Eu e o Sam caminhamos até à Taberna, depois de terminarmos os gelados e, quando chegamos à porta das traseiras, entreolhamo-nos, envergonhados, sem sabermos como nos afastarmos.
— Foi tão bom ver-te — digo-lhe, torcendo o debrum do vestido e detestando o tom falso da minha voz. O Sam também o deve ter ouvido, porque arqueia as sobrancelhas e levanta um pouco a cabeça. — Vou ver se ainda apanho a loja das bebidas aberta — continuo. — Há lá uma garrafa de vinho com o meu nome. Não é fácil regressar aqui.
Estremeço. Por que razão fui dizer isto? Porque é que estou com o Sam há apenas uma hora e o cadeado da minha grande boca já saltou fora?
O Sam passa a mão pela cara e depois pelo cabelo.
— Porque não entras para beber qualquer coisa? Doze anos é muito tempo para pôr em dia — diz, e não me passa despercebido que ele já fez as contas.
Mudo o peso de um pé para o outro. Não há nada que eu queira mais do que passar tempo com o Sam, estar perto dele, mas preciso de algum tempo para perceber o que lhe quero dizer. Quero falar-lhe da última vez em que nos vimos. Dizer-lhe o quanto lamento. Explicar-lhe por que motivo fiz o que fiz. Pôr tudo em pratos limpos. Mas esta noite não posso ir por aí. Não estou preparada. Seria como ir para a batalha da minha vida sem armas nenhumas.
Olho em volta para a rua sossegada.
— Anda lá, Percy. Poupa o teu dinheiro.
— Está bem — concordo. Entro atrás dele na cozinha às escuras e, quando ele acende as luzes, os meus olhos deslizam da curva das suas costas para a curva do traseiro, o que é um grande erro, porque ele tem um rabo incrível. E é nesse preciso momento que ele se vira e me apanha a fazê-lo.
— Bar? — pergunto, fingindo ignorância. Passo rapidamente por ele, em direção às portas da sala, e acendo as luzes. Com a mão ainda no interruptor, examino o espaço. Tenho de piscar os olhos algumas vezes para processar o que estou a ver, porque é incrível como tudo está praticamente na mesma. Tábuas de pinho cobrem as paredes e o teto; o chão é de uma madeira mais dura, talvez ácer. Faz-nos sentir como se estivéssemos numa cabana acolhedora, apesar do tamanho enorme da divisão. Nas paredes, há fotografias históricas de Barry’s Bay, juntamente com antigos machados de cortar lenha e pinturas de artistas locais, incluindo alguns da própria Taberna. A pedra da lareira encontra-se no mesmo lugar e a fotografia de família está na prateleira onde sempre esteve. Aproximo-me dela enquanto o Sam tira dois copos do armário do bar.
É uma fotografia emoldurada dos Floreks em frente da Taberna, que eu sei que foi tirada no dia em que o restaurante abriu. Os pais do Sam têm sorrisos enormes. O Chris, o pai dele, é bastante mais alto do que a Sue e tem um braço à volta dos ombros dela, apertando-a com força contra si. Um Charlie minúsculo agarra a sua mão livre. A Sue tem ao colo o bebé Sam; deve ter cerca de oito meses, com o cabelo tão claro que parece branco, e os braços e as pernas com covinhas deliciosas. Observei esta fotografia vezes sem conta quando era adolescente. Toco na cara da Sue. Nesta fotografia, ela era mais nova do que eu sou hoje.
— Sempre adorei esta fotografia — digo, continuando a fitá-la. Ouço o som do líquido a ser servido nos copos e viro-me para o Sam, o Sam adulto, que me olha com uma expressão de dor.
Vou até ao bar e ponho as mãos no balcão enquanto me sento à sua frente. Ele passa-me uma dose generosa de whisky.
— Estás bem? — pergunto.
— Há pouco tinhas razão — responde, com a voz áspera como gravilha. — Não é fácil ter-te aqui. Sinto que levei um murro no coração.
Respiro com dificuldade. Ele leva o copo aos lábios, inclina a cabeça para trás e despeja o conteúdo de uma vez.
De repente, sinto que a minha temperatura aumentou cem graus e apercebo-me claramente da transpiração nas axilas e de como tenho a franja colada à testa. É provável que tenha baba de vaca na testa. Tento descolar o cabelo da pele.
— Sam… — começo, mas paro logo, sem saber que palavras hei de dizer a seguir.
Não quero fazer isto agora. Ainda não.
Levo o copo aos lábios e bebo um grande gole.
