Nunca tinha tido um rapaz no meu quarto até àquela noite em que o Charlie deixou o Sam à porta da nossa cabana. Assim que ficámos sozinhos, fiquei muda de tão nervosa que estava, mas o Sam não parecia ter o mesmo problema.
— E então, que raio de nome é Persephone? — perguntou ele, metendo a terceira bolacha Oreo na boca. Estávamos sentados no chão, com a porta aberta por insistência da minha mãe. Para quem se tinha mostrado tão sorumbático ao princípio, o facto de ele ser tão falador surpreendeu-me. Poucos minutos depois, eu já sabia que ele tinha vivido sempre na casa ao lado, que ia começar o 8.º ano no início do outono, como eu, e que gostava razoavelmente dos Weezer, mas a t-shirt tinha-lhe sido dada em segunda mão pelo irmão.
«Quase toda a minha roupa é assim», explicara factualmente.
A minha mãe não tinha ficado muito satisfeita quando lhe perguntei se o Sam podia ficar lá em casa naquela noite.
«Não sei se isso é uma boa ideia, Persephone», respondera ela, lentamente, mesmo em frente dele, e depois virou-se para o meu pai à procura de apoio. Acho que não tinha tanto que ver com o facto de o Sam ser rapaz, mas sim porque a minha mãe queria manter-me longe de outros adolescentes durante pelo menos dois meses, até regressarmos à cidade.
«Ela bem precisa de um amigo, Diane», dissera ele, agravando a minha humilhação. Deixando cair uma madeixa de cabelo sobre a cara, agarrei o Sam pelo braço e puxei-o escada acima. A minha mãe só demorou cinco minutos a vir controlar-nos, trazendo um prato com Oreos, como fazia quando eu tinha 6 anos. Até fiquei admirada por não ter trazido dois copos de leite.
Estávamos a mastigar bolachas, cheios de migalhas pretas nas camisolas, quando o Sam me questionou acerca do meu nome.
— Vem da mitologia grega — expliquei-lhe. — Os meus pais são muito cromos. A Persephone era a deusa do submundo. Não combina muito comigo.
Ele examinou o póster de O Monstro da Lagoa Negra e a pilha de livros de terror em cima da minha mesa de cabeceira, e depois fixou o olhar em mim, de sobrancelha arqueada.
— Olha que não sei. Deusa do submundo? Parece combinar contigo. Eu acho muito fixe…
Tornou-se distante, com uma expressão séria.
— Persephone, Persephone… — repetia o meu nome como se estivesse a tentar perceber o seu sabor. — Gosto dele.
— E Sam é diminutivo de quê? — perguntei, com as mãos e o pescoço a queimarem. — Samuel?
— Não — respondeu, de olhos semicerrados.
— Samson? Samwise?
Ele levantou a cabeça de repente, como se eu o tivesse surpreendido.
— O Senhor dos Anéis, muito bem. — A sua voz mudou no «bem» e ele esboçou um meio sorriso que me provocou um novo arrepio pelas costas abaixo. — Mas não. É só mesmo Sam. A minha mãe gosta de nomes pequenos para rapazes, como Sam e Charles. Diz que, quando são curtos, são mais fortes. Às vezes, quando está mesmo furiosa, chama-me Samuel. Diz que lhe dá mais tempo para se acalmar.
Desatei a rir-me com aquilo e o seu meio sorriso tornou-se mais largo, ligeiramente mais elevado de um lado do que do outro. Tinha aquela maneira descontraída de ser, como se não se preocupasse com agradar a ninguém. Eu gostava disso. Queria ser exatamente como ele.
Estava a acabar de comer uma bolacha quando o Sam perguntou:
— Então, o que queria dizer o teu pai há bocado?
Fingi que não percebia. Tinha esperança de que ele, por acaso, não tivesse ouvido nada. O Sam semicerrou os olhos e acrescentou calmamente:
— Sobre precisares de um amigo.
Estremeci, depois engoli em seco, sem saber bem o que dizer ou quanto lhe contar.
— Este ano, tive uns… — fiz um gesto de aspas com os dedos — … problemas com algumas das miúdas da minha escola. Elas agora já não gostam de mim.
Rodei a minha pulseira enquanto o Sam ponderava aquilo. Quando voltei a olhar para ele de relance, ele estava a observar-me diretamente, de sobrancelhas cerradas, como se estivesse a tentar resolver um problema matemático.
— No ano passado, duas miúdas da minha turma foram suspensas por bullying — disse ele, por fim. — Andavam a pedir aos rapazes para convidarem outra miúda para sair, só a fingir, e depois gozavam com ela por acreditar neles.
