6

Verão, Dezasseis Anos Antes

O 8.º ano não foi horrível.

Não foi horrível, mas foi esquisito. Veio-me (finalmente) o período. No baile de primavera, o Kyle Houston apalpou-me o rabo. E, no fim de setembro, eu e a Delilah Mason éramos melhores amigas outra vez.

No primeiro dia de aulas, ela veio ter comigo, a usar uma minissaia de ganga e botas brancas de cowboy, e elogiou o meu bronzeado. Falei-lhe da cabana, tentando parecer o mais descontraída possível, e ela pôs-me a par do campo equestre onde tinha estado, em Kawarthas. Havia um cavalo chamado Monopólio e uma história embaraçosa sobre o período que envolvia calções brancos e um passeio de dia inteiro. (A Delilah teve o período e as maminhas quando tínhamos 11 anos, obviamente.)

Depois de uns dias de gentilezas e almoços partilhados, perguntei-lhe pela Marissa e pela Yvonne. A Delilah fez um beicinho de desagrado.

— Combinámos um encontro de grupo com o meu primo e os amigos dele e elas foram tão infantis.

Eu não me tinha esquecido do que acontecera no ano anterior, mas estava disposta a passar à frente. Ter o Sam queria dizer que já não sentia a mesma pressão para agradar à Delilah e não a levava tão a sério, embora estivesse determinada a nunca ser assim tão infantil. Além disso, ser amiga da Delilah significava que já não almoçaria sozinha nem me voltaria a sentir tão falhada. E, embora eu não pudesse descrevê-la como boa, a Delilah era divertida e esperta.

Ela escolheu paixonetas para nós as duas, dizendo que os rapazes do secundário eram muito mais giros, mas que precisávamos de alguma experiência antes de chegarmos lá. Para mim, escolheu o Kyle Houston, que tinha a cor e a personalidade de um puré de batata. (Na verdade, o Kyle também não parecia nada interessado. Quer dizer, até ter sido atrevido no baile.)

*

Eu e o Sam mantínhamos uma corrente ininterrupta de e-mails, mas foi só na altura do Dia de Ação de Graças que nos voltámos a ver pessoalmente. A Sue convidou-nos para comermos peru ao jantar com eles e os meus pais aceitaram, satisfeitos. Podiam ter tido dúvidas quanto à Sue quando a conheceram, mas eu percebi que, eventualmente, tinham gostado dela. No verão anterior, tinham-na convidado para beber café algumas vezes, e eu tinha ouvido a minha mãe a dizer ao meu pai o quanto a impressionava que a Sue estivesse a criar sozinha «aqueles dois miúdos simpáticos» e que parecesse «ter grande olho para o negócio», por ter tido tanto sucesso com a Taberna.

O Sam avisou-me que, desde que o seu pai morrera, a mãe dele costumava exagerar nas festividades. Ela também não permitiu que os meus pais levassem qualquer comida. Portanto, aparecemos carregados de vinho e brandy e com um ramo de flores que eu e a minha mãe tínhamos comprado na mercearia. O sol já se estava a pôr e a casa dos Floreks parecia brilhar por dentro. O cheiro do peru chegou até nós quando subimos para o alpendre e a porta abriu-se mesmo antes de batermos.

O Sam estava na soleira da porta, com a sua madeixa rebelde de cabelo dominada e penteada para um dos lados.

— Ouvi os vossos passos na gravilha — disse, ao ver as nossas expressões surpreendidas. Depois, acrescentou num tom agudo incomum: — Feliz Dia de Ação de Graças! — E segurou a porta com uma mão, chegando-se para o lado para nos deixar passar.

— Posso ficar com os vossos casacos, Sr. e Sra. Fraser? — perguntou. Tinha vestido uma camisa branca, presa dentro de umas calças caqui, e parecia um ajudante de mesa do restaurante francês preferido dos meus pais.

— Com certeza, Sam, obrigado — respondeu o meu pai. — Mas trata-nos só por Diane e Arthur.

— Olá a todos! Feliz Dia de Ação de Graças! — disse a Sue aos meus pais, de braços bem abertos, enquanto eu colocava os presentes no chão para poder tirar o casaco.

— Posso ficar com isso, Persephone? — perguntou o Sam, exageradamente educado, estendendo o braço para eu pousar nele o casaco.

— Porque é que estás a falar assim? — murmurei-lhe.

— A minha mãe fez um grande discurso sobre portarmo-nos muito bem. Até jogou a carta do «Sejam o orgulho do vosso pai». Ele preocupava-se muito com as boas maneiras — respondeu, baixinho. — Já agora, estás muito bonita esta noite — acrescentou num tom demasiado entusiasmado. Ignorei o comentário, embora me tivesse esforçado bastante, escovando o cabelo até brilhar e usando o vestido de veludo cor de cereja com mangas em balão.

— Bem, mas para com isso — retorqui. — Essa voz é arrepiante.

— Está bem. Nada de vozes esquisitas.

Sorriu e baixou-se para pegar nas garrafas e nas flores que estavam no chão. Quando se ergueu, inclinou-se na minha direção e disse:

— Mas é verdade. Estás gira.

A sua respiração na minha cara fez-me corar, mas, antes que eu pudesse responder, a Sue deu-me um abraço.

— Que bom ver-te, Percy. Estás linda.

Agradeci-lhe, ainda a recuperar do comentário do Sam, e acenei ao Charlie, que estava atrás dela.

— O vermelho é a tua cara, Pers — disse ele. Vestia calças pretas e uma camisa que condizia com o verde-claro dos seus olhos.

— Não sabia que conseguias vestir-te de alto a baixo — respondi-lhe.

O Charlie piscou-me o olho e a Sue apressou-nos para dentro da sala, onde um fogo ardia na lareira de pedra. Enquanto ela terminava os preparativos na cozinha, o Sam passava-nos travessas de queijo e taças de frutos secos, e o Charlie anotava os pedidos de bebidas, aproveitando para sugerir à minha mãe um gin tónico e ao meu pai um tinto («é pinot noir») ou um branco («sauvignon blanc»). Os meus pais estavam impressionados e divertidos. Como explicação, tudo o que Charlie disse foi «miúdo de restaurante».

A Sue apareceu quando já tinha tudo praticamente pronto e juntou-se aos meus pais para uma bebida. Estava mais arranjada do que era costume, com uma camisola de gola alta justa e preta e calças pelos tornozelos. Tinha o cabelo louro solto pelos ombros e um batom cor-de-rosa. Tinha o duplo efeito de fazê-la parecer mais velha, mas também mais bonita. A minha mãe também era atraente — mantinha o seu cabelo escuro e liso num corte curto e tinha os olhos de uma rara cor de ferrugem — e andava sempre na moda. Mas a Sue era mesmo bonita.

Quando nos sentámos para jantar, já estávamos corados do calor e das conversas cruzadas. O Sam e o Charlie trouxeram pratos, travessas, taças de acompanhamentos e molhos, a Sue trouxe o peru para a ponta da mesa e trinchou-o. Os rapazes atiraram-se a ele a uma velocidade estonteante, esquecendo todas as boas maneiras, enquanto os meus pais os observavam de boca aberta.

— Deviam ver a minha conta do supermercado. — A Sue riu-se.

Eu estava sentada ao lado do Sam e, quando estendi o braço para me servir pela segunda vez da caçarola de batata, ele olhou para mim com um ar espantado.

— Não estás a usar a tua pulseira — sussurrou, com o garfo suspenso a caminho da boca e um pedaço de carne espetado nele.

