5

Agora

A cara da Sue fita-me, de cabelo apanhado e com um sorriso tão grande que acentua as suas covinhas. Tem algumas linhas finas em redor dos olhos que não costumavam lá estar, mas, mesmo na impressão desbotada do jornal local, conseguimos ver determinação no seu queixo ligeiramente levantado e na mão apoiada na anca. Na fotografia, ela está em frente da Taverna, debaixo do título «Homenagem a uma querida líder da vida económica de Barry’s Bay».

Nos meus 20 anos, tornei-me perita em afastar a solidão que ameaçava deprimir-me. Era uma mistura que incluía dedicar-me ao trabalho, sexo sem compromisso e cocktails caríssimos com a Chantal. Demorei anos a aperfeiçoá-la. Mas ali sentada no quarto do motel, com o obituário da Sue nas mãos e o lago a cintilar à distância, consigo senti-lo em todas as fibras do meu corpo — o nó no estômago, a dor no pescoço, o aperto no peito.

Podia ligar à Chantal. Já me mandou três mensagens a pedir-me que o fizesse, perguntando quando é o funeral e se eu quero que ela venha ter comigo. Devia, no mínimo, responder-lhe. Mas, tirando o desabamento daquele Dia de Ação de Graças, nunca lhe falei assim tanto do Sam. Digo a mim própria que não tenho energia para entrar nessas explicações, mas a verdade é que se eu começar a falar sobre ele agora, sobre quão tremendo é estar aqui, quão assustador é, posso não conseguir controlar-me.

O que preciso mesmo é de uma garrafa de vinho. O meu estômago reclama. E de alguma comida também. Não comi nada além daquele queque de passas, quando fiz a paragem de emergência no Tim Hortons. Está um fim de tarde de calor intenso, por isso, visto a coisa mais leve que trouxe: um vestido curto de algodão, sem mangas, estampado com papoilas. Tem botões grandes à frente e é cintado. Aperto as sandálias douradas e saio.

Demoro cerca de 20 minutos a caminhar até ao centro da cidade. Tenho a franja colada à testa quando lá chego, pelo que prendo o cabelo num carrapito denso para poder apanhar ar no pescoço. Além de um café novo, com um menu de sanduíches que publicita também lattes e cappuccinos (não se conseguia encontrar nenhum destes na vila quando eu era miúda), os negócios familiares da rua principal são praticamente os mesmos. Por alguma razão, sou apanhada de surpresa e fico chocada ao olhar para o edifício amarelo-manteiga que tem uma placa vermelha pintada artisticamente com flores do folclore polaco. Fico parada no meio do passeio a olhar. A Taberna está às escuras e a esplanada tem os guarda-sóis verdes fechados. É provável que esta seja a primeira vez desde a abertura do restaurante que ele está fechado numa quinta-feira à noite, em julho. Há um pequeno papel colado na porta da frente e, sem pensar, é para lá que me dirijo.

É uma mensagem curta, escrita com marcador preto: «A Taberna estará fechada até agosto, cumprindo o luto devido ao falecimento da sua proprietária, Sue Florek. Agradecemos o seu apoio e a sua compreensão.» Pergunto-me quem a terá escrito. O Sam? O Charlie? O meu estômago parece estar cheio de borboletas. Aproximo-me do vidro da porta, com as mãos em forma de concha dos dois lados da cara, e vejo que há luz lá dentro. Vem das janelas que dão para a cozinha. Está lá alguém.

Como se fosse arrastada por uma força magnética, dou a volta até às traseiras do edifício. A pesada porta de aço que leva à cozinha está uns centímetros aberta. As borboletas transformam-se num bando de gaivotas a esvoaçar. Empurro mais a porta e entro. E, depois, fico paralisada.

Junto à máquina de lavar louça está um homem alto, de cabelo louro-claro e, embora esteja de costas para mim, é tão inconfundível como o meu próprio reflexo. Calça ténis, usa uma t-shirt azul e calções às riscas brancas e azuis. Continua esguio, mas agora há muito mais dele. A pele dourada, os ombros largos, as pernas fortes. Esfrega qualquer coisa dentro do lava-louça e tem um pano de cozinha pousado num dos ombros. Vejo-lhe os músculos das costas contraírem-se quando levanta uma travessa e a coloca dentro da máquina de lavar. A visão das suas mãos fortes faz com que sinta o sangue acelerado nos ouvidos, de tal maneira que parecem ondas a rebentarem contra o interior da minha cabeça. Recordo-me de quando ele se ajoelhou ao meu lado, no seu quarto, passando aqueles dedos por todo o meu corpo como se tivesse descoberto um novo planeta.

