
Começo a responder, a dizer-lhe que não tem de pedir desculpa, que eu é que tenho de me explicar, mas ele interrompe-me.
— Quando voltei para a faculdade, depois do Natal, só queria esquecer-te e a nós e a tudo o que acontecera. Queria eliminar-te da minha vida, mas acho que também queria magoar-te da mesma maneira que tu me tinhas magoado. Estudava que nem um louco, mas também bebia muito. Ia a festas numas mansões, onde havia sempre bebida e raparigas.
Faz uma pausa. Sinto um aperto na barriga quando ele se refere a outras raparigas. Pisca os olhos, como se pedisse a minha autorização para continuar, e eu respiro fundo e espero.
— Não me lembro da maior parte delas, mas sei que foram muitas. O Jordie tentava manter-me na linha. Tinha medo de que eu apanhasse uma doença qualquer ou que me metesse com alguma psicopata, mas eu era incansável. No entanto, não fez diferença nenhuma. Durante o tempo todo, só conseguia pensar em ti — diz, com a voz embargada. — Mesmo quando estava com outras miúdas, a tentar apagar-te da minha cabeça, tu estavas sempre lá. Às vezes, acordava, nem sequer sabia onde estava, cheio de vergonha e cheio de saudades tuas. Mas voltava a fazer tudo de novo, a tentar esquecer-te. E, depois, uma noite, numa festa, na cave de uma fraternidade, encontrei a Delilah.
Sustenho a respiração ao ouvir o nome dela e esfrego o peito como se pudesse aliviar a dor que sinto por dentro do esterno.
O Sam espera que eu olhe para ele outra vez.
— Não precisas de me contar essa parte — afirmo. — Tenho a certeza de que sei o que se passou.
— A Delilah contou-te? — Aceno afirmativamente com a cabeça. — Achei que ela o faria. Era uma boa amiga.
Estremeço, recordando-me de quão mal a tratei. Tinha ficado furiosa e, depois, quando ultrapassei a raiva, tive demasiada vergonha para pedir desculpa.
— Estava mesmo muito bêbedo, Percy. E atirei-me a ela. Ela correu comigo e foi-se embora imediatamente. Acho que, passados dois minutos, acabei a vomitar-me todo.
Era exatamente o que a Delilah me tinha dito.
Ele solta um riso amargo.
— Depois disso, deixei de dormir com quem calhasse. Só comia, ia às aulas e estudava. Era uma espécie de robô. Mas, passado algum tempo, deixei de me sentir tão zangado contigo e com o Charlie. E comigo mesmo.
— Lamento tanto — murmuro. — Odeio ter-te feito isso. — Olho para as ondinhas provocadas pelo salto de um peixe. Ficamos ambos calados. — Eu mereci-o — digo, ao fim de algum tempo, olhando-o de frente. — As outras raparigas. Tu a atirares-te à Delilah. Tu a gritares-me ontem. Por aquilo que te fiz, mereço tudo.
O Sam inclina-se como se não me tivesse ouvido bem.
— Mereceste? — repete, com os olhos zangados. — De que é que estás a falar? Não o mereceste, Percy. Tal como eu não mereci aquilo que aconteceu com o Charlie. As traições não se anulam umas às outras. Só magoam mais. — Pega-me nas mãos e esfrega-as com os seus polegares. — Pensei em dizer-te. Devia ter-te dito. Recebi todos os teus e-mails e até tentei responder-te, mas culpei-te durante muito tempo. E achei que talvez continuasses a escrever enquanto ainda gostasses de mim, mas, a certa altura, paraste. — A sua cabeça está descaída e ele olha-me através das pestanas. — Quando descobri aquela loja com os filmes de terror, no quarto ano, quase voltei a contactar-te. Mas, nessa altura, pareceu-me tarde demais. Pensei que já tinhas ultrapassado tudo.
Abanei a cabeça com veemência. De tudo o que ele disse, isto é o que me magoa mais.
— Não ultrapassei nada — declaro. Aperto-lhe os dedos e entreolhamo-nos durante vários segundos. E depois vejo-as, as duas palavras de ontem, a ecoarem-me na cabeça, em ondas tímidas de felicidade.
«Eu amo-te.»
Desde que aqui cheguei que o Sam sabe de mim e do Charlie. Acabou com a namorada, apesar daquilo que eu fiz.
«Eu amo-te. Acho que nunca deixei de te amar.»
Aquelas palavras tinham ficado cobertas pelo meu pânico, mas agora estão coladas ao meu peito como mel.
— Continuo sem ultrapassar — murmuro. Ele está imóvel, mas os seus olhos dançam pelo meu rosto freneticamente, a cabeça um pouco inclinada, como se aquilo que eu digo não fizesse sentido. Agora que estamos mais leves, reparo em como ele tem os olhos vermelhos. Não deve ter dormido nada a noite passada. — Pensei que nunca mais ia voltar a ver-te. — A voz arranha-me e engulo em seco. — Teria dado qualquer coisa para me sentar aqui nesta doca contigo, para ouvir a tua voz, para te tocar. — E passo os dedos pela sua barba por fazer. Ele põe a sua mão sobre a minha e mantém-nas ali. — Apaixonei-me por ti aos 13 anos e nunca deixei de te amar. Tu és tudo para mim.
O Sam fecha os olhos durante três longos segundos e, quando os abre, são piscinas brilhantes debaixo de um céu estrelado.
— Juras? — pergunta. E, antes que eu possa responder, põe-me as mãos na cara e junta os lábios aos meus, com ternura, perdão e com a intensidade do Sam. Afasta-os demasiado depressa e encosta a testa à minha.
— Consegues perdoar-me? — sussurro.
— Já te perdoei há anos, Percy.
Olha-me durante muito tempo, sem falar, e eu retribuo.
— Tenho uma coisa para ti — diz. Vira-se e tira algo do bolso. Olho para baixo quando o sinto a pôr qualquer coisa na minha mão.
Não está tão brilhante como já foi, o laranja e o cor-de-rosa estão desbotados, o branco está cinzento e é demasiado grande para mim. Mas ali está ela, depois de todos estes anos, a pulseira da amizade do Sam, em volta do meu pulso.
— Eu disse-te que te dava qualquer coisa se atravessasses o lago a nadar. Acho que mereces um prémio de consolação — diz, puxando-a.
— Amigos de novo? — pergunto, sentindo um sorriso a abrir-se no meu rosto.
Ele levanta o canto do lábio, a sorrir.
— Podemos dormir em casa um do outro, como amigos?
— Segundo me lembro, isso fazia parte do combinado — respondo e acrescento: — Não quero estragar isto outra vez, Sam.
— Acho que estragar também faz parte do combinado — diz ele, dando-lhe um pequeno beliscão. — Mas, para a próxima, vamos ser melhores a resolver tudo.
— Eu quero isso — afirmo.
— Boa — responde-me. — Porque somos dois a querer.
Puxa-me para o seu colo e eu passo as mãos pelo seu cabelo. Beijamo-nos até o sol se ter levantado muito acima dos montes, cobrindo-nos com um manto de calor matinal brilhante. Quando, por fim, nos afastamos, esboçamos grandes sorrisos tontos.
— Então, o que fazemos agora? — pergunta o Sam, com voz grave, passando um dedo pelas sardas do meu nariz.
Ao fim da manhã, tenho de deixar o motel onde estou e não faço ideia do que vai acontecer depois disso. Mas neste preciso momento? Sei precisamente o que vamos fazer.
Tiro-lhe a t-shirt pela cabeça, passo-lhe as mãos pelos ombros e sorrio.
— Acho que devemos dar um mergulho.