O olhar fixo do Sam é impiedoso. A sua capacidade de manter o contacto visual foi algo a que me habituei quando o conheci. À medida que íamos ficando mais velhos, aquele olhar azul deixava o meu sangue em fogo, mas, neste momento, torna-se insuportável. E eu sei, eu sei que não devia achá-lo atraente agora, mas a sua expressão sombria e o seu maxilar contraído tornam-se irresistíveis. Ele é inegavelmente bonito, mesmo quando está amargurado. Ou talvez o seja ainda mais nessa altura.
Bebo o resto da bebida e engasgo-me com o seu ardor. Ele está à espera de que eu diga algo e, se há coisa que nunca consegui fazer foi fugir-lhe. Mas a verdade é que não estou preparada para abrir as nossas feridas neste instante, pelo menos sem saber se poderemos sobreviver-lhes uma segunda vez.
Olho para dentro do meu copo vazio.
— Passei doze anos a pensar no que te diria se alguma vez te voltasse a ver — começo e fico espantada com a minha própria honestidade. Paro e conto quatro inspirações e expirações. — Senti tanto a tua falta. — A voz treme-me, mas continuo. — Quero fazer melhor. Quero corrigir as coisas. Mas não sei o que posso dizer agora mesmo para o conseguir. Por favor, dá-me mais algum tempo.
Continuo a fitar o copo vazio. Estou a agarrá-lo entre ambas as mãos, para ele não perceber como tremem. Depois, ouço o som da rolha da garrafa a saltar. Olho para cima com uma expressão de medo. Mas o olhar dele é suave, um pouco triste até.
— Bebe outro copo, Percy — diz, gentilmente, enchendo-me o copo. — Não temos de falar sobre isso agora.
Aceno e respiro fundo, agradecida.
— Na zdrowie — diz, tocando com o copo no meu e levando-o aos lábios, ficando à espera de que eu faça o mesmo. Bebemos ao mesmo tempo.
No bolso dele, o telemóvel começa a tocar. Não é a primeira vez que isso acontece esta noite. Ele olha para o ecrã e volta a guardá-lo no bolso dos calções.
— Precisas de atender? — pergunto, pensando na Chantal e sentindo uma pontada de culpa. — Não me importo.
— Não, podem esperar. Vou desligá-lo. — Levanta a garrafa de whisky. — Outro?
— Porque não, raios? — respondo, esboçando um sorriso.
Ele enche os copos, depois, dá a volta ao bar e vem sentar-se num banco ao meu lado.
— Se calhar, é melhor bebermos este mais devagar — diz, voltando a tocar no meu copo com o dele. Mexo na franja, em parte por estar nervosa e também na esperança de a tornar mais apresentável.
— Uma vez, juraste que nunca mais farias uma franja — declara o Sam, olhando-me de soslaio. Viro-me no banco para ficar de frente para ele.
— Isto — digo — é a minha franja de fim de relação!
Ups, já estarei com os copos?
— A tua quê? — pergunta, encarando-me com um meio sorriso e raspando nas minhas pernas com as dele quando o faz. Olho para baixo, para o sítio onde a coxa dele tocou na minha, e depois retomo rapidamente o olhar dele.
— Não sabes? Franja de fim de relação — repito, tentando pronunciar a expressão de forma clara. Ele parece atónito. — As mulheres mudam de corte de cabelo quando são deixadas. Ou quando deixam alguém. Ou, às vezes, simplesmente quando precisamos de um novo começo. A franja é como o Ano Novo dos cabelos.
— Estou a ver — diz o Sam, devagar, e o que ele quer mesmo dizer é «Não estou nada a ver» ou «Que maluquice». Mas tem um sorriso a bailar nos lábios. Tento não me focar na pequena ruga no meio do seu lábio inferior. Álcool e o Sam são uma combinação perigosa, apercebo-me, porque tenho as bochechas a arder e só consigo pensar no quanto quero sugar-lhe aquela pequena ruga.
— E então? Foste deixada ou deixaste alguém? — questiona.
— Fui deixada. Há pouco tempo — respondo, tentando focar-me nos olhos dele.
— Ah, que treta. Lamento, Percy.
Ele baixa a cabeça até ficar ao meu nível, e fica mesmo na minha linha de visão. Oh, bolas, será que ele percebeu que eu estava a olhar para os seus lábios? Forço-me a olhá-lo nos olhos. Tem uma estranha expressão de troça. A minha cara está a arder. Sinto gotas de transpiração a formarem-se por cima do meu lábio superior.
