Estamos sentados na carrinha a olhar fixamente para a casa dos Floreks. Ou, pelo menos, é isso que eu estou a fazer. O Sam está a olhar para mim.
— Está incrível — afirmo. E está mesmo. A relva está verde e aparada, os canteiros de flores estão floridos e perfeitos, as paredes e as madeiras exteriores foram pintadas recentemente. O cesto de basquetebol ainda está pendurado por cima da garagem. Há uns vasos de terracota com gerânios vermelhos e lindos no alpendre; provavelmente, foi o próprio Sam que os plantou. Aquele pensamento deixa-me emocionada.
— Obrigada — diz o Sam. — Tenho tentado mantê-la assim. A minha mãe teria detestado ver o seu jardim invadido por ervas daninhas. — Faz uma pausa e depois acrescenta: — E também tem sido uma boa distração em relação a outras coisas.
— Como é que tens mantido tudo isto neste estado, juntamente com o restaurante e o trabalho? — pergunto, virando-me para ele e acenando em direção à casa. — É uma propriedade enorme para uma só pessoa.
Bolas, como é que a Sue conseguia? E criar dois filhos e gerir a Taberna?
O Sam passa a mão pela cara macia. Ter feito a barba deixou as suas maçãs do rosto mais proeminentes e o maxilar mais definido.
— Se calhar, durmo pouco — retorque. — Não fiques com esse ar horrorizado. Habituei-me a longas noitadas quando fiz bancos. De qualquer forma, fiquei contente por ter algo para fazer. Teria enlouquecido se tivesse de estar quieto durante o último ano.
Sinto a culpa a apertar-me o coração. Odeio que ele tenha passado por isto sozinho. Sem mim.
— O Charlie não te ajuda?
— Não. Ofereceu-se para regressar, mas estava muito ocupado em Toronto. — Coço a cabeça, sem perceber. — Trabalha em finanças, na Bay Street — explica ele. — Estava à espera de uma grande promoção, por isso, eu disse-lhe para ficar lá.
— Não fazia ideia — murmuro. — O chefe dele deve ser mais convincente a fazê-lo vestir uma camisa do que a tua mãe era.
O Sam ri-se.
— Tenho a certeza de que até um fato usa.
Pigarrei e faço a pergunta que tenho querido fazer durante toda a manhã.
— E a Taylor? Vive em Kingston?
— Sim, é lá que fica a empresa dela. Não é exatamente uma rapariga de Barry’s Bay.
— Não se nota nada — murmuro, olhando novamente lá para fora. Pelo canto do olho, vejo que o Sam está a sorrir. Depois, sai da carrinha e dá a volta até ao meu lado. Estende-me a mão para me ajudar a descer.
— Ainda sei sair de uma carrinha, sabias? — digo, mas, de qualquer forma, dou-lhe a mão.
— Bem, estiveste fora muito tempo, espertinha da cidade.
Sorri enquanto eu desço. Tem uma mão na porta da carrinha e outra no carro, bloqueando a minha saída com o corpo. Subitamente, fica com um ar sério.
— O Charlie há de vir para casa mais logo — diz, olhando-me nos olhos de perto. — Esta manhã, foi ao restaurante para ajudar o Julien com algumas coisas de última hora para amanhã.
— Vai ser ótimo vê-lo de novo — afirmo, com um sorriso, mas fico com a boca seca. — E o Julien? Ainda lá está, então?
O Julien Chen era o chef sofredor da Taberna. Era sóbrio e divertido e era como um irmão mais velho para o Charlie e o Sam.
— O Julien ainda lá está. Foi uma grande ajuda para mim e para a minha mãe. Era ele quem a levava à quimioterapia quando eu tinha de fazer turnos no hospital, e quando ela lá ficou, nos últimos meses, ele esteve junto dela quase tanto como eu. Está a ser muito duro para ele.
— Consigo imaginar — digo. — Achas que ele e a tua mãe alguma vez… sabes?
Enquanto adolescente, não tinha pensado nisso, mas agora que sou mais velha, achei que podia explicar por que razão um homem jovem e solteiro, cujos dotes culinários ultrapassavam muito cozer pierogies e cozinhar salsichas, teria vivido tanto tempo numa pequena vila como aquela.