— Hum… não — respondi, percebendo o lampejo triste no olhar dele. Não gostava de a usar ao pé da Delilah, mas não podia dizê-lo naquele momento. — Mas ainda a tenho. Está na minha caixa de bijuteria, em casa.

— És insensível, Pers. O Sam nunca tira a dele! — interveio o Charlie, e a conversa que circulava à nossa volta parou de repente. — Ficou passado quando a mãe quis lavá-la. Achou que ia ficar toda estragada na máquina da roupa.

— E teria ficado — respondeu o Sam de rajada, com a cara manchada de vermelho.

— Lavámo-la à mão e ficou ótima — afirmou a Sue, ou porque não percebeu a tensão entre os dois irmãos ou porque os ignorou propositadamente. Retomou a conversa com os meus pais.

— Parvo — murmurou o Sam, de olhos postos no prato.

Inclinei-me para ele e disse baixinho:

— Para a próxima, trago-a, prometo.

*

Os meus pais deixaram-me convidar a Delilah para se juntar a nós na cabana durante a primeira semana do verão. No último dia de junho, metemo-nos os quatro no novo e atulhado SUV dos pais. Quando virámos para a Bare Rock Lane, eu já abanava os joelhos de antecipação e tinha um sorriso enorme e tolo na cara. A cabana tinha precisado de mais arranjos depois de a visitarmos no inverno e, por isso, eu não via o Sam desde o Dia de Ação de Graças, há sete meses.

— O que se passa contigo? — murmurou a Delilah, por cima de um monte de malas. — Pareces desnorteada.

Na noite anterior, tinha mandado uma mensagem ao Sam com a nossa hora prevista de chegada, outra quando estávamos a carregar o carro e mais uma imediatamente antes de partirmos para a viagem. Ele odiava mensagens e não tinha respondido a nenhuma. Mesmo assim, eu sabia que ele estaria à nossa espera quando chegássemos. Mas não estava preparada para as duas figuras muito altas que vi paradas à porta da nossa cabana.

— São eles? — ciciou a Delilah, tirando lip gloss do bolso.

— São? — respondi, quase não acreditando no que via. O Sam estava alto. Mesmo muito alto.

Antes de o meu pai desligar o motor, eu já tinha saído disparada pela porta e tinha-me lançado a ele, apertando os braços à volta do seu tronco estreito. Os seus braços longos envolveram-me e senti-o tremer de riso.

Afastei-me com um grande sorriso.

— Olá, Percy — disse ele, arqueando as sobrancelhas até ficarem debaixo do seu cabelo despenteado. Parei ao ouvir o som da sua voz. Estava diferente, parecia estar mais grave. Recuperei rapidamente do choque e puxei-o pelo braço.

— Novidade número um — comecei, encostando o meu pulso ao dele e alinhando as nossas pulseiras. — Não a tirei desde que voltei do Dia de Ação de Graças — acrescentei. Rimo-nos um para o outro como lunáticos. — Assim já temos uma coisa sobre a qual podemos fazer juras — afirmei.

— Graças a Deus. Era a minha maior preocupação.

O sarcasmo escorria das palavras do Sam como caramelo de um ovo de chocolate. Estava feliz.

— Olá, Pers — disse o Charlie por cima do ombro do Sam, e depois dirigiu-se aos meus pais: — Sr. e Sra. Fraser, a minha mãe mandou-nos para vos ajudarmos a descarregar.

— Ficamos agradecidos, Charlie — gritou o meu pai, com a cabeça metida dentro do porta-bagagens do SUV. — Mas corta a parte dos senhores, pode ser?

— Eu sou a Delilah — disse uma voz atrás de mim. Ups, tinha-me esquecido completamente da minha amiga. Uma pequena parte de mim, pronto, uma parte muito grande, não queria apresentar a Delilah ao Sam. Ela era muito mais gira do que eu e o seu peito tinha-se tornado enorme nesse ano, enquanto eu continuava completamente lisa. Eu sabia que as coisas não eram assim entre mim e o Sam, mas também não queria que fossem assim entre eles.

— Desculpa, que má educação da minha parte — desculpei-me. — Sam, esta é a Delilah, Delilah, este é o Sam.

Cumprimentaram-se, embora ele tenha sido visivelmente frio.

O Sam tinha-me respondido com apenas três palavras quando eu lhe escrevi a contar que tinha reatado a minha amizade com a Delilah: «Tens a certeza?» Eu tinha, mas era óbvio que o Sam não.

— Tu deves ser o Charlie — afirmou a Delilah, abordando-o como uma raposa a um pintainho.

— Sim, olá — respondeu o Charlie, passando por ela com uma caixa de mantimentos, sem lhe prestar atenção nenhuma.

Imperturbável, ela virou-se para o Sam, com os seus grandes olhos azuis a cintilarem. Usava os calções cor de coral mais curtos e um top justo amarelo que mostrava parte do seu peito e da sua barriga.

— A Percy não disse que eras tão giro — afirmou ela, esboçando um dos seus irresistíveis sorrisos, mostrando os lábios rosados e brilhantes e as pestanas longas.

O Sam ficou sério e olhou-me fixamente.

— Desculpa — balbuciei e, depois, puxei a Delilah pelo braço em direção ao carro, enquanto ela se ria baixinho.

— Podes passar lá em casa mais logo? — perguntou o Sam, quando acabámos de descarregar as coisas do carro. — Quero mostrar-te uma coisa. São as novidades um, dois e três.

A forma como ele falou, como se a Delilah não estivesse ali, encheu-me o peito de hélio.

— Ainda não lhe contaste acerca do barco? — perguntou o Charlie. O Sam esfregou a bochecha e puxou o cabelo para trás, num movimento de nervos controlado.

— Não, ia ser uma surpresa.

— Bolas, desculpa, pá — retorquiu o Charlie, e, na verdade, parecia estar a ser sincero.

— Bem, então conta lá — meteu-se a Delilah, com as mãos nas curvas de autódromo das suas ancas.

— Arranjámos o barco velho do meu pai — disse o Sam, orgulhoso, num tom de barítono. Eu precisaria de tempo para me habituar àquela voz.

— Velho quer mesmo dizer velho — acrescentou o Charlie.

— Já era do nosso avô e nosso o pai arranjou-o e manteve-o a funcionar até… — O Sam deixou a frase inacabada.

— Ficou parado na garagem — replicou o Charlie. — A nossa mãe prometeu sempre que eu podia usá-lo quando fizesse 16 anos, mas precisava de grandes reparações. O avô ajudou-nos a arranjá-lo quando voltou da Florida, na primavera. Até este tipo ajudou — concluiu ele, dando uma cotovelada ao Sam.

— Tens de o ver, Percy — disse o Sam, com o seu meio sorriso. — É um clássico.

A Delilah atirou o cabelo para trás do ombro pálido.

— Vamos adorar.

*

— Oh, meu Deus, Percy! — guinchou a Delilah assim que chegámos ao meu quarto com as malas. — Porque é que não me disseste que o Charlie era assim tão lindo? Teria vestido qualquer coisa muito mais gira do que isto!

Desatei a rir. Há um ano que a Delilah andava mesmo obcecada por rapazes.

— O Sam não é tão lindo, mas também é giro — afirmou ela, olhando para o teto como se estivesse perdida em pensamentos sérios. — Mas aposto que será igualmente atraente quando for mais velho.

Senti um sabor amargo de ciúme na boca. Não queria que ela pensasse no Sam como atraente. Não queria que ela pensasse no Sam de todo.