— Não, está tudo bem — replico, tentando subtilmente limpar o suor do lábio. — Não era assim tão sério. Não estávamos juntos há muito tempo. Quer dizer, foram sete meses. Que, para mim, é longo, para mim é mesmo a relação mais longa. Mas, quer dizer, não é muito para os adultos normais. — Ah, boa, agora já estou a divagar. E, se calhar, a entaramelar também. — Enfim, está tudo bem. Não era homem para mim.
— Ah — diz ele, e quando o fito, parece-me mais relaxado. — Não era fã de terror?
— Hum, lembras-te disso? — comento, e sinto um formigueiro delicioso nos dedos dos pés.
— Claro — retorque, com uma honestidade desarmante. Eu sorrio, um sorriso grande, parvo, nascido do whisky. — Quem poderia esquecer-se de ter sido submetido durante anos a péssimos filmes de terror? — continua. É o clássico Sam, a picar, mas sempre gentil e nunca antipático.
— Desculpa?! Tu adoravas os meus filmes! — Na brincadeira, dou-lhe um soco no braço e, credo, o seu bíceps parece de cimento. Abano a mão, olhando-o, incrédula. Ele esboça um daqueles meios sorrisos, como se soubesse exatamente o que estou a pensar. Dou um gole no whisky para afastar a tensão que está a instalar-se.
— De qualquer forma, não, o Sebastian não gostava mesmo de filmes de terror — digo, mas depois penso melhor. — Na verdade, não sei. Nunca lhe perguntei. E nunca vimos nenhum juntos, por isso, quem sabe? Talvez até os adorasse.
Não lhe digo que nunca contei a ninguém com quem namorei sobre esta minha estranha paixão. Nem que deixei de ver esse género de filmes. Para o Sam, o meu amor por filmes de terror clássicos era provavelmente um facto básico da minha biografia. Mas, para mim, era um pormenor muitíssimo íntimo para revelar a qualquer um dos homens com quem andei. E, sendo mais específica, depois daquele primeiro verão no lago, eu associava sempre os filmes ao Sam. Hoje em dia, ver qualquer um deles seria demasiado doloroso.
— Estás a brincar? — pergunta o Sam, nitidamente confuso. Abano a cabeça. — Bem, tens razão — murmura ele. — Decididamente, não era homem para ti.
— Então, e tu? — pergunto. — Continuas a ler livros de anatomia para te divertires?
Ele abre mais os olhos e parece que fica corado por baixo da barba por fazer. Não fiz de propósito para recordar essa memória específica. Das suas mãos e dos seus lábios em mim, no seu quarto.
— Não queria… — começo, mas ele interrompe-me.
— Acho que os meus dias a estudar acabaram — responde, dando-me uma saída. E depois acrescenta: — Acalma-te, Percy. Parece que foste apanhada a ver pornografia.
Solto um som que está a meio caminho entre o suspiro e o riso.
Terminamos as bebidas num silêncio feliz. O Sam serve-nos mais. Está escuro lá fora, e não faço ideia de há quanto tempo estamos aqui.
— Amanhã vamos arrepender-nos disto — digo, mas sei que é mentira. Aguentaria uma ressaca de dois dias se isso significasse ter mais uma hora com o Sam.
— Ainda falas com a Delilah? — pergunta, e quase me engasgo. Não falo com a Delilah há anos. Somos amigas no Facebook, por isso, sei que ela é uma espécie de relações-públicas política prestigiada, em Otava, mas afastei-a pouco tempo depois de ter estragado tudo com o Sam. As minhas duas maiores amizades: desfeitas com poucos meses de diferença. Ambas por culpa minha.
Passo o dedo pelo rebordo do copo.
— Afastámo-nos na faculdade — respondo. Esta verdade ainda me magoa, embora não seja a história completa, nem de perto. Olho para o Sam, para ver se ele o percebe.
Ajeita-se no banco, parecendo desconfortável, e dá um grande gole.
— Lamento ouvir isso. Vocês foram mesmo muito próximas durante algum tempo.
— Pois fomos — concordo. — Na realidade — acrescento, olhando de relance para ele —, é provável que tu a tenhas visto mais vezes do que eu, já que vocês foram ambos para Queens.
Ele coça a barba do queixo.
— É uma universidade mesmo muito grande, mas sim, encontrei-a uma vez ou duas.
A sua voz é áspera.
— Ela havia de ficar doida se visse o adulto em que te tornaste — cospe a minha estúpida boca de whisky.
— Ah, sim? — interroga ele, batendo com o joelho no meu. — E em que adulto é que me tornei?
— Ao que parece, convencido — murmuro, estreitando os olhos para observar o copo, porque agora já estou a ver dois.