Por mais que me detestasse, não me parecia que a Delilah fosse assim tão longe. Perguntava-me se o Sam teria feito parte daquela partida e, parecendo adivinhar o que me ia na cabeça, ele afirmou:
— Elas quiseram convencer-me a entrar, mas não o fiz. Achei que era maldoso e meio desequilibrado da parte delas.
— Totalmente desequilibrado — respondi, aliviada.
Com os seus olhos azuis ainda fixos em mim, ele mudou de assunto.
— Conta-me lá por que razão estás sempre a brincar com essa pulseira. — E apontou para o meu pulso.
— É a minha pulseira da amizade!
Antes de eu ser uma excluída social, era conhecida na escola por duas coisas: a minha paixão pelo horror e as minhas pulseiras da amizade. Tecia-as em padrões complexos, mas isso não era tão importante como a escolha das cores certas. Escolhia cuidadosamente cada paleta de cores para que refletisse a personalidade de quem ia usá-la. A da Delilah tinha rosas e vermelhos fortes — feminina e poderosa. A minha era uma mistura de cor de laranja néon, cor-de-rosa néon, pêssego, branco e cinzento. A Delilah fora sempre a miúda mais bonita e popular da turma e, apesar de os outros miúdos gostarem de mim, eu sabia que o meu estatuto se devia à minha relação próxima com ela. Quando recebi pedidos de pulseiras de todas as miúdas da minha turma, e mesmo de algumas do 8.º ano, senti que, finalmente, tinha uma qualidade própria, além de ser a amiga divertida da Delilah. Senti-me uma pessoa criativa, fixe e interessante. Mas, um dia, encontrei as pulseiras que tinha feito para as minhas três melhores amigas cortadas aos bocadinhos em cima da minha mesa.
— Quem é que ta deu? — perguntou o Sam.
— Bem… Ninguém ma deu. Fui eu que a fiz — respondi.
— Esse padrão é muito fixe.
— Obrigada! — repliquei, animada. — Tenho praticado durante todo o ano! Achei que os néones e o pêssego faziam uma combinação gira.
— Sem dúvida — concordou ele, inclinando-se ligeiramente. — Podias fazer-me uma? — questionou, observando-me de novo. Percebi que não estava a brincar. Levantei-me e fui buscar o conjunto de fios de tecer que estava na minha secretária. Coloquei no chão, entre nós, a pequena caixa de madeira com as minhas iniciais gravadas.
— Tenho um monte de cores diferentes, mas não sei se tenho alguma coisa de que gostes — disse, tirando os rolos de fio com as cores do arco-íris. Nunca tinha feito uma pulseira para um rapaz. — Mas diz-me do que gostas e, se eu não tiver, posso pedir à minha mãe que me leve à vila para ver o que encontro por lá. Normalmente, já conheço as pessoas um pouco melhor antes de lhes fazer as pulseiras. Pode parecer tonto, mas tento combinar as cores com a personalidade da pessoa.
— Isso não parece nada tonto — afirmou ele. — Então, e o que dizem essas cores sobre ti? — Estendeu a mão e tocou num dos fios que pendia do meu pulso. As suas mãos eram como os pés, demasiado grandes para o seu corpo. Fez-me lembrar as patas desproporcionadas dos cachorrinhos dos pastores-alemães.
— Bem… Estas, na verdade, não querem dizer nada — gaguejei. — Só achei que era uma paleta sofisticada.
Reorganizei os fios, arrumando-os lado a lado, do mais claro ao mais escuro, no bocado de chão que havia entre nós.
— Talvez possa usar vários azuis, para combinar com os teus olhos? — indaguei, pensando em voz alta. — Não tenho muitos azuis, por isso, vou ter de arranjar mais alguns tons. — Relanceei para o Sam, para ver o que ele pensava, mas em vez de olhar para os fios, estava a olhar fixamente para mim.
— Não faz mal — retorquiu. — Quero uma exatamente igual à tua.
*
Na manhã seguinte, engoli sofregamente o pequeno-almoço e corri para a água com o meu saco. Sentei-me na doca de pernas cruzadas e prendi a pulseira aos meus calções com um alfinete de ama para trabalhar nela enquanto esperava pelo Sam.
Quando os seus passos soaram na doca da casa ao lado, dava a ideia de que estavam mesmo ao pé de mim. Usava os mesmos calções de banho azul-escuros do dia anterior; parecia que podiam escorregar-lhe das ancas estreitas a qualquer momento.
Acenei-lhe, ele levantou a mão e depois mergulhou na ponta da doca e veio a nadar até junto de mim. Estava à minha frente em menos de um minuto.