— Suponho que sim — respondi, encolhendo os ombros.

— Vamos escolher a roupa para quando formos lá logo à tarde! — insistiu ela, abrindo a mala.

— É só o Sam e o Charlie. Acredita, eles não querem saber do que temos vestido — afirmei, mas já sem certezas sobre o que estava a dizer. Ela olhou-me, cética. — Eu só vou usar o fato de banho e os calções, caso queiras saber — acrescentei.

Depois de arrumarmos as malas, vestimos os fatos de banho. A Delilah vestiu um biquíni preto que se prendia, de alguma forma, por umas tiras fininhas e meteu-se nuns calções brancos tão curtos que até se viam as nádegas.

— O que achas?

Virou-se e eu tentei não lhe olhar para o peito, mas era impossível, tendo em conta a relação desigual entre pele e tecido.

— Estás uma loucura — respondi. — Uma loucura boa.

Estava a ser sincera, mas a queimadura ácida da inveja corria-me pela garganta abaixo. A minha mãe não me tinha deixado comprar um biquíni de tiras, mas tinha concordado em comprar um biquíni cor de laranja néon com alças largas na parte de cima. Na loja, tinha-o achado fixe, mas agora sentia-me infantil e achava que os meus calções de ganga cobriam demasiado o traseiro.

Descemos as escadas para o lago a correr. O céu estava limpo e a água era mesmo azul, ondulando com uma brisa vinda de sudeste.

Na doca dos Floreks estava um barco a motor amarelo-vivo e, lá dentro, viam-se os topos das cabeças do Charlie e do Sam a trabalharem.

— Belo barco! — gritei, e eles levantaram-se como dois suricatas, de tronco nu e bronzeados. As vantagens de se viver junto ao lago.

— Daqui dá para ver os músculos do Charlie! — guinchou a Delilah, muito entusiasmada.

Mandei-a calar.

— O som propaga-se facilmente através da água.

Mas ela tinha razão, o corpo do Charlie tinha ficado preenchido e ele tinha os braços, o peito e os ombros muito mais definidos.

— Queres vê-lo? — gritou o Sam em resposta.

— Então não queremos! — miou a Delilah, enquanto eu lhe dava uma cotovelada e levantava o polegar para o Sam. Atalhámos pelo caminho que dividia as nossas propriedades e emergimos do bosque a poucos metros da doca.

— Isto não é incrível? — No barco, o Sam sorria-me abertamente.

Ela não é incrível? — corrigiu o Charlie.

— É espetacular! — respondi e estava a ser sincera. O barco tinha uma proa arredondada com bancos de vinil castanho e espaço para mais seis pessoas na popa.

— Totalmente retro — disse a Delilah, entusiasmada, ao percorrermos a doca.

— Calma, calma, Pers — avisou o Charlie, levantando as mãos. — Esse biquíni juntamente com este barco? Eu ia levar-nos a dar uma volta, mas assim acho que nem vou conseguir ver.

Dirigi-lhe um olhar carrancudo.

— Hilariante — comentou o Sam e os seus olhos examinaram-me. — Esse biquíni é muito fixe, combina com as cores da tua pulseira. Entra.

Estendeu a mão para me ajudar e uma corrente elétrica escaldante percorreu-me dos dedos até ao pescoço.

O que era aquilo?

— Chamamos-lhe Barco Banana, por razões óbvias — disse o Sam, sem se aperceber do esticão que me tinha provocado no braço.

— E ainda nem vos mostrámos a melhor parte — afirmou o Charlie e carregou no centro do volante, provocando um poderoso aaaah-uuuuh-gaaaaah na buzina. Eu e a Delilah demos um salto e depois desmanchámo-nos a rir.

— Oh, meu Deus, isto é um barco com uma buzina excitada! — gritou ela.

— Dá todo um novo sentido ao nome Barco Banana, não dá? — disse ele à Delilah, a rir-se. A eletricidade que percorria o meu braço esmoreceu.

Depois de recebermos autorização dos meus pais, que já estavam sentados no alpendre com um copo de vinho na mão, o Charlie conduziu-nos a uma pequena enseada e desligou o motor.

— Isto aqui, meninas, é uma pedra de onde podemos saltar — declarou ele, largando a âncora na água e tirando a t-shirt. Fiz um grande esforço para não olhar fixamente para os seus novos abdominais. Falhei.

— É completamente seguro saltar dali — disse o Sam. — Já o fazemos desde miúdos.

— Quem alinha? — perguntou o Charlie.

— Eu! — exclamou a Delilah, levantando-se para desapertar os calções. Eu tinha ficado demasiado distraída e não reparei no rochedo alto junto ao qual tínhamos parado. Empalideci.

— Não temos de ir — disse-me o Sam. — Posso ficar no barco contigo.

Levantei-me e tirei os calções. Não ia ser infantil.

Da popa do barco, mergulhámos e nadámos até à praia. Eu e a Delilah seguimos o Sam e o Charlie até ao cimo do rochedo. Gritei quando o Charlie correu para a borda da rocha e se atirou à água sem avisar.

Aproximámo-nos devagar da beira e espreitámos lá para baixo, onde vimos a sua cabeça emergir e as sardas a brilharem, mesmo àquela distância.

— Quem é o próximo? — gritou ele.

— Sou eu — anunciou a Delilah, pelo que eu e o Sam demos um passo atrás para lhe dar espaço. Ela afastou-se da borda, depois deu três passadas enormes e saltou. Ressurgiu da água a rir-se.

— É incrível. Percy, tens de experimentar! — gritou.

Senti um aperto no estômago. Dali parecia muito mais alto do que parecera no barco. Olhei para trás, considerando voltar por onde tinha vindo.

— Queres regressar, Percy? — perguntou o Sam, lendo-me os pensamentos.

Contraí os lábios.

— Não quero ser medricas — admiti, olhando de novo para o lago, para o Charlie e a Delilah lá em baixo.

— Nada disso, eu percebo, isto é mesmo alto — respondeu o Sam, fitando também a água. — Podíamos ir juntos. Damos a mão, contamos até três e saltamos.

Respirei fundo.

— Está bem.

O Sam enlaçou os dedos nos meus.

— Juntos, aos três — disse, apertando-me a mão com força. — Um, dois, três…

Caímos que nem blocos de cimento e largámos as mãos quando entrámos na água. Fui puxada cada vez mais para baixo, como se tivesse uma bigorna atada aos tornozelos e, por uma fração de segundo, achei que não ia conseguir voltar. Mas, depois, a força da queda parou, e eu dei um impulso para cima, em direção à luz. Emergi a ofegar por ar, ao mesmo tempo que o Sam, e ele olhou em volta à minha procura. Ele tinha um sorriso enorme e brilhante.

— Estás bem? — perguntou.

— Sim — respondi, a tentar recuperar o fôlego. — Mas nunca mais volto a fazer isto.

— E tu, Delilah? — perguntou o Charlie. — Queres saltar outra vez?

— Sem dúvida — replicou ela. Como se houvesse outra resposta.

Eu e o Sam nadámos de volta ao barco e subimos pela pequena escada na popa. Ele passou-me uma toalha e sentámo-nos nos bancos da proa, frente a frente, a secarmo-nos.

— A Delilah não é tão má como eu pensava — disse o Sam.

— Ah, não?

— Não. Ela parece meio… pateta. Mas estou de olho nela. Se ela te disser qualquer coisa maldosa, vou ter de exercer a minha vingança. — O cabelo pingava nos seus ombros, que não pareciam tão ossudos como antigamente. — Tenho andado a planeá-la desde que me contaste como ela era. Está tudo planeado.