O seu nome sai-me docemente dos lábios:

— Sam.

Ele vira-se, com um ar confuso no rosto. Os seus olhos continuam a ser os céus azuis que sempre foram, mas tudo o resto está diferente. Os contornos das faces e do queixo são mais definidos, e a pele por baixo dos olhos tem um tom escuro, como se o sono lhe tivesse fugido durante noites sem fim. Tem o cabelo mais curto do que antigamente, muito rente dos lados e um pouco mais denso em cima, e os braços são fortes e musculados. Aos 18 anos, era lindo, mas o Sam adulto é tão devastador que só me apetece chorar. Não o vi a tornar-se nisto. E a dor dessa perda — de ver o Sam a transformar-se num homem — é como um punho a apertar-me os pulmões.

O olhar dele percorre o meu rosto e passa para o meu corpo. Percebo a centelha de reconhecimento que lhe brilha nos olhos quando volta a fitar-me. O Sam sempre manteve um lacre protetor sobre os seus sentimentos, mas eu andei durante seis anos a descobrir como descolá-lo. Dediquei horas a estudar o movimento subtil dos sentimentos através das suas feições. Eram como a chuva que se deslocava da costa mais distante, através da superfície da água, invisível até chegar ali mesmo, tamborilando nas janelas da cabana. Memorizei os brilhos das suas brincadeiras, o trovão distante dos seus ciúmes, as cristas brancas do seu êxtase. Eu conhecia o Sam Florek.

Ele fixa os seus olhos nos meus. É a mesma fixação implacável de sempre. Tem os lábios contraídos numa linha fina, e o peito move-se em respirações lentas e firmes.

Dou um passo em frente, hesitante, como se me aproximasse de um cavalo selvagem. Ele levanta as sobrancelhas e abana a cabeça, como se acordasse de um sonho perturbador. Eu paro.

Entreolhamo-nos em silêncio, e, então, ele dá três passadas gigantes na minha direção e dá-me um abraço tão apertado que é como se o seu corpo fosse um casulo à minha volta. Cheira a sabonete, a sol e a algo novo que não reconheço. Quando fala, tem uma voz tão profunda que só quero afundar-me nela.

— Voltaste para casa.

Fecho os olhos com força.

Voltei para casa.

*

O Sam afasta-se de mim e pousa as mãos nos meus ombros. Os olhos percorrem-me o rosto, incrédulos.

Esboço um sorriso fraco.

— Olá — digo.

Aquele sorriso torto que lhe curva os lábios é uma droga da qual nunca me curei. As leves rugas nos cantos dos olhos e a barba por fazer são novas e tão… sexy. O Sam é sexy. Perguntei-me tantas vezes como é que ele seria em adulto, mas a realidade dos seus 30 anos é muito mais sólida e perigosa do que eu poderia ter imaginado.

— Olá, Percy.

O meu nome passa dos seus lábios diretamente para a minha corrente sanguínea, uma injeção súbita de desejo, vergonha e milhares de memórias. E, de forma igualmente súbita, recordo-me da razão por que aqui estou.

— Sam, lamento tanto — digo, com a voz trémula. Estou tão consumida pela dor e pelo remorso que não consigo travar as lágrimas que me escorrem pela cara. Então, o Sam abraça-me de novo, murmura «Shhh» para o meu cabelo e faz-me festas nas costas.

— Está tudo bem, Percy — replica, e, quando espreito para o ver, ele tem a testa franzida, uma expressão de preocupação.

— Eu é que devia estar a consolar-te — digo, limpando a cara. — Desculpa.

— Não te preocupes com isso.

O tom da sua voz é suave enquanto me dá palmadinhas nas costas, depois recua um passo e passa a mão pelo cabelo. Aquele gesto familiar toca em algo dentro de mim.

— Ela esteve doente durante anos. Tivemos tempo suficiente para nos prepararmos.

— Acho que nem todo o tempo do mundo seria suficiente. Ela era tão nova.

— Cinquenta e dois.

Suspiro alto, porque ela era ainda mais nova do que eu tinha pensado. E consigo imaginar como isto deve magoar o Sam. O pai também era muito novo.

— Espero que não haja problema em ter vindo — afirmo. — Não sabia se me querias cá.

— Claro que queria — diz aquilo como se não tivesse passado mais de uma década desde a última vez que falámos. Como se ele não me odiasse. Vira-se para máquina de lavar a louça e esvazia um dos grandes tabuleiros, que tem vários pratos de pão, empilhando-os em cima do balcão.

— Como é que soubeste? — Olha-me de relance e estreita os olhos quando não lhe respondo de imediato. — Ah.