— És rápido — disse-lhe eu, impressionada. — Tive aulas de natação, mas não chego aos teus calcanhares.
O Sam esboçou aquele meio sorriso e depois içou-se da água, deixando-se cair ao meu lado. A água escorria-lhe do cabelo e corria-lhe em pequenas linhas pela cara e pelo peito, que era quase côncavo. Não conseguia perceber se ele tinha noção de que estava seminu ao lado de uma rapariga. Puxou pelos fios de tecer com que eu estava a trabalhar.
— É a minha pulseira? Parece impecável.
— Comecei a fazê-la ontem à noite — respondi-lhe. — E isto também não demora assim tanto tempo. Acho que consigo acabá-la até amanhã.
— Maravilha — afirmou, encaminhando-se para a jangada. — Pronta para receber o pagamento?
Em troca da pulseira, o Sam tinha aceitado ensinar-me a mergulhar da jangada para a água com uma cambalhota.
— Claro que sim — respondi, tirando o chapéu da Jays e pondo muito protetor solar na cara.
— Preocupas-te mesmo com a proteção, hem? — retorquiu ele, apanhando o meu chapéu.
— Sim. Bem, nem por isso. Preocupo-me é com as sardas, e o sol deixa-me com sardas. Nos braços e assim não me importo, mas não quero tê-las por toda a cara.
O que eu queria era uma pele lisa e uniforme como a da Delilah Mason.
O Sam abanou a cabeça, ficando perplexo, e depois os seus olhos iluminaram-se.
— Sabias que as sardas são causadas por um excesso de produção de melanina, que é estimulado pelo sol? — Reparando no meu ar de admiração, apressou-se a acrescentar: — O que foi? É verdade.
— Acredito em ti — respondi devagar. — Mas é um facto muito aleatório para o saberes assim.
— Vou ser médico, sei muitos factos aleatórios, como tu dizes — afirmou depois de se rir e fez umas aspas com os dedos.
— Já sabes o que queres ser? — espantei-me. Já eu, não fazia ideia do que queria ser. Nem por sombras. A minha melhor disciplina era Inglês e eu gostava de escrever, mas nunca tinha pensado a sério num emprego de adulta.
— Sempre quis ser médico, cardiologista, mas a minha escola não é grande coisa. E eu não quero ficar aqui para sempre, por isso, estudo sozinho. A minha mãe compra-me livros em segunda mão, pela Internet, para estudar — explicou ele.
Eu absorvi tudo aquilo.
— Hum… então és inteligente?
— Parece que sim.
De seguida, levantou-se, todo ele um monte de braços, pernas e articulações pontiagudas e puxou-me para cima pelos braços. Era surpreendentemente forte para alguém tão esguio.
— E sou um ótimo nadador. Anda. Vou ensinar-te a dar aquela cambalhota.
Depois de inúmeros chapões de barriga, alguns mergulhos e uma cambalhota relativamente bem-sucedida, eu e o Sam estendemo-nos na jangada, com as caras viradas para o céu, e o sol já quente do fim da manhã a secar os nossos fatos de banho.
— Estás sempre a fazer isso — disse o Sam, olhando para mim.
— A fazer o quê?
— A mexer no cabelo.
Encolhi os ombros. Devia ter dado ouvidos à minha mãe quando ela me disse que uma franja não ia resultar com o meu tipo de cabelo. Em vez disso, numa noite na primavera passada, enquanto os meus pais corrigiam testes, resolvi tratar do assunto pelas minhas próprias mãos — e com a ajuda das belas tesouras de costura da minha mãe. Mas não havia maneira de conseguir que a franja ficasse uniforme e cada tesourada só tornava as coisas piores. Em menos de cinco minutos, tinha desgraçado completamente o meu cabelo.
Arrastei-me pelas escadas abaixo até à sala, com as lágrimas a escorrerem-me pela cara abaixo. Ao ouvirem os meus soluços, os meus pais viraram-se e viram-me ali, de tesoura na mão.
«Persephone! O que se passa?»
A minha mãe sobressaltou-se e correu para mim, verificou-me os pulsos e os braços à procura de estragos e, depois, abraçou-me com força, enquanto o meu pai continuava sentado, de boca aberta.
«Não te preocupes, querida, vamos resolver isto», disse a minha mãe, e afastou-se para ir agendar uma marcação no seu cabeleireiro. «Se queres mesmo ter uma franja, tem de parecer que foi feita como deve ser.»
O meu pai esboçou um sorriso leve.
«O que é que te passou pela cabeça, miúda?»