Ele ri-se, inclina-se para mim e sussurra-me ao ouvido:
— Tu também te tornaste uma adulta muito convencida.
O Sam encosta-se para trás e estuda-me.
— Posso dizer-te uma coisa? — pergunta, arrastando um pouco as palavras.
— Claro — replico.
Tem os olhos ligeiramente desfocados, mas estão fixos nos meus.
— Havia uma loja incrível de livros e filmes usados em Kingston, onde fiz o estágio — começa. — Tinham uma secção fantástica de terror, todas aquelas coisas boas de que tu gostavas. Mas também tinham outros filmes. Uns mais obscuros, que achei que nunca terias visto. Passei lá muito tempo, só a ver. Lembrava-me de ti. — O Sam abana a cabeça, recordando-se. — O dono era um tipo carrancudo, com tatuagens e um grande bigode. Um dia, chateou-se mesmo comigo porque ia lá tantas vezes e nunca comprava nada, por isso, peguei num A Noite dos Mortos-Vivos e pousei-o com força no balcão. Depois disso, continuei a aparecer lá, mas, claro, tinha de comprar sempre qualquer coisa. Acabei com a Carrie, o Psycho, o Exorcista e todos aqueles filmes terríveis do Halloween — concluiu. Parou e olhou-me na cara: — No entanto, nunca os vi. Os meus colegas de quarto achavam que era doido por ter todos aqueles filmes que nunca via. Mas eu não o conseguia fazer. Sem ti, parecia-me errado.
Isto abala-me.
Passei horas, dias, anos inteiros a perguntar-me se haveria alguma possibilidade de o Sam ter saudades minhas como eu tinha dele. De alguma forma, parecia-me ser apenas um desejo da minha cabeça. Nos meses que se seguiram à nossa separação, deixei inúmeras mensagens no telefone do seu quarto da faculdade, mandei mensagem atrás de mensagem, escrevi e-mails a perguntar-lhe como estava, dizendo-lhe que sentia a sua falta e pedindo-lhe, por favor, para falarmos. Ele não respondeu a nada. Em maio, outra pessoa atendeu o telefone — havia um novo estudante no seu quarto. Ainda pensei em ir até Barry’s Bay, contar-lhe tudo, pedir-lhe perdão, mas pensei que, por aquela altura, ele já me teria apagado, ao meu nome e a todas as nossas memórias da sua cabeça.
Tive sempre uma parte pequena e esperançosa soterrada em mim que sentia que, às vezes, ele devia sentir a sua memória regressar a mim, a nós. Ele era tudo para mim, e sei que o mesmo era verdade para ele. Ouvi-lo falar da loja de filmes desenterra um bocadinho esse pedaço de esperança que está tão profundamente escondido.
— Eu também não os vejo — admito, num murmúrio.
— Não?
— Não. — E, depois, mais claramente: — Pela mesma razão.
Olhamos um para o outro, sem pestanejar. O aperto que sinto no coração é quase insuportável. A tentação de me inclinar para ele, de lhe mostrar o que ele significa para mim com as mãos, a boca, a língua, é quase impossível de ignorar. Mas sei que isso não seria justo. O meu coração é um estampido de animais a fugirem de um jardim zoológico, mas mantenho-me sentada, imóvel, à espera da resposta dele.
E então o Sam sorri e os seus olhos azuis brilham. Percebo o que vai acontecer antes de ele o dizer, e já estou a sorrir.
Eu conheço-te, penso.
— Quer dizer que, finalmente, tens um gosto cinematográfico decente?
O seu comentário provocador afasta o peso da tristeza que estava prestes a cair sobre nós e ambos desatamos a rir. Sem dúvida que o whisky já está a fazer efeito, porque as minhas gargalhadas são intercaladas por soluços e escorrem-me lágrimas pela cara. Pouso a mão no joelho do Sam para me equilibrar, e nem sequer me apercebo de que lhe toquei.
Ainda estamos às gargalhadas, e eu inspiro grandes golfadas de ar para tentar acalmar-me, quando uma voz de mulher silencia o nosso ataque de riso.
— Sam?
Eu olho para cima e o Sam vira-se para a porta da cozinha, fazendo com que a minha mão se afaste do seu joelho nesse movimento. À porta, está uma loura alta. Parece ter a mesma idade que nós, mas veste umas calças brancas, tipo marinheiro, imaculadas e uma camisa de seda sem mangas a condizer. É magra e tem um ar elegante, com o cabelo apanhado num coque acima do pescoço comprido. De repente, apercebo-me de que o meu vestido vermelho está todo amarrotado e de que o meu cabelo deve parecer desgrenhado.