Ri-me.

— Obrigada por defenderes a minha honra, Sam Florek, mas ela já não é assim.

Ele olhou-me em silêncio, depois sentou-se no banco ao meu lado e encostou a perna à minha. Embrulhei a toalha à minha volta, consciente de como a minha pele se arrepiava sempre que tocava na dele. Mal reparei nos segundos mergulhos do Charlie e da Delilah.

— O que tens no cabelo? — perguntou ele, pegando no meu tereré às cores.

— Oh, esqueci-me de que tinha isso — retorqui. — Fi-lo para condizer com a pulseira. Gostas?

Quando o seu olhar passou do cabelo para a minha cara, fiquei ofuscada pela beleza dos seus olhos azuis. Eu já tinha reparado neles, mas se calhar não os tinha visto assim tão perto. Ele estava diferente do que me lembrava, as maçãs do rosto mais proeminentes e o maxilar mais definido.

— Sim, é fixe. Talvez deixe crescer o cabelo este verão e tu possas fazer-me um, para também combinar com a minha pulseira — disse ele. Observou-me de perto, e a pequena área em que a perna dele estava encostada à minha parecia-me uma planície em fogo. Ele inclinou a cabeça e contraiu os lábios. O de baixo era mais cheio do que o de cima, e este tinha uma leve dobra ao centro. Nunca tinha reparado nisso.

— Pareces diferente — murmurou ele, estreitando os olhos ao fitar-me. — Já não tens sardas — disse, passado uns segundos.

— Não te preocupes, elas voltam — respondi, olhando para o sol. — Provavelmente, lá para o fim do dia.

Esboçou um pequeno sorriso, mas as sobrancelhas permaneceram franzidas.

— Também já não tens franja. — Indicou, puxando levemente o tereré. Pestanejei ao olhá-lo, com o coração aos saltos.

Mas que raio se está a passar aqui?

— Pois não, e essa nunca mais vai voltar — repliquei. Levantei a mão para pôr o cabelo atrás da orelha, mas percebi que ela estava a tremer e voltei a metê-la debaixo da perna. — Sabes, és o único rapaz que conheço que repara nesses pormenores do cabelo — tentei dizê-lo calmamente, mas a voz saiu-me estrangulada.

Ele riu-se.

— Eu reparo em muitas coisas acerca de ti, Percy Fraser.

*

O fogo de artifício do Dia do Canadá foi impressionante para uma vila tão pequena. Foi lançado da doca da cidade, com as suas explosões a iluminarem o céu noturno e a brilharem na água escura por baixo.

— Achas que os amigos do Charlie são tão giros quanto ele? — perguntou a Delilah, enquanto espalhava roupa pelo chão. Tínhamos combinado que o Charlie, o Sam e os amigos do Charlie vinham buscar-nos ao crepúsculo, no Barco Banana, para vermos o fogo do meio do lago.

— Se bem conheço o Charlie, todos os seus amigos devem ser raparigas — respondi, vestindo umas calças de fato de treino.

— Bem, então tenho de arrasar.

Mostrou-me um top vermelho que apertava no pescoço e uma minissaia preta.

— O que achas?

— Acho que vais ter frio. Quando o sol se põe, pode arrefecer bastante.

Ela soltou um riso malandro.

— Vou arriscar.

Assim vestidas, ela como se fosse para uma discoteca, eu numa camisola azul-marinho que dizia «U de T», que o meu pai me tinha comprado na loja da universidade, dirigimo-nos para junto do lago. Parámos logo quando chegámos à nossa doca e olhámos para a dos Floreks. O Charlie e outro rapaz estavam a ajudar três raparigas a subirem para o barco. Fiquei aliviada quando vi que elas se vestiam mais como eu do que como a Delilah, de leggings e camisolas.

O Charlie aproximou o barco da ponta da nossa doca para podermos entrar e apresentou-nos ao grupo. A Delilah ficou chocada quando ele apresentou a Arti como sua namorada, mas recuperou rapidamente e depressa sentou o rabo no banco ao lado do Sam.

Sentei-me à frente deles, com os olhos fixos na zona onde a perna dela se colava à dele.

O Charlie parou o barco em frente à praia da vila, onde dezenas de barcos flutuavam na água e havia carros alinhados ao longo da costa da baía. O Evan, o amigo do Charlie, abriu algumas latas de cerveja e passou-as por todos enquanto esperávamos. O Charlie e o Sam recusaram, mas a Delilah deu um gole, fazendo logo uma cara de desagrado.

— Não vais gostar, Percy — disse ela, devolvendo a lata ao Evan.

Aproveitei a luz fraca do fim do dia para estudar o Sam. Ele estava a ouvir a Delilah a falar sobre os seus planos para o resto do verão: andar a cavalo nas Kawarthas e bronzear-se num resort em Muskoka. O cabelo dele era forte e indomável, como habitualmente, e o Sam estava constantemente a afastá-lo, embora ele voltasse sempre a cair-lhe sobre o olho. Decidi que ele tinha uma boca bonita. O nariz tinha mesmo o tamanho certo para o seu rosto, nem demasiado pequeno, nem demasiado grande. Era estranhamente perfeito. Já sabia que ele tinha os olhos mais lindos. Todo o seu rosto era muito bonito. Continuava magro, mas os seus joelhos e cotovelos já não eram tão ossudos como no verão anterior. A Delilah tinha razão: o Sam era giro. Eu é que ainda não tinha reparado nisso.

Mantive-me sentada em silêncio com a revelação que tinha tido, enquanto ele acenava à descrição que a Delilah fazia da piscina do resort, com as mãos grandes em volta dos joelhos e a perna bem encostada à dela.

— Não tens frio? — perguntou-lhe.

— Um bocadinho — admitiu ela. Estava a tremer. Eu conseguia vê-lo, mas quando o Sam abriu o fecho do casaco preto e lho deu, foi como se me tivessem espetado uma faca na barriga.

Atingiu-me como um raio: eu não fazia ideia de quanto tempo ele passava com outras raparigas durante o resto do ano. Não me tinha ocorrido que talvez ele tivesse uma namorada, mas esse assunto também não tinha sido mencionado. E o Sam era giro. E inteligente. E atencioso.

— Estás bem, Percy? — questionou ele, ao apanhar-me a fitá-lo de olhos muito arregalados. A Delilah lançou-me um olhar estranho.

— Hum-hum! — disse eu, numa espécie de grasnido. Precisava de uma manobra de diversão. — Ei, Evan. Dás-me um gole disso? — perguntei, apontando para a cerveja dele.

— Sim, claro.

Ele passou-me a lata e, não!, eu não gostava de cerveja. Depois do primeiro gole, sorri ao Evan e forcei-me a dar mais dois tragos antes de lhe devolver a lata. O Sam inclinou-se para mim, com os lábios contraídos.

— Bebes cerveja? — perguntou, claramente incrédulo.

— Adoro cerveja — menti.

Ele ficou com um ar severo.

— Juras sobre isto? — E levantou o pulso.

— Nem pensar.

Ele abanou a cabeça e riu-se, e o som do seu riso fez com que eu sorrisse.

O olhar da Delilah saltou de mim para ele e, quando o fogo de artifício começou e se ouviam os estrondos por toda a baía, ela passou para o banco ao meu lado, entrelaçou os nossos braços e murmurou-me ao ouvido:

— Eu guardo o teu segredo.