Os meus pais já tinham feito uma proposta para a propriedade à beira do lago, em Barry’s Bay, mas verem-me mexer assim nas tesouras deve tê-los levado ao limite, porque, no dia seguinte, o meu pai telefonou à agência e disse-lhes para aumentarem a oferta. Queriam tirar-me da cidade mal as aulas acabassem.
Mas, ainda hoje, acho que os meus pais estavam a exagerar. A Diane e o Arthur Fraser, ambos professores na Universidade de Toronto, adoravam-me daquela maneira única dos pais de classe média alta, já com uma certa idade e com um único filho. A minha mãe, académica da área de Sociologia, já estava no final da casa dos 30 anos quando me teve; o meu pai, que dava aulas de Mitologia Grega, já tinha passado dos 40. Todos os meus pedidos de um novo brinquedo, uma visita às livrarias ou materiais para um novo passatempo eram satisfeitos com entusiasmo e um cartão de crédito. Sendo uma criança que preferia colecionar louvores na escola a arranjar problemas, não lhes dava muitos motivos para me disciplinarem. Em troca, eles davam-me maior liberdade de ação.
Portanto, quando as três miúdas que faziam parte do meu círculo mais próximo de amigas me viraram as costas, eu não estava habituada a lidar com nenhum tipo de adversidade e não sabia como reagir, a não ser dar o meu máximo para as reconquistar.
A Delilah era a líder incontestada do nosso grupo, uma posição que lhe concedemos porque ela preenchia os dois requisitos mais importantes para uma líder adolescente: um rosto excecionalmente bonito e a consciência do poder que isso lhe dava. Visto que tinha sido a Delilah a chatear-se comigo, e era ela quem eu tinha de reconquistar, as minhas tentativas de voltar a pertencer ao grupo eram-lhe dirigidas. Pensei que fazer uma franja igual à dela demostraria a minha lealdade. Mas, em vez disso, quando me viu na escola, a Delilah levantou o volume da voz, num sussurro exagerado, e disse:
«Credo, mas alguém ainda usa franja hoje em dia? Acho que está na altura de deixar a minha crescer.»
Todas as manhãs, temia ir para a escola — sentar-me sozinha nos intervalos, ver as minhas antigas amigas a rirem-se, perguntar-me se era de mim que se estavam a rir. Um verão inteiro longe de tudo, onde podia ler os meus livros sem me preocupar com a possibilidade de alguém me chamar esquisita e nadar sempre que queria, era o paraíso.
Olhei para o Sam.
— Onde anda o teu irmão hoje? — perguntei, lembrando-me de como, no dia anterior, eles se tinham divertido juntos na água. O Sam virou-se de barriga para baixo e apoiou-se nos braços.
— Porque é que queres saber do meu irmão? — questionou, com as sobrancelhas franzidas.
— Por nada. Estava só aqui a pensar se ele também vai ter com os amigos logo à noite.
O Sam fitou-me pelo canto do olho. O que eu queria mesmo saber era se o Sam queria estar comigo outra vez.
— Os amigos dele ficaram lá até muito tarde ontem — respondeu, por fim. — Ele ainda estava a dormir quando eu vim para o lago. Não sei o que vai acontecer hoje à noite.
— Ah — retorqui, hesitante. Depois, decidi arriscar. — Bem, se quisesses aparecer outra vez, seria fixe. A nossa televisão é um bocado pequena, mas temos uma grande coleção de DVD.
— Sou capaz de aparecer — disse ele, relaxando a testa. — Ou podias vir tu à nossa casa. A nossa televisão é bastante decente. A minha mãe quase nunca está em casa, mas não se importaria que lá fosses.
— Vocês têm autorização para levar amigos a casa quando ela não está?
Os meus pais não eram nada rígidos, mas estavam sempre em casa quando eu levava lá alguém.
— Podemos levar um ou dois. Mas o Charlie gosta de festas. São pequenas, mas a nossa mãe fica danada quando chega a casa e encontra lá uns dez miúdos.
— Isso acontece muito? — perguntei. Nunca tinha estado numa festa de adolescentes. Rastejei até à beira da jangada e mergulhei os pés na água para arrefecer.
— Sim, mas na maior parte das vezes são aborrecidas e a minha mãe não chega a descobrir. — O Sam aproximou-se e sentou-se ao meu lado, metendo as suas pernas fininhas na água e movendo-as para a frente e para trás. — Normalmente, fico no meu quarto a ler ou a fazer outra coisa qualquer. Mas se ele tiver lá uma rapariga, tenta livrar-se de mim, como ontem à noite.
— Ele tem namorada? — questionei. O Sam puxou para trás a madeixa de cabelo que lhe tinha caído sobre os olhos e olhou-me de lado, desconfiado. Eu nunca tinha tido um namorado e, ao contrário de muitas miúdas da minha turma, arranjar um não estava no topo da minha lista de prioridades. Mas também nunca me tinham beijado, e teria dado o meu braço direito para que alguém pensasse que eu era suficientemente bonita para ser beijada.
