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Agora

A Percy adolescente não acreditaria nisto, mas eu não tenho carro. Naquela altura, estava decidida a ter um automóvel para poder viajar para norte em todos os fins de semana possíveis. Hoje em dia, a minha vida está limitada a uma área verde na zona ocidental de Toronto, onde vivo, e ao centro da cidade, onde trabalho. Posso ir para o escritório, ao ginásio ou a casa dos meus pais a pé ou de transportes públicos.

Tenho amigos que nem se deram ao trabalho de tirar a carta; são aquelas pessoas que se gabam de nunca irem para norte de Bloor Street. O seu mundo resume-se a uma pequena bolha urbana, cheia de estilo, e têm orgulho nisso. O meu também, mas, às vezes, sinto-me a sufocar.

A verdade é que a cidade nunca mais foi o meu lar, desde que, aos 13 anos, me apaixonei pelo lago, pela cabana e pelos bosques. Mas, na maior parte do tempo, esforço-me por não pensar nisso. Não tenho tempo. O mundo que construí para mim está a rebentar de ocupações urbanas — trabalho no escritório até horas tardias, tenho aulas de spinning, muitos brunches —, e é assim que gosto dele. Um calendário muito ocupado dá-me alegria. Mas, uma vez por outra, dou comigo a fantasiar com sair da cidade — encontro uma casa pequena junto à água, onde posso escrever, a trabalhar num restaurante para pagar as contas — e a minha pele começa a retesar-se, como se a minha vida não coubesse nela.

Isto seria uma surpresa para quase toda a gente que conheço. Sou uma mulher de 30 anos que, basicamente, tem os seus problemas resolvidos. O meu apartamento é no último andar de um edifício grande em Roncesvalles, um bairro polaco onde ainda conseguem encontrar-se os tradicionais pierogies. O interior é fantástico, com vigas expostas e tetos inclinados, e é minúsculo, claro, mas um T1 completo nesta zona da cidade não é nada barato e o meu salário na revista Shelter é… modesto. Na verdade, é uma treta. Mas é uma situação habitual dos empregos na área editorial e, apesar de o meu salário ser pequeno, o meu trabalho é grande.

Trabalho na Shelter há quatro anos e subi consistentemente de assistente editorial até editora sénior. Estou numa posição de poder em que atribuo artigos e supervisiono sessões fotográficas na maior revista de decoração do país. Em grande parte graças aos meus esforços, conseguimos ter uma comunidade de seguidores dedicados nas redes sociais e um enorme público online. É um trabalho que eu adoro, no qual sou boa, e, na festa dos 40 anos da Shelter, a Brenda, editora-chefe da revista, atribuiu-me o mérito de ter trazido a publicação para a era digital. Foi um ponto alto da minha carreira.

Ser editora é o tipo de trabalho que as pessoas acham que é extremamente glamoroso. Parece brilhante e movimentado, mas, na realidade, significa que, durante a maior parte do tempo, estamos sentadas num cubículo a procurar sinónimos de «minimalista». Mas há lançamentos de produtos e há almoços com designers emergentes. Também é o tipo de emprego a que advogados empresariais e banqueiros em escalada social respondem ao deslizar para a direita, o que tem sido útil para encontrar parceiros que me acompanhem no circuito das festas. E há vantagens, como viagens de imprensa, bares abertos de champanhe e uma quantidade inacreditável de produtos grátis. Há também um fluxo infindável de rumores que eu e a Chantal devoramos, sendo a nossa forma favorita de passar as noites de quinta-feira. (E a minha mãe nunca se cansa de ver o nome Persephone Fraser impresso na ficha técnica da revista.)

O telefonema do Charlie rebenta a minha bolha e sinto-me tão ansiosa por voltar lá que, assim que desligo, alugo um carro e um quarto de hotel para o dia seguinte, embora o funeral só seja daqui a uns dias. É como se tivesse acordado de um coma de doze anos e a minha cabeça estivesse a latejar de antecipação e terror.

Vou ver o Sam.

*

Sento-me para escrever um e-mail aos meus pais sobre a Sue. Durante esta viagem à Europa, não têm verificado regularmente o e-mail, por isso, não sei quando verão este. Também não sei se falavam com a Sue. A minha mãe manteve o contacto com ela durante os primeiros anos depois de eu e o Sam termos «acabado», mas, sempre que ela mencionava qualquer um dos Floreks, os meus olhos arregalavam-se. A partir de certa altura, ela deixou de me pôr a par das coisas.

O e-mail que escrevo é breve e, depois de terminar, atiro alguma roupa para dentro da mala Rimowa, cara demais para mim, mas que comprei à mesma. Já passa da meia-noite, tenho uma entrevista de trabalho na manhã seguinte e, de seguida, uma longa viagem de carro, pelo que visto o pijama, deito-me e fecho os olhos. Mas estou demasiado nervosa para conseguir adormecer.