— Desculpa interromper — diz ela, caminhando na nossa direção, apertando as chaves na mão. Tem um ar calmo e sinto que me analisa, mas não o vejo porque olho, confusa, para o Sam.
— Tentei ligar-te várias vezes — afirma, com os olhos cor de amêndoa a alternarem entre nós. Conheci alguns primos do Sam quando éramos miúdos e, por isso, tento identificar esta mulher.
— Bolas, desculpa — responde ele, e as suas palavras saem um pouco arrastadas. — Perdemos um bocado a noção do tempo.
Ela contrai os lábios.
— Vais apresentar-nos? — pergunta, fazendo um gesto na minha direção. Tem a cor clara dos Floreks, mas não tem, decididamente, a simpatia deles.
O Sam vira-se e esboça um pequeno sorriso que não se reflete nos seus olhos.
— Percy, esta é a Taylor.
— Prima? — questiono, mas a Taylor responde por ele.
— Namorada.
*
Neste momento, o Sam está a apresentar-me a Taylor. A sua namorada. Não a sua prima.
O Sam tem uma namorada.
Claro que tem uma namorada!
Como é que não pensei nisto? Ele é um médico lindo. É alto, tem aqueles olhos e o cabelo rebelde até lhe fica bem. E tenho a certeza de que o tronco sólido que se esconde por baixo da t-shirt me faria gemer. O Sam que conheci também era simpático, divertido e brilhante — demasiado inteligente para o seu próprio bem, na verdade. E é muito mais do que tudo isso. É o Sam.
A Taylor está parada à nossa frente, de mãos nas ancas, bem vestida e moderna no seu conjunto todo branco, enquanto eu continuo sentada, de boca aberta. Que tipo de pessoa normal é que se veste toda de branco sem ter, no mínimo, uma nódoa que seja à frente? E, pensando melhor nisso, quem é que veste calças de cerimónia e um top de seda numa quinta-feira à noite em Barry’s Bay? Ou numa noite qualquer da semana em Barry’s Bay? Apetece-me espremer um dos frascos de ketchup do restaurante em cima dela.
— Taylor, esta é a Percy — diz o Sam, como se já tivesse falado de mim antes, mas a Taylor olha-o sem perceber. — Não te lembras? Falei-te da Percy — insiste. — Ela tinha uma cabana aqui ao lado. Quando éramos miúdos, andávamos sempre juntos.
Andávamos sempre juntos? Andávamos sempre juntos?!
— Que giro — afirma a Taylor, num tom que indica que não acha o facto de termos andado juntos na infância giro. — Então, estão aqui os dois só a pôr a conversa em dia? — dirige a pergunta ao Sam, mas os seus olhos fixam-se em mim e percebo a avaliação que faz: sou ou não sou uma ameaça? Tenho o vestido amarrotado e possivelmente suado. Tenho uma nódoa de gelado no peito. E é impossível que não cheire a whisky. Os seus ombros relaxam um pouco: ela acha que não tem nada com que se preocupar.
O Sam está a responder qualquer coisa à Taylor, mas não faço ideia o quê, porque, de repente, fico tão maldisposta que tenho de me agarrar ao balcão.
Preciso de ar.
Começo a inspirar profundamente. Inspirar, um, dois, três, quatro. Expirar, um, dois, três, quatro. O whisky, que há momentos era quente e sabia a mel, agora tem um sabor amargo e estragado. Vomitar é uma possibilidade muito grande.
— Estás bem, Percy? — pergunta o Sam, e percebo que estava a contar em voz alta. Ele e a Taylor olham para mim.
— A-hã — balbucio. — Mas acho que o whisky foi demais. É melhor ir andando. Prazer em conhecer-te, Taylor.
Desço do meu assento, dou um passo em frente e bato com o pé na perna do banco do Sam. Tropeço em frente da Taylor, que, por acaso, cheira como o raio de um jardim de rosas.
— Percy! — O Sam agarra-me pelo braço e eu fecho os olhos por instantes, para recuperar o equilíbrio. — Não podes conduzir neste estado.
Viro-me para ele e vejo na sua cara uma expressão de pena. Odeio a sensação que isso me provoca.
— Não faz mal — digo. — Quer dizer, eu sei que não posso conduzir. Mas não faz mal, porque não vim a conduzir. Vim a pé.
— A pé? Mas onde é que estás hospedada? Nós damos-te boleia — oferece o Sam.
Nós.
Nós.
Nós.
Olho para a Taylor, que não se esforça nada por esconder a sua impaciência. No entanto, se eu encontrasse o meu namorado médico lindo bêbedo com uma mulher estranha e desajeitada, que me julgava prima dele, também ficaria impaciente. E se esse namorado fosse o Sam, impaciente seria pouco. Eu ficaria homicida.