— O Charlie tem sempre uma namorada — afirmou. — Só que nunca duram muito tempo.
— Então — comecei, mudando de assunto —, porque é que a tua mãe está tantas vezes fora?
— Fazes muitas perguntas, sabias?
Ele não o disse de forma agressiva, mas o comentário provocou-me uma pontada de medo no pescoço. Hesitei.
— Não me importo — acrescentou, tocando-me levemente com o ombro. Senti o meu corpo relaxar. — A minha mãe trabalha num restaurante. Provavelmente, ainda não o conheces. A Taberna? Pertence à nossa família.
— Por acaso, conheço! — respondi, lembrando-me da esplanada apinhada. — Eu e a minha mãe passámos por lá de carro. Que tipo de restaurante é?
— Polaco… tipo pierogies e assim. A minha família é polaca.
Não fazia ideia do que eram os tais pierogies, mas não o revelei.
— Parecia muito atarefado na altura.
— Não há muitos sítios onde comer por aqui. E a comida é boa. A minha mãe faz os melhores pastéis do mundo. Mas dá muito trabalho, por isso, a partir da tarde, ela está quase sempre fora.
— E o teu pai não ajuda?
— Hum, não.
— Beeem… — comentei. — E porque não?
— O meu pai morreu, Percy — respondeu ele, olhando para uma mota de água que passava por ali.
Não sabia o que dizer. E devia ter ficado calada, mas, em vez disso, disse:
— Nunca conheci ninguém que tivesse perdido o pai.
De imediato, quis absorver de novo as palavras e mandá-las pela garganta abaixo. Fiquei com os olhos arregalados de pânico.
As coisas ficariam mais ou menos esquisitas se eu saltasse agora para o lago?
O Sam virou-se devagar para mim, pestanejou, olhou-me diretamente nos olhos e declarou:
— Nunca conheci ninguém tão desbocada.
Senti-me como se estivesse presa numa rede. Estava ali sentada, de boca aberta, com a garganta e os olhos a arderem. E, então, a fina linha dos seus lábios elevou-se num canto e ele riu-se.
— Estava a brincar — disse. — Não a parte de o meu pai ter morrido e, na verdade, tu és mesmo desbocada, mas não me importo.
O meu alívio foi instantâneo. Mas, nesse momento, ele pousou as suas grandes mãos nos meus ombros e abanou-os um pouco. Fiquei paralisada, foi como se as extremidades de todos os meus nervos tivessem sido atraídas para debaixo daquelas mãos. O Sam dirigiu-me um olhar estranho e apertou-me os ombros suavemente.
— Está tudo bem aí? — Virou a cabeça para me fitar nos olhos. Soltei um suspiro inseguro.
— Às vezes, as coisas saem-me da boca antes que eu consiga pensar em como vão soar ou no que querem dizer. Não quis ser indelicada. Lamento pelo teu pai, Sam.
— Obrigado — respondeu ele, suavemente. — Foi há pouco mais de um ano, mas os miúdos da escola ainda agem de uma maneira estranha. Prefiro ouvir as tuas perguntas do que ser alvo de pena.
— Está bem — concordei.
— Tens mais perguntas? — questionou ele, com um trejeito.
— Vou guardá-las para mais tarde — respondi, levantando-me com as pernas bambas. — Treinamos aquela cambalhota mais algumas vezes?
Ele ergueu-se com um salto e ficou ao meu lado, com um pequeno sorriso.
— Não.
E, de repente, agarrou-me pela cintura e saltou para a água comigo.
*
Naquela primeira semana de verão, entrámos numa rotina tranquila. Havia um caminho estreito que atravessava o mato entre os nossos terrenos e percorríamo-lo várias vezes ao dia. Passávamos as manhãs a nadar e a mergulhar da jangada, depois, deitávamo-nos na doca, a ler, até o sol ficar demasiado quente, e de seguida atirávamo-nos outra vez para dentro de água.
Apesar de estar frequentemente no restaurante, a Sue só demorou alguns dias a perceber que eu e o Sam passávamos mais tempo juntos do que separados. Apareceu à nossa porta, com o Sam a reboque, e trouxe um grande recipiente cheio de pierogies caseiros. Era surpreendentemente nova, muito mais nova do que os meus pais, e vestia-se mais como eu do que como uma adulta, com calções de ganga e um top cinzento, com o cabelo louro-claro apanhado num rabo de cavalo ondulante. Era pequena e suave, e o seu sorriso era largo e sardento, como o do Charlie.