— Não sei — responde, passando a mão pelo cabelo. — Sempre me questionei por que motivo ele ficou aqui durante tanto tempo. O Julien não tinha planeado viver aqui, era só um emprego de verão para ele. Penso que tinha o grande sonho de abrir o seu próprio restaurante na cidade. A minha mãe disse que ele ficou por mim e pelo Charlie. Mas, nos últimos anos, comecei a perguntar-me se não teria sido por ela.
Fita-me com um sorriso triste, e, sem dizer mais nada, ambos caminhamos em volta da casa e dirigimo-nos para junto da água. É uma coisa instintiva, como se eu tivesse descido aquela encosta há apenas uns dias, em vez de há uma década. O velho barco a remos está preso a um dos lados da doca, com um novo motor a bordo, e a jangada flutua um pouco afastada, onde sempre esteve. Tenho a garganta apertada, mas o corpo relaxa perante aquela paisagem. Quando chegamos à doca, fecho os olhos e inspiro.
— Este ano não pusemos aqui o Barco Banana — diz o Sam, e os meus olhos arregalam-se automaticamente.
— Ainda o têm? — Fico maravilhada.
— Na garagem.
O Sam sorri, numa visão de dentes brancos e lábios suaves. Caminhamos até à ponta da doca e eu equilibro-me com força antes de olhar para a margem ao lado.
Há uma lancha rápida branca presa a uma doca nova e maior, onde dantes era a nossa.
— Vista da água, a tua cabana parece quase igual — diz ele. — Mas, nas traseiras, fizeram mais uma divisão. É uma família de quatro. Agora, os miúdos devem ter uns 8 e 10 anos. Deixamo-los nadar até aqui e usar a jangada.
Tenho uma sensação estranha ao olhar para lá da água e da jangada, para a margem oposta — é tudo tão familiar, como se estivesse a ver um velho filme de família, mas em que as pessoas tivessem sido apagadas e eu só conseguisse ver umas silhuetas desmaiadas onde elas tinham estado antes. Tenho saudades daquelas pessoas — e da rapariga que eu era.
— Percy?
Não ouço o Sam até ele pousar uma mão no meu ombro. Olha para mim de forma estranha, e apercebo-me de que deixei escapar algumas lágrimas sem dar conta. Limpo-as e tento sorrir.
— Desculpa… senti-me como se tivesse sido transportada no tempo durante um segundo.
— Percebo — diz baixinho, e depois cruza os braços sobre o peito. — Por falar em ser transportada no tempo… achas que ainda conseguias?
E aponta para o outro lado do lago.
— Atravessar a nado? — engasgo-me.
— Foi o que pensei. Estás demasiado velha e fora de forma para o conseguires fazer — provoca ele.
— Estás a brincar comigo? — digo, e a boca do Sam levanta-se um pouco de um dos lados. — Trouxeste-me aqui para insultares a minha idade e o meu corpo? Isso é um golpe baixo, mesmo para si, Dr. Florek.
O outro lado da sua boca também sobe.
— Visto daqui, o teu corpo parece-me bem — replica o Sam, olhando-me de alto a baixo.
— Tarado — respondo, mal evitando um sorriso. — Pareces o teu irmão.
Arregalo um pouco os olhos perante o que acabei de dizer, mas ele parece não notar.
— Já passou bastante tempo — continua. — Só estou a dizer que não somos tão ágeis como era costume.
— Ágeis? Quem é que ainda usa essa palavra? Que idade tens, 75? — chateio-o. — E fala por ti, velhote. Eu estou bastante ágil. Nem todos ficámos molengas.
Espeto-lhe os dedos na barriga, que é tão dura que parece ter gordura corporal negativa. Ele esboça um sorriso de troça. Estreito os olhos em direção à margem oposta.
— Digamos que eu consigo. Atravessar o lago. O que ganho com isso?
— Além do direito de te gabares? Hum… — Esfrega o queixo, e eu observo os tendões visíveis do seu antebraço. — Dou-te um presente.
— Um presente?
— Um bom presente. Sabes que sou excelente a dar presentes.
É verdade. O Sam sempre deu os melhores presentes.
Uma vez, enviou-me por correio um exemplar gasto de Escrever, as memórias de Stephen King. Não havia nenhuma ocasião especial, mas ele tinha-o embrulhado e colocado um bilhete dentro da capa que dizia: «Encontrei-o numa loja de artigos usados. Acho que estava à tua espera.»
— Humilde, como sempre, Sam. Alguma ideia do que poderá ser esse bom presente?
— Absolutamente nenhuma.