— Claramente, precisam os dois de boleia — declara a Taylor. — Vamos. O meu carro está lá fora.
Vou atrás da Taylor e do Sam. Consigo imaginá-los num encontro — ambos altos, elegantes e estupidamente bonitos. Ela podia ser bailarina, com os seus membros flexíveis e o cabelo apanhado num coque perfeito. Ele parece um nadador — de ombros largos, ancas estreitas, pernas musculadas, mas sem exagero. Os gémeos parecem ter sido trabalhados em mármore. Provavelmente, continua a correr. Provavelmente, correm juntos. Provavelmente, correm juntos e fazem aquele sexo suado, pós-corrida, que as pessoas felizes e em forma fazem.
A Taylor sai primeiro pela porta da cozinha e o Sam segura na porta para eu passar. Espero que ele a feche à chave enquanto a Taylor entra no seu BMW branco. Reparo que a sua mala e os mocassins também são brancos. Esta mulher também deve cagar em branco.
— Estás bem? — pergunta ele, baixinho.
Estou demasiado bêbeda para pensar numa mentira convincente como resposta, por isso, tudo o que faço é esboçar um sorriso fraco e depois dirijo-me para o carro.
Sento-me atrás, sentindo-me como uma criança, um pau de cabeleira e também muito tonta.
— Então, como é que vocês se conheceram? — pergunto, embora não queira mesmo saber a resposta.
O que se passa comigo?
— Num bar, vá-se lá imaginar — responde a Taylor, observando-me pelo espelho retrovisor, o que me diz que ela não passa muito tempo em bares a engatar tipos. A ideia de o Sam andar aí pelo mundo, andar pelos bares, à procura de conhecer mulheres, é tão horrível que preciso de um momento para me recompor.
— Foi, quê, há uns dois anos e meio, Sam?
Dois anos. Dois anos é algo sério.
— A-hã — replica ele.
— E o que fazes, Taylor? — questiono, mudando rapidamente de assunto. O Sam olha-me por cima do ombro e lança-me um olhar estranho, que interpreto como se dissesse «O que estás a tramar?», mas escolho ignorá-lo.
— Sou advogada. Procuradora.
— Estás a brincar?! — guincho. Não sei se foi pelo Sam ou pelo álcool, mas eliminei completamente os meus filtros. — Uma advogada e um médico? Isso devia ser ilegal. Vocês os dois estão, tipo, a tirar todas as pessoas lindas e ricas ao resto de nós, coitados.
Oh, estão tão, tão bêbeda.
O Sam irrompe numa enorme gargalhada. Mas a Taylor, que claramente não aprecia o meu sentido de humor embriagado, fica calada, dirigindo-me um olhar surpreendido através retrovisor.
A distância é curta e chegamos ao motel em menos de cinco minutos. Eu aponto para o número 106 e a Taylor para em frente da porta. Agradeço-lhe a boleia numa voz alegre (e parecendo, possivelmente, demente) e, sem a mínima elegância, saio aos tropeções do carro e arrasto-me até à porta, enquanto tiro a chave da mala.
— Percy! — chama o Sam, atrás de mim. Fecho os olhos por instantes antes de me virar, com todo o peso da minha humilhação a pressionar-me os ombros. Quero rastejar para dentro da cama e nunca mais acordar. Ele baixa o vidro e inclina-se sobre o braço musculado que apoiou na janela. Entreolhamo-nos por um segundo.
— O que foi? — pergunto, com a voz sem expressão. Já chega de fingir que sou a Percy engraçada.
— Vemo-nos em breve, sim?
— Claro — respondo, e viro-me para a porta. Assim que a abro, as luzes movem-se, mas não me volto para ver o carro partir. Em vez disso, corro para a casa de banho e debruço-me sobre a sanita.
*
Estou estendida na cama, a pestanejar para o teto. Sei que a manhã já deve ir adiantada porque o sol está alto. Não virei a cabeça para o relógio porque não quero acordar a dor de cabeça gigante que sinto iminente nas têmporas. A boca sabe-me como se tivesse passado a noite a lamber o chão de um bar à beira da estrada. E, mesmo assim, não consigo evitar e sorrio para mim própria.
Encontrei o Sam.
E senti-a. A atração entre nós. A que existe desde que tínhamos 13 anos, a que ficou cada vez mais forte à medida que crescíamos, a que tentei negar há doze anos.
Não a quebrei. Quebrei-nos a nós. Mas posso recuperá-la.
