Espalhamos as cinzas da Sue numa sexta-feira de julho, ao fim do dia. Demorou um ano para que o Sam e o Charlie conseguissem deixá-la partir. Escolhemos aquela hora porque, nas raras ocasiões em que a Sue estava em casa com os filhos ao fim de uma tarde de verão, servia o jantar na doca à hora em que o sol começava a lançar a sua luz no lado mais afastado do lago e suspirava com um prazer cansado.
«Não sei se é mais bonito porque quase nunca tenho oportunidade de o ver nesta altura do ano ou se é sempre assim tão especial», dissera ela uma vez, enquanto púnhamos a mesa. «É a hora mágica.»
E é mesmo mágica, quando eu e o Sam, de mão dada, seguimos o Charlie pela colina abaixo, até ao lago. Aquele brilho dourado ilumina todos os detalhes da linha de árvores e da margem, que não se conseguem ver quando o sol está alto. Até a água parece ficar imóvel, como se também ela estivesse a descansar das atividades do dia, à espera da hora de um cocktail ou de um churrasco em família. Caminhamos pelas tábuas de madeira da doca dos Floreks e subimos para o Barco Banana.
O Sam e o Charlie concordaram que este barco tinha de fazer parte deste dia, que iríamos no barco que fora do pai deles para nos despedirmos da sua mãe. Tinham tentado consertá-lo juntos, nos poucos fins de semana da primavera em que tínhamos vindo da cidade até aqui. Eu tivera dúvidas sobre aquele belo plano, mas o Charlie insistira em que já o tinham feito uma vez e podiam voltar a fazê-lo. O Sam afirmou que era muito mais habilidoso agora do que tinha sido antigamente. Nenhuma das coisas se revelou verdadeira.
No fim de semana prolongado de maio, encontrei-os na garagem, cobertos de óleo, meio embriagados, a pontapearem a parte lateral do barco. No dia seguinte, transportaram-no para a marina.
Agora, o Charlie vai sentado no lugar do condutor, e o Sam está no banco ao lado dele, enquanto nos dirigimos ao meio do lago. Observo-os, sentada no banco em frente, o banco onde estava sentada, há muitos anos, quando me apercebi de que estava apaixonada pelo meu melhor amigo. Hoje, o Sam veste um fato — outra coisa em que ele e o Charlie concordaram foi que esta ocasião requeria casacos e gravatas, apesar de ambos os odiarem. O Sam parece tão adulto, algo que, de vez em quando, ainda me apanha de surpresa, e, ao mesmo tempo, continua a parecer aquele magricela doido por ciência por quem me apaixonei.
Ele apanha-me a olhá-lo e esboça um meio sorriso, dizendo-me «Amo-te» com os lábios, por cima do som do barco. Eu retribuo. O Charlie percebe a nossa troca e dá-lhe uma cotovelada no braço, enquanto desliga o motor. Somos os únicos no meio do lago.
— Isto não é hora de namoriscar, Samuel — diz o Charlie, enquanto me pisca o olho.
Atualmente, vivemos todos em Toronto. Eu e o Sam, num pequeno apartamento num condomínio, na Baixa, e o Charlie noutro, mais chique, num bairro melhor, a cinco estações de metro para norte. Entre as longas horas de trabalho do Charlie, os turnos do Sam no hospital e a minha escrita (foi o Sam quem me convenceu, com um «Tenta, tenta só», e agora ando às voltas com ela de manhã muito cedo, antes de sair para o trabalho), não temos tanto tempo juntos como gostaríamos. E gostamos mesmo de passar tempo juntos. É uma surpresa e um alívio — que não chegou sem alguns momentos desconfortáveis e algumas discussões, especialmente durante os primeiros encontros —, e agora aqui estamos todos, de cabelo ao vento, dirigindo-nos para o meio do lago Kamaniskeg, no Barco Banana.
Também eu e o Sam tivemos de trabalhar muito para chegarmos aqui — para encontrarmos o nosso registo como casal, para confiarmos um no outro, e para eu combater aquela voz persistente que me diz que não sou suficientemente boa, que não o mereço a ele nem à felicidade que tenho. Já nos desentendemos, já nos acusámos e já gritámos, mas mantivemo-nos juntos e resolvemos o que foi necessário. Também fomos amigos. E essa tem sido a parte mais fácil — rir, brincar, darmos apoio um ao outro. Ainda conseguimos comunicar sem termos de falar. E demos um bom uso à coleção de filmes de terror do Sam.
O Sam segura na urna, uma caixa de teca suavemente polida, que parece pequena demais para conter tudo o que a Sue era. O seu sorriso. A sua confiança. O seu amor.
— E então? — pergunta ao irmão. — Estás pronto?
— Não — responde o Charlie. — E tu?
— Nada — diz o Sam.
— Mas está na altura — replica o Charlie.
O Sam concorda.
— Está na altura.
Dirige-se à popa enquanto o Charlie fica no lugar do condutor, vendo o irmão abrir a tampa e apoiar as pernas contra a parede do barco. O Sam olha-nos por cima do ombro, primeiro para mim, depois para o Charlie, e acena.
— Vamos — afirma.
O Charlie acelera e o barco avança através da água. O Sam ergue a urna e dá-lhe uns toques, para que as cinzas da Sue voem para a água no rasto do barco, deixando uma leve linha cinza no azul brilhante da água. Em segundos, desaparece.
Regressamos a casa em silêncio, o Charlie à frente e o Sam ao meu lado, com o braço sobre os meus ombros. Ouvimos a música e os risos ainda antes de chegarmos a meio do caminho.
Há algumas dezenas de pessoas em casa dos Floreks — uma grande festa, como a Sue teria gostado. Nas colunas, ouvem-se a Dolly e a Shania. Há comida e vinho e cerveja em demasia. Há pierogies feitos pelo Julien, que comprou a Taberna aos dois irmãos, com um «desconto de família». Há dezenas de convidados, todas as pessoas que adoravam a Sue, incluindo os meus pais, e outras que não tiveram essa oportunidade, mas gostariam de ter tido, como a Chantal. E há um remoinho de cabelo ruivo. Porque uma das coisas mais difíceis que fiz durante o último ano foi pedir desculpa à Delilah. Esperava que ela fosse educada e distante quando nos encontrámos num café, em Otava — tinha passado tanto tempo. Mas não esperava que ela me envolvesse nos seus braços e perguntasse por que raio tinha demorado tanto tempo.
E mais tarde, ao fim da noite, quando toda a gente tiver ido embora e estivermos só eu e o Sam, em pijama, na cave, haverá pipocas e um filme a passar no fundo, e um anel numa caixinha de madeira com as minhas iniciais gravadas na tampa. Será feito de fios de tecido cujas cores combinarão com a pulseira que tenho no pulso. E porei um joelho no chão e pedirei ao Sam Florek que fique comigo. Que seja a minha família. Para sempre.