Não consigo evitar as gargalhadas que me assaltam, nem o enorme sorriso que tenho na cara.
— Bem, nesse caso — digo, desapertando os calções —, como posso recusar? — O Sam fica de boca aberta. Não pensou que eu fosse fazê-lo. — Espero que ainda saibas remar.
*
Tiro a camisola e fico de mãos nas ancas. O Sam continua de boca aberta, e embora a minha roupa interior não seja propriamente minúscula, de repente sinto-me muito exposta. Não tenho complexos com o meu corpo. Quer dizer, tenho muitos reparos a fazer, mas reconheço-os como inseguranças e não costumo preocupar-me muito por ter a barriga um bocadinho fofa ou as coxas um pouquinho redondas. A relação com o meu corpo é das poucas relações saudáveis que tenho. Tenho aulas regulares de bicicleta e faço um circuito de pesos algumas vezes por semana, mas é sobretudo porque consigo lidar melhor com o meu stresse quando estou em forma. Não sou nada tonificada, como aquelas mulheres insuportáveis que vão para as aulas de bicicleta com calções curtos e soutiens de desporto, mas também não é esse o meu objetivo.
Estou em forma — e tenho apenas algumas partes molinhas em sítios onde me parece que não há problema nenhum em ser molinha. O olhar do Sam desce para o meu peito e depois regressa à minha cara.
— Ainda sei remar — diz, com um brilho suspeito no olhar. Tira a t-shirt pela cabeça e atira-a para o chão da doca. Agora, sou eu quem fica de boca aberta.
— Bolas — grasno, tocando-lhe no peito, com todos os filtros verbais eliminados. O Sam de 18 anos estava em grande forma física, mas o Sam adulto tem uns peitorais de morrer. A pele é dourada, bem como a penugem que lhe cobre o peito largo. Fica mais escura na linha que se forma no umbigo até entrar pelas calças de ganga. Tem os braços e os ombros musculados, mas sem exagero.
Ele inclina-se para tirar as sapatilhas e as meias e enrola as calças até ficar com os tornozelos e metade dos gémeos à vista.
— Eu sei, tornei-me molenga — afirma, com os olhos azuis a brilharem como sol na água.
Faço-lhe o meu olhar mais desinteressado.
— Não me parece que o tronco nu fosse necessário.
— Está muito sol. Vou ficar cheio de calor no barco — responde, encolhendo os ombros.
— És um perigo — ralho. — Vou partir do princípio de que esses aí não são só decorativos — faço um gesto para os braços dele — e que vais conseguir acompanhar o meu ritmo.
— Darei o meu melhor — responde, e salta para dentro do barco.
Rodo os ombros e faço círculos com os braços, para os soltar. Mas que raio estou eu a fazer? Até parece que continuei com a natação. O Sam afasta-se da doca e vira o barco com os remos, para a proa ficar virada para a outra margem. Espera que eu mergulhe. Estou na borda da doca a fitá-lo, e ele tem os pés descalços apoiados no banco do barco. Olho para a água à minha frente e, depois, de novo para ele. Não sei se sou atingida por um déjà-vu ou se é o peso de estar aqui, neste ponto, enquanto o Sam flutua ali, naquele barco, mas tenho as mãos a tremer.
— Que idade temos? — grito-lhe. Ele demora um momento a responder.
— Quinze?
Estudo a praia rochosa do outro lado do lago. Sinto a adrenalina a subir por baixo da pele. Inspiro profundamente pelo nariz e mergulho. Solto um soluço que vibra em mim enquanto nado debaixo da água fresca. Não faço ideia se estou a chorar quando volto à superfície, mas começo a nadar lentamente.
Consigo ver a ponta do barco conforme viro a cabeça para respirar e tento concentrar-me em como o Sam está agora ao meu lado, e não nos anos todos em que não esteve. Não demoro muito a sentir os ombros rígidos e cheios de nós e as pernas a queimarem, mas continuo a mover os pés e os braços através da água.
Estou num ritmo mecânico quando sinto uma cãibra no dedo grande do pé. Abrando e tento enrolá-lo para soltar o músculo, mas uma dor lancinante sobe-me pelo gémeo. Tento continuar com o movimento, mas os espasmos tornam-se piores e tenho de parar de nadar. Quando a cãibra não passa, cerro os dentes, tentando manter-me à tona e gritar. Mal ouço o Sam a berrar até que vejo a lateral do barco junto de mim.