Mas, então, ela emerge do nevoeiro da minha bebedeira com um macacão branco: a Taylor. Blhec. Tenho um pequeno prazer perverso em dizer o nome dela. Taylor é um daqueles nomes que costumavam estar na moda e que agora soam datados e foleiros. A minha mãe diria que era insípido.
«Foi, quê, há uns dois anos e meio, Sam?»
Coço o nariz ao lembrar-me da descontração forçada dela. Aposto tudo em como ela sabe há quanto tempo estão juntos até ao último segundo.
O Sam tem uma namorada. Uma namorada bonita, bem-sucedida, presumivelmente inteligente. Alguém de quem, noutras circunstâncias, eu poderia gostar.
Preciso de me distrair.
Atrevo-me a virar a cabeça para o relógio e fico aliviada por o choque não ser tão intenso. Na mesa de cabeceira, vejo duas embalagens roxas de chocolate que estão vazias e lembro-me de as ter tirado do minibar depois de ter vomitado. São 10h23. Resmungo. Tenho de me levantar. Tenho o dia livre hoje, por isso, não tenho de trabalhar, mas preciso de tomar banho. Até eu me consigo cheirar. A Taylor, possivelmente, acorda já num fato passado a ferro. É possível que tenha, na gaveta da cozinha, um chocolate negro com 75 por cento de cacau de comércio justo, e só coma um quadradinho em ocasiões especiais. Por mais que consiga dar-me com arquitetos e designers de interiores pretensiosos, recomendar um novo restaurante da moda que tem mesmo boa comida e serviço ou passar uma noite de saltos altos sem mostrar desconforto, por dentro, serei sempre descuidada.
Normalmente, sou boa a manter esse meu lado escondido. Mas, de vez em quando, ele aparece, como daquela vez em que chamei ao melhor amigo do Sebastian, barbudo e de ares progressistas, o «pior tipo de misógino», durante um jantar em que ele criticou repetidamente a camisa do empregado de mesa e me perguntou se, depois de ter filhos, ficaria a trabalhar a meio tempo ou deixaria completamente o trabalho. O Sebastian olhou para mim de boca aberta, porque nunca me tinha visto a reagir daquela maneira, e eu pedi desculpa pela minha inconveniência e culpei o vinho.
Ainda com o vestido da véspera, levantei-me da cama e fui até à casa de banho. Estou tensa, mas não estou enjoada. Tiro o cinto e dispo o vestido pela cabeça, tiro a roupa interior e entro para debaixo do duche quente. À medida que o sabonete e a água afastam o nevoeiro da minha cabeça, planeio ir até à praia depois do pequeno-almoço. Eu e o Sam nunca nadámos na praia quando éramos miúdos. Uma vez ou duas, fomos ao parque lá perto com os amigos dele, mas a praia era mais frequentada pelos miúdos da vila que não tinham casas no lago. Sei que lá não há doca nem jangadas, mas preciso desesperadamente de dar um mergulho.
Depois do duche, passo uma toalha pelo cabelo, até ficar apenas húmido, e penteio-o com um pente. Arrisco um olhar para o telemóvel.
Tenho mais uma mensagem da Chantal: «LIGA-ME.»
Em vez de lhe ligar, escrevo uma mensagem: «Olá! Não posso falar agora. Não precisas de vir. Estou bem. Encontrei o Sam ontem.»
Consigo imaginá-la a revirar os olhos ao ler a minha resposta. Sei que não estou a tentar esconder-lhe nada e sinto-me culpada por não lhe ligar, mas estar aqui e ter visto o Sam na noite anterior parece-me tão surreal que nem sei como conseguiria pô-lo em palavras.
Envio a mensagem, visto o biquíni vermelho-vivo que raramente uso e uns calções de ganga. Estou prestes a vestir a camisa, para ir até ao restaurante do motel, quando batem à porta. Fico gelada. É demasiado cedo para a limpeza.
— Sou eu, Percy — diz uma voz profunda e áspera, lá fora.
Abro a porta. O Sam está ali, com o cabelo húmido e a barba feita. Veste calças de ganga e uma t-shirt branca, e tem um copo de café e um saco de papel nas mãos. É a fantasia de qualquer mulher com uma ressaca tornada realidade à minha porta. Entrega-me as coisas e fita-me, demorando-se na parte de cima de uma só alça do meu biquíni. Hoje, os seus olhos estão ainda mais brilhantes.
— Queres vir até ao lago?
*
— O que estás aqui a fazer? — pergunto, agarrando no café e no saco. — Não interessa, não quero saber. És o meu herói.
O Sam ri-se.