*

O tempo esteve perfeito durante a estadia da Delilah: céu limpo, nem uma pinga de chuva, com calor, mas sem ser insuportável, como se a Mãe Natureza soubesse que a Delilah vinha e tivesse vestido a sua roupa mais bonita. Para grande desilusão da Delilah, o Charlie não era igualmente prestável e passava a maioria do seu tempo a trabalhar na Taberna ou em casa da Arti, na vila.

O seu último dia no lago foi aquilo a que o meu pai chamava uma brasa, daqueles dias em que nem conseguíamos caminhar na doca sem queimar os pés, e, portanto, fomos para a cave dos Floreks.

— Que está o Charlie a fazer? — perguntou a Delilah, enquanto descíamos as escadas com refrigerantes e um pacote de batatas fritas.

— A dormir, provavelmente — respondeu o Sam, agarrando no comando da televisão. — O que querem ver?

Eu e ele ocupámos os nossos lugares habituais, um em cada ponta do sofá.

— Tenho uma ideia melhor — começou a Delilah, abanando o cabelo ruivo. — Vamos jogar ao Verdade ou Consequência.

O Sam resmungou.

— Não sei… — disse, hesitante e sentindo-me desconfortável. — Não sei se somos suficientes para jogar.

— Claro que somos! Dá para jogar só com duas pessoas, e nós somos um, dois, três. —O Sam olhou para a Delilah como se ela fosse uma cobra venenosa. — Vá lá! É o meu último dia, vamos fazer qualquer coisa divertida.

— Só por um bocadinho? — dirigi a pergunta ao Sam.

— Pronto, está bem. — Ele suspirou alto.

A Delilah bateu palmas e ordenou que nos sentássemos num círculo na carpete de sisal.

— Não temos uma garrafa, por isso giramos o comando para ver quem é o primeiro. Começa a pessoa para quem apontar a parte da frente do comando — decidiu ela. — Sam, gira-o tu.

— Se tem de ser — respondeu ele, debaixo de uma melena de cabelo. Girou o comando e este ficou virado na direção da Delilah.

— Delilah, verdade ou consequência? — perguntou ele, com o entusiasmo de um peixe morto.

— Verdade!

O Sam fitou-a como se os seus olhos fossem dois mísseis azuis.

— Alguma vez fizeste bullying a alguém?

Lancei um olhar de aviso ao Sam, mas a Delilah não deu por isso.

— Que pergunta mais estranha — afirmou ela, torcendo os lábios de um tom rosa-vivo. — Mas não, nunca fiz.

O Sam levantou uma sobrancelha, mas deixou passar.

— Bem, é a minha vez de perguntar — disse ela, esfregando as mãos. — Sam, tens namorada?

— Não, não tenho — respondeu ele, soando muito aborrecido e um pouco condescendente. Reprimi um sorriso que me tinha começado nas pontas dos dedos e libertei o fôlego que estava a conter desde a noite do fogo de artifício.

Depois de 15 minutos aborrecidos a respondermos verdades, o Sam esfregou a cara e resmungou:

— Se eu escolher consequência, podemos acabar com o jogo?

A Delilah ponderou sobre aquilo até que um olhar de vitória se espelhou no seu rosto liso.

— Grande ideia, Sam. — Fingiu que estava a pensar, com o dedo no queixo. De seguida, cravou os olhos na direção dele. — A tua consequência é beijares a Percy.

Em câmara lenta, fiquei de boca aberta. Há dias que andava a tentar perceber o que sentia pelo Sam. Mas o olhar gelado que ele estava a lançar à Delilah, como se quisesse esquartejá-la em pedacinhos, era como se fosse um cartaz iluminado a dizer: «Só beijaria a Percy Fraser se ela fosse a última rapariga da galáxia, e, mesmo assim, não sei.» O meu estômago encolheu-se.

— Que foi? Não a achas suficientemente bonita para ti? — perguntou a Delilah, com uma voz melada como adoçante, enquanto se ouviam passos a descerem a escada.

— Quem é que não é suficientemente bonita para ti, Samuel? — perguntou o Charlie, saltando para junto de nós nuns boxers pretos. Esticou-se enquanto bocejava, atraindo o nosso olhar para o seu tronco nu.

— Ninguém — retorquiu o Sam, ao mesmo tempo que a Delilah respondia:

— A Percy.

O Charlie inclinou a cabeça na direção dela, com os olhos verdes a brilharem, encantados.

— Ah, sim?

— Desafiei-o a beijá-la, mas estava-se mesmo a ver que ele não ia fazê-lo. Se fosse eu, sentir-me-ia insultada — disse ela, como se eu não estivesse sentada mesmo ao lado dela.

— Isto é verdade? — perguntou o Charlie, a gozar. — Como assim, Samuel?

— Não me chateies, Charles — murmurou o Sam, com uma mancha vermelha a subir-lhe pelo pescoço.

— Bem, não quero que a Percy se sinta mal só porque tu não tens coragem para a beijar — afirmou o Charlie. Dobrou-se, segurou a minha cara com as suas duas mãos e colou a boca à minha antes que eu conseguisse reagir. Tinha os lábios suaves e macios, sabiam a sumo de laranja, e pressionou-os sobre os meus durante o tempo suficiente para eu me sentir esquisita por ter os olhos abertos. E depois acabou. Afastou-se uns centímetros, com a minha cara ainda entre as suas mãos.

— Quem vai ao mar perde o lugar, Sam — disse o Charlie, fitando-me com os seus olhos de gato. Pestanejou, endireitou-se totalmente e voltou a subir as escadas, deixando para trás o cheiro forte a especiarias do seu desodorizante.

— Eh, lá, Percy! — exclamou a Delilah, apertando-me o braço. Passei a língua pelos lábios, sentindo o seu sabor cítrico. — Terra chama Persephone! — Ela riu-se.

O Sam observava-me em silêncio, vermelho até às orelhas. Pisquei os olhos e inclinei a cabeça, protegendo o rosto atrás de um campo de forças de cabelo.

Tinha acabado de dar o meu primeiro beijo, mas só conseguia pensar no facto de o Sam não ter querido beijar-me. Nem sequer como consequência.

*

Na manhã seguinte, a minha mãe levou a Delilah de volta à cidade. A Delilah abraçou-me, disse que tinha passado «a melhor semana de sempre» e que ia ter «muitas saudades minhas». Fiquei aliviada por ela se ir embora. Queria o Sam só para mim, para que as coisas pudessem voltar ao normal e eu pudesse esquecer que o Charlie me tinha beijado e que o Sam não o tinha feito.

A parte do voltar ao normal foi fácil. Nadámos. Pescámos. Lemos. Devorámos filmes de terror dos anos 80. E esquecer a parte do beijo? Nem por isso. Pelo menos, eu não conseguia. Para o Charlie, não houve problema. Nem tinha a certeza se ele se lembrava sequer de ter colado os seus lábios aos meus — é possível que ele ainda estivesse sonolento ou mesmo sonâmbulo na altura em que o fez —, porque nunca tocou no assunto.

Estava sentada no Barco Banana a remoer nisto tudo enquanto o Charlie e o Sam secavam ao sol depois da nossa última ida à rocha dos saltos (eu fiquei no barco a desempenhar o papel de supervisora). Não que eu quisesse que o Charlie mencionasse aquele beijo. Talvez só quisesse algum tipo de garantia de que não era péssima a beijar. Estava a estudar a boca do Charlie quando senti um puxão na minha pulseira. Era o Sam, e eu tinha sido apanhada.