— Estás bem? — pergunta ele, parecendo em pânico. Abano a cabeça e, de repente, sinto as suas mãos debaixo dos meus braços, puxando-me para fora da água. Raspo a barriga na borda do barco quando ele me puxa para cima, com as mãos na minha cintura e, depois, por baixo do meu traseiro. Caio em cima dele numa confusão de pernas e braços.
Fico deitada no seu peito nu, tentando recuperar o fôlego. A dor abranda se eu estiver quieta, mas, se mexer o dedo, dispara-me pela perna acima e faz-me gemer.
Só então é que me apercebo das mãos do Sam, que me apertam as ancas. Estou totalmente apertada contra ele, a testa, o nariz, o peito, a barriga — só me apetece passar a língua pelo seu peito quente e movimentar as ancas contra as suas calças, para aliviar o que se está a passar entre as minhas pernas. É totalmente inapropriado, tendo em conta a dor que sinto.
— Estás bem, Percy? — pergunta, com a voz tensa.
— Cãibra — digo contra o seu peito. — No pé e no gémeo. Não me consigo mexer.
— Em que perna?
— Esquerda.
Sinto a mão do Sam a mover-se pela perna até ao gémeo e a parar no músculo. Tenho arrepios na pele por onde a mão dele passa e sou percorrida por um tremor. Ele para por um segundo e levanto a cabeça para o ver. Tem os olhos escuros e fixos.
— Desculpa — murmuro. Abana a cabeça tão levemente que é quase impercetível.
— Ajuda a relaxar o músculo — afirma, e aperta a mão em volta do meu gémeo, pressionando-o e, de seguida, movendo-a em pequenos círculos e massajando suavemente. O coração bate-me de modo tão violento que me pergunto se ele também não o sentirá. Fecho os olhos e, involuntariamente, aperto as pernas. Ele deve ter sentido o movimento, porque a sua mão esquerda aperta-me a anca com mais força. Sinto a sua respiração na minha testa.
— Melhor? — A pergunta sai-lhe áspera. Mexo a perna devagar e, na verdade, parece ter melhorado.
— Sim.
Chego-me para cima, mas fico numa posição embaraçosa, sentada em cima dele. Tem o peito escorregadio da água. Começo a sacudi-la, mas ele fecha a mão em volta do meu pulso. Está a observar-me, de pálpebras pesadas.
— És um perigo — diz, repetindo as minhas palavras de um pouco antes. O ar entre nós está tenso como uma tira de borracha. Respiro fundo, o olhar dele fixa-se no movimento do meu peito e, claro, os meus mamilos estão obscenos por baixo do biquíni. Para ser sincera, estou molhada e com frio.
O Sam engole em seco e volta a olhar para mim. Já conheço este olhar, tempestuoso, concentrado e totalmente magnético, como se, a qualquer momento, pudesse cair dentro dele e nunca mais voltar. Move os dedos ligeiramente para a parte de trás da minha anca, mesmo no limite do biquíni. A outra mão desliza pela parte de trás da minha perna, para cima e para baixo. O que é que está a acontecer?
A Taylor, penso. O Sam tem a Taylor.
A mão dele afasta-se da perna e esfrega-me as rugas entre os olhos com o polegar, suavizando a pele franzida, depois passa-a pelo rosto e segura-me pelo queixo.
— Continuas a ser a mulher mais bonita que alguma vez conheci — diz, e a sua voz parece uma lixa grossa. Pestanejo. Aquelas palavras são desconcertantes e maravilhosas, e sinto-me um pouco inebriada e muito excitada. Mas sei que não devíamos estar a fazer isto. Não devia querer isto. Ele contorna-me os lábios com o polegar e os dedos da outra mão cravam-se mais na parte de trás da minha anca.
— Isto não é boa ideia — afirmo, com a voz estrangulada. Os olhos dele estudam-me o rosto rapidamente e ele senta-se por baixo de mim, fazendo-me ficar no seu colo. Encosta a testa à minha e fecha os olhos, respirando depressa. Ele está a tremer? Acho que está a tremer. Ponho as minhas mãos nos seus ombros e esfrego-lhe os braços para cima e para baixo.
— Então, está tudo bem. São velhos hábitos, certo? — digo, para tentar aliviar o ambiente, mas o coração grita comigo. — Porque não regressamos e nadamos um pouco, para nos acalmarmos? — continuo, olhando em volta e percebendo agora que nem sequer cheguei a meio do lago.