Há alguns momentos a que volto sempre, quando me sinto mais nostálgica, quando tudo o que me apetece é enrolar-me no meu passado com o Sam. Consigo passá-los dentro da minha cabeça como se fossem velhos vídeos caseiros. Na faculdade, costumava vê-los constantemente, eram uma rotina quando me deitava, tal como a manta cheia de borbotos da Hudson Bay que trouxera da cabana. Mas as memórias e os remorsos que traziam com eles arranhavam tanto quanto a manta de lã, e eu perdia noites a imaginar onde estaria o Sam naquele preciso momento e se haveria alguma hipótese de ele também estar a pensar em mim. Às vezes, eu tinha a certeza de que sim — como se houvesse um fio invisível, inquebrável, que nos ligava, esticando-se por longas distâncias e mantendo-nos juntos. Outras vezes, adormecia a meio de uma cena e, de repente, acordava durante a noite sem respirar, sentindo que tinha os pulmões à beira do colapso e lutando contra mais um ataque de pânico.

Finalmente, já no fim do curso, consegui parar essas exibições noturnas, enchendo a cabeça, em alternativa, com exames iminentes, prazos para artigos e candidaturas a estágios, o que fez com que os ataques de pânico fossem diminuindo.

Mas, esta noite, não me imponho restrições. Alinho todas as nossas primeiras vezes — a primeira vez que nos vimos, o primeiro beijo, a primeira vez que o Sam disse que me amava — até começar a interiorizar a certeza de que vou voltar a vê-lo. Os meus pensamentos tornam-se um novelo de perguntas para as quais não tenho resposta. Como irá ele reagir quando me vir? Quanto terá mudado? Será solteiro? Ou, merda, terá casado?

A minha psicóloga, a Jennifer — e não Jen, isso nunca (uma vez, cometi esse erro e fui rispidamente corrigida) —, tem frases emolduradas espalhadas pelas paredes, «A vida começa depois do café» ou «Não sou estranha, sou uma edição limitada», pelo que não sei que tipo de gravitas ela acha que o seu nome inteiro lhe dá. De qualquer forma, a Jennifer tem uns truques para lidarmos com este tipo de ansiedade em espiral, mas esta noite as respirações pela barriga e os mantras não têm hipótese nenhuma. Comecei a ter sessões com ela há uns anos, a seguir àquele Dia de Ação de Graças que passei a vomitar rosé e a desabafar com a Chantal. Eu não queria falar com nenhuma psicóloga, pois aquele ataque de pânico fora apenas um contratempo no meu caminho até então (bastante!) bem-sucedido para pôr o Sam Florek fora do meu coração e da minha cabeça, mas a Chantal insistiu muito.

— Esta merda ultrapassa as minhas capacidades, P — dissera ela, com a sua honestidade sem rodeios.

Eu e a Chantal conhecemo-nos quando éramos estagiárias numa revista da cidade onde ela é, atualmente, a editora de entretenimento. Tornámo-nos amigas devido à nossa peculiar tarefa de verificar a veracidade das críticas a restaurantes («Portanto, o linguado é envolto em pinhão triturado e não em crosta de pistácio?») e à ridícula obsessão do nosso editor-chefe com o ténis. O momento que consolidou a nossa amizade ocorreu durante uma reunião de trabalho, em que o editor começou por dizer: «Tenho pensado muito no ténis» e, de seguida, virando-se para a Chantal, que era a única pessoa negra em toda a empresa, disse-lhe: «Tu deves ser ótima no ténis.» Ela respondeu, de rosto perfeitamente impassível, que não jogava, e eu soltei um: «Só podes estar a brincar!»

A Chantal é a minha melhor amiga, embora também não haja grande concorrência. A minha relutância em partilhar coisas íntimas ou embaraçosas sobre mim com outras mulheres fá-las desconfiar de mim. Por exemplo, a Chantal sabia que eu tinha crescido numa cabana e que era amiga dos rapazes da casa ao lado, mas não fazia ideia da dimensão da minha relação com o Sam — ou de como acabou numa terrível explosão que não deixou sobreviventes. Acho que o facto de lhe ter escondido uma parte tão fundamental da minha história foi mais chocante do que a própria história do que acontecera há tantos anos.

— Tu percebes o que significa ter amigos, ou não? — perguntara-me ela, depois de lhe ter contado a terrível verdade. Tendo em conta que os meus dois melhores amigos tinham cortado relações comigo, talvez a resposta devesse ter sido: «Nem por isso.»

Mas tenho sido uma boa amiga para a Chantal. Sou a pessoa a quem ela liga para falar mal do trabalho ou da futura sogra, que lhe sugere constantemente que ela alise o cabelo para o casamento. A Chantal não tem qualquer interesse nos preparativos para o casamento, quer apenas uma grande festa com dança, bar aberto e um vestido de arrasar, o que é justo, mas, uma vez que as coisas têm de se concretizar de alguma forma, acabei por me tornar a sua organizadora, criando pastas no Pinterest com sugestões decorativas. Sou de confiança. Sou uma boa ouvinte. Sou aquela que sabe sempre que novo restaurante da moda tem o chef mais sexy. Faço excelentes Manhattans. Sou divertida! Só não quero falar sobre o que me deixa acordada à noite. Não quero revelar que, agora, começo a perguntar-me se subir na carreira me fez feliz, que, às vezes, me apetece tanto escrever, mas não encontro coragem para o fazer, que, por vezes, me sinto tão só. Só a Chantal é que consegue pôr-me a falar destas coisas.