Quando regressámos à casa dos Floreks, eu e o Sam nadámos até à jangada enquanto o Charlie foi para casa, ele tinha de se preparar para o seu turno no restaurante. Assim que subimos, o Sam deitou-se, com as mãos por baixo da cabeça e a cara virada para o sol, fechando os olhos sem dizer uma palavra.

Mas que raio?

Mal tinha falado comigo desde que me apanhara a observar o irmão e, de repente, senti-me irracionalmente farta. Recuei, de modo a ter espaço para correr, e atirei-me com um estrondo para a água, mesmo ao lado do sítio onde ele estava deitado. Quando emergi, vi que ele tinha as pernas todas molhadas, mas não se tinha mexido um único centímetro.

— Estás mais parado do que é normal — afirmei depois de ter subido outra vez para a jangada, ficando de pé ao lado dele e deixando as pingas caírem no seu braço.

— Ah, sim? — disse ele, com voz monocórdica.

— Estás chateado comigo? — perguntei, fitando-o.

— Não estou chateado contigo, Percy — respondeu, pondo um braço sobre a cara. Hummm

— Bem, mas pareces um bocado chateado — atirei-lhe. — Fiz alguma coisa de errado? — Não houve resposta. — Peço desculpa pelo que quer que seja — acrescentei, com uma ponta de sarcasmo. Porque (é bom não esquecer!) tinha sido ele a rejeitar-me.

Continuei sem resposta. Frustrada, sentei-me e afastei-lhe o braço da cara. Ele olhou-me de soslaio.

— Percy, não estou. A sério — declarou. Percebi que estava a ser sincero. Mas também percebi que algo não estava bem.

— Então, o que se passa contigo?

Ele puxou o braço da minha mão, afastando-o, e levantou-se. Ficámos sentados frente a frente, com os joelhos a tocarem-se. Ele inclinou um pouco a cabeça.

— Foi o teu primeiro beijo? — perguntou.

Fui apanhada de surpresa com aquela mudança de assunto. Nunca tínhamos falado de beijos.

— No outro dia. Com o Charlie? — incitou-me.

Olhei por cima do ombro, à procura de uma forma de escapar àquela conversa.

— Tecnicamente — murmurei, ainda observando a água atrás de mim.

— Tecnicamente?

Suspirei e fitei-o de novo, enervada.

— Temos mesmo de falar sobre isto? Eu sei que 14 anos é um bocado tarde para o primeiro beijo, mas…

— O Charlie é mesmo um parvalhão — interrompeu-me com uma acuidade inusitada.

— Não foi nada de especial — apressei-me a dizer. — Foi só um beijo. Nem sequer teve importância — menti.

— O primeiro beijo é importante, Percy.

— Ai, meu Deus — resmunguei, olhando para o sítio onde os nossos joelhos se tocavam. — Pareces a minha mãe.

Estudei os pelos claros que lhe cobriam as pernas.

— Já tens o período?

Arregalei os olhos perante aquela pergunta.

— Não podes perguntar isso! — guinchei. Dissera-o de forma tão natural, como se estivesse a perguntar se eu gostava de puré de abóbora.

— Porque não? A maioria das raparigas tem a menstruação por volta dos 12 anos. Tu já tens 14 — disse ele, de forma factual. Só me apetecia saltar da jangada e nunca mais vir acima para respirar.

— Nem acredito que acabaste de dizer «menstruação» — murmurei, com o pescoço da cor de tomate.

O período tinha-me aparecido de repente a meio de um dia de escola. Eu tinha ficado a olhar para a mancha vermelha nas minhas cuecas de florzinhas durante um minuto inteiro antes de puxar a Delilah para o compartimento da casa de banho. Eu tinha estado obcecada com ter o período, mas não fazia ideia do que fazer. Ela correra até ao seu cacifo e regressara com uma bolsinha com fecho que continha pensos e uns tubinhos embrulhados em plástico amarelo. Tampões. Eu nem queria acreditar que ela os usava. Mostrara-me como colocar o penso e, depois, dissera: «Vais ter de fazer alguma coisa em relação a essas cuecas de avozinha. Agora já és uma mulher.»

— E então, tens? — perguntou o Sam, outra vez.

— E tu, tens sonhos molhados? — disparei.

— Não vou responder a isso — afirmou ele, ficando da cor da beterraba.

— Porque não? Perguntaste sobre o meu período. E eu não posso perguntar sobre os teus sonhos molhados? — insisti.

— Não é a mesma coisa — respondeu ele, e os seus olhos desviaram-se rapidamente para o meu peito. Depois, olhámos fixamente um para o outro.

— Respondo à tua pergunta se tu responderes à minha — desafiei-o, depois de alguns longos segundos.

Ele estudou-me, com os lábios contraídos.

— Juras? — perguntou ele.

— Juro — respondi, tocando na pulseira dele.

— Sim, tenho sonhos molhados — disse ele muito depressa. Nem sequer desviou o olhar.

— O que é que sentes? Doem-te? — A pergunta saiu-me da boca sem eu pensar.

Ele mostrou-me um sorriso de esguelha.

— Não, Percy, não doem.

— Não consigo imaginar-me nessa situação, a não ter controlo sobre o meu corpo.

O Sam encolheu os ombros.

— As raparigas também não controlam os seus períodos.

— Isso é verdade. Nunca tinha pensado nas coisas assim.

— Mas tens pensado em sonhos molhados — afirmou ele, aproximando o seu olhar.

— Bem, parece-me uma coisa muito nojenta — menti. — Embora não tão nojenta como os períodos.

— Os períodos não são nojentos, fazem parte da biologia humana e, na verdade, até são bastante fixes, se pensarmos bem nisso — afirmou, de olhos muito abertos, demonstrando sinceridade. — São, basicamente, a base da vida humana.

Observei-o de boca aberta. Sabia que o Sam era inteligente — já tinha espreitado para a ficha das notas dele, que estava presa na porta do frigorífico —, mas, às vezes, ele dizia coisas, como «Os períodos são a base da vida humana», que me faziam sentir a anos-luz dele.

— És tão cromo — gozei-o. — Só tu poderias dizer que os períodos são fixes, mas, acredita em mim, são mesmo nojentos.

— Portanto, já tens mesmo o período — concluiu.

— Os seus poderes dedutivos são brilhantes, doutor — respondi-lhe, deitando-me de costas e fechando os olhos, para pôr um ponto final na conversa.

No entanto, passados uns segundos, ele voltou a falar.

— Não são sempre iguais. — Tentei olhar de soslaio para a cara dele, mas, contra o sol, só via a sua silhueta. — Às vezes, consigo sentir que estão a acontecer durante um sonho e, outras vezes, acordo e acabou de acontecer.

Protegi os olhos com a mão, tentando ver melhor a cara dele.

— E sonhas com quê? — murmurei.

— O que achas, Percy?

Eu só tinha uma ideia genérica do que os rapazes achavam sexy.

— Louras com mamas grandes?

— Sim, de vez em quando — respondeu ele. — Outras vezes, raparigas de cabelo castanho — acrescentou, baixinho. A forma como pousou o olhar em mim fez-me sentir que as minhas entranhas eram mel quente.

— Como foi o teu primeiro beijo? — perguntei. A resposta pareceu-me subitamente urgente.

Ele não respondeu durante longos segundos e, quando o fez, foi num suave suspiro.

— Não sei. Ainda não beijei ninguém.