Quando volto a olhar para o Sam, ele tem o maxilar contraído, como se estivesse a tentar decidir algo, mas diz apenas:
— Sim, está bem.
*
Assim que chegamos do nosso muito curto e muito silencioso regresso de barco, o Sam vai a casa para mudar de roupa. Ainda da água, eu tinha tido uma visão rápida da nossa cabana, relembrando os meus pais sentados na doca, com copos de vinho fresco. Agora, estou sentada à beira da doca, à espera do Sam, com os pés na água, a recordar o que acabou de acontecer e a demorar-me no momento em que os seus dedos passaram para dentro do meu biquíni. As minhas ancas ainda picam no sítio onde ele as apertou. Houve uma altura em que eu queria o Sam de todas as maneiras que fosse possível tê-lo — isso não mudou. E, se ele tivesse continuado, eu também teria. Tenho vergonha dessa verdade, mas não a posso negar. Conheço-me. O meu autocontrolo desliga-se quando estou perto dele. Pergunto-me se essa seria uma boa ideia para um livro, uma mulher sem autocontrolo. Sorrio para mim própria — há muito tempo que não sonhava acordada com histórias para escrever.
Ouço os passos do Sam atrás de mim e espreito por cima do ombro. Veste uns calções de banho cor de coral que ficam a matar na sua pele bronzeada e traz duas toalhas e uma garrafa de água.
— Em que estás a pensar? — pergunta. Pousa as toalhas, senta-se ao meu lado, com o ombro a tocar no meu, e passa-me a garrafa.
— Só numa ideia para uma história.
— Ainda escreves?
— Não — admito. — Já nem sequer escrevo.
— Mas devias escrever — diz o Sam gentilmente, passado um instante. — Eras mesmo boa. Tenho a certeza de que ainda tenho um exemplar autografado do Sangue Jovem na gaveta da secretária do meu antigo quarto.
Olho-o, espantada.
— Não tens nada.
— Tenho, sim. De certeza que ainda o tenho guardado. Continua em bom estado.
O Sam deve ter visto o meu ar interrogativo, porque responde mesmo sem eu fazer a pergunta.
— Há um ano que estou no meu antigo quarto. E, há uns tempos, dei uma volta às minhas coisas.
— Nem acredito que ainda o tens. Acho que nem eu tenho um — comento, incrédula.
— Bem, mas não podes ficar com o meu. — Ri-se. — Está dedicado a mim, se bem te lembras.
— Claro que sim — sussurro, enquanto a minha mente começa a divagar com nostalgia. Quem me dera que a Sue aqui estivesse. Havia de adorar ver-me com 30 anos a tentar atravessar o lago sem sequer treinar.
A pergunta sai-me pela boca assim que é formulada na minha cabeça:
— A tua mãe odiava-me?
Viro-me para o Sam e vejo-lhe a expressão atónita, sem saber o que responder. Permanece em silêncio durante um grande bocado.
— Não, ela não te odiava, Percy — responde, finalmente. — Ficou preocupada por termos deixado de nos falar assim tão subitamente. Fez muitas perguntas. Para algumas, eu tinha respostas, para outras, não. E, não sei, acho que também ficou magoada. — Fixou os olhos azuis em mim. — Ela amava-te. Éramos família.
Aperto os lábios com muita força e olho para o céu.
É este o momento, penso. É agora que tenho de lhe dizer.
Mas, então, o Sam fala outra vez:
— Por falar nisso, eu também não.
— Tu também não o quê? — pergunto, olhando-o.
— Não te odeio. — É tudo o que diz. Eu não sabia o quanto precisava de ouvir aquelas palavras até ao momento em que saíram da boca dele. O meu lábio inferior começa a tremer e mordo-o, concentrando-me na agudeza dos dentes. A minha coragem desvaneceu-se. Estou tão frágil como palha seca.
— Obrigada — respondo, quando tenho a certeza de que a voz não se embarga. O Sam empurra-me ligeiramente com o ombro.
— Vamos? — Faz sinal com a cabeça na direção da jangada. — Talvez consigamos pôr mais sardas nesse teu nariz.
Solto uma gargalhada nervosa. Ele levanta-se e estende a mão, para me ajudar.
— Eu pedia-te já desculpa, Percy, mas sei que não me vou arrepender — diz, esboçando um meio sorriso, e antes que eu possa perguntar o que ele quer dizer, ele pega em mim como se eu fosse um saco de batatas e atira-me à água.