Já adivinhou a resposta, mas digo-lhe na mesma.

— O Charlie ligou-me.

O seu olhar escurece.

— Claro que ligou — replica, sem rodeios.

Há travessas e tabuleiros de servir alinhados nos balcões, o tipo de equipamento necessário para usar em grandes eventos. Passo por trás dele e da área de limpeza e começo a colocar alguns utensílios poeirentos na máquina para os passar por água. É o mesmo aparelho de quando eu trabalhava aqui. Utilizei-o tantas vezes que podia fazê-lo agora de olhos fechados.

— E então, para que é isto tudo? — pergunto, fixando os olhos no lava-louça. Não obtenho resposta. Pelo silêncio, percebo que o Sam parou de tirar pratos da máquina. Inspiro profundamente, um, dois, três, quatro, e depois expiro, um, dois, três, quatro, antes de olhar por cima do ombro. Ele está encostado ao balcão, com o pano atirado sobre o ombro, de braços cruzados, a olhar para mim.

— O que estás a fazer? — pergunta, com voz agastada. Viro-me para o encarar, inspirando de novo profundamente e, num lugar profundo e esquecido, reencontro a Percy, a miúda que eu era.

Levanto o queixo e, de mão na anca, dirijo-lhe um olhar incrédulo. Tenho a mão encharcada, mas ignoro-o, tal como o facto de ter o estômago em papa, como se fosse massa de panqueca espalhada pelo chão.

— Estou a ajudar-te, génio. — A água vai escorrendo da minha mão para o vestido, mas não me mexo. E não desvio o olhar. Um músculo no seu maxilar contrai-se e o semblante alivia, só o suficiente para eu perceber que cravei uma lâmina por baixo da sua tampa selada. Um sorriso ameaça destruir a minha expressão imperturbável e mordo o lábio para o evitar. Os seus olhos focam-se na minha boca.

— Foste sempre um desastre na máquina da louça — digo, e ele desata a rir, com um som cheio que faz ricochete nas superfícies metálicas da cozinha. É o som mais incrível. Queria gravá-lo para poder ouvi-lo mais tarde, vezes e vezes sem conta. Não sei quando foi a última vez que esbocei um sorriso tão grande.

Os seus olhos azuis brilham quando se cruzam com os meus, depois voltam-se para a mancha molhada que deixei no vestido. Engole em seco. O seu pescoço é do mesmo tom dourado dos braços. Apetece-me aproximar o nariz da curva em que ele se une aos ombros e cheirá-lo aí.

— Vejo que a tua conversa da treta não melhorou nada — replica, carinhosamente, e sinto-me como se tivesse ganhado uma maratona. Ele dirige-se aos pratos empilhados no balcão e suspira. — A minha mãe queria toda a gente aqui numa festa depois de ela morrer. A ideia de ter pessoas na cave da igreja, depois do funeral, a comerem sandes de ovo sem côdea, horrorizava-a. Ela queria que comêssemos, bebêssemos e nos divertíssemos. Foi muito específica quanto a isso — explica, com amor, mas soando cansado. — Ela até fez os pierogies e os rolinhos de couve, há uns meses, quando ainda estava suficientemente bem, e congelou-os.

Sinto os olhos e a garganta a arderem, mas, desta vez, controlo-me.

— Isso é típico da tua mãe. Organizada, precavida e…

— Sempre a encher as pessoas de hidratos?

— Eu ia dizer «Sempre a alimentar aqueles que ama» — replico. O Sam sorri, mas entristece-se. Ficamos ali, em silêncio, a observar a arrumação impecável dos pratos e dos equipamentos. O Sam retira o pano do ombro e pousa-o no balcão, olhando-me longamente, como se estivesse a decidir algo.

Aponta para a porta.

— Vamos sair daqui.

*

Estamos a comer gelados, sentados no mesmo banco onde nos sentávamos quando éramos miúdos — perto do centro da cidade, na margem norte. Vejo o motel à distância, do outro lado da baía. O sol desceu no horizonte e há uma brisa que vem da água. Não falamos muito, o que, por mim, até é melhor, porque estar sentada ao lado do Sam parece-me irreal. Tem as longas pernas esticadas ao lado das minhas, e eu estou fixada no tamanho dos seus joelhos e nos pelos das pernas. O Sam ultrapassara a fase de ser um palito a seguir à puberdade, mas agora é mesmo um homem.

— Percy? — chama-me o Sam, quebrando a minha concentração.

— Sim? — Viro-me para ele.

— Talvez possas comer um pouco mais depressa. — Indica o risco cor-de-rosa e azul de gelado que escorre pela minha mão.