A minha mãe preparou uma cafeteira de café e os três adultos sentaram-se no alpendre a conversarem enquanto eu e o Sam os espiávamos do sofá. A Sue garantiu aos pais que eu era bem-vinda em casa dela em qualquer altura, que o Sam era um «miúdo assustadoramente responsável» e que tomaria conta de nós, pelo menos nas alturas em que lá estivesse.
«Deve ter tido os miúdos assim que terminou o liceu», ouvi a minha mãe dizer ao meu pai nessa noite.
«Aqui as coisas são diferentes», respondeu ele.
Eu e o Sam acabámos por passar a maior parte do tempo a nadar junto de casa dele. Nos dias em que o sol ficava demasiado quente, íamos para casa, que tinha sido construída como uma antiga casa de campo, pintada de branco. Havia um cesto de basquetebol pendurado por cima da porta da garagem. A Sue odiava ar condicionado e preferia deixar as janelas abertas, para sentir a brisa do lago, mas a cave estava sempre fresca. Eu e o Sam deitávamo-nos em pontas opostas do confortável sofá axadrezado e vermelho e víamos um filme. Começámos a desbravar a minha coleção de filmes de terror. Ele só tinha visto um ou dois, mas não tardou a perceber o meu entusiasmo. Acho que, para ele, parte da diversão consistia em corrigir algum pormenor (todos) cientificamente incorreto que detetasse — sendo que o seu preferido era a quantidade irrealista de sangue em certas cenas. Eu revirava os olhos e respondia «Obrigada, doutor», mas gostava que ele prestasse tanta atenção aos filmes.
Escolhíamos os filmes à vez, mas, segundo o Sam, eu «ficava toda enervada» quando ele sugeria vermos A Noite dos Mortos-Vivos. Eu tinha as minhas razões — por causa daquele filme, as minhas três melhores amigas tinham deixado de falar comigo. Acabei por contar toda a história ao Sam, que se passara numa noite em que elas tinham ido dormir a minha casa e houvera uma irrefletida sessão do mais sangrento e chocante filme da minha coleção.
Como a Delilah, a Yvonne e a Marissa gostavam das histórias de terror que eu lhes lia na escola, assumi que A Noite dos Mortos-Vivos não fosse um problema. Tínhamo-nos juntado em volta da televisão, enroladas em cobertores e almofadas, todas de pijama, com taças de pipocas nas mãos, e começáramos-mos a ver um grupo de belos jovens de 20 e tal anos a dirigirem-se a uma arrepiante cabana nos bosques. Quando se dera a cena mais perturbadora, a Delilah tapara a cara e, de repente, saltara do sofá e correra para a casa de banho, deixando uma mancha húmida no tecido de camurça. Eu e as outras olhámos umas para as outras de olhos arregalados, e eu corri para o armário para ir buscar papel de cozinha e líquido de limpeza.
Tive esperança de que a Delilah esquecesse aquele episódio de chichi nas cuecas até voltarmos à escola. Não, ela não se esquecera. Nem por sombras. Se se tivesse esquecido, eu teria sido poupada aos meses de tortura que se seguiram.
— Isto foi muito nojento — disse o Sam, quando já estavam a passar os créditos. — Mas também espetacular?
— Não foi?! — respondi, pondo-me de joelhos de um salto para o encarar. — É um clássico! Não sou esquisita por gostar disto, pois não?
Os olhos dele arregalaram-se perante a minha súbita mostra de energia. Pareceria uma maluquinha? Provavelmente, sim.
— Bem, consigo perceber por que razão essa Delilah ficou tão apavorada... Acho que também não vou dormir hoje à noite. Mas foi uma parva, e tu não és esquisita por gostares disto — disse ele. Recostei-me no sofá outra vez, satisfeita. — És só esquisita em geral — acrescentou, disfarçando um sorriso, e eu atirei-lhe uma almofada. Ele levantou as mãos e riu-se. — Mas eu gosto de pessoas esquisitas.
Eu teria ficado grata por qualquer amigo que tivesse conhecido naquele verão, mas ter encontrado o Sam foi como ganhar a lotaria da amizade. Era cromo num bom sentido e sarcástico de uma forma hilariante, gostava de ler quase tanto como eu, embora preferisse livros sobre feiticeiros e revistas sobre ciência e natureza. Havia uma prateleira cheia de revistas da National Geographic na cave, e acho que ele tinha lido todas.