Claro que a minha relutância em falar sobre o Sam com a Chantal não é por pensar ou deixar de pensar nele. É claro que o faço. Mas tento não pensar e não me desoriento facilmente. Desde que comecei a ter consultas com a Jennifer, nunca mais tive ataques de pânico. Gosto de pensar que ultrapassei isto ao longo da última década. Gosto de pensar que segui em frente. Ainda assim, de vez em quando, o sol brilha sobre o lago Ontário de uma forma que me relembra a cabana, e, de imediato, encontro-me na jangada com ele.

*

As minhas mãos tremem tanto enquanto preencho os formulários no balcão da empresa de aluguer de carros que até me surpreende que o funcionário me entregue as chaves. A Brenda mostrou-se compreensiva quando lhe liguei a pedir para tirar o resto da semana. Disse-lhe que tinha morrido um familiar e, embora tecnicamente fosse mentira, a Sue era da família. Ou, pelo menos, tinha sido em tempos.

Provavelmente, nem teria precisado daquela desculpa. Este ano, tirei apenas um dia de férias, quando eu e a Chantal marcámos um fim de semana prolongado num spa, no dia de São Valentim — tiramos férias juntas desde a altura em que éramos as duas solteiras e nenhum namorado ou noivo vai acabar com essa nossa tradição.

Por momentos, considero não contar à Chantal para onde vou, mas depois imagino-me a ter um acidente e ninguém saber por que razão estava na autoestrada, tão longe da cidade. Portanto, envio-lhe uma mensagem rápida do parque de estacionamento, acrescentando alguns pontos de exclamação do tipo está tudo bem comigo antes de enviar: «A tua festa foi tão gira!!! (Demasiado gira! Não devia ter bebido aquele último Spritz!) Vou sair da cidade por uns dias para ir a um funeral. Da mãe do Sam.»

A mensagem dela chega passados uns segundos: «O TAL Sam??? Estás bem?»

A resposta é não.

«Hei de ficar bem», respondo.

Assim que envio a mensagem, o telemóvel começa a tocar, mas deixo que a chamada da Chantal vá para o voicemail. Dormi tão pouco que só funciono por causa da adrenalina e dos dois baldes de café que tomei esta manhã, na entrevista com um designer de papel de parede convencido. Não me apetece mesmo falar. Durante o tempo que demoro a percorrer as ruas da cidade até chegar à estrada nacional 401, fico com as entranhas de tal modo revolvidas que tenho de fazer uma paragem de emergência num restaurante Tim Hortons, para ir à casa de banho.

Ainda estou trémula quando regresso ao carro, a segurar numa garrafa de água e num queque de passas, mas, à medida que conduzo mais para norte, sou envolvida por uma espécie de calma surreal. A certa altura, começam a surgir na paisagem formações rochosas de granito do Canadian Shield e, à beira da estrada, emergem cartazes que anunciam isco vivo e camiões para transporte de madeira. Já passou tanto tempo desde que percorri esta estrada e, no entanto, é tudo tão familiar — como se estivesse a conduzir de volta a outra parte da minha vida.

A última vez que estive nesta estrada era fim de semana de Ação de Graças. Também aí estava sozinha e acelerava no Toyota em segunda mão que tinha comprado com as minhas poupanças. Não parei uma única vez durante as quatro horas da viagem. Tinham passado três meses angustiantes desde que vira o Sam e estava desesperada por um abraço dele, por me sentir envolvida pelo seu corpo, por lhe dizer a verdade.

Poderia ter adivinhado que aquele fim de semana me daria, simultaneamente, os melhores e os mais terríveis momentos da minha vida? Que, de forma tão rápida, as coisas se tornariam tão, tão más? Que nunca mais voltaria a ver o Sam? O meu erro tinha começado meses antes, mas poderia eu ter prevenido as consequências que causariam uma destruição tão grande?

O meu estômago revolve-se mal vislumbro uma parte do extremo sul do lago, e começo a respirar fundo, inspira, um, dois, três, quatro, expira, um, dois, três, quatro, durante o resto do caminho que me leva ao Cedar Grove Motel, na periferia da vila.

Já é fim de tarde quando faço o check-in. Compro um exemplar do jornal local ao senhor idoso que está no balcão do átrio e estaciono o carro em frente do quarto 106. É simples, mas asseado. Uma pintura básica de um veado numa floresta, pendurada por cima da cama, e uma colcha velha, que provavelmente foi bordeaux no início da sua já longa vida, são os únicos elementos de cor.

Penduro o vestido preto que trouxe para o funeral e sento-me na ponta da cama, tamborilando com os dedos nas pernas e olhando pela janela. Consigo ver a ponta norte do lago, a doca da vila e a praia pública e sinto-me ansiosa. Parece errado estar tão perto da água e não ir até à cabana. Trouxe o meu biquíni e a minha toalha para poder ir à praia, mas o que me apetece mesmo é mergulhar da minha doca. Só que há um problema: a doca já não é minha.