— Disse-te que nos víamos em breve. Calculei que me perdoarias por te ter embebedado se te trouxesse comida, e sei que não gostas de coisas doces ao pequeno-almoço. Ou, pelo menos, não gostavas.
— E não gosto — confirmo, metendo o nariz no saco. — Croissant de queijo e fiambre?
— De brie e prosciutto. É do novo café da vila — responde. — E um latte. Barry’s Bay agora está na moda.
— De facto, ontem notei um ar mais refinado. — Rio-me, dando um gole. — A Taylor não se vai importar se eu aparecer lá em casa? É capaz de se sentir desconfortável, já que nós andávamos sempre juntos quando éramos miúdos.
Pois, este é o problema de estar com o Sam antes de conseguir pensar em como falar com ele ou, pelo menos, antes de ter bebido o meu café. As palavras vêm-me à cabeça e saem-me pela boca sem nenhum período de tempo entre elas — já era assim quando éramos adolescentes e, claramente, isso não mudou, independentemente do quanto eu cresci, da mulher bem-sucedida em que me tornei. Pareço uma pessoa mesquinha, infantil e ciumenta.
O Sam esfrega a nuca e olha para trás, a pensar. Nos dois segundos que demora a voltar o olhar para mim, já eu me desfiz numa poça lamacenta de vergonha e refiz-me naquilo que julgo ser o aspeto de um ser humano normal.
— Isto entre mim e a Taylor… — diz, mas, antes de ele acabar a frase, eu interrompo-o com um abanar frenético da cabeça. Não quero saber o que há entre ele e a Taylor.
— Não tens de me dar explicações — afirmo.
Ele olha-me inexpressivamente, pestanejando apenas uma vez antes de contrair os lábios e acenar com a cabeça, como quem concorda em passar à frente.
— De qualquer forma, apareceu uma coisa urgente relacionada com o caso em que ela está a trabalhar agora. Teve de regressar a Kingston esta manhã.
— Mas o funeral é amanhã. — As palavras saem-me de repente, densamente cobertas de acusação. O Sam, com toda a razão, parece abalado com o meu tom.
— Se bem conheço a Taylor, ela encontrará forma de estar cá amanhã — diz. É uma resposta estranha, mas deixo-a passar. — Vamos? — pergunta ele, apontando para trás das costas, para uma carrinha vermelha que eu ainda não tinha visto. Olho-o, surpreendida. Não há nada no Sam que tenha que ver com uma carrinha vermelha, a não ser o facto de ter nascido na zona rural de Ontário.
— Eu sei, eu sei… — afirma. — Era da minha mãe, e comecei a andar com ela quando me mudei para cá. Acaba por ser muito mais prática do que o meu carro.
— A viver em Barry’s Bay. A conduzir uma carrinha vermelha. Mudaste mesmo, Sam Florek — digo, solenemente.
— Ficarias surpreendida se soubesses quão pouco mudei, Persephone Fraser — responde, com um sorriso torto que me deixa a arder onde menos devia.
Desconcertada, viro-me e coloco a toalha e uma muda de roupa dentro do saco de praia. O Sam tira-mo da mão e atira-o para a parte de trás da carrinha, depois, ajuda-me a subir para o meu lugar. Quando as portas se fecham, o cheiro intenso do café mistura-se com o aroma fresco do sabonete do Sam.
Assim que ele arranca, fico com a cabeça a mil. Preciso de uma estratégia, e urgentemente. Ontem à noite, disse ao Sam que lhe explicaria o que aconteceu há tantos anos, mas isso foi antes de ter conhecido a Taylor. Ele já seguiu em frente. Tem uma relação de longa duração. Devo-lhe um pedido de desculpa, mas não preciso de descarregar os meus erros do passado em cima dele. Ou preciso?
— Estás muito calada — diz, à medida que deixamos a vila e seguimos em direção ao lago.
— Acho que estou nervosa — afirmo, com sinceridade. — Não voltei lá desde que vendemos a cabana.
— Na altura daquele Dia de Ação de Graças? — Ele olha-me de relance. Eu assinto com a cabeça.
O silêncio instala-se entre nós. Eu costumava rodar a minha pulseira quando ficava ansiosa. Agora, só agito um joelho para cima e para baixo.
Quando viramos e percorremos o caminho até Bare Rock Lane, abro a janela e inspiro profundamente.
— Bolas, que saudades deste cheiro — sussurro. O Sam põe a mão grande sobre o meu joelho, obrigando-o a parar, e aperta-o ligeiramente antes de voltar a levar a mão ao volante e estacionar à entrada da sua casa.