O Sam estava, rapidamente, a tornar-se a minha pessoa preferida. E tenho quase a certeza de que ele sentia o mesmo — começou a usar sempre a pulseira que eu lhe tinha feito. Uma vez, puxou-a para o lado para me mostrar a pele branca por baixo. Às vezes, ele ausentava-se durante uma manhã ou tarde insuportavelmente longa, para sair com os amigos da escola, mas quando estava em casa, estávamos quase sempre juntos.
A meio do verão, uma leve camada de sardas surgiu-me no nariz, no rosto e no peito. Como se, de alguma maneira, eu não tivesse reparado nelas, um dia, o Sam inclinou-se até ficar muito próximo da minha cara, quando estávamos estendidos na jangada, e disse:
— Parece que o protetor solar não foi suficientemente forte.
— Parece que não — resmunguei. — E obrigada por me chamares a atenção.
— Não percebo porque detestas tanto as tuas sardas — replicou ele. — Eu gosto delas.
Olhei para ele, sem pestanejar.
— A sério? — perguntei.
Quem, no seu perfeito juízo, gostaria de sardas?
— Siiiiim. — Ele prolongou bem a palavra e fez-me aquele olhar que significava «Porque é que és tão esquisita?», que eu preferi ignorar.
— Juras por tudo?
— Por tudo o quê? — questionou ele, e eu hesitei. — Disseste «Juras por tudo». Queres que eu jure pelo quê?
— Hum… — Não tinha querido ser literal. Olhei em volta e os meus olhos pousaram no seu pulso. — Jura pela nossa pulseira da amizade.
Franziu as sobrancelhas, mas depois estendeu o dedo mindinho, meteu-o debaixo da minha pulseira e deu-lhe um leve puxão.
— Juro — comprometeu-se. — E agora tu juras que te vais deixar dessa obsessão com as sardas.
Um sorrisinho bailava-lhe nos lábios e eu soltei uma pequena gargalhada enquanto colocava o meu dedo mindinho na pulseira dele e a puxava, tal como ele tinha feito.
— Juro — disse, revirando os olhos, mas secretamente contente. Depois, nunca mais me preocupei muito com as minhas sardas.
*
«Halloween em Agosto» foi o nome que demos à semana em que fizemos a maratona de todos os filmes da saga Halloween. Tínhamos acabado de começar a ver o quarto filme quando o Charlie desceu aos saltos as escadas para a cave, de boxers, e se atirou para o sofá, caindo entre mim e o Sam. O Charlie, tal como eu já tinha aprendido, andava sempre com um sorriso e raramente com uma t-shirt.
— Não consegues sentar-te mais longe dela, Samuel? — brincou ele.
— Não consegues andar mais despido, Charles? — respondeu o Sam.
O seu sorriso cresceu ainda mais.
— Claro! — gritou, saltando para o chão e metendo os polegares no elástico dos boxers.
Eu gritei e tapei a cara.
— Credo, Charlie. Para com isso! — gritou também o Sam, desatando a rir-se
Ambos os irmãos Florek gostavam de provocar; enquanto eu era a vítima das pequenas provocações do Sam, ele levava com as piadas implacáveis do Charlie sobre a sua magreza e inexperiência sexual. O Sam raramente lhe respondia e o único sinal da sua irritação era ficar com uma mancha vermelha na cara. No lago, o Charlie empurrava o Sam para a água sempre que podia, de tal forma que até eu comecei a achar aquilo enervante.
«Ele empurra-me mais quando tu estás connosco», disse-me uma vez o Sam.
O Charlie riu-se e atirou-se de novo para o sofá. Deu-me uma cotovelada e afirmou:
— Tens o pescoço todo manchado, Pers. — Afastou-me os braços da cara, pôs-me a mão no joelho e apertou-o. — Desculpa, não queria chatear-te.
Olhei de relance para o Sam, mas o seu olhar estava fixado na mão do Charlie na minha perna.
Fomos interrompidos pela Sue, que nos chamava para almoçar. Uma travessa de pierogies de queijo e batata esperava-nos na mesa redonda da cozinha. Era uma divisão luminosa, com armários de cor creme, janelas que davam para o lago e uma porta deslizante de vidro para a doca. A Sue estava no lava-louça, usava uns calções de ganga e uma t-shirt branca, o cabelo apanhado num rabo de cavalo, como de costume, e lavava uma panela grande.
— Olá, Sra. Florek — disse eu, sentando-me e servindo-me de três colheradas enormes. — Obrigada por ter feito o almoço.
Ela virou-se para nós.
— Charlie, vai vestir-te. E tu és bem-vinda, Percy, sei o quanto gostas dos meus pierogies.
— Adoro-os — respondi, e ela esboçou um dos seus grandes sorrisos, com covinhas. O Sam tinha-me dito que aqueles pastéis eram o prato preferido do seu pai e que a Sue tinha deixado de os fazer em casa até eu ter aparecido por ali.