*

O boato na escola básica de Deer Park era que a professora George era uma bruxa. A professora de Inglês do 9.º ano era uma mulher mais velha e solteira, cujo cabelo fino e cor de ferrugem parecia tão quebradiço que só me apetecia puxar-lhe um pedaço. Vestia-se com camadas largas de roupa negra e ocre que lhe escondiam o corpo pequeno e calçava botas pontiagudas, de salto alto, com atacadores em volta dos tornozelos magros. E tinha uma pulseira de âmbar com um inseto morto no interior, que ela nos assegurava ser verdadeiro. Era muito rigorosa, severa e um pouco assustadora. Eu adorava-a.

No primeiro dia de aulas, entregou-nos cadernos em tons pastel que deveriam tornar-se os nossos diários. Disse-nos que os diários eram sagrados e que não avaliaria os seus conteúdos. O nosso primeiro trabalho de casa era escrevermos sobre a nossa experiência mais memorável das férias. A Delilah olhou para mim e movimentou os lábios: «O Charlie sem t-shirt.» Contendo o riso, abri o caderno amarelo-claro e escrevi sobre o salto das rochas.

Escrever no diário depressa se tornou a parte preferida do meu 9.º ano — às vezes, a professora George dava-nos um tema para explorarmos; outras, deixava ao nosso critério. Sabia-me bem dar forma e ordem aos meus pensamentos e gostava de usar as palavras para pintar imagens do lago e dos bosques. Escrevi uma página inteira sobre os pierogies da Sue, mas também imaginei contos horríveis sobre fantasmas vingativos e experiências médicas malsucedidas.

Quatro semanas depois de a escola ter começado, a professora George pediu-me para ficar com ela depois da aula. Depois de todos saírem, disse-me que eu tinha um talento natural para a escrita criativa e incentivou-me a participar num concurso de contos que se realizava entre todas as escolas da área. Os finalistas frequentariam um curso de escrita, de três dias, numa faculdade local, nas férias da Páscoa.

— Tens de limar as tuas histórias de terror, querida — disse ela, e enxotou-me da sala de aula.

No fim de semana de Ação de Graças, levei o diário para a cabana, para o Sam me ajudar a decidir em que ideia trabalhar. Sentámo-nos na minha cama, com a manta em cima das pernas, o Sam a avançar pelas folhas do diário e eu de olhos presos nele, como uma folha molhada num sapato. Desde que o Sam me tinha dito que não tinha beijado ninguém, eu não conseguia deixar de pensar que queria colar a minha boca à dele antes que mais alguém lá chegasse.

— São muito bons, Percy — afirmou. O seu rosto tornou-se sério e ele deu-me umas palmadinhas de aprovação na perna. — És uma miúda tão doce e bonita por fora, mas totalmente passada por dentro.

Arranquei-lhe o diário das mãos e bati-lhe com ele, mas o meu cérebro tinha ficado paralisado ao ouvir a palavra «bonita».

— Era um elogio. — Ele riu-se, levantando as mãos para se proteger. Levantei o diário para lhe bater de novo, mas ele agarrou-me o braço e puxou-me para a frente, por isso, caí em cima dele. Ficámos ambos imóveis. Os meus olhos fixaram-se numa pequena ruga no seu lábio inferior. Mas, então, ouvi passos a subirem a escada e saltei para o lado. A minha mãe apareceu à porta, franzindo as sobrancelhas por trás da sua enorme armação vermelha.

— Está tudo bem por aqui, Persephone?

— Acho que deves escolher aquele do sangue dos cérebros — resmungou o Sam, depois de ela ter saído.

*

Os meus pais disseram que, se eu não entrasse no curso de escrita, podíamos ir para Barry’s Bay nas férias da Páscoa e, por segundos, considerei se valeria a pena concorrer. Debati o assunto com a Delilah, no caminho da escola para casa, e ela beliscou-me o braço.

— Tens coisas mais importantes com que te preocupares do que rapazes de verão — disse ela.

Apertei-lhe o braço.

— Quem és tu e o que fizeste à Delilah Manson? — gemi.

Ela deitou a língua de fora.

— Estou a falar a sério. Os rapazes são para nos divertirmos. Muito. Mas não deixes que nenhum se meta no caminho do teu sucesso.

Precisei de todo o meu autocontrolo para não me desatar a rir. E ficou por ali.

Trabalhei na minha história durante todo o outono. Era sobre um subúrbio aparentemente idílico, com um colégio de elite para onde os adolescentes mais inteligentes e atraentes eram enviados. Mas aquele colégio era, na verdade, uma instituição assustadora onde o sangue dos seus cérebros era recolhido para criar um elixir da juventude. O Sam ajudou-me com os pormenores, por e-mail. Descobria incongruências no argumento e na parte científica e ajudava-me a encontrar soluções.

Quando ficou pronto, mandei-lhe uma cópia pelo correio, com um autógrafo no frontispício e uma dedicatória que dizia: «Por conheceres sempre a quantidade certa de sangue.» Chamei ao conto Sangue Jovem.

Passados cinco dias, ele telefonou para nossa casa depois do jantar.

— Vou deixar de pensar nas coisas que íamos fazer nas férias da Páscoa — declarou. — De certeza absoluta que vais ganhar aquilo.

*

Fomos até Barry’s Bay no dia a seguir ao Natal. O bosque parecia um mundo completamente diferente do que era no verão — as bétulas e os bordos estavam despidos, havia uma camada de 30 centímetros de neve no chão, e o sol brilhava em minúsculos cristais pendurados. As agulhas dos pinheiros pareciam cobertas de pó de diamante. Um dos moradores permanentes da zona tinha limpado a nossa entrada do carro e acendido a lareira, e o fumo saía pela chaminé da cabana. A imagem parecia ter saído de um postal de Natal.

Assim que arrumámos as malas, agasalhei-me bem no meu casaco de lã vermelha, calcei as botas brancas forradas com pompons e pus na cabeça um gorro tricotado com luvas a condizer. Agarrei no embrulho que tinha feito cuidadosamente para o Sam e saí porta fora. O ar que respirava saía em nuvens prateadas e o vento mordia-me os dedos mesmo dentro das luvas. Estava a tremer quando cheguei ao alpendre dos Floreks.

A Sue abriu-me a porta, surpreendida por me ver.

— Percy! Que bom ver-te, querida — disse ela, abraçando-me. — Entra, entra, está um gelo!

A casa tinha o mesmo cheiro que no Dia de Ação de Graças — a peru, madeira queimada e velas de baunilha.

— Feliz Natal, Sue. Espero que não se importe que eu tenha aparecido sem avisar. Tenho um presente para o Sam e queria fazer-lhe uma surpresa. Achei que ele estaria em casa.

— Não me importo nada, és sempre bem-vinda, já sabes. Ele… — Foi interrompida por um coro de grunhidos e depois de gargalhadas. — Está na cave a jogar videojogos com uns amigos. Tira os agasalhos e vai lá ter com eles.

Fitei-a, desorientada. Em teoria, eu sabia que o Sam tinha outros amigos. Naquela altura, falava mais neles do que quando nos tínhamos conhecido, e eu incentivava-o a pôr de lado o estudo e a sair mais com eles. Mas nunca os tinha conhecido.

E quero conhecê-los? E eles querem conhecer-me? E saberão sequer que eu existo?

— Percy — disse a Sue, com um sorriso encorajador. — Pendura o casaco, sim? São miúdos simpáticos, não te preocupes.

Desci as escadas de meias e, quando cheguei à cave, encontrei três pares de olhos espantados.

— Percy! — exclamou o Sam, levantando-se. — Não sabia que já tinhas chegado.