— Bolas! — Tento apanhá-lo com um guardanapo, mas um pedaço aterra no meu peito. Tento limpá-lo, mas parece que ainda faço pior. O Sam observa pelo canto do olho, com um sorriso trocista.

— Não acredito que ainda pedes sabor a algodão-doce. Que idade tens? — provoca-me.

Aponto para o seu cone com duas bolas enormes de sabor Moose Tracks, o mesmo que ele pedia quando era mais novo.

— Olha quem fala.

— Baunilha, caramelo e manteiga de amendoim? Moose Tracks é um clássico — brinca ele.

— Nem pensar. O algodão-doce é o melhor. Tu é que nunca aprendeste a apreciá-lo.

O Sam arqueia uma sobrancelha, com uma expressão de sarilhos, depois, aproxima-se de mim e passa a língua sobre a minha bola de gelado, dando-lhe uma dentada no topo. Solto um som involuntário e fico de boca aberta a olhar para as marcas dos seus dentes no meu gelado.

Lembro-me da primeira vez em que ele fez a mesma coisa, quando tínhamos 15 anos. Também nessa altura a visão da sua língua me tinha deixado sem palavras.

Não olho para cima até que ele me toca com o cotovelo.

— Isto sempre deu cabo de ti — brinca, num tom suavemente grave.

— Pensas tu. — Sorrio, ignorando a pressão que sinto na barriga.

— Podes provar o meu, para ficarmos quites. — E estende o cone na minha direção. Isto é novo. Limpo as gotas de suor acumuladas acima dos lábios. O Sam repara e esboça outro sorriso trocista, como se pudesse ler todos os pensamentos perversos que me passam pela cabeça. — Juro que é bom — afirma, com uma voz profunda e doce como café. Não estou habituada a este Sam, o Sam que parece ter plena consciência do efeito que tem sobre mim.

Percebo que ele acha que não sou capaz, mas isso só me motiva. Dou uma lambidela rápida no seu gelado.

— Tens razão — digo, encolhendo os ombros. — É bastante bom.

Os seus olhos demoram-se na minha boca e, de seguida, aclara a garganta.

Por uns minutos, ficamos sentados num silêncio constrangedor.

— E então, como tens estado, Percy? — pergunta ele, e eu levanto as mãos em desalento.

— Não sei por onde começar. — Rio-me, nervosa. Por onde é que se começa, depois de todo o tempo que passou?

— E que tal três novidades? — Dá-me um toque, com os olhos a brilharem.

Era um jogo que costumávamos fazer. Passávamos longos períodos separados e, sempre que nos reencontrávamos, dizíamos um ao outro, muito depressa, as três maiores novidades de cada um. «Tenho um novo rascunho da minha história para leres. Estou a treinar para os 400 metros livres. Tive Bom no exame de Álgebra.» Rio-me de novo, mas tenho a garganta seca.

— Hum… — Semicerro os olhos, observando a água. Já passou mais de uma década, mas o que aconteceu realmente?

— Ainda vivo em Toronto — começo, chupando o gelado, de forma a demorar mais tempo. — Os meus pais estão bem, estão a viajar pela Europa. Sou jornalista, editora, na verdade. Trabalho na Shelter, a revista de design.

— Jornalista? — repete ele com um sorriso. — Que bom, Percy. Fico contente por ti. Ainda bem que estás a escrever.

Não o corrijo. O meu trabalho não exige grande escrita, regra geral, escrevo títulos e um artigo ou outro. Ser editor é basicamente dizer aos outros o que escreverem.

— Então, e tu? — pergunto, voltando a minha atenção para a água à nossa frente. A visão do Sam sentado ao meu lado é demasiado perturbante. Andei à procura dele há uns anos nas redes sociais. Tinha como imagem de perfil uma fotografia do lago, mas nunca lhe enviei um pedido de amizade.

— Um, agora sou médico.

— Ena. Isso… isso é incrível, Sam — digo. — Não que esteja surpreendida.

— Previsível, não era? Dois, especializei-me em Cardiologia. Mais um choque.

Não se está a gabar. Até parece um pouco envergonhado.

— Era exatamente o que tu querias.

Fico feliz por ele, foi para isto que sempre trabalhou. Mas, de alguma forma, também me magoa que a vida dele tenha prosseguido como planeado, mesmo sem mim. Andei pelo meu primeiro ano da faculdade envolta em nevoeiro, debatendo-me nas aulas de Escrita Criativa, sem conseguir concentrar-me em quase nada, quanto mais no desenvolvimento de personagens. A certa altura, um professor sugeriu-me que tentasse Jornalismo. As regras de reportagem e a estruturação de histórias agradavam-me, davam-me uma saída que não era tão pessoal, nem tão ligada ao Sam. Abandonei o meu sonho de ser escritora, mas acabei por definir novos objetivos. Especula-se que, quando chegar a altura de escolher um novo editor-chefe na Shelter, o meu nome estará no topo da lista. Criei um novo caminho para a minha vida, um que adoro, mas custa-me saber que o Sam conseguiu seguir com o seu caminho original.