Depois de acabar o que tinha no prato, voltei a enchê-lo e adicionei uma boa quantidade de molho.
— Sam, a tua namorada come que nem um cavalo. — O Charlie riu-se, e eu pestanejei ao ouvir a palavra começada por «n».
— Cala-te, Charlie — interrompeu a Sue. — Nunca faças comentários sobre quanto uma senhora come. E não os chateies, ainda são muito novos para esses coisas.
— Bem, mas eu não sou tão novo — respondeu o Charlie, levantando as sobrancelhas na minha direção. — Queres fazer uma troca, Percy?
— Charlie! — A Sue começava a ficar aborrecida.
— Estou só a brincar — replicou ele, e levantou-se para limpar o prato, dando um carolo na nuca do irmão ao passar por ele.
Procurei os olhos do Sam, mas ele estava a olhar zangado para o Charlie, vermelho como um tomate.
*
À medida que a última semana das férias de verão chegava ao fim, comecei a temer o regresso à cidade. Sonhava que ia para a escola nua e encontrava a pulseira do Sam cortada em pedaços cor de laranja e cor-de-rosa em cima da minha mesa.
Na última tarde antes de me ir embora, estávamos deitados a apanhar sol na jangada. Ao longo do dia, tinha tentado não parecer triste, mas, pelos vistos, não estava a conseguir, porque o Sam perguntava repetidamente se eu estava bem. De repente, levantou-se e disse:
— Sabes de que precisas? De uma última volta de barco.
Os Floreks tinham um pequeno motor 9.9 na popa do seu barco a remos e o Sam tinha-me ensinado a conduzi-lo.
Peguei no livro e o Sam pegou na sua caixa de canas e apetrechos de pesca. Enrolámos as toalhas aos bancos e partimos, de fatos de banho húmidos e pés descalços. Guiei até uma baía de juncos, que o Sam dizia ser boa para pescar, desligando depois o motor. Estava a observá-lo a lançar a linha pela proa do barco quando ele começou a falar.
— Foi um ataque cardíaco — afirmou, sem afastar os olhos da cana. Engoli em seco, mas fiquei em silêncio. — Em casa, não falamos muito dele — acrescentou, puxando a linha. — E com os meus amigos, nem pensar. Mal conseguiam olhar para mim durante o funeral. E, mesmo agora, sempre que alguém diz algo sobre o seu próprio pai, olham todos para mim como se, sem querer, tivessem dito algo muito ofensivo.
— Isso é uma treta — retorqui. — Posso contar-te tudo sobre o meu pai, se quiseres. Mas, aviso-te, ele é completamente aborrecido.
Ele sorriu, e eu continuei.
— Mas, na verdade, também não tens de falar comigo, se não te apetecer fazê-lo.
— O problema é esse — respondeu, piscando os olhos ao sol. — Apetece-me. Gostava que falássemos mais sobre ele em casa, mas a minha mãe fica triste. — Pousou a cana e olhou para mim. — Estou a começar a esquecer-me de coisas sobre ele, sabes?
Passei para o banco do meio para me aproximar mais dele.
— Na verdade, não sei. Não conheço ninguém cujo pai tenha morrido, lembras-te? — Empurrei-lhe o pé com o meu dedo grande, e ele deu uma gargalhada. — Mas posso imaginar. E posso ouvir.
Ele acenou e passou a mão pelo cabelo.
— Foi no restaurante. Ele estava a cozinhar. A minha mãe estava em casa e alguém ligou a avisar que o meu pai tinha caído e que uma ambulância o tinha levado para o hospital. Só demorámos dez minutos a chegar lá, sabes que o hospital não é longe, mas não fez diferença. Ele já tinha morrido.
O Sam disse tudo muito depressa, como se lhe doesse dizer aquelas palavas.
Estendi o braço e apertei-lhe a mão. Depois, rodei-lhe a pulseira, para ficar com o padrão mais bonito virado para cima.
— Lamento — murmurei.
— Isto explica a coisa toda de querer ser médico, não é?
Percebi que ele queria fazer-se de forte, mas a voz era fraca. Sorri, mas não respondi.
— Conta-me como é que ele era… quando te apetecer — disse. — Gostava de saber tudo sobre ele.
— Combinado — respondeu, e pegou na cana outra vez. De seguida, acrescentou: — Desculpa ter ficado emocionado no teu último dia.
— Também combina com a minha disposição. — Encolhi os ombros. — Estou um bocado deprimida com o fim do verão. Não quero voltar para casa amanhã.
Ele tocou no meu joelho com o dele.
— Também não quero que vás.