— Tcharan! — respondi, fazendo uma pequena vénia, enquanto os outros dois rapazes pousavam os comandos e se levantavam. O Sam deu-me um abraço apertado, tal como teria feito se estivéssemos sozinhos. Fechei os olhos por instantes. Ele cheirava a amaciador de roupa e a ar fresco. Parecia mais sólido, mais volumoso.

— Bem, estás mesmo fria — disse ele, afastando-se. — Tens o nariz muito vermelho.

— Pois, acho que não tenho roupa apropriada para o frio daqui.

— Vou arranjar-te uma manta — ofereceu, e deixou-me ali especada no meio da sala, enquanto procurava dentro de uma arca.

— Olá — cumprimentei, acenando aos amigos dele. — Como o Sam obviamente não sabe fazer apresentações, eu sou a Percy.

— Oh, desculpem — disse o Sam, passando-me uma manta de retalhos de lã às cores. — Este é o Finn — começou, apontando para aquele que tinha cabelo preto despenteado e óculos redondos. Era quase tão alto como o Sam. — E este é o Jordie.

O Jordie era moreno e tinha o cabelo muito curto. Era mais baixo do que os outros dois rapazes, mas não tão magro. Os três vestiam calças de ganga e camisolas grossas.

— A famosa Percy. Prazer em conhecer-te — disse o Finn, a sorrir.

Então, sempre sabem quem eu sou.

— A Rapariga da Pulseira — replicou o Jordie, com um sorriso. — Agora percebemos finalmente porque é que o Sam nunca sai connosco durante o verão.

— Porque eu sou claramente mais interessante? — brinquei, sentando-me depois enrolada no cadeirão de cabedal, enquanto o Finn e o Jordie voltavam a atirar-se para o sofá e pegavam de novo nos comandos. O Sam sentou-se no braço do cadeirão.

— Exato — respondeu.

— Três novidades? — perguntei-lhe.

Ele puxou o cabelo para trás e apontou para a televisão.

— Novo jogo. — Depois, apontou para a camisola. — Nova. — E apontou para um monte de patins de hóquei no gelo. — Fizemos um rinque no lago. Vais adorar. — Fez uma pausa e ajeitou a manta sobre as minhas pernas. — Temos montes de agasalhos a mais que podes levar emprestados. Agora é a tua vez.

— Hum — comecei, como se não tivesse pensado no que lhe ia dizer. — Recebi um portátil no Natal. A minha mãe trouxe uma máquina de café expresso para a cabana, por isso, se quiseres aperfeiçoar a arte do cappuccino, já podes. E — reprimi um sorriso — entrei no curso de escrita.

O seu rosto iluminou-se, tornou-se uma explosão de olhos azuis e dentes brancos.

— Isso é incrível! Não que esteja surpreendido, mas ainda assim. É uma grande conquista! Aposto que foi muito competitivo.

Olhei-o, sorridente.

— Ei, parabéns! — disse o Finn, do sofá, acenando-me.

— Sim — anuiu o Jordie. — O Sam contou-nos tudo sobre a tua história. Na verdade, não se calava com isso.

Arqueei as sobrancelhas ao ouvir aquelas palavras, sentindo-me mais leve do que uma pipoca.

— Eu bem vos disse que achava que ela era boa — disse o Sam. Inclinou a cabeça em direção ao embrulho grande que eu tinha no colo. — Isso é para mim?

— Não — respondi, candidamente. — Na verdade, é para o Finn e para o Jordie.

— Ela é fixe — replicou o Jordie, apontando para mim com o indicador e voltando, de seguida, ao jogo.

— É só uma coisinha — murmurei, com os olhos postos nos seus amigos.

— Também tenho algo para ti — respondeu ele, e vi que o Jordie tinha dado uma cotovelada ao Finn.

— Tens?

— Está lá em cima — afirmou. — Pessoal, já voltamos — anunciou aos outros, e subimos a correr para o andar de cima. O Sam apontou para as escadas que levavam ao andar de cima. — Está no meu quarto.

Eu só tinha estado no quarto do Sam algumas vezes. Era um espaço acolhedor, com paredes azul-claras e tapetes fofos. O Sam tinha o quarto arrumado — a cama estava feita com um edredão axadrezado azul e não havia montes de roupa no chão nem papéis acumulados em cima da secretária. Junto à cama, havia uma prateleira cheia de banda desenhada, livros de biologia em segunda mão e coleções completas do J. R. R. Tolkien e da saga Harry Potter. Na parede, tinha um grande póster a preto-e-branco com o desenho de um coração e etiquetas que apontavam para as várias partes.

Na secretária, havia uma nova fotografia emoldurada. Pousei o presente e peguei nela. Era uma fotografia minha com o Sam, durante o meu primeiro verão no lago. Estávamos sentados na ponta da doca dele, enrolados nas toalhas, com os cabelos molhados, os olhos a piscarem ao sol, o Sam com um sorriso quase indetetável e eu com um grande sorriso.

— É uma boa fotografia — afirmei.

— Ainda bem que achas — respondeu, abrindo a gaveta de cima e entregando-me um pequeno presente, embrulhado em papel castanho e com um laço vermelho.

Abri-o com cuidado, guardando o laço vermelho no bolso das calças. Era uma moldura de estanho com a mesma fotografia que ele tinha.

— Assim, levas o lago contigo para casa — disse.

— Obrigada. — Apertei-a contra o peito e depois resmunguei. — Não me apetece nada dar-te a tua. Esta é tão querida. A minha é só… tonta.

— Eu gosto de coisas tontas — respondeu ele, encolhendo os ombros, e pegou no embrulho que estava na secretária. Mordi o lábio enquanto ele a abria e olhava para a ilustração do homem despido na tampa de cartão do jogo Operação. O cabelo deslizou-lhe para a frente, tornando difícil ler a sua expressão, e, quando olhou para cima, tinha um ar impenetrável.

— É porque queres ser médico… — tentei explicar.

— Sim, já percebi. Sou um génio, lembras-te? — E sorriu. — Sem dúvida o melhor presente que me deram este ano.

Suspirei de alívio.

— Juras?

Com o polegar e o indicador, ele agarrou na minha pulseira.

— Juro. — Mas a sua cara enrugou-se. — Não me interpretes mal, mas parece-me que, às vezes, te preocupas demasiado com o que as outras pessoas pensam.

Esfregou a nuca e inclinou a cabeça, para ficar com a cara ao nível da minha.

Eu murmurei algo incoerente. Sabia que ele tinha razão, mas não gostava que me visse dessa maneira.

— O que estou a tentar dizer é que não importa o que os outros pensam de ti, porque se não gostarem de ti são claramente uns parvalhões.

Ele estava tão perto que eu conseguia distinguir as sombras mais escuras do azul dos seus olhos.

— Mas tu não és os outros — sussurrei. Os seus olhos desviaram-se para a minha boca e eu inclinei-me um pouco mais na sua direção. — Preocupo-me mesmo com o que tu pensas.

— Por vezes, penso que ninguém me compreende como tu — respondeu ele, com a cara a ficar muito vermelha. — Também costumas sentir isso?

Tinha a boca seca e passei a língua pelo lábio superior. Ele acompanhou o movimento com os olhos e ouvi-o engolir em seco.

— Sim — respondi, tocando com uma mão trémula no seu pulso, convencida de que ele diminuiria a distância entre nós.

Mas, nessa altura, ele pestanejou como se se tivesse lembrado de alguma coisa importante, voltou a endireitar-se e disse:

— Não quero estragar isso nunca.