— E três — continua —, vivo aqui. Em Barry’s Bay.

Inclino a cabeça para trás e ele ri-se suavemente. O Sam estava tão determinado a sair de Barry’s Bay como a ser médico. Pensei que, depois de ir para a faculdade, nunca mais voltasse.

Desde o momento em que nos juntámos, eu sonhava com o que seria a nossa vida quando pudéssemos finalmente viver no mesmo sítio. Imaginava que, depois de me licenciar, iria viver com ele para o lugar onde ele fosse colocado a estagiar. Eu escreveria ficção e serviria às mesas até termos rendimentos estáveis. Voltaríamos a Barry’s Bay sempre que pudéssemos, dividindo o nosso tempo entre o campo e a cidade.

— Vivi em Kingston durante o meu estágio — explica ele, como se me tivesse lido o pensamento. O Sam tinha frequentado o curso de Medicina da Queen’s University, em Kingston, um dos melhores do país. Kingston era muito mais pequena do que Toronto, mas ficava perto do lago Ontário. O Sam tinha de estar perto da água.

— Mas tenho estado por aqui durante o último ano para ajudar a minha mãe. Antes disso, ela já estava doente há um ano. Mas, ao princípio, tínhamos esperança… — Olha em frente, para a água.

— Lamento — murmuro. Ficamos sentados em silêncio durante uns minutos, acabando de comer os gelados e observando alguém que pesca na doca da vila.

— Passado algum tempo, percebemos que as coisas não iam melhorar — afirma ele, retomando o fio à meada. — Eu vivia entre aqui e Kingston, para trás e para a frente, mas queria mesmo voltar para casa. Sabes, estar presente em todos os tratamentos e todas as consultas. Ajudar em casa e no restaurante. Já era demasiado para ela, mesmo quando tinha saúde. A Taberna foi sempre um projeto para ela partilhar com o meu pai.

Pensar que o Sam tinha vivido aqui durante o último ano, na casa de Bare Rock Lane, sem eu saber, sem estar aqui para ajudar, faz-me sentir que tudo está muitíssimo errado. Coloco a minha mão sobre a dele e aperto-a por momentos, antes de a afastar. Ele acompanha o movimento.

— Então e o teu trabalho? — pergunto, com a voz embargada.

— Tenho trabalhado no hospital daqui. Alguns turnos por semana. — Parece outra vez cansado.

— A tua mãe deve ter ficado contente por teres voltado — replico, tentando soar animada, em vez de magoada, como me sinto. — Ela sabia que não querias ficar aqui.

— Não é assim tão mau — retruca ele, como se acreditasse mesmo nisso, e, pela segunda vez, fico boquiaberta. — Estou a falar a sério — garante ele, com um leve sorriso. — Sei que falava mal de Barry’s Bay quando era miúdo, mas tive muitas saudades quando estive fora, na faculdade. Sou um sortudo por ter isto — termina, apontando com a cabeça para a água.

— Quem és tu e o que fizeste ao Sam Florek? — brinco. — Não, isso é fantástico. É tão incrível que tenhas voltado para ajudares a tua mãe. E que já não odeies isto. Tive tantas saudades deste lugar. Todos os verões, na cidade, tenho a febre da cabana. É tão quente e peganhento devido àquele cimento todo. Dava tudo para poder voltar a mergulhar no lago.

Ele observa-me com um ar sério no rosto.

— Bem, teremos de concretizar isso.

Esboço um sorriso ligeiro e fito a baía. Se as coisas tivessem sido diferentes, será que eu teria vivido aqui durante o último ano? Teria acompanhado a Sue às suas consultas? Teria ajudado na Taberna? Teria continuado a escrever? Era o que eu teria querido. Teria querido tudo isso. Essa perda aperta-me de novo os pulmões e preciso de me concentrar na respiração. Sem olhar para ele, sinto a atenção do Sam focada no meu rosto.

— Não acredito que estiveste sempre aqui — murmuro, afastando o cabelo da testa. Ele toca-me na perna com o pé e eu inclino a cabeça na sua direção. Tem um sorriso enorme e os olhos com rugas nos cantos.

— E eu nem acredito que fizeste outra vez uma franja.